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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.65 Rio de Janeiro abr./jun 2021  Epub 26-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2021.55752 

Práticas pedagógicas alternativas em contextos de incerteza e crise

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ALTERNATIVAS EM CONTEXTOS DE INCERTEZA E CRISE: interdependências e corresponsabilidade ética do cuidado em tempo de pandemia

1El Colegio de San Luis, CONACYT México

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Reconocer entonces que la educación debería asumirse ética y ello supone inclinar sus acciones hacia los dañados y rotos, a quienes el mundo desigual les ha castigado porque sí, porque convoca a una celebración de pocos, mientras que muchos, si no la mayoría, no pueden, no disponen de políticas de sostén a su alcance o de fuerzas propias para procurar los recursos para la sobrevida y la vida.

(Skliar, apud Dussel, Ferrante, Pulfer, 2020, p. 31).

Em março de 2020, em virtude da eclosão da epidemia global gerada pelo vírus Sars- CoV-2, COVID-19, mil e quinhentos milhões de alunos no mundo, de todas as idades e nacionalidades, ficaram privados de aulas presenciais em decorrência da suspensão das aulas e do fechamento das escolas (POGRÉ, apudDUSSEL [et.al.], 2020, p. 45). Com a impossibilidade de se frequentar as escolas, a fim de evitar o contágio e a proliferação do vírus, medidas emergenciais foram adotadas tencionando atenuar as perdas advindas do isolamento social compulsório.

Estimativas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Programa Mundial de Alimentação (PMA) apontam que no ano de 2020, cerca de trezentos e setenta milhões de crianças em todo o mundo podem ter ficado privadas de alimentos em decorrência do fechamento das escolas1 Os números apresentados por esses dois organismos mundiais expressam o quadro das desigualdades sociais que tem, de forma insofismável e dramática, marcado as carências da população por demandas básicas de saúde, alimentação, emprego e educação.

Nesse contexto, a pandemia deixou à mostra as dessemelhanças provenientes do desenvolvimento desigual dos países e das sociedades, pondo à vista nossas fragilidades pela sobrevivência cotidiana em condição de crise e de novos desafios para prover a sobrevivência humana. No que tange à educação, as desigualdades sociais, culturais e econômicas que prevaleciam foram agravadas tornando-se visíveis em decorrência das demandas que emergiram com a adoção de medidas emergências que requeriam das tecnologias como possibilidade de acesso ao ensino e à educação remota. Nesse cenário de incertezas, as políticas econômicas neoliberais2 foram expostas, por sua incapacidade de enfrentar a crise3, gestando meios alternativos para a população no contexto de "irrupção do inesperado na história" (MORIN, 2020).

Diante da "irrupção do inesperado", nos deparamos com um quadro de incertezas como nunca visto antes. Descobrimos o impacto que o neoliberalismo provocou nos sistemas de saúde e de educação, mas também na forma voraz que trata a natureza, o meio ambiente e seus habitantes. Desvelaram-se, ainda, as fragilidades corporais e epistêmicas para enfrentar uma enfermidade desconhecida e com alto grau de mortandade. Como bem sinaliza Santos (2021, p. 16), a pandemia desnudou as "entranhas de muitas monstruosidades que habitam o nosso cotidiano e nos seduzem com os disfarces que, de tão comum, tomamos por normalidade". Não há outro caminho, senão o de compreender que somos seres humanos que dependem do equilíbrio dos processos da natureza e que é necessário revermos nossas práticas de consumo e de habitabilidade do planeta, que prejudicam nossa saúde e afetam gravemente nosso espaço vital. Nesta direção, afirma o autor que:

A pandemia não nos dá opção, põe-nos perante um dilema: ou mudamos o modo como vemos a natureza, ou ela começará a redigir o longo e doloroso epitáfio da vida humana no planeta. [...] A pandemia mostrou, com uma claridade nunca vista antes, o pior do mundo em que temos vivido desde o século XVI: a pulsão de morte que a dominação moderna acionou impunemente no mundo dos humanos e não humanos a ela submetidos (2021, p. 17).

Em tempos de crise e incertezas, como o que estamos vivendo, os sistemas educacionais nacionais são desafiados a aumentar suas capacidades de adaptação e de criatividade a fim de oferecer serviços assistenciais e de apoio os mais diversos. O desafio que se apresenta aos países e seus governantes, mas também aos educadores é o de enfrentar a crise concebendo rotas capazes de driblar os problemas, construindo, deste modo, caminhos e ações alternativas que possam minimizar os efeitos da coisificação do humano e da exclusão daqueles que não estão incluídos nas políticas hegemônicas de Estado.

INTERDEPENDÊNCIAS E A ÉTICA DO CUIDADO: OS DESAFIOS DA HISTÓRIA

Em todos os países, com especial destaque para os latino-americanos, o pensamento pedagógico e a criatividade cidadã têm sido convocados a gestar, especialmente em tempos de crise, propostas alternativas de educação e de práticas pedagógicas específicas que se comprometam com a produção de ações focadas em ampliar o acesso e a inclusão de parcelas da população negligenciadas pelas políticas públicas de saúde e de educação. Nesses momentos surgem propostas e práticas preventivas, modelos de alfabetização para os excluídos da escolarização ou metodologias inovadoras para grupos vulneráveis, ou em condições de isolamento e ou em situações de desigualdades sociais diversas.

Nesse particular, é necessário, a exemplo do que sinaliza Skliar (apudDUSSEL, FERRANTE, PULFER, 2020) reconhecermos o "dever ético" da educação para com os indivíduos desprovidos dos seus direitos elementares e, deste modo promover o repensar das desigualdades estruturais que se agudizam e se acirram. Quanto às formas que assumem a exclusão, assinala Skliar que:

As fronteiras da exclusão aparecem, desaparecem e voltam a aparecer, se multiplicam, se disfarçam, seus limites se ampliam, mudam de cor, de corpo, de nome e de linguagem.

É este o mundo das soluções para um mundo moderno, onde milhões de pessoas se desfazem em matanças étnicas, morrem por falta de água potável, se destroem diante da desintegração do emprego, porém se reafirmam a partir de novas identidades, se nutrem de novos movimentos sociais (1999, p. 16).

Do ponto de vista social e político a eclosão da pandemia tem exigido a mobilização da sociedade no sentido de elaborar ações possíveis a fim de enfrentar a doença e o agravamento dos problemas sociais e educacionais em escala local, regional, nacional e internacional. No que tange as desigualdades de acesso à educação, a questão se agrava, particularmente para determinados setores da sociedade que historicamente viram seus direitos à educação serem negados. Dados apresentados em diferentes estudos têm demonstrado que embora os índices de escolarização tenham aumentado nas últimas décadas, dois terços da população de analfabetos no mundo é constituída por mulheres, aspecto que afeta de forma inexorável os países de baixa renda. Desta forma, é importante destacar que a incorporação das mulheres no processo de escolarização desenvolveu-se de maneira desigual acirrando-se, ainda mais, quando associado às variáveis de classe e de capital cultural, como afiança Bourdieu e Champagne (2001), uma vez que afunilam as possibilidades reais de acesso das mulheres as distintas áreas de formação.

Embora, desde a Conferência Mundial de Educação, realizada em 1990, na Tailândia a agenda encaminhada se assentasse na necessidade de se assegurar uma educação básica de qualidade às crianças, aos jovens e aos adultos nos países com maior taxa de analfabetismo do mundo, observa-se que essa demanda ainda não foi totalmente resolvida. No evento, os países com maior taxa de analfabetismo do mundo, entre eles o Brasil, foram chamados a fim de que agenciassem como afiançam Shiroma, Moraes e Evangelista (2000, p. 56-57), “[...] ações para a consolidação dos princípios acordados na Declaração de Jomtien". No evento, segundo as autoras, os governos dos países envolvidos comprometeram-se em promover políticas educativas, em acordo com as diretrizes assumidas no evento sob a coordenação da UNESCO. Um dos pontos de pauta destacado referia-se a prioridade que deveria ser conferida “[...] as meninas e mulheres, eliminando toda forma de discriminação na educação” (2000, p. 59).

No Brasil, como ponderam Rosemberg e Madsen (2011), a partir dessas diretrizes buscou-se firmar uma agenda que, de forma bastante pragmática, entrecruzava a questão do gênero4 e da educação na formulação de compromissos que envolvia a igualdade e, desta forma, o intento de ampliar o acesso das meninas e adolescentes à educação. O país, em acordo com as recomendações internacionais, através de um conjunto de propostas, assumiria a atribuição de definir ações e estratégias visando atuar sobre as desigualdades que, historicamente marcaram o sistema educacional brasileiro implantando, assim, a suposta universalização da educação. No entanto, os indicadores de acesso (apresentados à época) e a progressão de meninas/mulheres adultas na educação, acabaram por justificar a não observância das metas e dos compromissos assumidos pelo país (2011, p. 393).

Antes da eclosão da pandemia em 2020, as mulheres já contribuíam com um terço do trabalho de assistência não remunerada em todo o mundo, na ausência de condições de bemestar e instituições para realizar essas tarefas. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2018), a cada dia, 16,4 bilhões de horas de trabalho não remunerado sustentam o funcionamento das sociedades. Não hesitamos, portanto, em afirmar que a pandemia multiplicou enormemente as horas de trabalho sem remuneração e que, em grande parte, essa demanda recaiu, principalmente sobre as mulheres. No Brasil, dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, indicam que embora as mulheres estejam estudando por mais tempo, as discrepâncias salariais entre homens e mulheres ainda se mantém. A isso se soma o fato das mulheres dedicarem 73% do seu tempo as atividades domésticas não remuneradas. Ou seja, com o fechamento das escolas e creches mais demanda de trabalho foi direcionada para às mulheres e mães trabalhadoras que além do cuidado da casa e da gestão da família, se viram e se veem compelidas a realizar seu trabalho remunerado. Nos casos de demandas para o cuidado de familiares doentes são as mulheres, em geral, as primeiras a se demitirem do emprego antes do companheiro, estando expostas a limitarem o seu desenvolvimento profissional e pessoal devido o peso do "cuidado" que a sociedade lhe impõe como "natural".

Nesse aspecto, a pandemia também tornou visível o imperativo de se pensar de que modo esses momentos de crise têm demandado, de forma diferenciada, a participação dos sujeitos sociais a partir de suas especificidades de gênero, de classe e outros. Deste modo, importa considerar, no que se refere às mulheres, que a política de identidade, como assegura Scott (1992, p. 87), que se organizou nos anos de 1980 "[...] trouxe à tona alegações múltiplas que desafiaram o significado unitário da categoria das 'mulheres'. Na verdade, o termo 'mulheres' dificilmente poderia ser usado sem modificação: mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras pobres, mães solteiras". De tal modo que a ideia de identidade, marcada pelo apagamento das particularidades e especificidades, acabava e acaba por ocultar diferenças e disputas em torno dos lugares e papéis historicamente construídos com relação às mulheres. Assim, compreender as distinções cerzidas no que tange a homens e mulheres, que durante décadas foi sendo produzidas, ajuda a iluminar, em nosso entendimento, as disparidades educacionais, especialmente com relação às mulheres oriundas das classes empobrecidas.

Corroborando com essa reflexão, assinalam Rosemberg e Madsen (2011) que:

As mulheres conseguiram o direito de frequentar a escola antes do direito ao voto, antes do direito a manter seu nome de solteira quando casada, antes do direito à interrupção da gravidez. Esses são alguns exemplos do que Hicks denomina de heterocronia no plano social. No plano da história de vida, é também possível sugerir processos não-sincrônicos. Isto é, as diferentes formas de desigualdade social não atingem as pessoas durante sua trajetória de vida da mesma forma e com o mesmo impacto. Isto nos impele a estar atentas à dimensão geracional, ou às relações de idade, também na análise da equidade de acesso e progresso no sistema educacional. (2011, p. 394-395).

Movimentos em prol de medidas de proteção, cuidado e assistência têm se constituído em bandeiras em diferentes países, a exemplo do México e do Brasil que desde o século XIX, viram surgir por partes de diferentes segmentos sociais a necessidade de se criarem creches para as mães pobres e trabalhadoras. Ao longo do século XX surgiram propostas visando à promoção de serviços de cuidado à saúde, a maternidade, a educação infantil e atendimento ao idoso. No Brasil, o século XX caracterizou-se por um processo crescente de transformações econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e políticas, cujos efeitos abalizaram de maneira inequívoca às ordens de gênero e sexualidade. O movimento que se efetuou foi marcado por transformações urbana, social, demográfica, caracterizada pela passagem de uma sociedade, até então, predominantemente rural e agrária, com altas taxas de mortalidade e natalidade para a emergência de um modelo organizacional advindo com a República (1889) e com as demandas que a nova ordem assumia como bandeira de progresso.

No México, a partir da década de 80 do século XX, muitas instituições públicas, em virtude das políticas neoliberais, foram fechadas ou colocadas em situação precária, dando-se preferência às iniciativas destinadas a promover programas assistencias às famílias pobres, em países latinoamericanos. No país, desde então é crescente as demandass por parte das famílias por instituições. O atendimento vem sendo realizado, em grande parte, por instituições privadas voltadas para a promoção do cuidado e do apoio a um número limitado de famílias, embora haja uma grande demanda por atendimento. Em termos reais, a virada privatizante do cuidado em países como México e Brasil, representou um retrocesso e uma nova sujeição da mulher ao cuidado, direta ou de forma substitutiva, por outras mulheres mais vulneráveis. Um grande número de instituições estatais que prestavam atendimento baixou seu nível, atendendo de forma precária e naturalizando a desigualdade e a desumanização de seu papel social.

O movimento à favor do cuidado digno sugere reconhecer que o mundo está mudando e estamos diante de uma crise com efeitos multidimensionais que nos ultrapassam e que devemos colocar a questão do cuidado como um bem comum, a favor da vida, em primeiro lugar. Uma educação ética será aquela que reconheça que todos somos interdependentes, principalmente na infância e na velhice ou por ter alguma deficiência ou doença. As necessidades por cuidados remunerados ou não são, em grande parte das vezes, demandas por trabalhos feminilizados e precarizados. Deste modo:

A pandemia está nos ensinando do que são feitas nossas interdependências. São eles os sanitários, os reabastecedores e as vendedoras de supermercados, os que limpam ruas e os hospitais, dos motoristas, dos professores e das professoras, dos que mantêm os serviços sociais básicos, e muitos e muitas dos que apoiaram e ainda sustentam nossa vida em um mundo quase paralisado (BONDIA, apudDUSSEL; FERRANTE; PULFER, 2021, p.18).

Em nossos países, há um aumento da participação das mulheres em empregos informais sem benefícios, sendo o trabalho não remunerado de mulheres, meninas ou adolescentes uma prática que persiste. Pensemos, por exemplo, nas assimetrias entre homens e mulheres latinoamericanos com respeito ao tempo que dedicam ao trabalho doméstico e ao cuidado. Nesse sentido, a desigualdade é grande, o México recebeu reiteradas recomendações para mudar esta situação, uma vez que as mulheres trabalham dupla e tripla jornadas realizando tarefas domésticas e cuidados da casa, gerando com isso claras desvantagens para elas, no que se refere ao acesso a empregos formais ou quaisquer empreendimentos em seu próprio desenvolvimento educacional e na vida publica.

Assim consideramos que o cuidado não remunerado e o trabalho doméstico são temas de grande importância para as políticas de igualdade em nossos países e deveriam compor as agendas de políticas públicas orientadas para o bem-estar social e com impacto na cooperação internacional. Como o trabalho de cuidado é invisível nas economias nacionais, ele produz uma mais-valia que favorece o capitalismo, mas não as mulheres. Um sistema que naturaliza o cuidado apenas como trabalho feminino fortalecendo tendências extrativistas que negam oportunidades de desenvolvimento iguais à homens e mulheres.

O Estado e a sociedade não devem romantizar essas desigualdades. Devemos estar atentos às formas como a exploração e a produção das desigualdades vem sendo atualizadas. Naquilo que é incorporado e naturalizado ao viver das pessoas, temos o fortalecimento de um capitalismo extrativista da vida das mulheres. É momento de pensarmos sobre o cuidado digno, mas também sobre a justiça e os direitos das mulheres que cuidam. Cabe ao Estado gerar políticas públicas, e desenvolver a corresponsabilidade da comunidade, das famílias e do mercado, na solução do problema; mudando as narrativas que hoje naturalizam o cuidado como questão das mulheres e não como questão pública. Promover a corresponsabilidade que também inclua homens, pais, filhos ou irmãos de diferentes gerações e camadas sociais.

Como os setores de saúde e educação estão amplamente feminilizados, sua precariedade tornou-se visível em tempos de crise pandêmica. Em grande parte dos países latino-americanos vivenciou-se a escassez de médicos e enfermeiras suficientes nos hospitais para atender as demandas ocasionadas pela contaminação em massa da população. Essa crise ocasionada, em grande parte, pelo corte de verbas na educação do ensino fundamental ao superior que se evidenciou pela carência desses profissionais. A este aspecto se associaram os baixos salários, a vulnerabilidade do emprego e as carências que esses profissionais enfrentaram e enfrentam em clínicas e hospitais para realizar seu trabalho, por carência de respiradores artificiais, insumos para saneamento e falta de oxigênio.

De alguma forma, a desigualdade de gênero daqueles que cuidam de forma remunerada ou não muito bem remunerada, como enfermeiros, professores e assistentes sociais tornaram-se visíveis durante a pandemia. Muitos desses profissionais enfrentam uma considerável sobrecarga de tarefas, se somado a do seu trabalho remunerado as demandas que se repetem em suas próprias casas e famílias. De certo que há muito a dizer e descobrir, pois ainda estamos em confinamento aguardando a vacina e a volta à normalidade. A hierarquia global dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos impõe de alguma forma quem pode ter acesso às vacinas e quem não pode. A acumulação de vacinas por parte de alguns países ricos revelou a ausência de uma ética de corresponsabilidade pela sustentabilidade da vida humana no planeta, em termos de cooperação internacional.

A pandemia tem gerado retrocessos ainda incalculáveis, aos avanços e lutas históricas das mulheres pela igualdade e de diferentes setores sociais. Especialmente quando pensamos no impacto dos casos da doença e dos mais de 203 mil mortos por COVID-19 no México e mais de 341 mil no Brasil. Além das vidas que foram ceifadas provocando dores irreparáveis para milhares de famílias, uma enorme perda educacional e de emprego vem sendo sentida. No México, isso implica mais de 5 milhões de pessoas de 3 a 29 anos que não se inscreveram no novo ano escolar de 2020-21. Embora as atividades estejam paralisadas, no caso mexicano, a violência contra a mulher não cessa. O suicídio e o feminicídio de mulheres jovens aumentaram (com uma média de 10 mulheres por dia) e a violência física e sexual dentro das famílias cresceu consideravelmente, detectada principalmente pelo número de meninas que buscam ajuda e atendimento.

É tempo de uma profunda transformação conceitual do cuidado, assumindo que é hora das mulheres se reapropriarem de seus corpos colonizados pelo capitalismo e pelo patriarcado, que as comunidades se reapropriem de seus bens comuns para evitar maior destruição de recursos como a terra, a água e as florestas, questionando o extrativismo, as privatizações e a depredação do meio ambiente. É tempo de se propor a restituição dos sistemas de bem-estar, a recuperação ambiental, a vigência da justiça contra violência de gênero e a ampliação por direitos do trabalho para as mulheres (FEDERICI, 2018, p. 10).

MIRADAS ACERCA DA EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CRISE

Nesse número da Revista Teiasobjetiva-se abrir a discussão para as análises nacionais, internacionais e interdisciplinares destinadas a refletir acerca das representações, das práticas, dos contextos e das experiências pedagógicas alternativas com ênfase em experiências realizadas no Brasil e em países da América Latina que se fazem representar nessa seção. Com este intento, a Seção Temática organiza-se a partir de doze artigos produzidos por professores pesquisadores que se dedicam, em seus escritos, a produzir narrativas e reflexões em torno de práticas e possibilidades pedagógicas em tempos de crise e incertezas.

No artigo que abre a Seção, Práticas docentes inovadoras: caminhando na incerteza momentânea entre o status quo e a ousadia, os autores têm como objetivo apresentar práticas docentes consideradas inovadoras que, em suas concepções, transgridem o status quocomo maneiras de propiciar o ensino mais inclusivo. A partir de relatos de experiências pretendem discutir o ensino remoto híbrido, revelando enfrentamentos e dificuldades descritos pelos professores de diferentes áreas de conhecimento. Apontam, ainda, que nem todas as práticas pedagógicas desenvolvidas no ensino remoto híbrido são exitosas, mas são percursos de incerteza e de superação.

No artigo, Meios digitais, ensino e prática docente: mudanças e permanências no contexto da pandemia de COVID 19, os autores tem como foco refletir acerca do ensino digital praticado por professores de instituições privadas do município do Rio de Janeiro (Brasil) nos períodos anterior e posterior a interrupção das aulas presenciais pela eclosão da pandemia de COVID 19. A partir da análise de entrevistas realizadas com professores que atuam em cursos online ou em colégios que adotam o sistema de aulas moduladas, o artigo reflete acerca das permanências e das mudanças neste tipo de ensino.

No artigo, Abecedário da Inclusão: entrecruzando memória e formação docente, as autoras têm como objetivo tecer análise das memórias de experiências excludentes de professores e professoras, como elemento formativo, desenvolvido em Curso de pós-graduação em Educação Física escolar na perspectiva inclusiva. Apresentam o "Abecedário da Inclusão", estruturando-o a partir de referenciais teórico-metodológicos que confrontam as bases sociais que forjam cotidianamente a exclusão.

Em Por uma escola para todos: trabalho colaborativo da fonoaudiologia educacional, a autora apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado em que analisa a contribuição e os desafios do trabalho interdisciplinar entre a Fonoaudiologia e a Educação para a formação continuada de professores dos anos iniciais do ensino fundamental acerca dos problemas de aprendizagem da linguagem escrita. A apreciação dos dados desenvolveu-se por meio da análise de conteúdo, onde os resultados indicam que o trabalho articulado entre as áreas possibilita a construção de um novo saber que reconheça os sujeitos como únicos.

No artigo, Bioética e interdisciplinaridade: a relação entre educação e meio ambiente, o autor foca sua análise no exame dos fundamentos epistemológicos da Bioética, relacionando-a as temáticas do meio ambiente e da educação. A partir de revisão de literatura, busca demonstrar que esses temas são interdisciplinares e, portanto, podem ser considerados norteadores de um processo de formação humana voltado para a autonomia e a liberdade. Defende a possibilidade de uma educação direcionada à sustentabilidade e a ética do cuidado humanizado na relação com o Outro.

No artigo, Metodologias criativas no processo de ensino e de aprendizagem na educação básica,as autoras tencionam compreender a aplicabilidade das metodologias criativas através do Design Thinking, nos processos de ensino e aprendizagem na educação básica. Em sua organização, o estudo baseia-se em relatos de uma experiência realizada em uma escola privada do Rio Grande do Sul (Brasil), a partir de oficinas de Design Thinking, envolvendo estudantes, professores, pais e gestores da instituição.

No artigo, As Metodologias Ativas como potencializadoras do Sistema Atencional: do presencial ao remoto usando Design Thinking, os autores desenvolvem análise junto aos estudantes de Ensino Médio integrado do Instituto Federal do Rio Grande do Sul diante dos processos educativos baseados no uso das metodologias ativas de aprendizagem em um contexto de ensino remoto.

Em Infraestructura e Infocultura das til na gestão da universidade: upel-impm Extensión Académica Paraguaná, o autor objetiva interpretar os desafios da Extensão Acadêmica UPEL-IMPM Paraguaná na incorporação das Tecnologias de Informação Livres (TIL). Para o autor, os desafios da Infraestrutura e da Infocultura nos obrigam a repensar a gestão acadêmica para atender às necessidades dos atores envolvidos, uma vez que o uso do TIL no cotidiano, desde a criação da informação digital até a sua comunicação, permite expandir e (re)configurar nossas práticas sociais e culturais. Para ele, devido a problemas políticos, econômicos e sociais do país, expostos pela insatisfação com os serviços públicos e com o acesso à internet, seus benefícios não são completamente explorados.

No artigo, As oficinas de integração como prática pedagógica em tempos de incerteza e crise, o autor procura discutir a concepção de integração curricular apresentada pelos estudantes de um Curso de Ensino Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio (CTIIEM) a partir da materialização da prática pedagógica na unidade curricular de Oficina de Integração. O estudo foi realizado a partir de pesquisa documental e análise de dados empíricos coletados com 120 estudantes. Como resultados da pesquisa, considera-se que as duas categorias se conectam e expressam movimentos simultâneos de assimilação ativa dos conhecimentos por meio das Oficinas de Integração (OIs) já que, para os estudantes, as propostas "tradicionais" de ensino parecem como algo totalmente apartado de sua vida, algo com o qual eles não se identificam.

No artigo, Políticas para a educação especial inclusiva no Paraná e a covid-19: ensino remoto emergencial, as autoras analisam as políticas para a educação especial no contexto do ensino remoto emergencial, normatizado no Estado do Paraná/Brasil, para as crianças matriculadas nas classes comuns da educação básica regular pública do estado, no contexto da pandemia decorrente do covid-19. O artigo traz os resultados de uma pesquisa exploratória, documental e bibliográfica, ancorada na contextualização crítica e histórica da problemática a partir do processo de regulação política internacional, nacional e local. Segundo as autoras, os resultados localizados abalizaram um alinhamento entre as políticas educacionais paranaenses, as políticas nacionais e as recomendações do Banco Mundial e da Unesco.

No artigo, Práticas de ensino em tempos de pandemia de covid-19: é possível a inclusão das pessoas com deficiência?, os autores ensejam empreender um esforço de análise assente no desejo de, a partir de uma perspectiva comparativa, compreender as práticas de ensino realizadas nas redes públicas de ensino fundamental e médio localizadas nas periferias da cidade de São Paulo (Brasil) e das redes da Região Metropolitana de Buenos Aires (Argentina), voltadas para a educação de pessoas com deficiência. Com esse intento, buscam demonstrar como o direito à educação vem sendo garantido neste momento, problematizando para isso as práticas direcionadas as pessoas com deficiência.

No artigo, Uso de fotografias como recurso didático pedagógico para deficientes intelectuais, as autoras objetivam abordar o uso de fotografias como estratégia pedagógica em sala de aula. Para isso, analisam imagens fotográficas registradas por alunos da Educação de Jovens e Adultos, de uma escola especializada na modalidade Educação Especial. As autoras avaliam como a fotografia pode ser utilizada em sala de aula e quais aspectos cognitivos e socioculturais podem ser observados Os resultados demonstrados apontam a potencia da imagem fotográfica como opção didática, uma vez que estimulam a interação, a criatividade, a autonomia e a participação de alunos com deficiência audiovisual.

Nesse sentido, parece-nos oportuna à realização dessa Seção Temática enquanto possibilidade de reflexão acerca dos desafios do tempo presente e das experiências de construção de outros possíveis para a educação em tempos de incerteza e crise. Se, por um lado, a pandemia colocou-nos diante do irremediável da existência humana, bem como das desigualdades, das exclusões e das explorações que em países como o Brasil e o México não são experiências pretéritas; por outro lado, a crise acionada pela eclosão da pandemia trouxe, para os educadores, o desafio de pensar alternativas na mediação da educação com a tecnologia tendo a autonomia e a inventividade como horizontes pensáveis. Desse modo, os artigos reunidos nessa seção apresentam-se como um convite ao leitor no sentido de tecer possibilidades de compreensão acerca das práticas educativas, dos fazeres pedagógico e das políticas frente aos desafios e incertezas da História.

1Cf. dados apresentados em: https://fia.com.br/blog/coronavirus-impactos-na-educacao. Acesso em 30 de março de 2021.

2Segundo Brown (2020), o neoliberalismo pode ser compreendido enquanto conjunto particular de medidas econômicas e programas políticos, gestado no pós Segunda Guerra Mundial, 1947, enquanto "esquema fundador" de "reprogramação do liberalismo", como afirma Foucault. Assim, o neoliberalismo deve ser pensado naquilo que ele se atualiza e se reinventa frente às demandas do tempo presente.

3A definição do vocábulo "crise" no Dicionário Aurélio da língua portuguesa, nos remete à ideia de: “Momento perigoso ou difícil de uma evolução ou de um processo; período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução.” ou ainda “Momento crítico ou decisivo; Situação aflitiva" que exigem a elaboração de saídas.

4Para Carvalho e Vidal os debates teóricos sobre gênero, em particular em autoras como Scott, permite pensar o gênero como "[...] a organização social da diferença sexual percebida. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres, mas sim gênero que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo [..] determina univocamente como a divisão social será estabelecida (Scott apudCarvalho; Vidal, 2001, p. 209-210).

REFERENCIAS

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Recebido: Abril de 2021; Aceito: Abril de 2021

Informações do(a)(s) autor(a)(es)

Oresta López Péres

El Colegio de San Luis, CONACYT México

E-mail: oresta.lopez@colsan.edu.mx

ORCID: 000-0003-0994-4545

Link Lattes: http://dgp.cnpq.br/dgp/0843468122300960

Sônia Camara

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail: soniacamara@uol.com.br

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0255-697X

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6303435255974589

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