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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.65 Rio de Janeiro abr./jun 2021  Epub 26-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.%y.50181 

Artigos de Demanda Contínua

ESTADO, CAPITAL E REFORMA DA EDUCAÇÃO: a lei 5.692/71

STATE, CAPITAL AND EDUCATION REFORM: the law 5.692/71

ESTADO, CAPITAL Y REFORMA DE LA EDUCACIÓN: la ley 5.692/71

Marco Antônio de Oliveira Gomes1 
http://orcid.org/0000-0002-2397-5615

Ítalo Ariel Zanelato2 
http://orcid.org/0000-0003-2072-8405

Crislaine Aparecida Pita3 
http://orcid.org/0000-0001-7917-6882

1Afiliação institucional: Universidade Estadual de Maringá (UEM)

2Universidade Estadual de Maringá (UEM)

3Universidade Estadual de Maringá (UEM)


Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre o Estado, o conceito de capital e a reforma da educação promovida pela Lei 5.692/71, inaugurada pela ditadura civil-militar. Nossa premissa é que as reformas educacionais implementadas após o golpe de Estado de 1964 foram concebidas a partir da teoria do capital humano, atendendo, dessa forma, aos interesses do capital. Diante disso, cabe acentuar que as ações do Estado voltadas para a modernização das relações capitalistas firmaram-se a partir da política educacional, como é o caso da reforma de 1971. Assim, o sistema nacional de educação foi marcado pela ideologia tecnocrática, que propugnava por uma proposta pedagógica produtivista voltada para as demandas do capital.

Palavras-chave: reforma da educação; lei 5.692/71; ditadura civil-militar; educação

Abstract

The purpose of this paper is to analyze the association between State, capital and the educational reform promoted by Law No. 5.692/71 inaugurated by the military dictatorship (1964-1985). We take as a premise that the educational reforms implemented after the 1964 coup were conceived from the theory of human capital and served the interests of capital. State actions that aimed to modernize capitalist relations in Brazil were based on educational policy, such as the 1971 reform. Thus, the national education system that emerged with the military dictatorship was marked by the technocratic ideology, which advocated for a productivity pedagogical proposal and focused on meeting the demands of capital.

Keywords: education reform; law 5.692/7; civil-military dictatorship; education

Resumen

El objetivo de este trabajo es analizar la relación entre Estado, capital y la reforma dela educación promovida por la Ley n° 5.692/71 inaugurada por la dictadura militar (1964-1985). Tomamos como postulado la premisa de que las reformas educacionales implementadas tras el golpe de Estado de 1964 fueron planteadas a partir de la teoría del “capital humano” y atendíana los intereses del capital. Lasacciones del Estado dirigidas para la modernización de las relaciones capitalistas en Brasil se firmaron a partir de la política educacional, como es el caso de la reforma de 1971. Así, el sistema nacional de educación que surgió con las reformas de la dictadura militar estuvo marcado por la ideología tecnocrática, que propugnaba por una propuesta pedagógica productivista y dirigida para satisfacer las demandas del capital.

Palabras clave: reforma de la educación; ley 5.692/71; dictadura civil-militar; educación

INTRODUÇÃO

O golpe civil-militar de 31 de março de 1964 expressou a ruptura institucional em que a burguesia brasileira, com auxílio das Forças Armadas, sepultou a democracia liberal, instituída com a Constituição de 1946. Não foi, portanto, a superação da condição de economia-satélite dos grandes centros hegemônicos, mas um aprofundamento das condições de submissão aos interesses dos grandes centros hegemônicos do capitalismo internacional. Não por acaso, pode ser destacada a presença de um crescimento vertiginoso do endividamento externo do Brasil ao longo da ditadura. Nesse contexto, Marini (2013) destaca que:

[...] em lugar de uma revolução burguesa, o processo brasileiro representa a derrota das camadas médias burguesas e pequeno-burguesas – e, claro, esta, das massas trabalhadoras – frente ao grande capital nacional e estrangeiro; este não vacilou, sobretudo na primeira fase do processo, em se aliar aos setores mais reacionários do país, impondo sua hegemonia. E não poderia ser diferente: a revolução burguesa corresponde a uma etapa definida do capitalismo, marcada pela ascensão de uma burguesia que se incluía ainda em grande medida no movimento popular; na era do imperialismo, na qual vivemos hoje, todo movimento autenticamente burguês é antipopular e, como tal, contrarrevolucionário (p. 28-29).

Vale destacar que para os segmentos identificados com a conspiração golpista, buscou-se o fortalecimento do Estado como instrumento de defesa dos interesses da ordem burguesa em oposição aos movimentos populares em ascensão, promovidos pelos sindicatos. Some-se a isso o fato de que, na conjuntura internacional da Guerra Fria (1947-1991), a mobilização dos trabalhadores expressava, para as classes dominantes, a possibilidade de perder os privilégios de classe. Historicamente, a cada momento que a burguesia e seus representantes se sentiram ameaçados, a democracia foi sacrificada no “altar” do capital. Por isso, suas aspirações democráticas não passam de uma abstração não correspondente com a realidade dos fatos.

No cenário de recrudescimento da ditadura, para além das reformas econômicas, que possibilitaram a intensificação da exploração do trabalhador, foram implementadas as reformas educacionais, que possuíam, como eixo norteador, a associação entre educação, aumento da produtividade e desenvolvimento econômico. Por conseguinte, este artigo objetiva analisar as relações entre o Estado, a educação e a reforma do ensino de 1º e 2º graus, ocorrida por meio da lei n° 5.692/71, e seus vínculos com a Teoria do Capital Humano (TCH).

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964

Com a crise econômica mundial, deflagrada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, o esgotamento do modelo de desenvolvimento agroexportador ficou evidente. Ainda que a industrialização no Brasil viesse a surgir nos últimos decênios do século XIX, mesmo a República Velha (1889-1930) se mantendo, o maior impulso para indústria ocorreu a partir dos anos de 1930.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a economia brasileira assumiu características diferentes com a expansão industrial. Pode ser destacada, nesse processo, a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da Vale do Rio Doce, ambas em 1942, e da Petrobrás, em 1954. É preciso mencionar, no entanto, que o cenário, marcado pelo modelo nacional desenvolvimentista, não significou, em absoluto, a superação da condição de subordinação aos interesses imperialistas.

Enquanto isso, no âmbito econômico, o planejamento, orientado para o desenvolvimento industrial, teve como suporte teórico as proposições de John Maynard Keynes, que propugnava pela necessidade da intervenção estatal como complemento às ações do mercado. Nesse interim, foi criada a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 25 de fevereiro de 1948, com sede em Santiago, no Chile, com propósito proclamado de promover o desenvolvimento econômico e social latino-americano e do Caribe. Entre as bandeiras cepalinas, encontra-se a tese de que o desenvolvimento das nações da região não ocorreria de forma espontânea, mas pela indução de ações planejadas pelo Estado. Lombardi (2004) menciona, a esse respeito, que:

[...] foi nesse contexto, nos anos 1950, que se fundou a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), propagadora nesse continente de uma das vertentes da “teoria do desenvolvimento”. A contribuição dos intelectuais da CEPAL, teoricamente vinculados às vertentes neo-estruturalistas, deu-se através da proposta de uma industrialização latino-americana como caminho para a superação do atraso e do subdesenvolvimento da região. Defendia-se, porém, que só a industrialização não era suficiente para resolver os problemas de desigualdades sociais na região, defendendo a adoção de uma estratégia de “transformação produtiva com equidade social”, na qual se buscasse um crescimento econômico sustentável articulado a uma melhor distribuição de renda (p. 31).

É preciso destacar, nesse contexto, que a difusão do pensamento cepalino e a importância de suas propostas devem ser analisadas em relação ao cenário específico do início da Guerra Fria. Isso porque a formação de um consenso em tomo do desenvolvimento industrial em nações latinoamericanas, incluindo o Brasil, encontra-se vinculada à conjuntura econômica pós-guerra, especificamente no âmbito das alterações na política externa propostas pelos EUA após 1947 e sua preocupação com a expansão do bloco socialista (CURADO, 2013).

Dessa forma, a estratégia de incrementar o setor industrial foi pauta de inúmeras ações do Estado Brasileiro no pós-guerra como no caso do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), por exemplo, cuja meta era o desenvolvimento da indústria, com ênfase no setor de bens de consumo duráveis. Acrescente-se a isso o fato de que, em diferentes documentos e manifestações oficiais, a defesa do desenvolvimento por meio da industrialização era apresentada como instrumento do combate ao atraso e à pobreza. Desse modo, o debate em torno das atividades industriais constituía-se no desdobramento da aceleração do processo de industrialização que vinha ocorrendo desde os anos 1930.

De fato, a ideologia do desenvolvimentismo se fez presente nas formulações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), a partir de uma perspectiva nacionalista. Na verdade, não há como desvincular as discussões e os debates do período das condições históricas vigentes. Isso porque a bandeira do desenvolvimentismo foi empunhada por amplos segmentos da burguesia, que se associava ao capital estrangeiro de forma subordinada e ao Estado coube um papel importante na organização e planejamento na execução do processo de industrialização.

O poder público passara a atuar no sistema econômico do país lançando mão de todos os recursos disponíveis. Essa atuação destinou-se a acelerar o desenvolvimento econômico, particularmente a industrialização, e a impulsionar o setor privado nacional e estrangeiro (IANNI, 1971, p. 142).

A superação do atraso ocorreria, assim, a partir das ações do Estado com vistas à promoção do desenvolvimento industrial. No entanto, na medida em que ocorria a abertura ao capital estrangeiro, amplos segmentos da burguesia se associavam ao capital estrangeiro de forma subordinada. Dessa forma, a expansão industrial dos anos 1950, principalmente após 1955, foi favorecida pela penetração do capital estrangeiro. “Esse modelo, porém, acabava certamente promovendo a substituição de importações, mas através do fortalecimento da tendência à mundialização de empresas oligopólicas e do capital financeiro internacional” (LOMBARDI, 2014, p. 31).

Com o propósito proclamado de alavancar o desenvolvimento, o Estado, por meio de empréstimos externos, promoveu a criação da infraestrutura necessária para assegurar a industrialização com a participação do capital estrangeiro. Deve ser enfatizado, portanto, que o modo como ocorreu o ciclo de crescimento econômico não alterou o quadro de subordinação do Brasil às forças imperialistas. Além da desnacionalização da economia, a inflação, decorrente das intensas emissões de papel-moeda, necessárias para política de investimentos estatais e créditos, contribuía para a deterioração dos salários.

Ao final do governo de Juscelino, a ilusão do bem-estar de todos já se dissipara. Nesse interim, as desigualdades não foram neutralizadas e a dependência estrutural da economia brasileira diante dos grandes centros hegemônicos não havia sido suplantada. O rápido crescimento econômico, sustentado com a entrada de capitais estrangeiros e empréstimos externos, agravou as distorções existentes na economia nacional. Consequentemente, apesar do crescimento e da modernização da indústria, os benefícios não foram estendidos aos amplos segmentos da classe trabalhadora: “O país pode ter enriquecido, como enriqueceram os milionários, os banqueiros, os grandes industriais e financistas, mas o povo empobreceu” (BASBAUM, 1991, p. 225).

Na verdade, desde a segunda metade dos anos 1950 verifica-se o acirramento das contradições e conflitos de classes no Brasil. Mediante tal situação, historicamente, a mobilização crescente de amplos segmentos das classes trabalhadoras, a organização do movimento sindical em oposição à estrutura oficial e a organização dos camponeses em luta pela reforma agrária expressaram o caráter antipopular do modelo econômico. Não por acaso, concomitantemente, pode ser mencionada a organização progressiva dos trabalhadores, que tornou cada vez mais acentuadas as contradições presentes nas relações desiguais existentes entre classes. Não por acaso, o exemplo da Revolução Cubana, em 1959, foi uma espécie de alerta contra o chamado “perigo vermelho”.

Posteriormente, a eleição de Jânio Quadros, que se apresentou com um discurso moralista e de combate à corrupção, foi o sinal inequívoco de frustação do eleitorado, mas também, de vitória do campo conservador. Seu governo efêmero, finalizado com a renúncia em 25 de agosto de 1961, aprofundou a polarização existente. Gomes (2018) assinala, nesse contexto, que o:

[...] projeto personalista estava repleto de contradições que desagradou segmentos das classes dominantes. A renúncia, em 25 de agosto de 1961, foi uma tentativa frustrada de manter-se na presidência com poderes ampliados, incendiou o país. A crise da renúncia e o receio do avanço das forças identificadas com reformas sociais ou mesmo de esquerda assombravam amplos segmentos da burguesia e de setores comprometidos com os interesses imperialistas no Brasil. Com a renúncia de Jânio Quadros, três ministros militares (Odylio Denys, Silvio Heck e Grum Moss) manifestaram-se contra a posse de João Goulart (1961-1964), considerado por muitos como um homem de esquerda (p. 424).

O vice-presidente João Goulart só assumiria após uma grave crise institucional, com uma ameaça real de guerra civil e uma forte mobilização em defesa da legalidade. O que houve então foi que a divisão no interior das Forças Armadas possibilitou a posse de João Goulart, mas não com os poderes constitucionalmente delegados a ele. Sem dúvida, tratou-se do nominado “golpe branco”. Vale destacar que nem mesmo o retomo ao regime presidencialista, por meio de um plebiscito, ocorrido em 6 de janeiro de 1963, foi capaz de impedir a continuidade das conspirações contra Goulart.

No período de 1961 a 1964, no âmbito do Estado burguês, havia uma proposta de realizar um amplo programa de reformas econômicas, sociais e políticas. Porém, tais reformas não se materializaram efetivamente devido à oposição dentro do Congresso e a influência de amplos segmentos da burguesia. Essas reformas objetivavam resolver alguns dos problemas enfrentados pela economia brasileira e, no entanto, não possuíam nenhum caráter de ruptura com a ordem burguesa, como enxergavam segmentos das classes dominantes. A título de exemplo, a proposta de reforma agrária objetivava contemplar as demandas de expansão do capitalismo industrial brasileiro sem colocar em risco a propriedade privada (TOLEDO, 1982).

Outrossim, é preciso pontuar que, no ambiente político da Guerra Fria, a polarização entre Estados Unidos (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS) deixou marcas profundas no Brasil. As ações dos EUA e seus agentes contribuíram para a formação de lideranças militares na América Latina, alinhadas aos interesses estadunidenses por meio da Escola das Américas (School of the Americas), entre 1946 a 1984, no Panamá. No caso brasileiro, houve, inclusive, a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), constituída pelo Decreto n° 25.705, de 22 de outubro de 1948 e organizada nos moldes da similar americana. Sinteticamente, é possível afirmar que a ESG ocupou um papel importante no golpe de Estado de 1964. Na ocasião, a retórica, presente nos cursos ministrados na instituição no período anterior ao golpe civil-militar, expressou preocupações com a segurança nacional e com as crescentes mobilizações populares.

No cenário de desestabilização do governo Goulart e de aglutinação dos interesses burgueses, encontramos o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), fundado em agosto de 1961, por empresários e oficiais das Forças Armadas vinculados à Escola Superior de Guerra. Com caráter autoritário e anticomunista, o IPES apresentava como propósito um projeto econômico aberto ao capital estrangeiro. Dessa forma, os integrantes do instituto envolveram-se em atividades de publicação dos ideais conservadores por meio de folhetos, livros e revistas, além da divulgação de propagandas, de documentários e a realização de palestras sobre a situação política e econômica do Brasil.

Em suas ações ideológica, social e político-militar, o IPES desenvolvia doutrinação por meio de guerra psicológica, fazendo uso dos meios de comunicação de massa como o rádio, a televisão, cartuns e filmes, em articulação com órgãos da imprensa, entidades sindicais dos industriais e entidades de representação feminina, agindo no meio estudantil, entre os trabalhadores da indústria, junto aos camponeses, nos partidos e no Congresso, visando a desagregar, em todos esses domínios, as organizações que assumiam a defesa dos interesses populares (SAVIANI, 2008, p. 294).

Conforme mencionado, o IPES foi um centro de conspiração golpista que ocupou papel central no golpe civil-militar de 1964, mas, nesse contexto, não foi o único. Outra organização importante nas atividades conspiratórias foi o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em 25 de maio de 1959. Segundo Saviani (2008), “[...] sua finalidade explícita era combater o comunismo e aquilo que seus membros chamavam de estilo populista de Juscelino” (p. 294, grifos nossos). Acrescente-se que uma das atividades do IBAD foi a organização da Ação Democrática Popular (ADEP), que objetivou influenciar nas campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, acumular forças no Congresso Nacional, com o propósito de barrar as propostas reformistas de João Goulart, combatidas pela burguesia. Para além do financiamento de parlamentares de oposição ao governo, segmentos das Forças Armadas, da Igreja e a mídia, cujas ações contribuíam para campanha em defesa da intervenção militar também recebiam recursos financeiros.

Nesse cenário, o conjunto da burguesia no Brasil, associada ao capital estrangeiro, e de segmentos de classes médias, com participação efetiva de agentes do EUA, estimularam o golpe civil-militar de 1964, que objetivava impedir os avanços das lutas dos trabalhadores.

Naqueles anos de breve período democrático (1946-1964), os trabalhadores exigiam acesso à terra e a melhores condições de vida nas cidades. Assim as propostas de reformas, agrária e urbana, foram lidas pela elite como sinal de perigo. Daí a necessidade de recorrer à conhecida estratégia golpista (VIEIRA, 2014, p. 15).

Em síntese, o golpe civil-militar foi o resultado da articulação entre empresários e militares, com apoio logístico norte-americano, mediante a preocupação com a possibilidade de avanço das ideias socialistas em nosso território. Materializou-se, dessa forma, o rompimento político, considerado imperativo para conservar a ordem socioeconômica, pois se temia que a continuidade dos grupos que então controlavam o poder político formal provocasse uma ruptura no plano socioeconômico (SAVIANI, 2008).

Na prática, a ação golpista que instituiu a ditadura expressou-se no arquivamento dos projetos identificados com perspectivas de caráter nacional e popular real ou imaginado do Governo de João Goulart. Assim, a aceleração do processo de modernização do capitalismo brasileiro somente fora possível em função da política econômica implementada, que buscou, acima de tudo, criar condições atrativas para os investimentos de capitais estrangeiros e rentabilidade para o grande capital nacional. Simultaneamente, a política de achatamento salarial e a estrutura jurídica foram alteradas para adequar-se às demandas do capital.

Consequentemente, as políticas no âmbito da educação não constituíram ações isoladas dos interesses do capital, pois, na mesma medida que o Estado alterou o aparato jurídico em favor do capital noutros espaços da arena social, o mesmo ocorreu na esfera educacional. Em uma breve síntese, a privatização foi acelerada por meio das ações do Estado e sua simbiose com os interesses burgueses foi reforçada. Nesses termos, apesar das condições precárias de inúmeras escolas, a educação era entendida como um espaço estratégico de difusão de ideais e valores do Estado burguês militarizado. Como foco de valorizar a sociabilidade burguesa, era necessário, portanto, naturalizar as desigualdades e formar indivíduos comprometidos com a defesa da ordem.

A EDUCAÇÃO INSTRUMENTALIZADA EM DEFESA DO CAPITAL: A PROFISSIONALIZAÇÃO COMPULSÓRIA NA LEI 5.692/71

O golpe de Estado de 31 de março de 1964 materializou a opção da burguesia diante das lutas dos trabalhadores e do projeto reformista do período anterior, objetivando a militarização do Estado, a reorganização econômica com vistas à obtenção das altas taxas de lucro e a contenção dos movimentos populares. Nessa perspectiva, era necessário garantir o banimento do que era considerado ideologicamente exótico ou subversivo, afligindo, sob essa ótica, a sociedade brasileira.

De fato, pode ser mencionado o avanço progressivo das ações repressivas do Estado, justificado em nome dos “interesses gerais da nação”, apesar de expressarem verdadeiramente os interesses do capital. Objetivava-se, então, viabilizar o modelo econômico dentro de um projeto de oligopolização capitalista, alicerçado em um modelo econômico de incentivos e de isenções fiscais que beneficiavam o grande capital.

No âmbito da educação, as políticas implementadas pelos governos militares assimilaram a terminologia técnica da racionalização e do controle, expressados no reforço ao tecnicismo. A meta a ser alcançada era a de formar um indivíduo apto ao trabalho, disciplinado e integrado ao projeto de desenvolvimento da nação; por isso, a educação era entendida como estratégica para a conquista do desenvolvimento econômico.

Nos anos 60, esse conceito e mais profundamente a relação entre educação e economia foram amplamente difundidos a partir da Reunião Extraordinária do Conselho Interamericano Econômico e Social, realizada em Punta Del Este, em outubro de 1961, sob a coordenação da OEA e com a participação dos Ministros da Economia ou de Finanças de todos os países da América Latina, da qual resultou o Plano Decenal de Educação da Aliança para o Progresso, e, sobretudo, a Conferência sobre Educação e Desenvolvimento Econômico e Social na América Latina, promovida pela OEA, CEPAL, UNESCO e FAO com a participação de todos os Ministros de Educação latino-americanos, em Santiago do Chile, março de 1962 (FÁVERO, 1996, p. 244).

Dentro desse movimento ideológico, verifica-se a defesa do princípio do planejamento e investimento racional na educação com vistas à modernização da economia por meio da preparação de recursos humanos para a sociedade industrial. Tal perspectiva é compartilhada por Mario Henrique Simonsen (1935-1997), Ministro da Fazenda no governo de Ernesto Geisel (1974-1979) e do Planejamento de João Figueiredo (1979-1985).

Um dos maiores defeitos da chamada tradição cultural brasileira é o de quase sempre ter encarado a educação como um bem de consumo, muitas vezes até supérfluo, e não como matéria-prima básica de produção. A cultura, nesse sentido tradicional, constituía um complemento refinado ao lazer, e não um instrumento de trabalho (SIMONSEN, 1969, p. 222).

Observe-se, contudo, que Simonsen não foi uma voz isolada no universo da ditadura. Em mensagem enviada ao Congresso pelo Presidente Castelo Branco, o primeiro militar do ciclo ditatorial iniciado em 1964, constata-se o vínculo entre o atraso e os problemas educacionais vivenciados pelo Brasil.

O sistema educacional brasileiro, que deveria servir como vigoroso instrumento de progresso, foi encontrado pelo atual governo em situação delicada, sujeito que estava a um processo de deterioração progressiva. Estruturado com graves defeitos qualitativos, submetido a baixos padrões de eficiência, não atendendo aos princípios democráticos de justiça social, o ensino brasileiro transformara-se em óbice, ao invés de atuar como alavanca de desenvolvimento econômico e social. Após o trabalho saneador de 1964, o Governo Federal buscou, em 1965, consolidar sua decisiva ação de aperfeiçoamento da vida educacional brasileira, sem ignorar que é longo o caminho a percorrer (CASTELO BRANCO, 1987, p. 383, grifos nossos).

Nesse sentido, atender “aos princípios democráticos de justiça social” seria o papel fundamental da educação, o que inclui o desenvolvimento da nação. Não por acaso, o ensino de 2º grau também recebeu críticas por ser considerado fator contribuinte para a imobilidade social. Trata-se, portanto, de uma perspectiva vinculada à Teoria do Capital Humano (TCH), voltada para a formação de recursos humanos para a geração de trabalho técnico e qualificado.

Em conformidade com os postulados de Theodore William Schultz, o vínculo entre a formação qualificada da força de trabalho e o crescimento econômico é direto, na medida em que o conhecimento adquirido implicaria na ampliação da produtividade, elevando a renda do trabalhador e, por conseguinte, gerando desenvolvimento econômico e social.

Embora a Educação seja, em certa medida, uma atividade de consumo que oferece satisfações às pessoas no momento em que obtém um tipo de educação, é predominantemente uma atividade de desenvolvimento realizado para o fim de aquisição de capacitações que oferece satisfações futuras ou que incrementa rendimentos futuros da pessoa como um agente produtivo. Dessa forma, uma parte sua é um bem de consumo aparentando com os convencionais bens duráveis do consumidor, e outra parte é um bem produtor (SCHULTZ, 1973, p. 79).

Para Schultz, o investimento em educação é importante na medida em que aumenta a capacidade produtiva. É evidente que esses postulados se fizeram presentes nas ações do Estado na área educacional, buscando racionalidade nos recursos aplicados, com o propósito de reordenação do processo educativo de forma a tomá-lo operacional mediante os desígnios do capital.

Nesse contexto, é preciso acentuar que a teoria de Schultz situa a educação como elemento fundamental para elevar o capital humano, responsável por gerar atitudes e conhecimentos que capacitariam o indivíduo ao mercado de trabalho. De acordo com a TCH, a educação passa a potencializar o desenvolvimento e a distribuição de renda, visto que possibilitaria uma ascensão na pirâmide social. Não obstante, a referida teoria abandona as diferenças sociais já arraigadas na sociedade e responsabiliza o próprio indivíduo que não conseguiu alterar sua posição social, visto que houve oportunidades para sua mobilidade.

Desse modo, o arcabouço ideológico da TCH é um instrumento de legitimação da subordinação da educação – em seus diferentes níveis e modalidades – ao projeto autoritário de aprofundamento da inserção dependente da economia brasileira ao capitalismo internacional, já que a TCH cabia exatamente nos interesses burgueses militares. Observa-se, também, que é nessa perspectiva que foram realizadas as reformas de 1º e 2º graus (1971) e do ensino superior (1968).

Essa concepção aparece plenamente explicitada no fórum “A educação que nos convém”, organizado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), em 1968, momento em que foram apresentados e debatidos os rumos para a vinculação do sistema educacional com as necessidades do mercado de trabalho, de profissionalização do ensino médio e de flexibilização da mão-de-obra, além da valorização do ensino privado. Nesses termos, as propostas presentes no fórum são condizentes com o modelo empresarial, alicerçado na racionalização própria do sistema capitalista. Acrescente-se a isso o fato de que o instituto materializava os projetos e valores do empresariado, influenciando a definição das políticas educacionais.

Uma das bandeiras levantadas neste contexto, pautada no lema Desenvolvimento e Segurança, foi o desenvolvimento na área educacional. Além da reforma do ensino superior (5.540/1968) a do 1º e 2° graus (5.692/1971) contou com subsídios financeiros empresariais a exemplo da Fundação Ford, reforçando o lema tecnocrático de o máximo de eficiência para uma maior produtividade em menor tempo e com menos gasto. Tudo isso alimentado pela crença da ascensão social via escola, que num período de grande arrocho salarial e desemprego elevado, estimulou estudantes a se levantarem contra o regime, em busca de reformas (SOUZA, 2016, p. 249).

Conforme destacado anteriormente, a ideia de qualificação da mão-de-obra foi uma bandeira comum entre os intelectuais identificados com a defesa da ordem. Nesse aspecto, a reorganização do sistema escolar, segundo as necessidades do mercado, contribuiria para o crescimento da produção, a geração de empregos e a inserção dos indivíduos no mercado de trabalho. Então, a partir do arcabouço ideológico, intimamente vinculado com as transformações das relações capitalistas e focado na expansão e na reestruturação da educação básica, é possível compreender as reformas implementadas.

Os discursos em torno da Lei 5.692/71, durante a ditadura militar brasileira, e que substituíram praticamente na íntegra a legislação educacional expressa pela primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 4.024/61, diziam que a necessidade de alteração da legislação atendia aos ditames de um “novo” momento social. Para tanto, esse momento pedia uma “nova” escola e uma “nova” visão educacional. Assim, a Lei 5.692/71 foi saudada como a panaceia, como a redenção da educação brasileira, ironicamente, até mesmo entre os educadores no período militar (JACOMELI, 2010, p. 77).

Ao contrário da Lei 4.024/61, que tramitou por mais de dez anos até sua aprovação, a lei 5.692/71 foi produto da ditadura que não precisou mais do que três meses para ser aprovada, sem correções ou acréscimos. Nesse interim, embora permanecendo uma pequena semelhança em alguns princípios entre uma lei e outra, a grande virada se deu no âmbito da formação para o trabalho e o caráter de terminalidade atribuído ao ensino médio. Nesse contexto, é preciso mencionar que a superação do ensino propedêutico da lei 4.024/61 era uma das bandeiras erguidas na luta pela reforma educacional sob o argumento de que a educação deveria ser mais prática, possibilitando que o estudante aprendesse um ofício.

Além disso, currículos irrealísticos exigem forte carga horária de informações puramente acadêmicas, sem qualquer preocupação de qualificação gradativa de mão - de - obra nacional ao longo das diversas etapas dos cursos. Com vistas à melhor produtividade do ensino, já está pronto o estudo para a integração do curso primário com o primeiro ciclo do atual ensino médio, de modo a criar-se o conceito de educação fundamental, que virá corrigir os defeitos de desconexão hoje existentes entre os currículos desses graus de ensino (MÉDICI, 1987, p. 406).

Isto posto, vale destacar que, com a reforma de 1971, todas as escolas deveriam ofertar cursos profissionalizantes e, ao final do 2º grau, o aluno deveria ser habilitado em uma determinada profissão, caráter mantido apenas pela rede púbica de ensino, já que muitas escolas particulares mantiveram o caráter de formação e de preparação para as universidades. Dessa forma, a lei n° 5.692/71 rompeu com uma trajetória histórica que não conectava o ensino médio com o mundo do trabalho. Nas palavras de Jarbas Passarinho, ministro da educação do Governo de Médici (1969-1974): “Não há mais lugar no Brasil de hoje, para o dualismo de uma escola média que leva à Universidade e outra que prepara para a vida. A escola é uma só e deve sempre cumprir essas duas funções, indispensáveis a uma educação verdadeiramente integral” (BRASIL, Exposição de 1971, p. 18).

Para os tecnocratas do regime, era necessário criar as bases de um sistema educacional de acordo com os interesses do mercado. [...] A política educacional implementada no período era considerada instrumento social estratégico para alavancar o crescimento econômico (GOMES, 2018, p. 438).

Para além do que foi proclamado pela lei, a exigência imposta de profissionalização das escolas de 2º grau não se materializou em função da falta de recursos financeiros, de materiais e de docentes qualificados. Nesse contexto, os recursos provenientes da União para a educação foram insuficientes para o atendimento de todos, o que contribuiu para o avanço privatista.

A Constituição de 1946, por exemplo, determinava que a União disponibilizasse para a educação 10% dos valores arrecadados em impostos e que os Estados e Municípios destinassem, cada um, outros 20%. A Lei de Diretrizes e Bases de 1961 ampliou a cota federal para 12% da receita. Em 1967, em plena ditadura, a Constituição de 24 de janeiro de 1967 “[...] eliminou a vinculação orçamentária constante das Constituições de 1934 e de 1946, que obrigava a União, os estados e os municípios a destinar um percentual mínimo de recursos para a educação” (SAVIANI, 2008, p. 298).

A Constituição de 1934 havia fixado 10% para a União e 20% para estados e municípios; a Constituição de 1946 manteve os 20% para estados e municípios e elevou o percentual da União para 12%. A Emenda Constitucional n. 1, baixada pela Junta Militar em 1969, também conhecida como Constituição de 1969 porque redefiniu todo o texto da Carta de 1967, restabeleceu a vinculação de 20%, mas apenas para os municípios (artigo 15, § 3º, alínea f). Em consequência da exclusão do princípio da vinculação orçamentária, o governo federal foi reduzindo progressivamente os recursos aplicados na educação: “desceu de 7,60% (em 1970), para 4,31% (em 1975), recuperando-se um pouco em 1978, com 5, 20%” (VIEIRA, 1983, p. 215).

Diante disso, um terço do mínimo estipulado na Constituição de 1946 e confirmado pela LDB de 1961 foi destinado à educação, evidenciando que os investimentos empreendidos reforçaram as políticas de privatização ao estabelecer, no parágrafo segundo do artigo 168: “Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo”, dispositivo que foi mantido na Emenda de 1969 (§2° do artigo 176) (SAVIANI, 2008).

O resultado disso foi que, com recursos minguados, muitas instituições não possuíam condições mínimas de atender a lei 5.692/71. Como desdobramento, verificou-se que a opção de inúmeros estabelecimentos de ensino recaiu sobre cursos de baixo custo, sem que fossem tomadas como parâmetro as necessidades do mercado de trabalho.

Foi igualmente desastrosa a instituição, pela mesma lei, do ensino profissionalizante que atravancou nossas escolas, conduzindo a enormes gastos com equipamentos custosos e dispensáveis, onde era cruel a carência de recursos didáticos mínimos. O pior é que, ocupada nas práticas profissionalizantes - que pretenderam oferecer mais de uma centena de especialidades -, a escola elementar descuidou sua tarefa basilar de ensinar a ler, escrever e contar. Este é, aliás, o único aprendizado efetivamente profissionalizante numa sociedade letrada, em que o domínio da escrita e da leitura determina o horizonte a que um trabalhador pode aspirar em qualquer emprego (RIBEIRO, 1984, p. 51).

Em outras palavras, a ausência efetiva de uma política de formação desses recursos para efetivação dos cursos profissionalizantes inviabilizou sua materialização. Não por acaso, surgiram diferentes habilitações ofertadas sem perspectiva de emprego e, consequentemente, mesmo nas instituições privadas, dedicadas ao ensino preparatório para os cursos superiores, continuou esse tipo de ensino sob a máscara de profissionalização.

Com efeito, a proposta carregava a concepção de terminalidade da escola de 2º grau. Buscava-se, com isso, dar aos filhos da classe trabalhadora um ofício que diminuísse a pressão pelo acesso ao ensino superior, ao mesmo tempo em que se contribuiria para minimizar as desigualdades estruturais, propiciando a ilusão de igualdade de oportunidades no plano educacional, pois, assim, a universidade, principalmente pública, tomar-se-ia um lugar de elite. Por conseguinte, para a classe trabalhadora restariam o ensino médio e as faculdades privadas.

As diretrizes indicadas permitem adotar prioridades básicas, algumas de caráter global, que se confundem ou defluem necessariamente dos fundamentos adotados. O sistema educacional brasileiro deve, antes de tudo, assegurar meios para a plena afirmação do homem brasileiro, enquanto pessoa. Depois, promover a sua integração na sociedade nacional. Em seguida, capacitá-lo como recurso para o desenvolvimento do país — o que, em si mesmo, é afinal um instrumento para consecução das prioridades anteriores. Por fim, como forma de assegurar esses escopos, garantir a democratização do acesso à educação e do sucesso individual e social consequente (BRASIL, 1976, p. 33).

Nesses termos, a preocupação em reformar a educação vinculou-se aos objetivos de legitimação das ações do Estado em defesa do desenvolvimento econômico e social com oportunidades para todos. Porém, a lei 5.692/71 não se materializou da forma como havia sido proclamada. Os problemas gerados pela reforma apresentaram, como desdobramento, a desorganização da educação pública, pois não havia condições materiais mínimas de implementação do ensino profissionalizante em todas as escolas do país, nem era possível cumprir as promessas proclamadas nos documentos oficiais. Para piorar o cenário em questão, a evidência do fracasso foi a revogação da obrigatoriedade da profissionalização por meio da Lei n° 7.044/82.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O golpe civil-militar de 1964, autoproclamado como Revolução pelos seus artífices, ocorreu em nome da moralidade, da democracia, do combate à corrupção, do comunismo e do desenvolvimento econômico e social do Brasil. Os que se colocaram contra o Estado autoritário foram caçados, banidos, presos ou mortos nos porões da ditadura civil-militar. Foi a era do país do “Ame-o ou deixe-o”.

Vale destacar que o contexto nacional, influenciado pelo cenário mundial, demonstrava as tensões ideológicas advindas da Guerra Fria, que geravam reflexos não somente no Brasil, mas em toda a América Latina. Com a criação da Escola Superior de Guerra (e instituições semelhantes em outros países latinos), os EUA conseguiram exercer seu domínio, vinculando tratados e acordos que favorecessem unicamente a si e, em troca, os países recebiam formação e preparação militar.

Inseridas no território brasileiro, as doutrinas americanas executaram um papel que foi além do militarismo, investindo numa reconstrução ideológica da população brasileira e lutando contra a “doutrina vermelha”, pois os EUA estavam ameaçados pela Revolução Cubana, temerosos pela perda do controle da América latina. Desse modo, a ditadura civil-militar, além da repressão, necessitava de legitimação popular e, para isso, era necessária a construção de um consenso em torno dos valores burgueses e da defesa da ordem. Assim, a educação escolar foi estabelecida como um espaço estratégico para atingir esses objetivos.

Acrescente-se que, independente dos objetivos proclamados, as ações do Estado contribuíram para precarizar ainda mais o ensino dos filhos da classe trabalhadora. Se houve ampliação, também é verdadeiro afirmar que as melhorias prometidas não saíram do papel, pois inúmeras escolas não possuíam sequer condições físicas ou docentes qualificados para permitir o ensino profissionalizante.

A Teoria do Capital Humano fez-se ímpar naquele momento devido ao fato de atender aos interesses do capital. Desse modo, pode ser destacado que havia uma educação ofertada pelo Estado para todos e era de total responsabilidade dos estudantes sua ascensão social. Apesar da péssima qualidade estrutural dos estabelecimentos de ensino, dos salários defasados, dos índices de matrículas que não eram capazes de atender integralmente a população, a evasão escolar ocorria decrescentemente: as matrículas eram maiores nos níveis iniciais (alfabetização) e decaíam no âmbito dos ensinos fundamental, médio e superior.

A ideia de igualdade de oportunidades, presente em diferentes manifestações do período, que ainda se repete nos discursos oficiais contemporâneos, contribui para a privatização do fracasso, escamoteando as condições materiais que ocorrem na escolarização das classes trabalhadoras. Some-se a isso o fato de que o relatório do Banco Mundial, em 1989, constatou que quanto mais alta a renda familiar, mais haveria acesso ao ensino superior, e o inverso também, ou seja, quanto menor a renda familiar, menos chances de adentrar em uma universidade.

Também podemos concluir que o caráter terminal reforça a ideia de uma educação voltada para o trabalho e direcionada aos estudantes de classe trabalhadora, que, ao término do ensino médio, deveriam sair com uma profissão. Contrário ao que foi afirmado pelo governo militar, a educação ofertada em níveis técnicos priorizava uma formação que pudesse ser ensinada sem laboratórios ou estruturas elaboradas. Assim, popularizaram-se cursos como: técnico em secretariado, magistério, auxiliar de administração, entre outros. Pois eram possíveis de serem executados em lugares com estrutura precária e com os profissionais já existentes.

A permanência de tendências presentes no passado pode ser explicada em função da continuidade do modo de produção capitalista. Em síntese, sob o comando do capital, a escola continua sendo um espaço privilegiado de difusão dos interesses burgueses já que as ações da ditadura civil-militar contribuíram para o reforço da visão produtivista presente até hoje no âmbito da educação. Não por acaso, pode ser notada, nos documentos e discursos oficiais, a defesa do arcabouço empresarial na gestão das políticas educacionais e a racionalização de recursos que, na prática, tem significados voltados para a precarização das condições de trabalho docente.

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Recebido: Janeiro de 2021; Aceito: Março de 2021

Informações dos autores

Marco Antônio de Oliveira Gomes

Afiliação institucional: Universidade Estadual de Maringá (UEM)

E-mail:marcooliveiragomes@yahoo.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2397-5615

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0581840246394811

Ítalo Ariel Zanelato

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

E-mail:italo.zanelato@escola.pr.gov.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2072-8405

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6383304497323065

Crislaine Aparecida Pita

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

E-mail: crislainepita00@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7917-6882

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