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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.66 Rio de Janeiro jul./set 2021  Epub 06-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.51951 

Artigo

ESCOLAS RIBEIRINHAS E SEUS DESAFIOS: faces da educação do campo na Amazônia Marajoara

RIVERSIDE SCHOOLS AND THEIR CHALLENGES: faces of field education in Marajoara Amazon

ESCUELA DE RIBEREÑA Y SUS DESAFÍOS: cara de la educación de campo en Amazonia Marajoara

1Universidade Federal do Pará


Resumo

O texto discute os desafios, as dificuldades e as perspectivas educacionais de alunos e professores da escola ribeirinha no arquipélago de Marajó, especificamente no rio Mapuá, município de Breves, PA. Ancora-se nos escritos de autores como Hage (2005), Caldart (2004; 2009; 2020), Arroyo (2004; 2011), entre outros. A metodologia envolveu entrevistas semiestruturadas, observações etnográficas e a análise da Proposta Curricular do Ensino Fundamental das escolas do campo de Breves. Os dados empíricos em diálogo com a base teórica revelaram que alunos e professores enfrentam desafios e dificuldades de caráter material e pedagógico. Embora tal fragilidade, esta escola é, para alunos e familiares no Mapuá, esperança para construírem outras alternativas de vida na floresta, além de valorizarem seus saberes e tradição cultural. Conclui-se que a escola ribeirinha se caracteriza como tática para as famílias do Mapuá/Marajó projetarem, nas bordas do paradigma urbanocêntrico, perspectivas de futuro.

Palavras-chave: escola ribeirinha; currículo; marajó.

Abstract

The text discuss the educational challenges, difficulties and perspectives of students and teachers from riverside schools on Marajó archipelago, on Mapuá River, municipality of Breves. It is anchored in the writings of authors such as Hage (2005), Caldart (2004; 2009; 2020), Arroyo (2004; 2011), and others. The methodology involved semi-structured interviews, ethnographic observations and the analysis of the Curricular Proposal for Elementary Education of Breves field schools. The empirical data in dialogue with the theoretical basis revealed that students and teachers face material and pedagogical. Although such a fragility, the school is, for students and families in Mapuá, hope for building other alternatives of life in the forest, in addition to valuing their knowledge and cultural tradition. Hence the conclusion that the school is characterized as a tactic for the riverside peoples of Mapuá / Marajó to project, on the edges of the urban-centric paradigm, perspectives for the future.

Keywords: riverside school; curriculum; marajó.

Resumen

El texto dice respecto de los desafíos, dificultades y perspectivas educacionales de alumnos y docentes de la escuela en el archipiélago de Marajó, especificament en el río Mapuá, perteneciente a la municipalidad de Breves. Está anclado en los escritos de autores como Hage (2005), Caldart (2004; 2009; 2020), Arroyo (2004; 2011), entre otros. La metodologia se desarrolla a partir de entrevistas semi estructuradas, observaciones etnográficas, y del análisis curricular de la educación primaria en las escuelas del medio rural de Breves. Los datos empíricos en diálogo con la base teórica ponen de relieve que alumnos y docentes enfrentan desafíos y dificultades de carácter material y pedagógico. A pesar de esta fragilidad, la referida escuela es, para los alumnos y sus familiares, esperanza para la construcción de otras alternativas de vida en medio a la selva. Además de la promoción de sus saberes y tradición cultural. Por lo dicho, se concluye que la escuela se caracteriza por ser estratégica para la población ribereña del Mapuá / Marajó, teniendo en cuenta su proyección, al borde del paradigma urbanocéntrico, hacia perspectivas de futuro.

Palabras clave escuela ribereña; currículo; marajó.

INTRODUÇÃO

O texto coloca em debate a escola ribeirinha1 e seu processo educativo materializado no arquipélago de Marajó, a partir da realidade do rio Mapuá e área por ele banhada, espaço rural do município de Breves, PA. Tem por finalidade abordar as dificuldades e os desafios pedagógicos enfrentados por alunos e professores na escola ribeirinha; busca-se, ainda, conhecer perspectivas educacionais que alunos e suas famílias projetam sobre essa escola; discutir a função social dessa instituição nas comunidades locais, bem como sua organização e proposta pedagógica na relação com a realidade ribeirinha.

Para conduzir essa discussão, traçamos os seguintes questionamentos: Que desafios e dificuldades alunos e professores enfrentam na escola ribeirinha no rio Mapuá? Como essa escola lida com a dinâmica do lugar, incluindo o período de coleta e venda do açaí e a produção da roça? Como essa escola está organizada estrutural e pedagogicamente? O que alunos e famílias esperam de tal escola? E, por quê/para que as comunidades ribeirinhas no Mapuá/Marajó precisam de escolas?

Teoricamente, o presente texto ancora-se nos escritos de autores como Hage (2005), Caldart (2004; 2009; 2020), Arroyo (2004; 2011), entre outros. Esses estudiosos se dedicam à educação e à escola do campo, denunciando em suas pesquisas a precariedade, o descaso do Estado, e ao mesmo tempo, defendendo uma educação e escola que valorize as diversas identidades dos sujeitos do campo; que permita a esses sujeitos ter acesso ao conhecimento como instrumento político; que adquira novas posturas, estratégias e diretrizes, no sentido de possibilitar aos grupos sociais do campo o direito a ter voz, história, memória, trabalho e vida com dignidade (COSTA, 2012).

Quanto aos procedimentos metodológicos, optamos pela investigação qualitativa, por tratar-se de um fenômeno apreendido no meio natural e impossível de reduzi-lo a variáveis mensuráveis (MINAYO, 2016). Fazemos uso de fontes orais, por meio da metodologia da História Oral (HO). Portelli (1997) entende que a HO não tem um sujeito unificado, pois resulta de uma multiplicidade de um ponto de vista, o que permite revelar nas investigações aspectos desconhecidos que outra fonte não consegue desvelar.

No rastro dessa metodologia, entrevistamos quatro professores (selecionados por ser oriundos da localidade), quatro alunos e quatro moradores (selecionados por se disponibilizarem em participar da pesquisa). Tais interlocutores estão identificados no texto com nomes fictícios, a fim de resguardarmos a identidades, bem como assegurarmos o sigilo ético necessário.

Na realização das entrevistas, fizemos uso de um roteiro flexível, como propõe Rizzini, Castro e Sastor (1999), com cinco perguntas estabelecidas a partir dos objetivos da pesquisa. As entrevistas ocorreram nas casas dos depoentes e nas escolas ribeirinhas de acordo com o horário marcado pelos entrevistados. Cada entrevista foi gravada conforme consentimento e transcrita literalmente, suprimido apenas as repetições. No corpo do texto, usamos trechos dessas entrevistas, selecionados consoante os objetivos e questões de estudo.

Além das fontes orais, recorremos ainda às observações etnográficas realizadas no período de junho a dezembro de 2017. Seguindo a orientação de Geertz (2009), tais observações foram densamente registradas no diário de campo. Contamos ainda com a fonte documental, tendo como principal documento a Proposta Curricular do Ensino Fundamental das Escolas do Campo de Breves, elaborada em 2012 e revisada em 2014, com a participação de alguns professores das escolas do campo. Em sua análise, atentamos para as concepções de educação, escola e currículo, definidas pelo referido documento para orientar a formação de crianças do campo em Breves no Marajó.

O diálogo entre as fontes empíricas e a base teórica gerou a presente discussão. No próximo tópico, trataremos da educação e da escola do campo no Marajó, com destaque para a realidade de Breves, a partir de uma abordagem histórico-conceitual. A discussão segue colocando em pauta as dificuldades, os desafios e as perspectivas de alunos e professores da escola ribeirinha no rio Mapuá. Nesse movimento, identifica-se que os desafios são de ordem estrutural e pedagógica, incluindo currículo e prática sustentada em um pseudo fazer para uma pedagogia das águas e floresta.

Apesar das fragilidades da escola ribeirinha, nas Considerações Finais, conclui-se que esta escola, para alunos e famílias no Mapuá, é a esperança para construírem, nas bordas do paradigma eurocêntrico, outras alternativas de vida na floresta, que significa ocuparem outros espaços, como na própria escola na condição de professor. E nessa dinâmica, valorizar as tradições culturais, e quiçá questionar as barreiras da invisibilidade que os povos de tradição oral foram submetidos pela episteme de orientação moderna eurocêntrica.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR DOS RIBEIRINHOS NO MARAJÓ

A Amazônia Marajoara, formada por 16 municípios2, no passado chamada de Ilha Grande de Joanes, foi palco estratégico para os colonizadores portugueses conquistarem a Amazônia Oriental. Desde então, sua riqueza natural e sua população tem sido objeto de intensa exploração, fato que ajuda a explicar as mazelas e as vulnerabilidades sociais da região. Mas, essa porção da Amazônia não se resume a problemas sociais. É potencialmente rica em recursos naturais e culturais - o que falta à região são políticas públicas que atendam às necessidades da população. Políticas que possam garantir que a riqueza anunciada sirva para sanar a carência do povo marajoara, e não apenas a ganância do capital.

Entre tais políticas, destaca-se a educação, a qual deveria ser entendida pelo Estado e sociedade como elemento-chave na superação dos problemas sociais da região. Daí colocarmos em debate a partir da realidade dos sujeitos que habitam, trabalham e praticam os territórios rurais, aqui chamado de campo3. Recorrendo à memória escrita, observamos que, tal como nas demais realidades rurais brasileiras, a educação escolar destinada aos sujeitos do campo no Marajó carrega em sua história a imprescindível marca da educação escolar urbana de regime seriado. Em outras palavras, significa dizer que adota o mesmo currículo, o mesmo método de ensino e o mesmo critério de avaliação, com a diferença de ser organizada em classes multisseriadas (hoje multianos), ou seja, formadas por alunos de diferentes faixa-etárias e níveis de aprendizado, conduzidas por um único professor (HAGE, 2005).

Outra característica marcante dessa escola é a limitação na escolarização. As turmas multisseriadas não ultrapassam os anos iniciais do ensino fundamental, com um currículo inspirado em concepções universalizante. Estudiosos como Hage (2005), Corrêa (2005) e outros denunciam que nessas classes prevalecem a escassez de material didático, ausência de energia elétrica e água potável, oferta irregular de merenda escolar, quantidade de carteiras insuficientes, sobrecarga de trabalho ao professor (faxineiro, merendeiro etc.), rotatividade docente, falta de acompanhamento pedagógico e ausência do aluno em determinados períodos do ano, em função das atividades produtivas. Além disso, há ainda o fato dessas classes serem desenvolvidas em lugares cedidos, quase sempre, com uma estrutura precária e inadequada. Fatores que para Hage (2005) são responsáveis pela infrequência e a evasão escolar, o que causa prejuízos à aprendizagem e formação do aluno do campo.

Arroyo (2004) e demais estudiosos tratam esse modelo educacional de urbanocêntrico. Tal paradigma, de acordo com Corrêa (2005), tende a precarizar o processo pedagógico das escolas do campo, resultando no fracasso escolar e na exclusão de crianças, jovens e adultos. Esse autor entende que, à luz do paradigma urbanocêntrico, o currículo da escola do campo “[...] contribui para reforçar a hegemonia do conhecimento cientificista e (re)produzir a legitimação de um imaginário urbano-capitalista como modelo de vida [...]” (CORRÊA, 2005, p. 164). Desse modo, referida escola tende a deslegitimar as práticas culturais, os saberes e as identidades dos povos do campo no Marajó. E, ao mesmo tempo, legitima, nas palavras de Corrêa (2005, p. 164), “[...] a hegemonia de uma pedagogia tradicional-conservadora, que reforça e amplia o paradigma eurocêntrico de colonização de poder, de saberes e das identidades culturais do campo da região amazônica”.

Na realidade de Breves, município mais populoso (conta com 92.860 pessoas conforme o último censo realizado em 2010 pelo IBGE) e desenvolvido da Amazônia Marajoara, a escola ribeirinha, organizada apenas como classes multisseriadas, prevaleceu como predominante pelo menos até 2009, quando se iniciou o processo de nucleação4, que veremos mais adiante. Em pesquisa realizada em 2005, Hage identifica que no ano de 2002 havia em Breves 423 classes multisseriadas, e em 2006, o quantitativo chegou a 430 turmas. Ao lado de Santarém, Cametá, Mojú, Marabá e Barcarena, Breves possuía, nessa época, o maior número de escolas multisseriadas do estado do Pará - um quantitativo que poderia até ser visto como positivo, não fosse a precarização anunciada.

No âmbito governamental, a criação dessas classes é justificada como estratégia para garantir à população do campo o acesso à escola. Isso porque, com a quantidade reduzida de alunos, nas comunidades de “pequena escala”, para operar com um conceito de Bezerra (2010), a criação de turmas seriadas não seria possível. A localização desses coletivos é, nessa lógica, elemento determinante da desigualdade de acesso à escolarização pelos sujeitos do campo. Assim, quanto mais próximo do núcleo urbano, maiores são as oportunidades de ensino desses grupos (HAGE, 2005). Vê-se aí que prevalece no campo a lógica do custo/benefício, que sob o signo da racionalidade urbano-capitalista, assume-se como opressor e excludente, que não só esquece como silencia a natureza e a temporalidade própria dos povos do campo.

Para contrapor-se a esse modelo, diferentes coletivos do campo e educadores, desde 1998, por meio do Movimento Por uma Educação do Campo, tem defendido a criação de um outro paradigma, chamado de educação do campo, que significa a criação de uma educação escolar nascida das vozes, história, luta, memória e vida dos oprimidos do campo. Uma educação que se configure como estratégia para os povos do campo lutarem por terra, trabalho, cultura, participação política, defesa do meio ambiente e, principalmente, construir outro projeto de vida e sociedade (CALDART, 2009).

Esse movimento, em articulação com conselhos municipais e estaduais, universidades, ONGs, ancorados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), conseguiu aprovar as Diretrizes Operacionais para Educação Básica das Escolas do Campo (DOEBEC), em 2002 (Resolução 1/2002 do CNE/CEB). Tal documento, importante conquista do movimento no âmbito da política educacional, tem como perspectiva uma escola com identidade, definida e ancorada nas temporalidades, saberes, memórias e práticas culturais, próprias dos sujeitos do campo, como também na ciência e tecnologia disponível na sociedade (Art. 2). Uma escola que contemple a diversidade do campo nos aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia (Art. 5), bem como priorize a gestão democrática, por meio do fortalecimento da relação entre a escola e a comunidade local (Art. 10).

A partir desse documento determinadas secretarias estaduais e municipais sinalizaram tentativas de esforços para inserir em suas agendas políticas o paradigma de educação do campo, e assim criar espaços e situações em que as realidades específicas do campo fossem valorizadas. É o que podemos notar em Breves, com a elaboração da Proposta Curricular para o Ensino Fundamental (anos iniciais e finais) das escolas do campo de Breves, em 2012 e revista em 2014, a qual defende a materialização de um currículo que leve em conta as especificidades da região.

Todavia, apesar desta proposta, ainda prevalece uma educação que, em geral, tende a ignorar fenômenos próprios da dinâmica local, a exemplo do período das atividades produtivas, como veremos no próximo tópico. Antes, porém, cabe mencionar que de 2009 a 2016 o governo municipal de Breves implementou, de forma verticalizada, a política de nucleação, que resultou na construção de escolas polos e redução significativa de turmas multisseriadas. As escolas polos são, na verdade, escolas estruturalmente amplas que, geralmente, dispõem de quatro a seis salas de aula, sala de secretaria, cozinha, banheiros, sala de informática e alojamento para professores. Acompanha essa arquitetura o gerador de luz, bebedouro industrial e o transporte escolar, artefato essencial na materialização dessa política.

Nessas escolas, além de turmas dos anos iniciais (em algumas escolas permanece a multissérie), observa-se a presença de turmas da pré-escola, turmas dos anos finais do ensino fundamental, organizadas em circuitos, isto é, por disciplinas, ministrada por professores oriundos da cidade, em um período de aproximadamente 40 dias. Essas escolas têm agregado ainda turmas do ensino médio, por meio do Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME), gerido pela Secretaria de Estado de Educação (SEDUC-PA)5.

Na prática, a nucleação em Breves resultou na melhoria arquitetônica dos prédios escolares do campo, pois como lembra Carmo (2010), apenas 29,21% dessas instituições tinham prédios próprios; a maioria funcionava em locais improvisados e inadequados, como já o mencionamos anteriormente. Mas, em que pese a melhoria na estrutura física, velhos problemas permaneceram, como a irregularidade na oferta da merenda escolar, rotatividade docente, escassez de material didático, currículo descontextualizado, redução dos dias letivos6, etc. A nucleação também trouxe novos problemas, em especial às longas horas que muitos alunos/as passam no transporte escolar, o que para os/as interlocutores/as interferem no resultado do processo ensino e aprendizagem.

Diferentes alunos de vários destinos (localizados em diversos rios) são obrigados a viajar por mais de duas horas em pequenos barcos ou rabetas7, que dificilmente atendem as normas de segurança de navegação estabelecidas pela Capitania dos Portos. Esses alunos saem de suas casas na madrugada (às 5h ou até antes) para chegar às 8h à escola, e geralmente esses/as alunos/as “[…] com fome, dor na cabeça, devido ao barulho do motor, enfrentam a sala de aula, sem muito ânimo”, expressou Joaquim, 49 anos, professor dos anos iniciais do ensino fundamental em uma escola polo no Mapuá.

A narrativa tecida até aqui nos mostra que a realidade vivenciada por alunos/as e professores/as das escolas ribeirinhas no Marajó, com destaque para Breves, indica grandes desafios que precisam ser enfrentados para que sejam cumpridos os preceitos constitucionais e os marcos operacionais estabelecidos em legislação específica, como as DOEBEC, que definem parâmetros de qualidade do ensino público vislumbrados pelo Movimento de Educação do Campo. Entre os desafios, tem-se a superação do histórico descaso do poder público, que obrigou e submeteu os sujeitos do campo a um precário processo de escolarização, que sob os moldes da seriação urbana, materializado em classes multisseriadas (até pouco tempo única alternativa de acesso aos anos iniciais do ensino fundamental no local em que habita), compromete a formação escolar dos/as ribeirinhos/as na Amazônia Marajoara.

ESCOLA RIBEIRINHA, DESAFIOS E PERSPECTIVAS NO RIO MAPUÁ

O rio Mapuá, localizado a 70km do núcleo urbano de Breves, é considerado um dos rios mais extensos desse município, e embora não seja o único, suas histórias, memórias, tradições e vestígios de distintas temporalidades não deixam de ser significativas para compreendermos o processo de ocupação humana neste território, o que nos ajuda a explicar por que o escolhemos como lócus desta pesquisa. No Mapuá e área por ele banhada, há um aglomerado de famílias que, em tese, podem estar ligadas a duas ancestralidades, uma milenar (indígena) e uma secular (portugueses e cearenses) (COSTA, 2018). Essas famílias, organizadas em 16 comunidades8, cotidianamente, desenvolvem e ressignificam práticas, saberes locais para lidarem com a dinâmica do rio e da floresta.

Em cada uma dessas comunidades, nota-se a presença da escola, instituição que, ao lado da igreja, confere ao grupo o status de comunidade, o que inicialmente nos indica a importância dessa instituição às famílias. Cabe sabermos como essa instituição lida com a dinâmica do lugar, incluindo as temporalidades e os saberes locais (como período de coleta e venda do açaí e a produção da roça). Que desafios e dificuldades essa escola impõe aos alunos e professores? E o que de fatos os sujeitos (alunos e famílias) esperam de tal escola?

Recorrendo à memória escrita e aos relatos dos/as depoentes, verificamos que a escola ribeirinha, no formato multissérie, chegou ao Mapuá no ano de 1979, e se estabeleceu em três vilas, a saber: vila Amélia, vila Cumarú e São Remédio, escolhidas por agruparem o maior número de crianças. Iza, 44 anos, na época aluna, e atualmente professora, lembra que poucos estudavam nessa escola, em função da ausência de professores, que, às vezes, estava na escola, mas não lecionava e, também porque, na maioria do tempo não tinha este profissional, situação que levou Iza lutar para ser professora.

Os/As professores/as dessas classes eram enviados/as da cidade sob a indicação de algum político, e dificilmente tinham formação adequada; aliás, na época, a maioria dos/as docentes tinha apenas a 4ª série do ensino fundamental, quadro que passou a mudar substancialmente com o Plano Nacional de Formação dos Professores de Educação Básica, lançado pelo Governo Federal em maio de 2009. Voltando à escola multisseriada no Mapuá, nossa interlocutora lembra que, nos poucos dias de aula, para ensinar a todos os alunos, “[…] o professor dividia o quadro em três partes, e em cada uma escrevia o assunto de uma série, quase sempre da 2ª à 4ª, e aos alunos da 1ª série passava atividades no caderno” (IZA, 2017), prática que no decorrer da pesquisa observamos que ainda continua.

Além da irregularidade nas aulas e a reprodução do método seriado urbano, indicado por Iza, outra questão apontada por Pedro, 33 anos, ex-aluno dessa escola e, também professor, diz respeito ao fato desta não ter levado em conta o período da coleta do açaí, da feitura da roça, da pesca, momento em que muitos alunos, por precisar ajudar a família, evadiam. Realidade que não se alterou ao longo dos anos, conforme constatamos com a pesquisa, embora a LDB nº. 9.394/96 estabeleça, em seu Art. 28, que a escola do campo deve adaptar o calendário, o currículo, a metodologia à realidade local (BRASIL, 1996). Parâmetros reforçados e ampliados pelas DOEBEC, para quem a identidade da escola do campo deve ser construída a partir da dinâmica de vida das realidades específicas do campo (BRASIL, 2002).

A falta de um calendário que leve em conta tanto o período produtivo das atividades, como coleta e venda do açaí e a produção da farinha, principais elementos que movimenta a economia local, quanto as temporalidades específicas do Mapúa (em parte desse rio, nos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro o nível da água fica bastante baixo, o que dificulta a mobilidade dos moradores entre as comunidades), contribui para a manutenção de uma pedagogia construída sob a perspectiva dos de fora, que, orientada pela racionalidade técnica e conhecimento hierarquizado, não procura apreender o contexto e o saber local.

A escola não pode ignorar o período produtivo desse grupo, pois ela é, exatamente, uma importante ferramenta para possibilitar as crianças, os jovens cultivarem, forjarem formas de engajamento com o mundo. Isso certamente inclui a relação econômica e comercial, da qual o trabalho com a roça e o açaí são fundamentais. Esse trabalho não é apenas para garantir a sobrevivência, é também forma de sociabilidade e intercâmbio material e social entre os coletivos. Por isso, o professor Pedro (2017) afirmar que “[…] a escola tem um papel fundamental na vida da comunidade [...], pois influencia totalmente no desenvolvimento desta”. Mas, quando essa escola não tem um calendário e um currículo que reconheça o trabalho como elemento fundamental da formação dos sujeitos do campo, retira desses sujeitos o direito de construir uma educação, uma formação que contribua para potencializá-los como sujeitos políticos, históricos e sociais (CALDART, 2009).

Esse é um grande desafio para alunos/as e professores/as, pois mesmo que a Proposta Curricular do Ensino Fundamental das Escolas do Campo de Breves recomende que as realidades locais sejam consideradas, a falta de um calendário adequado à especificidade local implica sérias dificuldades pedagógicas e prejuízos ao processo ensino e aprendizagem. Além disso, contribui para inviabilizar a referida proposta. Outros elementos que corroboram com essa inviabilidade é a rotatividade docente, o currículo descontextualizado e a ausência de uma política de formação continuada.

No que tange ao currículo, observa-se, nos relatos dos interlocutores, a permanência de uma pedagogia que trata a escola ribeirinha como escola urbana. Jorge, 27 anos, ex-aluno e professor dessa escola, afirma que sempre recebeu da Secretaria Municipal de Educação de Breves (SEMED) uma lista de conteúdos obrigatórios para serem repassados aos alunos durante o ano. E para cumprir com a obrigatoriedade, recorre aos livros didáticos, também repassados por este órgão. Esses livros, como observa o próprio interlocutor, retratam da realidade urbana, por isso torna-se difícil adaptar à realidade das escolas ribeirinhas do Mapuá. Contudo, reconhece que não dá para ignorar totalmente a realidade local, e por essa razão tenta fazer a devida aproximação.

Comenta Jorge (2018):

A SEMED sempre deu uma lista de conteúdo pra gente trabalhar [...]. Usamos livros didáticos, que a Secretaria repassa [...] é da realidade urbana. É um currículo seriado né?, e bem distante da realidade do aluno daqui [...]. Mas a gente tenta fazer uma aproximação. Aqui, no Mapuá é muito forte as festas dos santos, os alunos, a comunidade toda participa, então fica difícil ignorar essa realidade [...].

Pedro também compartilha do pensamento de Jorge ao enfatizar: “[…] a matriz curricular do nosso município, a qual nós trabalhamos [...], são conteúdos desvinculados da nossa realidade [...]. Mesmo sendo desvinculada, a gente vai colocando pra nossa realidade, fazendo adaptações da nossa realidade”. Arroyo (2011, p. 128) nos lembra que “[...] o currículo é núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola [...]”; é, assim, responsável pela concepção de homem e de sociedade. O autor explica ainda que currículo é território em disputa, logo, demarcado por relações de poder e jogos de interesses (ARROYO, 2011). No campo, isso pode ser traduzido como “[…] terreno de negociações marcado pela contingência e precariedade” (RAMOS; CUNHA, 2018, p. 146).

O currículo não tem, portanto, um dono específico. Como lembra Caldart (2020, p. 4), “[…] nenhuma forma de dominação ou de hegemonia consegue abranger toda a vida, embora tente isso. Sempre restam frestas livres que permitem olhar noutra direção”. Isso significa que no contexto da escola do campo o currículo de orientação urbanocêntrica pode e deve ser ressignificado (ou seja, contextualizado de acordo com as necessidades formativas dos alunos do campo), fato que muito depende do trabalho conduzido pelo professor como se observa timidamente na narrativa.

Para isso, o professor, como sugere a proposta aqui analisada, deve ser produtor do conhecimento. Isso significa que cabe a este profissional desenvolver um trabalho pedagógico que valorize as experiências dos sujeitos, que os ajude na apropriação da teoria, do conhecimento científico, não de forma mecanizada (CALDART, 2009). É bom lembrar o que sugere Arroyo (2011, p. 13), isto é, que “[…] os currículos e conhecimentos para serem interessantes e instigantes têm de ser traduzíveis em experiências”.

Durante o percurso etnográfico, observamos que no tempo das festividades religiosas, mencionadas pelo interlocutor, as escolas suspendem suas atividades, com isso, os professores que são da cidade aproveitam para viajar ou descansar, e nenhuma atividade curricular em relação a tal prática é realizada. Há o envolvimento de alguns dos alunos nas ações promovidas pela igreja local, mas a escola apenas paralisa as aulas.

Para os interlocutores, a paralização é uma forma de respeito à cultura e às práticas religiosas das comunidades, e que não incorporam ao currículo porque a escola é laica. Entendemos que é função da escola e da docência promover uma formação crítica, e isso perpassa pelo entendimento epistemológico dos fenômenos sociais, o que inclui as práticas religiosas. Compreensão que se observa inclusive na Proposta Curricular do Ensino Fundamental das Escolas do Campo de Breves, que, ancorada nos princípios pedagógicos e epistemológicos do paradigma de educação do campo, defende uma educação ampla que abarque as realidades sociais dos territórios rurais de Breves (SEMED, 2014).

Para essa proposta, a escola tem a função de promover um ensino que respeite os saberes, a diversidade e as práticas sociais. Nessa perspectiva, defende como concepção um currículo interdisciplinar que tenha a realidade e as necessidades educativas dos alunos como ponto de partida, assim como as peculiaridades social, econômica e política das comunidades (SEMED, 2014). Todavia, não deixa claro como esse currículo poderá ser materializado ao considerar as condições infraestruturais e a falta de políticas, já abordadas neste artigo.

Conforme indicado, prevalece, apesar da proposta, uma educação, escola e currículo ancorado no paradigma urbanocêntrico, como é possível compreender na narrativa de Léo, 14 anos, aluno do 6º ano do ensino fundamental, ao falar do que faz na escola: “[…] a gente não estuda as coisas daqui [...], a gente estuda coisas dos livros.” (LÉO, 2017). Ana, 17 anos, aluna do 9º ano, completa: “[…] nos livros têm muita coisa da cidade, né”.

De acordo com Caldart (2004), Arroyo (2004) e Hage (2005), uma das grandes dificuldades da escola do campo é exatamente de construir uma proposta curricular que não ignore a especificidade do aluno do campo. Tal dificuldade, para esses autores, tem uma relação direta com a própria formação e a prática docente. Muitos professores assumem a docência na escola do campo sem fazer ideia dessa realidade. Ao se deparar com turmas multisseriadas, como é o caso da maioria das escolas no Mapuá, não sabem como trabalhar e acabam por reproduzir a lógica urbana, que é exatamente como aprenderam.

Daí sugerir que o paradigma urbanocêntrico influencia na forma de organização do espaço, das atividades, dos ritmos, dos tempos, da produção e transmissão do conhecimento na escola ribeirinha. Todavia, não podemos entender esse processo apenas de forma hierarquizada, faz-se necessário, também, perceber que existe em curso uma cultura escolar ou um modo de prática escolar que revelam maneiras, formas de fazer e compreender o modo de vida ribeirinha.

A escola e a docência, como lembra Coêlho (2012), tem uma função social, e esta não se resume à socialização de saberes acumulados pela ciência. Ao contrário, escola e docência têm a função de possibilitar aos estudantes que “[...] entendam o mundo, a sociedade, a ciência, a tecnologia, a filosofia, as letras e as artes; enfim, a cultura, a educação, a vida coletiva, ampliando, enriquecendo e aprofundando horizontes da existência humana, no ver, sentir, pensar e agir [...]”. (COÊLHO, 2012, p. 88).

É um pouco, aliás, é muito do que fala Coêlho (2012) que falta à escola ribeirinha. Entendemos que essa instituição, a partir da sugestão de Moura e Santos (2012), embora apresente sérios problemas, tem assumido a responsabilidade de iniciar uma parcela significativa de brasileiros na vida escolar. É um fenômeno que tem resistido ao descaso e à precariedade; e mesmo não dialogando como se espera com a realidade entre rios e floresta, vem construindo memórias, histórias, práticas e uma cultura escolar que tem possibilitado aos sujeitos acesso ao mundo da leitura e da escrita. Nesse processo, alunos, professores e comunidade incorporam e praticam habitus (BOURDIEU, 1989), renovam sonhos e esperanças, cuja escola é o elementochave, conforme mencionam seu José, D. Maria e João.

Seu José (2017), 50 anos, morador do Mapuá desde a década de 1970, entende que a escola multisseriada, mesmo sendo mínima e elementar, significou a “[…] possibilidade pra as crianças pobres do Mapuá de ter acesso à escola no local onde moram”. Lembra, ele, que só restava “[…] às crianças até então, o mato, a roça, o trabalho braçal”. Com as classes multisseriadas ao menos poderiam “[…] aprender escrever o nome”. Pensamento compartilhado por D. Maria, 62 anos, nascida no Mapuá. Para essa interlocutora, muitos adultos, como ela, não sabem ler e escrever o próprio nome, porque não tinham escola e não podiam morar na cidade, assim, a vinda dessa escola trouxe para as crianças a possibilidade de pelo menos “[…] conhecer as letras” (D. MARIA, 2017). João, 63 anos, menciona que com a “[…] escola alguns filhos do Mapuá se tornaram professor, coisa que nunca se pensou que era possível” (JOÃO, 2017). Vê-se aí que mesmo decadente, a presença dessa instituição na região tem um significado profundo às famílias no Mapuá, pois é a possibilidade real para os jovens e crianças acessarem outros espaços, como a universidade e, assim, criarem outras alternativas de vida na floresta.

A partir de 2009, como mencionado acima, com a nucleação, foram construídas seis escolas polos, o que implicou na melhoria arquitetônica e na ampliação da oferta da educação básica nesse rio. Em quatro dessas escolas, identificamos que há turmas do ensino fundamental (anos iniciais e finais) e três turmas de educação infantil (pré-escola); e em duas escolas, há ainda duas turmas do ensino médio. No caso dos anos iniciais, há turmas seriadas e turmas multisseriadas. Além dessas, há ainda 11 escolas que funcionam somente com turmas multisseriadas, a maioria em espaços próprios, mas com a escassez anteriormente indicada, bem como a irregularidade nas aulas, em função do transporte escolar e ausência de professor/a.

Também em 2010, por iniciativa estadual e municipal, foi construída uma Casa Familiar Rural (CFR). Nesta casa, os alunos têm acesso aos anos finais do ensino fundamental e médio na modalidade técnico-profissional, em regime de alternância pedagógica9. Metodologia, originada na França, que tem como pressuposto valorizar um currículo, cujo trabalho é concebido como princípio educativo (COSTA, 2012). Essa CFR tem enfrentado problemas com a falta de recursos e inadimplência, mas tem tentado manter-se em funcionamento. De acordo com Ilca, 22 anos, ex-aluna dessa CFR e universitária, muitos jovens voltaram a estudar, e passaram a construir “[…] outras perspectivas, possibilidades de vida”, inclusive o acesso à universidade, historicamente negado a esses sujeitos.

D. Judite, 54 anos, mãe de quatro filhos, partilha do ideal apontado por Ilca. Mas, para ela, essa possibilidade começa a ser costurada com a escola ribeirinha, multisseriada. Victor, 16 anos, aluno do 7º ano, que caminha todos os dias 1h40min para acessar a escola, também aposta nessa instituição como o caminho para construir outro futuro. Diante disso, podemos dizer que esses sujeitos e comunidades precisam da escola, por ser um direito, e, principalmente, porque essa instituição tem um papel fundamental, isto é, possibilitar perspectivas de vida e futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Mapuá, a escola ribeirinha passou por importante mudanças ao longo de sua história. Nos últimos 10 anos, observa-se um avanço em relação ao acesso à escolarização, com a presença da pré-escola, de turmas dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. A mudança inclui, ainda, a criação de prédios próprios, que implicou na melhoria da estrutura física. Apesar disso, a escola ribeirinha continua enfrentando dificuldades, sobretudo com a escassez material; desafios no âmbito pedagógico e curricular, em especial, a materialização de um currículo que tenha as necessidades educativas dos sujeitos como ponto de partida. O desafio é superar um currículo e, também, uma prática, ancorada na racionalidade urbana-capitalista, que se sustenta com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017, que, em nossa leitura, exige uma formação baseada em habilidades e competências aos moldes de princípios tecnicistas.

Embora as dificuldades e os desafios, ficou evidente que para a população local, sobretudo os jovens e crianças, a escola ribeirinha é a esperança para construírem outras possíveis vidas na floresta. Isso mostra que, apesar dos desafios e das dificuldades, a escola é entendida como importante alternativa para tirar homens e mulheres da condição de oprimidos. Por isso, conclui-se que a escola ribeirinha, para alunos e famílias no Mapuá/Marajó, é tática, esperança para construírem, nas bordas do paradigma eurocêntrico, outras alternativas de vida na floresta, que significa ocuparem outros espaços, como a própria escola na condição de professor. E, nessa dinâmica, valorizar as tradições culturais, condição fundamental para os subalternos serem vistos como sujeitos que têm história, memória e voz.

Entendemos que escola e educação são ferramentas indispensáveis para questionarmos qualquer forma de submissão. Mas, para isso professores, SEMED e a própria comunidade precisam apreender a escola como território de diálogo, e não apenas como instrumento do capital. Aprender a escola nessa perspectiva nos permite compreender como as comunidades forjam seu modo de vida na relação com a dinâmica ambiental. Nesse movimento, o rio e a floresta não são apenas o espaço geográfico que praticam e os recursos que exploram, mas são os territórios urdidos por suas histórias, memórias, experiências, enredadas em suas espiritualidades, saberes, práticas e tradições culturais e identitárias dos povos da Amazônia Marajoara.

1Adota-se o termo “escola ribeirinha” não pelo fato de estar localizada às margens do rio, mas, principalmente, por tratar-se de uma escola que precisa lidar com a dinâmica de vida entre rio e floresta, e isso inclui o tempo das chuvas, da maré alta e do sol forte, que também significa o tempo da pesca, da feitura da roça e da coleta do açaí. Não se trata de reafirmar um particularismo, mas de pensar a escola a partir do lugar em que as pessoas vivem e, assim, chamar a atenção para a tensão entre particular e universal (CALDART, 2009).

2Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Ponta de Pedras, Chaves, Muaná e São Sebastião da Boa Vista formam, na parte oriental, o Marajó dos Campos. Na parte ocidental, o Marajó das Florestas abarca os municípios de Curralinho, Bagre, Breves, Melgaço, Portel, Anajás, Gurupá e Afuá (SARRAF-PACHECO, 2006).

3Usamos o termo campo para nos referirmos ao território rural marajoara, por considerá-lo, do ponto de vista epistemológico, como um termo amplo e diverso, que cada realidade específica do território rural brasileiro lhe empresta, possibilitando o reconhecimento de tais realidades como espaço de inclusão social.

4 Carmo (2016) explica que a nucleação se configura como mecanismo e estratégia de organização das escolas do campo adotada no Estado brasileiro a partir dos anos de 1970, e de forma mais intensa nos anos de 1990 pelos governos municipais, com a justificativa da oferta do ensino de qualidade. Na prática, a nucleação resultou no fechamento de escolas multisseriadas (mas não na extinção da multissérie), na organização de escolas polos, isto é, escolas com maior número de salas de aula, banheiros, secretaria, cozinha e transporte escolar, na ampliação do Ensino Fundamental (implicou também na oferta da Educação Infantil, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos-EJA) e no aumento da distância para acessar a escola. Em linhas gerais, trata-se de uma política que melhorou a infraestrutura da escola, porém não representou a qualidade da educação, isso porque foi implementada de forma hierarquizada, isto é, sem levar em conta a realidade geográfica, os aspectos socioculturais e a densidade populacional da localidade.

5O SOME foi criado pelo governo estadual nos anos de 1980, com o objetivo de ofertar o ensino médio à população não atendida pela oferta regular. Na Amazônia Marajoara, o SOME foi implantado inicialmente em Breves, na vila Mainardi, rio Parauau, na década de 1990 (RODRIGUES, 2016).

6Os dias letivos não são cumpridos, em função, sobretudo, do transporte escolar. Identificamos com a pesquisa que a prefeitura aluga, preferencialmente, de moradores locais, os barcos usados no transporte escolar, e todo mês a Secretaria Municipal de Educação (SEMED) tem a responsabilidade de repassar a cada transportador uma quantidade de combustível. O problema é que raramente a SEMED mantém o calendário de distribuição do combustível e, além disso, não repassa a quantidade necessária para o cumprimento dos dias letivos, o que acarreta na redução e irregularidade das aulas.

7Pequenas canoas, botes ou cascos construídos em madeira com capacidade para uma ou até 10 pessoas. São conduzidas por um motor movido a gasolina, que conta com um eixo de aproximadamente três metros com uma hélice presa na ponta. Atualmente, as rabetas são um dos principais artefatos usados pelos sujeitos do campo no Marajó para estabelecer mobilidade e conexão entre rio, floresta e cidade.

8Bom Jesus, Santíssima Trindade, São Sebastião do Mapuá, Nossa Senhora das Graças (vila Amélia), Santa Rita, São José, São Benedito do Mapuá, São Sebastião do Canta Galo, Santa Maria, São Sebastião do Mapuá-Miri, Nossa Senhora do Mapuá-Miri, Rosa Mística, Assembleia de Deus, Nossa Senhora de Nazaré, Perpétuo Socorro, Perpétuo Socorro do Canaticum.

9A escola da pedagogia da alternância, originada inicialmente na cidade francesa de Lauzun, em 1935, por iniciativa do sacerdote Abbé Graneou, caracteriza-se como uma escola de cunho humanista e de qualidade para os jovens trabalhadores do campo (NOSELLA, 2020). Propostas semelhantes a tal escola foram desenvolvidas em diferentes países da Europa, África e América Latina. Aqui no Brasil, de acordo com Nosella (2020), esse modelo de pedagogia começou a ser forjado em 1968, no estado do Espírito Santo, pelo Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo, liderado pelo padre Jesuíta Humberto Pietrogrande. Seguindo os pressupostos das propostas francesa e italiana, Nosella (2020) argumenta que a perspectiva da pedagogia da alternância no Espírito Santo não teve por intenção o caráter assistencialista, nem o profissionalizante, como também não pretendeu “fixar” os sujeitos no campo. A prioridade foi impedir uma migração forçada “para as cidades por falta de condições mínimas de formação e desenvolvimento socioeconômico do território de origem”. (NOSELLA, 2020, p. 12). Procurou-se, conforme assegura este autor, criar “uma escola que não reproduzisse de forma mecânica e empobrecida o modelo das escolas urbanas, mas que priorizasse a integração moral e intelectual dos jovens com seu ambiente originário, formando próprios quadros políticos e técnicos do desenvolvimento territorial”. (NOSELLA, 2020, p. 12). A pedagogia da alternância configura-se, desse modo, como um modelo de escola que, fundamentado em princípios humanistas, tem por premissa possibilitar aos alunos do campo uma educação que os auxilie na identificação de suas construções intelectuais, morais e sociais na relação com a escola, a família e o território. (NOSELLA, 2020).

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Recebido: Junho de 2020; Aceito: Janeiro de 2021

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