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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.64 Rio de Janeiro ene./mar 2021  Epub 30-Jul-2021

https://doi.org/10.12957/teias.%y.50123 

Ensaios

JUSTIÇA SOCIAL: uma trajetória conceitual

SOCIAL JUSTICE: a conceptual trajectory

JUSTICIA SOCIAL: una trayectoria conceptual

Valéria Pereira Minussi1 
http://orcid.org/0000-0003-2322-2688

Nara Vieira Ramos2 
http://orcid.org/0000-0002-7595-0006

1Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

2Universidade Federal de Santa Maria - UFSM


Resumo

O artigo objetiva aprofundar o debate sobre Justiça Social retomando a construção do conceito e como ele se apresenta hoje. A Justiça Social está pautada em três dimensões: Redistribuição, Reconhecimento e Representação. Transversalmente a tais dimensões, há a ideia de Justiça Social como igualdade de oportunidades e igualdade de posições. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, abordando ideias de autores como Rawls (2000a, 2000b, 2003), tratando de Redistribuição, Fraser (2006) apresentando o Reconhecimento, Young (2006) para o debate sobre Representação, e Dubet (2014) que apresenta a igualdade de oportunidades e de posições como formas de Justiça Social. O conceito Justiça Social está em constante transformação, sendo dinâmico, seguindo as especificidades das sociedades e dos sujeitos que a integram, acompanhando suas demandas e necessidades por eles apresentadas.

Palavras-chave: redistribuição; reconhecimento; redistribuição

Abstract

The article intends to deepen the debate about Social Justice resuming the construction of this concept and how it is considered nowadays. Social Justice is based on three dimensions: Redistribution, Recognition and Representation. Crosswise, there is an idea of Social Justice as equals opportunities and equals positions. Conducted as a bibliographic search, this article addresses ideas from Rawls (2000a, 2000b, 2003) studying the concept of redistribution, Fraser (2006) bringing the concept of recognition, Young (2006) debating representation and Dubet (2014) presenting the equals opportunities and equals positions as forms of Social Justice. The concept of Social Justice is constantly changing, being dynamic, following the specificities of the societies and individuals that are part of it, as well as their demands.

Keywords: redistribution; recognition; representation

Resumen

El artículo tiene como objetivo profundizar el debate sobre la Justicia Social al reanudar la construcción de su concepto y de cómo él se presenta hoy. La justicia social se basa en tres dimensiones: redistribución, reconocimiento y representación. Transversalmente a estas dimensiones, hay la idea de la Justicia Social como igualdad de oportunidades e igualdad de posiciones. Se realizó una investigación bibliográfica, abordando ideas de autores como Rawls (2000a, 2000b, 2003), que trata sobre Redistribución, Fraser (2006), presentando el Reconocimiento, Young (2006) para el debate sobre Representación y Dubet (2014), que presenta la igualdad de oportunidades y de posiciones como formas de justicia social. El concepto de Justicia Social cambia constantemente, es dinámico, sigue las especificidades de las sociedades y de los sujetos que las integran, siguiendo sus demandas y necesidades por ellos presentadas.

Palabras clave: redistribución; reconocimiento; representación

INTRODUÇÃO

O artigo discorre sobre a trajetória do conceito da Justiça Social até chegar em como a concebemos atualmente. Tal conceito está em constante transformação e construção. Logo, pensar o conceito de Justiça Social parece vago e abrangente. Mais fácil seria perceber as injustiças e compreender o que não é Justiça Social. Para melhor compreensão do termo, apresentamos inicialmente o que não é Justiça Social, para posteriormente dialogar sobre tal tema.

Murillo e Aramburuzabala (2014) apresentam quatro ideias do que não se configura como Justiça Social. São elas: 1) Justiça Social não é somente direitos humanos. Para os autores o cumprimento dos direitos humanos é uma obrigação do poder público de uma sociedade baseada na dignidade. E, entretanto, para uma sociedade ser justa é necessário muito mais do que apenas o cumprimento dos direitos humanos; 2) Justiça Social não é igualdade de oportunidades, uma vez que dar as mesmas oportunidades a pessoas que têm necessidades diferentes legitimaria as desigualdades; 3) Justiça Social não é distribuição equitativa de bens, já que atualmente, para além das injustiças relacionadas a redistribuição, existem muitas injustiças e discriminações por razões de gênero, cultura, origem, ou seja, por falta de reconhecimento e participação das minorias; 4) Justiça Social não se limita a um Estado-Nação. Assim como o dinheiro, a justiça também deve se globalizar, pois dificilmente haverá Justiça Social em um mundo tão desigual.

O conceito Justiça Social é amplo e abarca diferentes elementos para que a sociedade seja justa. Para um aprofundamento do tema faremos uma retomada da construção desse conceito e como ele se apresenta atualmente. O conceito como compreendemos hoje é recente, possuindo pouco mais de 150 anos, como apresentam Murillo, Román e Hernandez-Castilla (2012). Constituise como um campo escorregadio, já que não é uma tarefa simples defini-lo e explicá-lo. Sua origem remonta aos filósofos gregos Platão e Aristóteles, tendo grande influência da igreja católica no século XIII, com São Tomás de Aquino. Entretanto, é a teoria de Rawls que consolida a concepção moderna de Justiça Social.

Neste artigo, apresentaremos, a partir de um estudo bibliográfico, as correntes filosóficas que influenciaram a constituição do conceito Justiça Social. Abordando a construção de tal conceito, a partir de autores como Rawls (2000a, 2000b, 2003), Sen (2008) e Nussbaum (2013), quando falamos em Redistribuição, Fraser (2006) e Honneth (2006; 2003) apresentando o Reconhecimento como forma de Justiça Social, e Young (2006) para o debate relacionado a Representação, entre outros autores. Tais abordagens – Redistribuição, Reconhecimento e Representação (também apresentada por alguns autores como participação) são conhecidos como os conhecidos 3R (três erres) da Justiça Social. Também faremos menção à Justiça Social a partir de duas concepções apresentadas por Dubet (2014): a igualdade de oportunidades e a de posições.

AS INFLUÊNCIAS DO CONCEITO MODERNO DE JUSTIÇA SOCIAL

Apesar de não haver uma centralidade ao tema da justiça, as correntes filosóficas do utilitarismo e do contratualismo marcaram a construção do conceito Justiça Social. Isso porque essas correntes procuram compreender e estabelecer as configurações das instituições com o objetivo de analisar os problemas sociais emergentes, prevendo a cooperação para os indivíduos viverem em sociedade.

O utilitarismo teve sua origem atribuída a Jeremy Bentham e foi difundido a partir das contribuições de John Stuart Mill, tendo ainda outros filósofos que defenderam essa corrente filosófica, que se desenvolveu no século XIX pautada no positivismo, caracterizando-se assim como estritamente racional, como apresenta Torres (2017).

Audard (2007, p. 741) defende que “[...] o princípio geral ao que todas as regras da prática deveriam conformar-se diz que elas devem conduzir à felicidade da humanidade ou, de preferência, de todos os seres dotados de sensibilidade”. No utilitarismo, o princípio que conduz tanto as ações individuais, quanto as coletivas, procura a maior felicidade para o maior número de pessoas, como coloca Peluso (1998). É necessário compreender que o termo “utilitarismo” se configura como tudo ou toda a ação que proporciona prazer, satisfação e/ou felicidade, não se restringindo apenas ao útil.

Se a teoria utilitarista prevê a maximização do prazer e também menciona a minimização da dor e do sofrimento, o que segundo Peluso (1998) é por vezes esquecida. Para o autor, o utilitarismo, em sua origem, daria também uma “[...] contribuição para o problema do combate à pobreza à injustiça social, na medida em que viam nela as expressões de uma ordem injusta, posto que associada ao sofrimento de multidões” (PELUSO, 1998, p. 14-15), prevendo a maximização do bem-estar coletivo.

Mas é na corrente filosófica do contratualismo que o conceito Justiça Social ganha sustentação, principalmente para Rawls, criador da concepção moderna de tal conceito. O contratualismo teve Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau entre outros autores como defensores de seus pressupostos. Apesar de cada autor ter suas especificidades na forma de pensar tal teoria, todos entendiam que a teoria do contrato social era a melhor forma de compreender a sociedade.

O contratualismo defende que os indivíduos estão vinculados a partir de um contrato social, para viverem juntos, em sociedade. A concepção dessa corrente filosófica afirma que a organização social e a vida dos membros da sociedade dependem de um acordo suscetível de ser definido de diversas formas que permite definir os princípios básicos de tal sociedade, como coloca Martins (2019).

As ideias de Hobbes, postas por Freeman (2007), sobre o contrato social estão pautadas por um interesse, em que o acordo é constituído como um

[...] compromisso racional, um mercado de interesses essencialmente conflitantes, no qual cada parte está disposta de limitar a busca direta de seus interesses com a condição de que o outro faça o mesmo. Um traço essencial das concepções fundadas sobre os interesses é que cada parte no acordo deve ganhar alguma coisa com ele (ou pelo menos nada perder) em relação ao que teria na ausência do acordo (FREEMAN, 2007, p. 342).

Tal corrente filosófica defende que os indivíduos realizam um contrato para viver em sociedade, dando a eles certos direitos em troca de abandonar sua liberdade que teriam ao viver em seu “estado natural” ou “situação inicial” (TORRENCILLA, CASTILLA, 2011). No estado natural, os indivíduos são livres, iguais e independentes, mas não há trabalho, entre outros elementos sociais, sendo a vida dos sujeitos solitária e perigosa. Assim, “[…] siempre que cierta cantidad de hombres y mujeres se unen en una sociedad, renunciando cada uno de ellos al poder ejecutivo que les otorga la ley natural en favor de la comunidad allí, y sólo allí, habrá una sociedad política o civil” (TORRENCILLA, CASTILLA, 2011, p. 11). No contratualismo, somente há sociedade a partir do acordo social firmado entre todos os indivíduos que integram o grupo.

Essas duas teorias filosóficas influenciam a concepção moderna de Justiça Social, afirmando ou negando uma em relação a outra. Rawls desenvolveu sua teoria do contratualismo em detrimento do utilitarismo. O autor apresenta a ideia de utilitarismo a partir da concepção de que

[...] uma pessoa age de um modo muito apropriado, pelo menos quando outros não são afetados, com o intuito de conseguir a maximização de seu bem-estar [...]. Uma vez que o princípio para um indivíduo consiste em promover na medida do possível seu próprio bem-estar, seu próprio sistema de desejos, o princípio para a sociedade é promover ao máximo o bem-estar do grupo, realizar até o mais alto grau o abrangente sistema de desejos ao qual se chega com a soma dos desejos dos seus membros. Exatamente como um indivíduo avalia vantagens presentes e futuras com perdas presentes e futuras, assim uma sociedade pode contrabalancear satisfações e insatisfações entre diferentes indivíduos. Dessa forma, por meio da observação dos fatos, chega-se ao princípio da utilidade de modo natural: uma sociedade está adequadamente ordenada quando suas instituições maximizam o saldo líquido de satisfações (RAWLS, 2000a, p. 25-26).

Rawls assegura que tal concepção filosófica não serve a seus propósitos, uma vez que a maneira mais coerente de se chegar ao utilitarismo é aplicar, para toda uma sociedade, princípios escolhidos por alguns representantes, isto é, tornar coletivo os desejos de alguns. Nesse sentido, “[...] o utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas” (RAWLS, 2000a, p. 30). O autor apresenta o contratualismo como forma coerente de se desenvolver a Justiça Social que ele apresenta como equidade (RAWLS, 2003), já que, para Rawls, o utilitarismo priva alguns indivíduos da satisfação de seus interesses em favor da maximização do bem-estar social coletivo, como coloca Mattos (2016), desconsiderando a individualidade e as necessidades específicas de cada sujeito que integra a sociedade.

Atualmente, ao se pensar em Justiça Social, é preciso ter clareza de que o conceito está imbricado de ideologias, utopias e lutas. Para Torrencilla e Castilla (2011), há alguns elementos essenciais a serem reconhecidos para se falar de Justiça Social.

Murillo, Román e Hernandez-Castilla (2012) trazem cinco destes elementos. Para eles: 1. O conceito Justiça Social não é único e universal, sendo um erro a tentativa de fechá-lo em uma única abordagem. O que pode ser feito é contribuir para o debate com algumas abordagens; 2. Não há neutralidade nesse conceito, pois tem fortes implicações políticas e ideológicas, refletindo uma visão de mundo e uma utopia de um mundo melhor. Um dos elementos chave no debate ideológico sobre Justiça Social talvez seja a tensão criada entre liberdade e igualdade em prol do bem comum; 3. Talvez o conceito Justiça Social não seja estável e fixo, mas um projeto dinâmico, nunca completo, acabado ou alcançado, que deve estar em constante reflexão e melhoria. Griffits (2003) apresenta o dinamismo elaborando o conceito Justiça Social como um verbo em ação; 4. Este conceito é uma meta, um processo e uma utopia a ser alcançada; 5. Configura-se em um conceito cheio de armadilhas, uma vez que mesmo a luta por direitos humanos, igualdade de oportunidades ocultam posições conservadoras que, muitas vezes, buscam manter o "statu quo". Assim, percebemos que tal conceito pode ser tomado tanto para a mudança social, como para sua manutenção, já que se constitui de elementos que podem variar de acordo com as posições ideológicas.

A Justiça Social pode ser percebida a partir de três concepções, sendo elas a Redistribuição, Reconhecimento e Representação, o que chamamos de “os três erres” da Justiça Social.

OS TRÊS ERRES (3 RS) DO CONCEITO JUSTIÇA SOCIAL

Desde a concepção moderna do conceito Justiça Social, tal termo foi atravessado pelas mudanças sociais, ganhando características decorrentes das necessidades que os sujeitos sociais demandavam em suas vidas. Cada abordagem da Justiça Social surge em um período distinto, reivindicando direitos distintos, para sujeitos, muitas vezes, distintos.

A Justiça como Redistribuição, como o próprio termo diz, baseia-se na redistribuição de bens primários, defendendo uma apropriada divisão dos benefícios e recursos da sociedade. Há três princípios que regem a adequada distribuição dos bens e benefícios sociais, como apontam Rawls (2000a); Torrencilla, Castilla (2011). São eles: a justiça igualitária, isto é, dar a cada sujeito uma parte igual dos bens – percebemos que a distribuição igualitária não sanará as desigualdades sociais, visto que a distância entre os indivíduos não diminui; a justiça segundo a necessidade, ou seja, dar a cada pessoa de acordo com as necessidades individuais – quem possui mais necessidade de um bem deverá possuir benefícios maiores para sanar essa carência; e a justiça segundo o mérito, na qual os bens são distribuídos de forma que quem contribui mais tem mais benefícios – quem produz mais benefícios sociais e riquezas deve receber maior proporção dos mesmos.

Murillo, Román, Hernandez-Castilla (2012) somam a esses princípios mais um: o da diferença, no qual as desigualdades somente são justificadas para beneficiar os mais desfavorecidos, o que pode ser visto na teoria de Justiça como Equidade de Rawls (2003).

Rawls (2000a, p. 58) estabelece uma teoria de justiça pautada na equidade considerando como parte fundante da Justiça Social as instituições, sendo elas “[...] sistema público de regras que define cargos e posições com seus direitos e deveres, poderes e imunidades, existindo em um determinado tempo e lugar devendo ser obedecida em sua regulamentação e ações. O component principal da justiça é “estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direito e deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social” (RAWLS, 2000a, p. 7-8). Percebemos que a teoria de Justiça de Rawls volta seu olhar para as instituições e para a estrutura básica da ociedade.

Em sua teoria, Rawls (2003, p. 13) apresenta a estrutura básica como objeto primeiro da justiça, configurando-se na “[...] maneira como as principais instituições políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema de cooperação social e a maneira como distribuem os direitos e os deveres básicos e determinam a divisão das vantagens [...]”. A Justiça Social como equidade apresentada por Rawls é concretizada a partir de uma estrutura social pautada em dois princípios:

Primeiro princípio - Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente istema total de liberdades básicas iguais que sejam compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo princípio - As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: a) Tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa e, b) Sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (Rawls, 2000a, p. 333).

Entendemos que esses dois princípios consistem em que todos os bens primários sociais devem ser distribuídos igualmente exceto se uma distribuição desigual seja em benefício dos mais desfavorecidos, como aborda Kukathas (2007). Rawls apresenta uma lista de cinco bens primários, podendo ampliar dependendo da necessidade. São eles os direitos e liberdades fundamentais, liberdade de movimento e livre escolha de ocupação em um contexto de oportunidades diversificadas, poderes e prerrogativas das posições e cargos de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas, renda e riqueza e as bases sociais do autorrespeito, como colocam Kukathas (2007), Rawls (2003; 2000b) e Torrencilla, Castilla (2011).

Rawls elucida a abordagem redistributiva da Justiça Social de forma clara, apresentando a igualdade de oportunidades, o mérito e a equidade como formas legítimas de se efetivar a justiça. Porém, Sen, também estudioso da Justiça Social redistributiva, acredita que a proposta de Rawls fundamentada nos bens primários é incompleta, já que está voltada para os meios de se alcançar os fins e não nestes propriamente dito (KANG, 2011). Segundo Sen (2008, p. 136), os bens primaries são “[...] meios para qualquer propósito ou recursos úteis para a busca de diferentes concepções do bem que os indivíduos podem ter”. Sen questiona, ainda, a fixação dos bens primários de Rawls considerando-os inflexíveis. Isso porque

[…] una propuesta de equidad no debería concentrarse en la igualdad de bienes primarios como sugiere Rawls […]. Los bienes primarios y los recursos son importantes como medios para obtener funcionamientos importantes, pero problema de concentrarnos en estos instrumentos es el ‘olvido’ que se realiza, al no tener en cuenta las distintas capacidades de los individuos para transformarlos en funcionamientos (TORRENCILLA, CASTILLA, 2011, p. 14).

Sen apresenta mais um elemento a ser considerado ao se falar de Justiça Social redistributiva: as capacidades. As capacidades são apresentadas como “[...] conjunto de vetores de funcionamentos refletindo a liberdade da pessoa para levar um tipo de vida ou outro” (SEN, 2008, p. 80). Devemos considerar as características pessoais e sociais dos sujeitos, o que pode levar a variações consideráveis na forma como estes transformam os recursos e os bens primários em realizações.

Quando o autor fala em capacidades, não significa que todas as capacidades são válidas ou que o enfoque nas capacidades deva ser demandado em todas as situações. Segundo Sen (2008, p. 148) “[...] o argumento em favor de prestar mais atenção aos funcionamentos (ou capacitações) na avaliação das desigualdades de bem-estar (ou da liberdade) não deve ser visto como uma ‘preferência incondicional’ por essas variáveis”. Logo, as capacidades não são o único equalizador de sua teoria, mas o principal.

O enfoque das capacidades pauta-se na ideia de que a análise das desigualdades e desvantagens necessita considerar a pluralidade dos espaços em que essas desigualdades se encontram, bem como a diversidades dos sujeitos. Sen (2011) apresenta a concepção de que os recursos materiais não devem ser considerados um fim em si mesmos ou uma vantagem, já que “[...] ao julgar as vantagens que diferentes pessoas têm em relação a outras, temos de olhar as capacidades totais que conseguem desfrutar” (SEN, 2011, p. 287). Sendo que a pobreza é vista como privação de capacidades.

Há variações na conversão dos recursos em tipos de vida que os sujeitos podem levar, ou seja, funcionamentos. Sen (2011) apresenta quatro variações principais. São elas: a) heterogeneidades pessoais em que os sujeitos possuem características específicas que influenciam em sua renda (idade, gênero, deficiência); b) diversidades no ambiente físico diz respeito ao lugar onde o sujeito se encontra, podendo necessitar mais ou menos recursos para uma qualidade de vida; c) variações no clima social considera as condições sociais que o sujeito tem a sua disposição (saúde pública, ensino público, violência); d) diferença de perspectivas relacionais compreende aos padrões de comportamento da comunidade em que o sujeito está inserido (vestuário).

Além destas variações que convergem à pobreza como privação de capacidade, há ainda o que o autor coloca como “inaptidões” em que pessoas com deficiência são vistas como inaptas à produção de renda. Os sujeitos com deficiências possuem “desvantagens de renda”, isto é, dificuldade da capacidade de obter renda e recursos e, ainda “desvantagens da conversão”, ou seja, dificuldade de converter a renda e recursos em viver bem.

Devido a esses fatores, Sen (2008; 2011) acredita que a padronização dos bens primaries apresentados por Rawls não considera as especificidades dos sujeitos. Com isso, compreendemos as riquezas e os recursos materiais como meios que permitem ter mais liberdade para viver a vida que valorizamos, mas não como fins em si mesmos. Nas obras de Sen (2008; 2011) podemos perceber dois aspectos. Primeiro, sua teoria de justiça redistributiva é genérica e direcionada a comparar as vantagens individuais sem sugerir uma fórmula do que deve ser considerado ao se falar de capacidades e liberdade (SEN, 2011). Segundo, o enfoque das capacidades evidencia uma pluralidade de aspectos da vida e as preocupações dos sujeitos. Já que a homogeneidade entre os sujeitos não existe, distintos são os aspectos que cada pessoa valoriza. Assim, os sujeitos e suas vidas são o núcleo da igualdade das capacidades e não os recursos materiais (OLIVEIRA, GOMES, 2013).

O enfoque das capacidades de Sen, pode ser complementado a partir da teoria de Nussbaum (2013), que faz uma crítica às teorias de Rawls e suas bases contratualistas. Como vimos, o contratualismo prevê um acordo que tenha vantagens recíprocas – os sujeitos ganhariam algo por viverem juntos, que não ganhariam se vivessem cada um por si entre sujeitos livres, iguais e independentes. O contrato social não abre espaço para os indivíduos com impedimentos e deficiências na formulação de princípios que irão conduzir a sociedade.

Em crítica às teorias desenvolvidas por Rawls, Nussbaum (2013) concebeu, assim como Sen, o enfoque das capacidades como forma de desenvolver a Justiça Social, considerando um guia mais concreto para a formulação de políticas públicas. Enquanto Sen desenvolve o enfoque das capacidades a partir de um viés econômico, voltado a medir comparativamente a qualidade de vida, Nussbaum desenvolve essa abordagem com o intuito de explicar as garantias humanas essenciais observando um mínimo que a dignidade humana requer.

Nussbaum (2013, p. 84) parte da premissa das capacidades humanas, ou seja, do que “[...] as pessoas são de fato capazes de fazer e de ser, instruídas, de certa forma, pela ideia intuitiva de uma vida apropriada à dignidade do ser humano”. A autora apresenta uma lista de dez capacidades humanas centrais para uma vida apropriada à dignidade humana. Essas capacidades devem ser almejadas pelos sujeitos da sociedade sendo tratada como um fim e não um instrumento para o fim em outros.

Há de se considerar a ideia de um nível mínimo de cada capacidade apresentada por Nussbaum (2013). Abaixo desse nível mínimo, considera-se não estar disponibilizando aos cidadãos um funcionamento verdadeiramente humano. Desse modo, “[...] o objetivo social deve ser entendido em termos de conseguir trazer os cidadãos para cima do nível mínimo de capacidade” (NUSSBAUM, 2013, p. 85). Assim, a Justiça Social configura-se a partir da obtenção das capacidades humanas centrais dos sujeitos sociais. Abaixo descrevemos as capacidades humanas centrais estabelecidas por Nussbaum (2013); Oliveira, Gomes (2013); Torrencilla e Castilla (2011):

1. Vida: Ser capaz de viver até o fim da vida humana de duração normal, sem morrer de forma prematura; 2. Saúde corporal: Ser capaz de ter boa saúde, incluindo a saúde reprodutiva; receber alimentação adequada; ter uma moradia adequada; 3. Integridade corporal: ter mobilidade e segurança de movimentar-se livremente; estar seguro de assaltos violentos, incluindo agressão sexual; ter oportunidades para a satisfação sexual e escolha em matéria de reprodução; 4. Sentimento, imaginação e pensamento: Ser capaz de usar os sentidos, a imaginação, o pensamento e o raciocínio, recebendo uma educação que permita o desenvolvimento dessas capacidades. Ter um ambiente de liberdade para manifestar gostos e crenças a partir das capacidades descritas; 5. Emoções: Ser capaz de estabelecer vínculos com coisas e pessoas; ser capaz de amar, sentir saudade, gratidão e raiva justificada. Supõe a capacidade de desenvolver-se emocionalmente; 6. Razão prática: Ser capaz de formar uma concepção do bem e refletir criticamente sobre o planejamento da própria vida. (Isto implica a proteção da liberdade de consciência e prática religiosa); 7. Afiliação: Capacidade de viver com e em relação aos outros; desenvolver relações sociais de respeito, tendo compaixão e capacidade de exercício da justiça e a amizade; ter bases de autorrespeito e não humilhação; 8. Outras espécies: Ser capaz de viver com preocupação em relação aos animais, plantas e com o mundo da natureza; 9. Prazer: Ser capaz de rir, brincar e desfrutar de atividades recreativas; 10. Controle sobre o ambiente: (A) política: ser capaz de participar nas escolhas políticas que efetivamente governam a própria vida, tendo os direitos de participação política, liberdade de expressão e liberdade de associação; (B) material: ter propriedade (tanto os imóveis como os móveis), tendo o direito de procurar emprego numa base de igualdade com os outros.

Essa lista não está fechada e pode sofrer alterações ao longo do tempo. Mas vemos que compreende uma lista ampla, podendo ser tomada como universal, uma vez que as capacidades mencionadas por Nussbaum (2013, p. 94) abordam questões relevantes para todo e qualquer cidadão de toda e qualquer nação, na qual “[...] cada pessoa deve ser tratada como um fim” e não como um meio para a realização das capacidades de outros.

Para Nussbaum (2013, p. 90), as capacidades

[...] para as quais todos os cidadãos estão autorizados são muitas, e não uma, e são oportunidades para atividade, não simplesmente quantidades de recursos. Os recursos são inadequados como índice de bem-estar, porque seres humanos têm necessidades variadas de recursos e também habilidades variadas de fazer funcionar tais recursos.

A perspectiva das capacidades não considera exclusivamente a distribuição de recursos materiais, uma vez que para Sen e Nussbaum estes são apenas os meios e não um fim em si mesmos. Nussbaum (2013) vai além de Sen, elencando uma lista de capacidades humanas centrais para guiar a Justiça Social.

Percebemos que a Justiça Social, como Redistribuição, parte de pressupostos pautados na distribuição de bens e recursos materiais, culturais e capacidades. Já, a Justiça Social como Reconhecimento apresenta a justiça como legitimação das culturas das minorias.

Há quatro elementos levantados por Fraser (2006) que efetivam as distinções entre tais abordagens da Justiça Social, corroborado por Torrencilla, Castilla, (2011). O primeiro diz respeito às diferentes concepções que cada uma das abordagens de justiça traz. A Redistribuição define as injustiças como socioeconômicas, supondo que estão enraizadas nas estruturas econômicas da sociedade, isto é, na marginalização (trabalhos indesejados, mal pagos ou mesmo a falta de acesso ao trabalho), exploração (a apropriação da produção do trabalho do outro) e a privação (negação ao nível material suficiente). Enquanto o Reconhecimento define as injustiças como culturais, vinculadas a processos de representação, interpretação e comunicação.

Em segundo lugar, cada abordagem propõe diferente tipos de soluções para as injustiças. O enfoque da Redistribuição acredita que o remédio é a reestruturação econômica de alguma forma, seja por meio da redistribuição dos trabalhos, das riquezas ou mesmo a mudança da estrutura da propriedade. Já, o Reconhecimento vê a solução na mudança cultural ou simbólica, ou mesmo na reavaliação das identidades não representadas e de seus produtos culturais.

O terceiro elemento diz respeito às coletividades que sofrem injustiças em cada abordagem. Enquanto na Redistribuição os sujeitos que sofrem as injustiças são classes ou coletivos agrupados pelas questões de classe, no Reconhecimento os sujeitos dos coletivos estão ligados por questões de respeito, estima e prestígio que desfrutam em vista a outros grupos da sociedade. São questões relacionada a gênero, sexualidade, raça, entre outros grupos.

O quarto aspecto diz respeito de como cada abordagem concebe a realização da justiça. A Redistribuição concebe a justiça na luta pela erradicação das diferenças entre os sujeitos, já que a injustiça provém de uma estrutura social injusta. Já o Reconhecimento concebe a justiça na validação e valorização da diferença, uma vez que a injustiça está pautada na desvalorização cultural de coletivos específicos.

Enquanto a Justiça Social como Redistribuição centra seus esforços em aspectos de bens materiais, o Reconhecimento centra suas ideias em aspectos de bens culturais. Porém, percebemos que ambas abordagens de Justiça Social são válidas e, segundo Fraser (2006), não podemos fixar nosso olhar em extremos, já que ambas abordagens se entrecruzam no cotidiano dos sujeitos. Isso porque, muitas vezes, a luta de classe relaciona-se a luta de coletivos de minorias. É possível exemplificar a partir de questões relacionadas à luta da mulher (reconhecimento) por condições mais dignas e igualitárias de trabalho do mercado (redistribuição). Para a efetivação da Justiça Social, necessita-se Redistribuição e Reconhecimento, uma vez que nenhum deles sozinho é suficiente.

Enquanto Fraser (2006; 2002) defende a ideia de que as duas abordagens de Justiça Social se complementam, Honneth (2006; 2003) apresenta a tese de que qualquer forma de injustiça passa pela falta de reconhecimento. Nas palavras do autor as “[...] injusticias distributivas deben entenderse como la expresión institucional de la falta de respeto social o, mejor dicho, de unas relaciones injustificadas de reconocimiento” (HONNETH, 2006, p. 92). Ou seja, a justiça redistributiva, oriunda da luta de classes, também se configura como uma justiça de Reconhecimento, uma vez que os trabalhadores que lutam por qualificação nas condições de trabalho não são valorizados ou reconhecidos como deveriam ser em seu trabalho. Logo, todos os conflitos sociais são embasados por lutas de reconhecimento, inclusive as lutas de classe.

A Justiça Social como Reconhecimento é definida como a ausência de dominação cultural, isto é, baseia-se no objetivo de aceitar as diferenças culturais, étnicas, raciais e sexuais como legítimas. A valorização de padrões não hegemônicos procura desenvolver um novo paradigma de justiça, situada no reconhecimento das minorias. Assim, o Reconhecimento

[...] segundo imaginário político crê que a injustiça não tem especificamente a ver com a divisão social do trabalho ou propriamente com as desigualdades sociais, mas que ela é cultural ou simbólica e, portanto, está arraigada nos padrões sociais de representação que levam ao desrespeito. Ou seja, os indivíduos são socialmente marginalizados porque não são devidamente reconhecidos, de modo que a exclusão social é produto do não-reconhecimento (LIMA, 2016, 130).

A falta de reconhecimento é entendida como opressão e consequentemente como injustiça, já que, a Justiça Social como Reconhecimento está relacionada com as dinâmicas e movimentos sociais de luta por legitimação seja de gênero, raça, nacionalidade, entre outros. Assim, é preciso repensar os padrões culturais a fim de que haja Justiça Social.

Nas sociedades atuais,

[...] as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003, p. 207).

A estima social apresentada por Honneth, ou mesmo a ordem do status da sociedade apontada por Fraser, apresentam-se não apenas como uma dinâmica de reconhecimento das capacidades individuais, mas de grupos que retratam formas de vida.

Fraser (2002; 2006) ainda dá um passo além, inserindo na roda de discussão a importância da participação paritária na vida social, apresentando a abordagem da Justiça Social como Representação. A autora propõe uma combinação entre a dimensão da justiça como Redistribuição e como Reconhecimento, sem reduzir uma à outra. Para isso, Fraser (2002) apresenta o princípio da paridade de participação, em que “[...] a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si como pares” (FRASER, 2002, p. 13).

Logo, são indispensáveis duas condições para que haja a participação paritária. Primeiro, deve ter uma distribuição de recursos materiais que garanta a independência dos participantes, em detrimento da dependência e desigualdades econômicas que se convertem em obstáculos à paridade participativa. Segundo, é preciso que os modelos institucionalizados que dão valor às culturas considerem de igual forma, dando igual respeito a todos os participantes e garantam iguais oportunidades para atingir as considerações sociais. É necessário excluir padrões de valor cultural que depreciam determinados grupos de pessoas e as características vinculados a eles.

Percebemos que as condições trazidas por Fraser (2002; 2006) para uma participação estão relacionadas a Redistribuição e ao Reconhecimento. Assim,

[…] esta idea de justicia se fundamenta en la redistribución de bienes primarios, sin embargo considera que no es suficiente con el mero reparo de bienes materiales, sino que también resulta imperativo difundir otros ‘bienes’ asociados. La igualdad de oportunidades, el acceso al poder, la posibilidad de participar en diferentes espacios públicos o el acceso al conocimiento son algunos de estos otros ‘bienes’ (TORRENCILLA, CASTILLA, 2011, p. 18).

Dessa forma, todos os sujeitos têm direito à participação na vida social a partir de um tratamento equitativo na redistribuição dos recursos materiais e culturais a fim de alcançar os direitos humanos.

A Justiça Social como Representação pressupõe a promoção do acesso e a tentativa de garantir a participação dos que são excluídos pela sua etnia, idade, sexo, gênero, orientação sexual, capacidade física e mental, entre outros fatores, da vida social. Assim, concordamos com Murillo e Hernandez-Castilla (2011) quando afirmam que todos os seres humanos possuem direito a um tratamento equitativo. Para o seu desenvolvimento pessoal, é necessária a possibilidade de realização de atividades em comunidade, bem como ter o direito de participar das decisões destas atividades.

Ao pensar a abordagem da Representação na Justiça Social, há ainda elementos voltados à democracia. Honneth (2003) afirma que a participação democrática está relacionada ao reconhecimento, uma vez que sem a participação os sujeitos encontram-se excluídos dos processos e direitos do seu interesse conferidos pela sociedade. Há uma clara relação entre a ausência de reconhecimento e a falta de participação dos sujeitos.

Nesse mesmo viés, Young (2006) apresenta a Justiça Social como Representação, em que a Justiça Social necessita estar situada nos processos políticos, uma vez que são estes que suscitam grande parte das injustiças. Assim, a Justiça Social como Representação configura-se a partir da possibilidade dos sujeitos participarem da tomada de decisões. Dessa forma, “[…] para el desarrollo personal es necesario tener la posibilidad de ocuparse de la realización de actividades comunes, así como tener iguales derechos para participar en la determinación de estás actividades” (MURILLO, HERNANDEZ-CASTILLA, 2011 p. 19), sendo esta uma condição básica para a efetivação da Justiça Social.

A Representação é abordada por Young como sendo uma forma das minorias conseguirem espaço nas discussões políticas, apresentando o modelo de democracia comunicativa, no qual as instituições representativas não contrapõem a participação dos cidadãos, considerando essa relação para a eficiência do sistema democrático, como afirma Young (2006). Desse modo, a representação e a participação política se complementam. A Justiça Social como Representação prevê uma sociedade democrática em que a democracia necessita

[...] conter em seu repertório procedimental institutos de democracia direta, tais como o do plebiscito. Além disso, uma sociedade é mais plenamente democratic quanto mais possui fóruns patrocinados pelo Estado e fomentados pela sociedade civil para discussões sobre políticas, e pelo menos alguns deles devem influenciar procedimentalmente as decisões governamentais (YOUNG, 2006, p. 144).

Logo, a participação precisa ocorrer em distintas instituições sendo elas sociais, culturais, em contextos políticos e de governo. Nelas, os sujeitos devem ter liberdade de se posicionar a partir de seus interesses e necessidades.

Notamos que esses três conceitos Justiça Social não ocorrem de forma isolada, ou mesmo, de forma que um exclua o outro. Eles se complementam. Assim,

[…] el primero está centrado en la distribución de bienes, recursos materiales y culturales, capacidades; el segundo en el reconocimiento y el respeto cultural de todas y cada una de las personas, en la existencia de unas relaciones justas dentro de la sociedad; y el tercero está referido a la participación en decisiones que afectan a sus propias vidas, es decir, asegurar que las personas son capaces de tener una activa y equitativa participación en la sociedad. Obviamente, no son conceptos independientes, sino que comparten muchos de sus planteamientos (MURILLO, HERNANDEZ-CASTILLA, 2011, p. 12).

Além destas três abordagens de Justiça Social, Dubet (2014) aponta duas concepções que permeiam a Redistribuição, o Reconhecimento e a Representação: a igualdade de oportunidades, mencionada como forma de Justiça Social por alguns autores já citados e a igualdade de posições.

IGUALDADE DE OPORTUNIDADES X IGUALDADE DE POSIÇÕES

Contribuindo na discussão do conceito Justiça Social, Dubet (2014) apresenta duas concepções de Justiça: a igualdade de oportunidades e a igualdade de posições, abordando os fatores positivos e negativos de ambas.

A igualdade de oportunidades baseia-se “[…] en oferecer a todos la posibilidad de ocupar las mejores posiciones en función de un principio meritocrático” (DUBET, 2014, p. 12). Dentro desta lógica, as desigualdades são justas, uma vez que todas as posições estão abertas a todos. Já a igualdade de posições consiste em fazer com que “[...] las distintas posiciones estén, en la estrutura social, más próximas las unas de las otras” (DUBET, 2014, p. 11). Não se trata da mobilidade social dos indivíduos dentro destas posições, mas de valorizar as posições menos favorecidas ao ponto de diminuir a distância entre elas. Porém, observamos que ambas concepções de Justiça Social, apesar de distintas, possuem um mesmo objetivo: reduzir as desigualdades tornando-as o mais próximo de justas.

A igualdade de posições está relacionada à redistribuição de renda e bens e aos direitos sociais vinculados à saúde, aposentadoria e condições de trabalho. Nesse sentido, o Estado tem um papel importante para reduzir as desigualdades e garantir melhores condições aos indivíduos que se encontram nas posições mais frágeis. Em razão de a igualdade de posições ter sido promovida principalmente pelos movimentos trabalhistas e por partidos de esquerda, essa concepção de justiça possui duas consequências importantes. A primeira é que o trabalho ocupa um papel essencial para os indivíduos, uma vez que a maioria dos seus direitos estão relacionados a ele. Assim, “[…] la igualdad de posiciones es un derecho derivado del trabajo” (DUBET, 2014, p. 24). A segunda está relacionada ao acesso a certos bens que eram reservados a poucos por muito tempo, como por exemplo o acesso à educação formal. Com isso, “[…] los servicios públicos y su gratuidad son percibidos como una de las condiciones de la igualdad de posiciones” (DUBET, 2014, p. 24). Assim, percebemos alguns avanços conquistados através de lutas relacionadas à igualdade de posições.

A igualdade de oportunidades está mais presente nas sociedades democráticas modernas, que a igualdade de posições. Esta segunda concepção de Justiça Social modificou a antiga forma da estrutura social em que os postos de trabalho eram passados de geração para geração (como ocorria no feudalismo), assegurando a todos a oportunidade de ocuparem qualquer posição de trabalho. Assim, a igualdade de oportunidades defende “[…] la libertad de circular en el espacio social em función de los talentos y de las necesidades de cada uno, y de los requisitos del comercio” (DUBET, 2014, p. 53). Percebemos que a igualdade de oportunidades está calcada na maioria das concepções de justiça, a partir do ideal de meritocracia. Esta forma de justiça propõe que a cada geração os sujeitos se distribuam em todos os níveis das camadas sociais, a partir de seus dons e méritos, sem considerer sua origem social, econômica e suas condições iniciais.

Enquanto a igualdade de posições está associada a uma representação de sociedade dividida em classes sociais, na qual os sujeitos se definem a partir da posição que ocupam, a igualdade de oportunidades leva a definição dos sujeitos a partir das chances objetivas de poder ocupar qualquer posição na sociedade.

Concordamos com Dubet (2014), quando relata que ambas concepções de Justiça Social possuem suas limitações. A igualdade de posições está associada ao trabalho que cada indivíduo exerce. Logo, os sujeitos que estão fora do sistema (outsiders) não possuem nenhuma garantia de direitos. Dubet (2014, p. 38) afirma que para estes sujeitos “[…] la justicia de las posiciones resulta profundamente conservadora: favorece a quienes ya cuentan con una posición establecida e invita a los outsiders a mantenerse en el lugar subordinado que les es acordado”. Portanto, estes sujeitos que estão fora do sistema – os grupos de minorias, como as mulheres, os imigrantes, entre outros – estão mais suscetíveis à igualdade de oportunidades.

A crítica à igualdade de posições está no modelo engessado das desigualdades associadas ao emprego assalariado, que se converte em um modelo conservador incapaz de oportunizar a mobilidade na vida social e no trabalho, multiplicando, ainda, as infinitas desigualdades (DUBET, 2014). Dessa maneira, a igualdade de posições configura-se frágil quando há desemprego e precariedade. Também quando os anseios de igualdade estão mais presentes e mais individuais e quando os sujeitos se definem mais por sua mobilidade que por sua posição.

Em se tratando da igualdade de oportunidades, ninguém pode negar o direito dos sujeitos almejarem as posições mais valorizadas, suas condições e a oportunidade de ascendê-las. Porém, a crítica a este modelo de Justiça Social repousa nos seus limites e nos efeitos reais da igualdade de oportunidades. Com a seleção deste modelo, há uma redução no modo de acesso ao sistema em que as posições eram passadas de geração para geração em forma de herança. Isso pareceu uma evolução se tratando de Justiça Social, já que a partir disso todos os sujeitos passam a ter a oportunidade de ocupar qualquer posição no sistema.

Entretanto, a meritocracia aumenta mais as desigualdades, já que “[…] el declinar de la redistribución, fundado sobre el argumento que dice que el mérito de los vencedores debe ser recompensado sin nada que lo trabe, ha terminado por acentuar el peso del nacimiento y disparidad de las fortunas” (DUBET, 2014, p. 74). O autor critica essa forma de estruturar a igualdade de oportunidades, colocando que esse modelo necessita aproximar-se dos princípios de justiça de Rawls, em que a competência meritocrática não desfavoreça os mais frágeis e desprotegidos, mas os proteja a partir do princípio da diferença.

Outro ponto relevante de crítica à concepção da igualdade de oportunidades é que no momento em que cada sujeito tem a possibilidade de ocupar qualquer posição e os vencedores são responsáveis pelo seu sucesso, também os perdedores passam a ser responsáveis pelo seu fracasso, porque não souberam aproveitar as oportunidades. Nesse sistema há uma culpabilização das vítimas. Percebemos que os dois modelos descritos por Dubet (2014) são válidos e ao mesmo tempo criticáveis. Contudo, o autor defende a igualdade de posições em detrimento da igualdade de oportunidade. Não se tratando de excluir um modelo em benefício do outro, mas sim de priorizar o mais justo.

Enfim, a igualdade de posições configura-se em um projeto mais sólido e generoso de sociedade. Esse modelo configura-se como um projeto que

[…] es más sólido porque induce a un contrato social más abierto, a condición de mirar con mayor atención las políticas de ingresos, de protecciones y transferencias sociales. El modelo de igualdad de oportunidades parece decir siempre, al final, que uno no les debe nada a los demás y que es libre de toda a deuda. Pero se olvida demasiado que las oportunidades individuales se benefician de las inversiones colectivas. El buen éxito de algunos no habría sido posible sin el capital colectivo de las infraestructuras, de los equipos, de la cultura y de las instituciones que les han permitido fructificar sus talentos. La justicia de posiciones es más generosa porque no permite olvidar lo que debemos a los otros; recuerda que la producción de los vencedores no exige el sacrificio de los vencidos (DUBET, 2014, p. 114).

Assim, a igualdade de posições é mais desejável por diminuir as diferenças indesejáveis entre os sujeitos de uma sociedade. E, ainda, por cunhar um sentimento de solidariedade entre os sujeitos que vivem em sociedade.

Como pode ser visto, a Justiça Social está pautada em questões ideológicas, já que sua concretização demanda constante tentativa de transformação da estrutura social ou manutenção do “status quo”. Para isso, entendemos a importância de políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades e injustiças sociais.

CONSIDERAÇÕES

Pensar o conceito Justiça Social é uma tarefa árdua, já que tal termo não pode ser analisado de forma fechada e acabada, mas considerando o leque de possibilidades para quem sabe uma possível erradicação das desigualdades e injustiças. Nesse sentido, a Justiça Social é mais abrangente do que os direitos humanos, já que são necessários diversos fatores para uma vida plena, como nos apresenta Nussbaum (2013) em sua lista das capacidades humanas centrais. Também não basta a igualdade de oportunidades, uma vez que os sujeitos, por vezes, não possuem o mesmo ponto de partida para que essa disputa pelas oportunidades seja justa. Somente a redistribuição de bens não consegue atingir o patamar da Justiça Social, uma vez que há demandas relacionadas a outros elementos como o reconhecimento das minorias. Nesse sentido, a Justiça Social não deve ser limitada, mas globalizada, uma vez que é necessária uma articulação para que todos os sujeitos vivam em uma sociedade justa. Com isso, observamos que tal conceito abarca todos os elementos citados, mas não se restringe apenas a eles.

Percebemos que para a construção do conceito que temos hoje de Justiça Social, precisamos nos reconhecer enquanto sujeitos pertencentes a um coletivo e que estamos ligados por um laço de solidariedade. Nesse sentido, para que um sujeito atinja realmente um estado pleno em sua vida, os sujeitos que o cercam precisam, necessariamente, conquistar igualmente uma vida plena. As três abordagens – Redistribuição, Reconhecimento e Representação – não são contraditórias, mas se complementam e muitas vezes, andam de mãos dadas, já que, ocasionalmente, os sujeitos que reivindicam a justiça como Redistribuição são os mesmos que demandam a justiça como Reconhecimento e Representação, e vice-versa.

Ao somar as concepções de igualdade elaboradas por Dubet (2014), nas abordagens, observamos que a Justiça Social está para além da igualdade de oportunidades tão almejada e defendida por muitos. Mais do que a igualdade de oportunidades, necessitamos uma igualdade de posições, em que se valorizem as posições em que os sujeitos estão na sociedade. A posição da mulher no mercado de trabalho é um bom exemplo de luta por igualdade de posições.

Enfim, compreendemos a Justiça Social como um conceito dinâmico e em constant mudança, já que ele evolui conforme a demanda dos sujeitos de uma sociedade.

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Recebido: Abril de 2020; Aceito: Setembro de 2020

Informações das autoras

Valéria Pereira Minussi

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

E-mail: valeriapminussi@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2322-2688

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4002475530153797

Nara Vieira Ramos

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

E-mail: naravr@terra.com.br

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7595-0006

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3258515109652211

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