INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19 exigiu que os Estados-nação reconfigurassem as práticas de ensino nas instituições escolares como resposta à suspensão da presença nas escolas. Sob a marca da urgência na adoção de medidas para a participação de pessoas com deficiência, as atividades propostas pelas redes públicas de ensino básico e obrigatório em escolas das periferias das megalópoles de São Paulo e da Região Metropolitana de Buenos Aires (RMBA) vêm se configurando como terreno de pesquisa devido as maiores redes implicada em apontar caminhos para garantia do direito à educação especialmente às pessoas com deficiência, isso porque as formas de acesso às demandas educativas engendram, conforme Spósito (1993, p. 53), “acúmulo de experiências, redes de sociabilidades [...] articulado às demais formas de enfrentamento desenvolvidas pelas classes populares moradoras da periferia urbana”.
A escola pública é estratégica (ALGEBAILE, 2009), por destacar a concorrência de outros serviços públicos e indicar a forma escolar de sua oferta, demonstrando uma gestão da pobreza feita nas escolas como palco de políticas de transferência de renda que virtualmente se universalizam por chegarem aos territórios cujos índices de pobreza são maiores, assim a “escola pública fundamental se consolidaria como Estado dos pobres [...]” (ALGEBAILE, 2009, p. 234). Esses atravessamentos de práticas institucionais tomam o espaço como fundamento de sua existência, e os sujeitos submetidos a tais ações não são inertes, são compelidos por essas estratégias a dialeticamente (re)produzir espaço consoante “suas necessidades e seus desejos vinculados à realização da vida humana, têm o espaço como condição, meio e produto de sua ação” (CARLOS, 2011, p. 65).
Southwell (2020) questiona essas lógicas ao discutir os caminhos para viabilizar a escola no contexto de elevada violação de direitos e incerteza. O problema gira em torno das formas de garantir o direito à educação em instituições de ensino marcadas pela pobreza estrutural a partir das diferentes políticas que vêm desenvolvendo os governos neoliberais de nossa região e que, desde o final do século passado, intensificaram a desigualdades dos grupos vulneráveis. Santos (2020) propõe que os sistemas educativos devem, com maior intensidade, desenvolver estratégias de sobrevivência e ultrapassar situações inesperadas num contexto de elevada instabilidade social. A performatividade da situação faz com que Giroux (2020) afirme que “a cena do Titanic se repete em tempo real” (p. 9), isto é, existem apenas alguns que concordam em se salvar. Dada a instabilidade provocada pelo Covid-19 e as diversas técnicas disciplinares – renovadas – que foram adotadas em todos os países para salvaguardar a vida. Recuperar o valor do professor torna-se fundamental, já que “a função docente também é afetada porque a rotina ensino-avaliaçãopromoção foi interrompida e é provável que não consiga retomar seu ritmo tradicional” (DUSSEL et al., 2020, p. 41).
Sustentamos que o ensino remoto como estratégia organizativa das redes públicas de ensino dá resposta política de aparência universalizante às demandas de escolarização de pessoas com deficiência e simultaneamente individualiza a deficiência do sujeito como fator que confere maior ou menor adesão a esse direito. As desvantagens educacionais também estão implicadas não somente por tais correlações, como também, para elas, há recorrência de artefatos como a multiplicidade de currículos engendrados pelas situações de deficiência em dispositivos que “[...] de alguma forma, circunscrevem-se a consideração da escolarização limitada a inculcar crenças e hábitos” (SILVA; DUARTE, 2018, p. 100).
Assim, as práticas de ensino envolvem uma matriz de vivência fluida dos processos de inclusão e se configuram, nas palavras de Sen (2004), como as “políticas do sapo do poço”. As propostas compensatórias desenhadas pelos governos não pirateiam, porém aprofundam as carências e desigualdades, ainda que busquem melhorar a qualidade de vida dos grupos vulneráveis e eliminar ou reduzir as condições de exclusão que vivem diariamente. Em suma, ainda que elaborados esquemas e políticas que conceituam um sujeito com deficiência e que sejam universais, homogêneos e baseados nele, “diversos dispositivos biopolíticos são implantados que sustentam e aumentam, repetidamente, as ferocidades da fome, pandemias e exclusões de todo tipo em vastas regiões do planeta” (FERNANDEZ, 2009, p. 25, tradução nossa).
Atribui-se ao sujeito uma definição negativa de identidade e, quando se distingue a diferença dele “do resto”, institui-se a desigualdade que justifica técnicas e estratégias sustentadas desde a Antiguidade, que se atualizam no presente por meios mais sutis (ROSE, 2007). Isso nos sugere que as práticas de ensino para determinados setores da população demandam problematizar a construção de dispositivos de poder (FOUCAULT, 2007) que percorrem caminhos diversos para os indivíduos com deficiência. É exatamente com isso que estamos lidando aqui. Referimo-nos às pessoas com deficiência que, em tempos de Covid-19 e virtualização das práticas de ensino, foram lançadas em processos duplos ou múltiplos exclusivos (LOPES; FABRIS, 2013).
PROPOSTA METODOLÓGICA
Como campo de análise deste ensaio descritivo recupera as narrativas de professores de escolas argentinas da RMBA e de escolas da zona leste de São Paulo acerca de suas práticas de ensino para alunos com deficiência por meio de plataformas digitais. Orientamo-nos pela proposta da metodologia narrativa, pois, conforme Aguirre, Porta e Bazán (2018), por permitir explorar “[...] narrativas e histórias de vida, de forma centralizada, de professores oferecendo a possibilidade de resgatar categorias pedagógicas das suas vozes e testemunhos” (p. 29). Ambas as cidades, com suas diferenças geográficas, compartilham as desigualdades estruturais vivenciadas pelos sujeitos que neles vivem, como às precárias condições de trabalho para desenvolver práticas de ensino em tempos de Covid-19. Foram realizadas entrevistas com os professores por meio de videochamadas do WhatsApp e pelas plataformas Zoom e Google Meet. A entrevista foi delineada a partir de um guia flexível de 5 questões abertas relacionadas, particularmente, ao acesso aos recursos tecnológicos, à implementação desses recursos na educação e ao vínculo estabelecido com seus alunos neste momento.
DISCUSSÕES TEMÁTICAS
Da leitura das orientações pedagógicas das redes públicas de ensino de ambos os países e nos saltou aos olhos o sequestro do contexto familiar como confluência de estratégias de escolarização, por meio dos quais a continuidade da escola poderia ser alcançada nas casas dos estudantes; pelos depoimentos de professores de escolas localizadas em ambas as cidades; e pela experiência pessoal dos pesquisadores. Quanto às orientações pedagógicas exaradas pelas redes públicas, é possível perceber que a ênfase recai no convênio com gigantes tecnológico (Microsoft e Google) para prover acesso às suas plataformas, decorre desta ação a ambientação das práticas de ensino como proposição para a democratização do acesso de professores, estudantes e seus familiares.
A emergência do ensino remoto das redes públicas da periferia urbana envolve distintos obstáculos vinculados às materialidades das instituições escolares e às condições de vida dos sujeitos e, por extensão, do próprio exercício da cidadania. Não se trata somente da estrutura física das escolas, falta de acessibilidade e acesso à internet, recursos tecnológicos, entre outros, mas, fundamentalmente, trata-se da extrema precariedade e fragilidade (BUTLER, 2006) das vidas dos estudantes com deficiência e de seus familiares que moram nestes contextos. Ante as práticas de ensino de Argentina e no Brasil, é viável indagar se elas fagocitam “diferenças desiguais” e as operacionalizam como consequência da virtualização do ensino para as pessoas com deficiência. Nesse bojo, a escola dita inclusiva de antes de Covid-19 assenta-se minimamente sob dois aspectos: a convivência nos espaços físicos escolares e a individualização do ensino por meio de estratégias de governamento das pessoas com deficiência. Ambos estão obstados pelo ensino remoto, como mostra o relato da professora 1 que trata sobre as condições em que desenvolve a prática do ensino a distância:
Portanto, não há inclusão que possa perdurar. As conexões de internet são interrompidas e só podemos nos comunicar com os alunos por meio de batepapo no celular. Como garantimos as atividades, o aprendizado? Desde o dia 16 de março, quando preparo as atividades para cada uma das turmas da escola, imprimo e a cada quinzena a gente se reúne na escola para entregar aos alunos. Mas os materiais são construídos por mim, porque os do governo não foram pensados para os nossos filhos (Professora 1, maio de 2020).
Se, na escola pré-pandêmica, o direito à escolarização é expressão do espaço escolar como fiel depositário da inclusão escolar devido a dispositivos de governamento como o atendimento educacional especializado, demandados por todos os estudantes; agora, no contexto do ensino remoto, essas medidas foram suspensas porque o que se gestava nesses cotidianos tem uma confluência de práticas e atores sociais que reforçam padrões para se firmar a fronteira entre deficientes e não deficientes. Se no espaço escolar estatal, a inclusão se dá numa relação patrimonial, diante de instrumentos visíveis alocados na escola, o espaço familiar não opera nessa mesma lógica, por essa razão a escola disputa o espaço físico e simbólico familiar. A individualização do ensino não foge da lógica patrimonial porque exige vinculação com os conteúdos e as estratégias de ensino por conta de uso dos espaços, sujeitos e tempos escolares. Nesse sentido, a professora 5 fala sobre as dificuldades das famílias dos seus estudantes:
São famílias de baixíssima renda, algumas delas não são alfabetizadas e pedimos que da noite para o dia, além da mãe / pai, se tornem professores e garantam que os filhos estudem. Acredito que as famílias este ano são um pilar fundamental para garantir a escola, mas estamos transferindo uma grande responsabilidade para elas. É muito trabalho para eles (Professora 5, junho de 2020).
As disputas sobre o lugar que ocupam na escolarização são demanda que não se finda na escola, esta é epicentro das lógicas neoliberais encerradas em dispositivos como educacionalização do social (LOCKMANN, 2013) e territorialização da pobreza (ALGEBAILE, 2009), haja vista a bidirecionalidade entre deficiência e pobreza, assim como à falta de dados fidedignos sobre este público (CEPAL, 2019).
Centrar a análise nas orientações originadas pelas redes públicas de ensino permite vislumbrar alguns fios que tramam as espacialidades produzidas, porque estão intrincadas às relações estabelecidas entre Estado, mercado e sociedade civil. Lopes (2009, p. 155) alude a isso como a inescapabilidade de estarmos “sendo conduzidos por determinadas práticas e regras implícitas que nos levam a entrar e permanecer no jogo econômico do neoliberalismo”, é imprescindível que todos estejam nas “malhas que dão sustentação aos jogos de mercado e que garantem que todos, ou a maior quantidade de pessoas, sejam beneficiados pelas inúmeras ações de Estado e de mercado” (p. 155) e que todos estejam “desigualmente incluídos nas relações que se estabelecem entre Estado/população, públicos/comunidades e mercado” (p. 155). Em relação à lógica de mercado, uma das professoras refere-se às condições de conexão:
Con la virtualización de todo el trabajo mío y de mis hijos, tuve que aumentar el servicio de internet y pagar más. Como no hay opciones uno acepta. Es un servicio muy caro, tengo dificultades para pagarlo pero necesito educar. (Professor 7, outubro de 2020).
A concentração de empresas e os altos custos de ter wi-fi reduzem o ensino remoto uma questão operacionalizada. É preciso garantir o direito à educação para obter um bom serviço de internet que, ao mesmo tempo, tem alto custo econômico e está concentrado em monopólios. Ter wi-fi tornou-se essencial e problemático porque os dois países não implementaram medidas adequadas para reverter a exclusão digital (DUSSEL et al., 2020). O que se questiona é a forma com a qual se impõe regras de permanência no jogo hierarquizando as problemáticas das espacialidades nos cotidianos das relações sociais, sobretudo quando a dinâmica familiar é ainda mais disputada pela escolarização da vida privada. Acerca desta “domiciliação”, o professor 8 comentaba que:
Las familias reciben el material impreso cuando entregamos bolsones de comida. Realizo las adaptaciones y la mayoría necesita de ayuda y acompañamiento. Esa es la tarea que hacen sus padres. Precisan actividades personalizadas, delineadas y explicadas. Sólo puedo enviarles audios o videos por celular explicando cada una de ellas (Professor 8, setembro de 2020).
Essa homogeneização das identidades (LAZARATTO; NEGRI, 2001) envolve uma lógica de universalização que impede adaptação às condições de acesso ao ensino remoto e ao uso de aparatos tecnológico-materiais para garantir o direito à educação. Isso foi o que constatamos por meio das narrativas e ratifica que as propostas de inclusão de governo neoliberal desenvolvem-se em políticas que “não garantem uma inclusão permanente desses sujeitos, como se tivéssemos cruzado a linha de chegada do verdadeiro projeto inclusivo” (LOCKMANN, 2020, p. 71).
Arguimos que o que se produz em tempos de Covid-19 é a inclusão por habitabilidade (RUBIO-GAVIRIA; LOCKMANN, 2018) que se refere às possibilidades de inserção, mas sem a garantia de acesso ao currículo e à aprendizagem. A falta de acessibilidade aos serviços educacionais, e a brecha digital que foi evidenciada e a ausência de recursos e materiais refletem a noção de governo que inclui pelo fato de ser um imperativo, sem precisamente analisar as condições de cada aluno em geral, mas as pessoas com deficiência têm direito a uma educação de qualidade, com justiça social e sem discriminação.
As práticas de ensino se depararam com a tarefa de incluir, (re)converter suas práticas, contar com recursos tecnológicos, internet, o celulares para garantir a continuidade pedagógica, mas esta situação só foi possível graças a professores e professoras que, por vontade individual, desenvolveram diversas estratégias para garantir a conectividade de seus alunos, a difusão de conhecimentos e o acesso ao currículo. Assim, observa-se uma instrumentalização e transferência das responsabilidades do estado para a comunidade educacional sob a lógica da sociedade empresarial (FOUCAULT, 2007) que leva a implantar práticas de ensino de forma precária, flexível e com recursos próprios. Consideramos que o Estado não se afasta do eixo de intervenção, mas implantou políticas de baixo custo (BOCCHIO et al., 2020), que obrigam os professores a surfarem em batalhas titânicas para garantirem a educação.
Em contextos em que a pobreza urbana e a deficiência se cruzam, as práticas voltaram ao uso de telefonemas, programas de rádio, entrega de cartilhas de atividades e alimentação para superar esse tempo. As espacialidades produzidas pelo ensino remoto lançam luz à totalidade discursiva como “melhoria da conexão da internet” como plataforma de combate à desigualdade, reduzindo-se as mazelas estruturais à distribuição de alguns bytes de internet, contudo, essa situação é ainda mais complexa para as pessoas com deficiência se suas necessidades forem subsumidas apenas às condições de acesso às práticas de ensino, o que poderá acarretar ainda mais na responsabilização destes estudantes e de suas famílias quanto à aprendizagem. Sobre isso poderemos analisar em futuras pesquisas referidas ao que “a pandemia nos deixou”.
CONCLUSÃO
Voltando à pergunta que dá início a este ensaio, é possível a inclusão das pessoas com deficiência? Considerada a racionalidade do neoliberalismo nos aspectos de homogeneização das identidades e inclusão como imperativo é razoável dizer que a ação individual se desponta como instrumento mais promissor dessa lógica, contudo, analisando-se a partir do direito à educação e entendendo o currículo escolar como seu principal reflexo, é possível observar a tênue ligação entre tais práticas e o acesso ao currículo. Sem as condições pré-pandemia marcadamente hierarquizadas em espaços e práticas de ensino relacionadas às pessoas com deficiência como suprassumo do que se veicula como inclusão escolar, o ensino remoto viu emergir sem cerimônia as diferenças desiguais como salvo-conduto para justificar as exclusões.
Novos interrogantes surgem que apontam a necessidade de centrar a questão das práticas que se produzem no interior das instituições e nos processos de escolarização dos estudantes com deficiência. As particularidades oferecidas pelos contextos de Covid-19 e do confinamento requerem estudos que aprofundem o olhar sobre os cotidianos, pois a reconfiguração das práticas de ensino remoto reflete as dívidas e as promessas que os países prometeram para eliminar a exclusão digital e dentro das escolas.
A questão é a luta pela defesa da escola por meio das práticas de ensino que se configuram em contextos de incerteza a partir da ausência de recursos, formações, suportes digitais e de internet que permitam à escola ser uma escola, em tempos de Covid-19, para todos os alunos. Uma escola que garanta justiça social, nesta época, está em questão. A educação em tempos de exceção tornou necessário traduzir o sentido do ato educativo presencial em um tempo escolar suspenso, sem a presença dos corpos.
Agora, as práticas de ensino e a escola em geral buscam estratégias para substituir esse encontro face a face, provocando a construção de um novo elo (professor-escola-casa-dispositivos) no mundo virtual junto à produção e distribuição de cartilhas e módulos alimentares que implicaram na (re)construção de diversos tecidos com a comunidade. É essa reconversão que Santos (2020) alerta como o neoliberalismo nos deixou à nossa própria sorte. Está postulada a questão: como as práticas de ensino e a pesquisa resistem à lógica neoliberal (LOCKMANN, 2020) que produz formas de vida marcadas pela exclusão, individualização e responsabilização dos sujeitos?