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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.67 Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 14-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61965 

Artigo

A AMOROSIDADE NO ATO DE EDUCAR EM PAULO FREIRE E HUMBERTO MATURANA: aproximações possíveis

THE LOVINGNESS IN THE ACT OF EDUCATING IN PAULO FREIRE AND HUMBERTO MATURANA: possible approximations

EL AMOR EN EL ACTO DE EDUCAR EN PAULO FREIRE E HUMBERTO MATURANA: posibles enfoques

Elizandra Jackiw1 
http://orcid.org/0000-0003-3976-2486; lattes: 5102836853577749

Cristiane Dall’Agnol da Silva Benvenutti2 
http://orcid.org/0000-0003-1326-6855; lattes: 0549995313417956

Sonia Maria Chaves Haracemiv3 
http://orcid.org/0000-0001-9305-5227; lattes: 1257464125778276

1Universidade Federal do Paraná E-mail: elizandra.jackiw@gmail.com

2Universidade Federal do Paraná E-mail: cristianesibenvenutti@gmail.com

3Universidade Federal do Paraná E-mail: sharacemiv@gmail.com


Resumo

O artigo tem como objetivo tecer aproximações filosóficas entre Paulo Freire (1921-1997) e Humberto Maturana (1928-2021) a respeito do conceito de amorosidade e seus desdobramentos para o ato educativo. Caracteriza-se como um estudo do tipo revisão de literatura (Hohendorff, 2014), em que buscou-se evidenciar aproximações entre os autores de modo a refletir sobre os sentidos e significados da amorosidade como campo ontológico das relações humanas, especialmente àquelas estabelecidas no ato de educar. Apesar de partirem de matrizes epistemológicas distintas, pois Freire (1921-1997) se baseia na práxis e na dialética em busca de uma pedagogia libertadora, enquanto Maturana (1928-2021) explica o conhecer pelo viés da Biologia, pontos de convergência são possíveis a partir do entendimento do amor/amorosidade como condição da socialização humana. A discussão sinaliza que o amor/amorosidade é a verdadeira condição para a coexistência humana e a convivência social. Entendido como a aceitação do outro em sua diferença e diversidade, o amor deve ser o fundamento do ato educativo para a construção de espaços de convivência horizontalizados na busca da consciência crítica e emancipatória do sujeito.

Palavras-chave: educação; amorosidade; prática educativa; Paulo Freire; Humberto Maturana

Abstract

This article aims to weave philosophical approximations between Paulo Freire (1921-1997) and Humberto Maturana (1928-2021) regarding the concept of lovingness and its unfoldings for the educational act. It is characterized as a literature review study (Hohendorff, 2014), in which we sought to highlight approximations between the authors in order to reflect on the senses and meanings of lovingness as an ontological field of human relationships, especially those established in the act of educating. Although they come from different epistemological matrices, since Freire (1921-1997) is based on praxis and dialectics in search of a liberating pedagogy, while Maturana (1928-2021) explains knowledge from a biological point of view, points of convergence are possible from the understanding of love/ loving kindness as a condition for human socialization. Understood as the acceptance of the other, in his/her difference and diversity, love must be the foundation of the educational act for the construction of horizontalized spaces of coexistence in the search for the subject's critical and emancipatory consciousness.

Keywords: education; lovingness; educational practice; Paulo Freire; Humberto Maturana

Resumen

Este artículo pretende tejer aproximaciones filosóficas entre Paulo Freire (1921-1997) y Humberto Maturana (1928-2021) sobre el concepto de lovingness y sus implicaciones para el acto educativo. Se caracteriza por ser un estudio de revisión bibliográfica (Hohendorff, 2014), en el que se buscó resaltar las aproximaciones entre los autores para reflexionar sobre los sentidos y significados de lo amoroso como campo ontológico de las relaciones humanas, especialmente las que se establecen en el acto de educar. Freire (1921-1997) se basa en la praxis y la dialéctica en la búsqueda de una pedagogía liberadora, mientras que Maturana (1928-2021) explica el conocimiento a través de la biología. Entendido como la aceptación del otro en su diferencia y diversidad, el amor debe ser el fundamento del acto educativo para la construcción de espacios horizontales de convivencia en la búsqueda de la conciencia crítica y emancipadora del sujeto.

Palabras clave: educación; bondad amorosa; práctica educativa; Paulo Freire; Humberto Maturana

INTRODUÇÃO

Não se pode falar de educação, sem amor. (FREIRE, 1997)

Inicia-se o artigo com uma epígrafe do mestre e patrono da Educação brasileira, Paulo Freire (1921-1997), o qual nos convida a refletir sobre uma das dimensões mais profundas do ato de educar: o amor!

A concepção freiriana de educação pauta-se em uma pedagogia libertadora fundamentada no diálogo, na esperança e nas verdadeiras relações humanas para a conscientização e autonomia do ser, a qual sem o amor torna-se impraticável. Para Freire (1921-1997) a amorosidade é necessária às relações educativas uma vez que somente a competência técnico-científica e o rigor negam a compreensão da educação como uma situação gnosiológica.

Sob um outro viés epistemológico, Maturana (1928-2021) expõe em sua teoria, conhecida como “Biologia do conhecer” o fenômeno cognitivo do ponto de vista interno do sujeito, estabelecendo o fato de que como seres vivos, vive-se em um espaço de convivência no qual a emoção é o domínio de ação. E o amor é a emoção que constitui a convivência social.

E o que seria a educação, em sentido lato, senão espaços de convivência desejáveis em que se possa fluir no diálogo para a construção de espaços de aprendizagem? É sobre estas reflexões que se propõe o artigo. Embora os dois teóricos partam de epistemologias diferentes e tampouco referenciem um ao outro em seus escritos, é inegável a aproximação possível entre eles sob a compreensão do amor como dimensão propulsora para a constituição do processo educativo e emancipador do sujeito.

Além disso, Malavasi, Santos e Santos (2017) chamam a atenção para o fato de que o livro Pedagogia do Oprimido foi escrito no Chile, pátria de Maturana, no ano de 1968, durante o exílio de Paulo Freire após a queda de João Goulart, e que muitas das reflexões de Maturana, especialmente sobre o papel da linguagem, foram realizadas no mesmo ano, dando ensejo ao desenvolvimento do conceito de autopoiese. Também se verifica que a temática fundamental da obra de Paulo Freire (1921-1997) é a libertação dos oprimidos e que a de Maturana (1929-2021) é o convívio com o outro numa sociedade responsável e respeitosa contrária a todas as formas de dominação e competição que afastem o ser humano da congruência, no seu viver com o outro e com o meio.

Neste sentido, o intuito deste artigo é tecer aproximações filosóficas entre Paulo Freire (1921-1997) e Humberto Maturana (1928-2021) a respeito do conceito de amorosidade e seus desdobramentos para o ato educativo, uma vez que ambos compreendem a educação como práticas pautadas nas relações humanas.

Para tanto, realizou-se um estudo do tipo revisão de literatura (Hohendorff, 2014). Este tipo de estudo se caracteriza por avaliações críticas de materiais bibliográficos que já foram publicados, considerando o progresso das pesquisas na temática abordada. Assim, as revisões de literatura são textos nos quais os autores identificam relações, contradições, lacunas e inconsistências na literatura, a partir de um determinado problema (HOHENDORFF, 2014). Sob esta perspectiva, buscou-se evidenciar aproximações entre os autores de modo a refletir sobre os sentidos e significados da amorosidade como campo ontológico das relações humanas, especialmente àquelas estabelecidas no ato de educar. Utilizou-se para tal, as seguintes obras de Freire: Pedagogia da tolerância (2004), Pedagogia da autonomia (1997), Pedagogia do oprimido (1987), e Educação como prática da liberdade (1983). De autoria de Maturana, as obras analisadas foram: Cognição, ciência e vida cotidiana (2001), A ontologia da realidade (1997) e A árvore do conhecimento (1995).

Assim, o artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente contextualiza-se a teoria de Paulo Freire (1921-1997) e Humberto Maturana (1928-2021) para a compreensão do conceito de amor/amorosidade em suas epistemologias. Em seguida, tece aproximações e desdobramentos deste conceito com o ato educativo.

A discussão sinaliza que o amor/amorosidade é a verdadeira condição para a coexistência humana e a convivência social. Entendido como a aceitação do outro em sua diferença e diversidade, o amor deve ser o fundamento do ato educativo para a construção de espaços de convivência horizontalizados na busca da consciência crítica e emancipatória do sujeito.

A AMOROSIDADE COMO ACOLHIMENTO DO OUTRO

Para a compreensão do conceito “amor/amorosidade” em Paulo Freire (1921-1997) e Humberto Maturana (1928-2021) faz-se necessário depreender seus posicionamentos epistemológicos que fundamentam suas teorias para o entendimento do termo supracitado enquanto acolhimento do outro. Acredita-se que estas referências iniciais possam servir como ponto de partida para a assunção dos pontos de convergência entre os teóricos.

Paulo Reglus Freire (1921-1997) nasceu no Recife (Brasil) e formou-se em Direito, mas não exerceu a profissão. Iniciou a docência em uma escola de Ensino Médio, onde lecionava Língua Portuguesa. Ao longo de sua carreira profissional e acadêmica se dedicou a defender um tipo de educação que permitisse aos oprimidos recuperar sua humanidade a partir da leitura crítica da realidade na qual estavam inseridos. Para isso, a prática educativa deveria se pautar na dialogicidade e na contextualização dos conteúdos para que fomentasse a conscientização e a autorreflexão sobre o seu papel na sociedade. Por seu trabalho na área educacional, foi reconhecido mundialmente e recebeu o título de Doutor Honoris Causa de diversas universidades, entre elas, Harvard, Cambridge e Oxford.

Em seus escritos, Paulo Freire (1921-1997) acentua uma aproximação entre a amorosidade e a educação no sentido de formação humana, para além dos espaços das instituições escolares. Isto é evidenciado no conjunto das obras do mestre, marcadas pela ruptura de uma antiga teoria educativa que limitava o ensino a práticas hierárquicas, verticalizadas e descontextualizadas. Ademais, o conceito freiriano de amorosidade está atrelado ao cotidiano da vida em que a historicidade é representada numa constituição orgânica dos seres sociais e históricos constituídos de múltiplas possibilidades de sentidos e significados sobre o vivido.

Na obra Pedagogia da autonomia,Freire (1997) descreve a humanização, a relação estabelecida entre homens e mulheres enraizados no mundo e situados no tempo-espaço, mas por vezes representados por meio de palavras ocas e vazias desprendidas de sentimentos e expressões do real. É daí que surge a construção do conceito de amorosidade para ele. Em suas palavras: "a amorosidade advém do fato de nos tornarmos capazes de amar o mundo, os sujeitos em sua verdadeira realidade [...]" (FREIRE, 1997, p. 65).

De acordo com o Dicionário Paulo Freire (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010) a amorosidade freiriana está voltada para o compromisso com o outro, que se faz gerador da solidariedade e da humildade. Um compromisso que Freire (1921-1997) acredita acontecer pelo amor para com o outro em sua totalidade, como ato de coragem, quando um se compromete com a causa do outro e pelo outro. Neste sentido, o mestre defende a amorosidade como uma potencialidade e uma capacidade humana que se remete à condição existencial.

Certamente esta não é uma tarefa fácil, pois envolve o respeito às diferenças, por isso "o amor é um ato de coragem, pois está em comprometer-se com a sua causa. A causa da libertação. Mas, esse compromisso, porque é amoroso, é dialógico" (FREIRE, 1987, p. 78). O exposto se consolida na obra Pedagogia do oprimido quando Freire (1987) assevera que a conquista pela liberdade do outro está implícita nas ações dos sujeitos dialógicos que estabelecem nas relações de humanização e amorosidade, o mesmo objetivo para si e para o outro.

Assim, a centralidade da amorosidade em Freire (1921-1997) está na dialogicidade, uma vez que a amorosidade é tecida por meio de uma escuta aberta ao diálogo com o outro diferente do meu eu, o outro que tem algo a me dizer, e que sua fala deve ser compreendida como expressão de liberdade e esperança.

Freire (1997), assume pela amorosidade a esperança na transformação político-social em defesa dos legítimos interesses e direitos humanos, num entendimento que expressa uma maneira ética universal da afetividade, da cordialidade, da dignidade, do respeito à vida em todas as suas expressões de forma emancipatória da condição humana como direito de todos e de todas.

Observa-se até aqui que é a partir da dialogicidade com o outro diferente de mim que, a amorosidade se coloca como mola propulsora de práticas sociais e educativas e, por isso, se intensificam os princípios solidários a favor da humanidade.

Dito isto, expõe-se a seguir a perspectiva de Maturana (1928-2021) sobre o termo amor/amorosidade, para que na sequência, faça-se um entrelaçamento entre os dois teóricos.

Humberto Romesin Maturana (1928-2021) nasceu no Chile e formou-se em Medicina e Biologia e doutorou-se em Neurobiologia. Ao longo de sua carreira profissional e acadêmica buscou compreender a "Biologia do Conhecer: uma teoria dos fenómenos cognitivos baseada na perspectiva do conhecimento" (MATURANA, 2001, p.18).

Em sua teoria, Maturana (1928-2021) tece as bases biológicas do conhecimento humano, refletindo sobre as relações humanas, sobre a linguagem e a cognição em particular. Todavia, a busca por uma explicação vinda da Biologia não limitou este teórico às explicações funcionais de determinadas áreas do cérebro ou dos elementos constitutivos do sistema nervoso. A proposta de Maturana (1928-2021) é explicar a linguagem, a cognição e os fenómenos sociais como fenómenos biológicos, observados no domínio da ontologia dos seres vivos.

Na década de 70 do século XX, em parceria com seu discípulo Francisco Varela, criou a teoria da autopoiese para explicar a capacidade dos seres vivos de produzirem-se e auto-organizarem-se a si próprios. Portilho (2011, p. 113) nos auxilia a compreender este conceito, quando explica que: "os seres vivos literalmente se constroem eles mesmos estrutural e funcionalmente em decorrência das seletivas transações informais, materiais e energéticas com o seu ambiente e por meio de processos construtivos internos”. Isso significa que os seres vivos, como um sistema autônomo, constantemente se autoproduzem e se autorregulam a partir das interações com o meio e de suas próprias estruturas internas.

Um dos aspectos da ontologia dos seres vivos que Maturana (1928-2021) se debruçou a explicar é o papel das emoções no domínio das ações humanas. Para isso, se guiou pelo viés biológico para retomar historicamente a importância das emoções para a evolução humana. Em suas palavras: “É a configuração do emocionar que vivemos como Homo sapiens que especifica nossa identidade humana, não nossa conduta racional ou nosso uso de um tipo ou outro de tecnologia” (MATURANA, 2001, p. 180). Para ele, o comportamento racional começou como uma característica de nossos ancestrais com a linguagem, no uso que faziam das abstrações em seu cotidiano. Mesmo assim, afirma o teórico, eram as emoções que especificavam o domínio do comportamento racional em que eles operavam. Seus desejos, suas necessidades, a criação e a evolução na construção de instrumentos, por exemplo, sempre foram guiadas pelas emoções. Atualmente, não é diferente: apesar de se usar a razão para sustentar ou para esconder as emoções, ainda são as emoções que fundamentam nosso agir. Apesar de vivermos um momento de negação do amor, só sobrevivemos porque essa emoção persiste nos vínculos que definem a vida em sociedade. É no amor que alcançamos o bem-estar e realizamos nossa condição humana.

Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação. Na verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos porque insistimos que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais. Ao mesmo tempo todos sabemos que, quando estamos sob determinada emoção, há coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e que aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção” (MATURANA, 2001, p. 15).

Assim, todas as ações humanas ocorrem em um espaço de ação que se especifica pelas emoções que a fundamentam. Para o teórico, a emoção fundamental que constitui a coexistência social é o amor.

De acordo com sua teoria, o amor não se refere a um sentimento especial dedicado a algumas pessoas de nosso convívio mais íntimo. Para ele, “amar não é um substantivo, é um verbo, uma dinâmica relacional espontânea” (MATURANA, 1997, p. 78). Trata-se de um fenômeno biológico e inevitável em nossa constituição enquanto seres humanos e se refere à aceitação do outro como tal. Isto significa a aceitação mútua, a aceitação do outro na convivência. Para justificar essa premissa, Maturana (1928-2021) exemplifica que quando se quer travar uma guerra, há de se treinar os participantes para negar o amor. Por isso, os oponentes requerem um discurso que negue o outro continuamente, porque se não o negarem e se encontrarem um com o outro, a biologia da aceitação do outro, do amor, aflora.

Sendo assim, pode-se afirmar que para este teórico o amor é o princípio da socialização humana, e qualquer situação que inviabilize o amor, destrói a socialização.

Finalmente, o amor é a fonte da socialização humana, e não o resultado dela, e qualquer coisa que destrói o amor, qualquer coisa que destrói a congruência estrutural que ele implica, destrói a socialização. A socialização é o resultado do operar no amor, e ocorre somente no domínio em que o amor ocorre (MATURANA, 1997, p.185).

Surge aqui o primeiro ponto de convergência entre os dois teóricos: ambos admitem o amor como princípio de aceitação e acolhimento do outro. Aceitação esta, relacionada ao respeito à condição do outro, em seu modo de ser e estar no mundo, como fundamento ético da solidariedade e da humildade.

Um amor que não está relacionado ao fazer piegas, mas se configura como expressão de densa vivência, com a concretude da produção do sentido e do sentir amorosidade/amor como condição ético-cultural no mundo e com o mundo (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010). Ou seja, uma condição existencial que fundamenta o agir com compromisso para a construção de uma sociedade mais justa e menos opressora.

Tal compreensão do termo se funda na concretude das lutas com esperança sem raiva, sem odiosidade, mas eivada de indignação e amorosidade. Esse deve ser o caminho do agir, especialmente na esfera educacional, como se verifica a seguir.

A AMOROSIDADE E O ATO EDUCATIVO

A proposição do amor como princípio epistemológico para a construção do conhecimento e do ato educativo também é um ponto de convergência entre Freire (1921-1997) e Maturana (1928-2021).

A concepção freiriana de educação tem sua matriz gnosiológica situada nas relações humanas e, portanto, na amorosidade. Além disso, a dialogicidade é condição determinante para o desvelar da realidade. Esta condição dialógica se fundamenta no amor, pois “não há diálogo se não há profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda” (FREIRE, 1983, p. 93). Assim, o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza dos seres humanos. No livro Medo e ousadia,Freire (1987) explica que o diálogo:

É parte de nosso progresso histórico do caminho para nos tornarmos seres humanos. Isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem. [...] A educação dialógica é uma posição epistemológica. [...] O diálogo não existe num vácuo político. [...] Para alcançar os objetivos da transformação, o diálogo implica responsabilidade, direcionamento, determinação, disciplina, objetivos, amorosidade (FREIRE; SHOR, 1986, p. 122-127).

Neste sentido, Freire (1921-1997) revela a amorosidade vinculada à práxis da humanização. Esta práxis é estabelecida nas relações dialógicas do encontro entre os sujeitos e na relação sujeitomundo. O autêntico diálogo freiriano se rege pela amorosidade, pelo respeito ao diferente, e pela crença na horizontalidade das relações entre as pessoas para a construção de um mundo verdadeiramente democrático (FREIRE, 2004).

Maturana (1928-2021) também evidencia o linguajar, o diálogo, como um constructo das relações humanas que fundamentam as emoções e o amor, e, portanto, o educar. Para ele, nós humanos existimos na linguagem, e todo o ser e todos os afazeres humanos ocorrem, portanto, no conversar, entendido como o resultado do entrelaçamento do emocionar com o linguajar. A existência humana faz com que qualquer ocupação humana aconteça como uma rede específica de conversações (MATURANA, 2001).

Percebe-se aqui que Maturana (1928-2021) aproxima-se de Freire (1921-1997) em relação ao entendimento do diálogo como condição à educação – o diálogo democrático, horizontal, no qual todos têm vez e voz. Não é uma fala no vazio; há um interlocutor interessado em ouvir e um outro interessado em partilhar sua visão de mundo. Logo, ambos consideram a linguagem um constructo das relações do ser humano e elemento fundamental das coordenações das ações consensuais. De acordo com os autores, é no e pelo diálogo que as pessoas avançam, agem, estabelecem relações, aprendem e educam-se. Aliás, para Maturana (1995, p.32), “educar [...] é configurar um espaço de convivência desejável para o outro, de forma que eu e o outro possamos fluir no conviver de uma maneira particular”. Ou seja, educar é um fenômeno social por essência, realizado a partir do diálogo, das conversações. O verdadeiro diálogo permite, assim, a reciprocidade, a elaboração e a apropriação crítica da realidade.

Todavia, quando não há a aceitação mútua e espaços de abertura para o diálogo para que o outro exista junto de si, pode-se afirmar, a partir das leituras em Maturana (1928-2021) que não há fenômeno social: há relações de autoridade, de obediência e de submissão. Esta é também a ideia central da “educação bancária” tal como aponta Freire (1987). A relação de dominação é um ato de desamor, porque é antidialógico e alienante.

Em um modelo de educação bancária em que os homens são vistos como seres de adaptação e de ajustamento, exercita-se o arquivamento e o depósito e informações, e assim as pessoas se distanciam da consciência crítica que resultaria na sua inserção no mundo enquanto sujeitos. Tanto mais lhe imponham a passividade, mais dissociado do diálogo amoroso e consequentemente do seu poder transformador e de transformação. Em um modelo de educação bancária, os opressores impõem suas ideologias aos oprimidos a partir de práticas educativas excludentes, competitivas e hierarquizadas.

Maturana (2001) expõe que a competição é uma prática antissocial. A competição, como uma atividade humana, implica na negação do outro, fechando seu domínio de existência no domínio da competição. A competição nega o amor. Membros das culturas modernas prezam a competição como uma fonte de progresso.

Todavia, alerta o teórico, a origem antropológica do Homo Sapiens não se deu através da competição, mas através da cooperação, e a cooperação só pode se dar como uma atividade espontânea através da aceitação mútua, isto é, através do amor. Para ele:

A emoção fundamental na história dos hominídeos é o amor. Há ódio, lutas, matanças no mundo, sim, é claro. Mas tudo se acaba na aceitação do outro, e nos movemos nesta oscilação de negação e aceitação do outro. Geramos uma tirania, e nos levantamos contra a tirania quando sobrevém nossa preocupação ética. Quando? Quando assumimos a preocupação com o outro. Literalmente, somos filhos do amor (MATURANA, 2001, p. 96).

Além disso, o teórico assevera que práticas educativas que pretendem ensinar um conjunto de conteúdos independente das experiências cotidianas do aprendente e do professor, levam a uma educação extremamente coercitiva e produtora de sofrimento. Muitas das reflexões de Maturana (1928-2021) têm sido produzidas sobre como as questões educacionais ainda não compreenderam como se dá os processos de acoplamento estrutural com suas respectivas mudanças estruturais dos estudantes. Ele explica que para que a aprendizagem aconteça tem que haver uma emoção, a amorosidade como disposição estrutural inicial que torne possível a recorrência das interações. Essa interação inicial desencadeia uma mudança estrutural tal, que abre espaço para uma segunda interação e assim sucessivamente.

Para tanto, o resultado dessas interações precisa orientar o sujeito para agir novamente e para isso, há que se fazer no diálogo amoroso e não somente em disposições passivas.

A prática do diálogo amoroso potencializa as vozes dos sujeitos e pode acontecer, por meio das rodas de conversa, uma prática que rompe com a verticalidade do ato educativo e com as características da educação bancária (FREIRE, 1987), pois enquanto se educam, são educados e educam entre si e se tornam sujeitos do ato educativo em que crescem juntos (FREIRE, 1987, p. 39).

É uma ação de convivência que se torna amorosa e altera a postura dos sujeitos, pois desperta a curiosidade sobre um tempo e um espaço que os permite problematizar sobre a realidade, partilhar no coletivo as trocas de experiências do vivido e do que ainda se tem para viver.

Durante as rodas de conversa, denominadas por Paulo Freire de “Círculos de Cultura”, ocorrem diferentes e prazerosos momentos de escuta e fala entre os sujeitos e isso se constituiu pelo fato de que ao escutar o outro, o sujeito se coloca no lugar de aprendente e ao falar/dialogar desperta-se o imaginário sobre o seu próprio contexto e o contexto do outro. Porém sem que um anule o outro, não os torne passivos, concorrentes e/ou concordantes totais do que foi expresso durante as falas, os diálogos, pois há o que dialogar, o que comunicar mesmo a partir de diferentes experiências.

Nas falas dos sujeitos, temas gerados e situações problematizadoras tornam o diálogo um ato horizontal e amoroso que conduz a consciência dos sujeitos para o compartilhamento de saberes, reflexão e tomadas de decisões, em que todos se olham, se ouvem de forma individual e coletiva. Com isso, há uma construção de novos conhecimentos, valores, afetos sobre o mundo que os envolve, sobre si mesmos, culminando na afetividade e amorosidade pela exposição do outro, sem barreiras e imposições, na sua essência humana, retificando com isso, a competição.

Verifica-se então, que o ato educativo na visão dos dois teóricos norteia-se pela aceitação do outro em uma relação educativa horizontalizada, em que a confiança de um pelo outro é uma consequência óbvia.

Esta relação educativa horizontalizada não deve ficar atrelada somente ao espaço escolar, mas deve iniciar em casa, nos lares, pois Freire (1987) salienta que as condições objetivas que geram uma educação opressora ou libertadora estão nos lares, nas relações pais e filhos e no contexto sociocultural. Para ele, crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, quando chegam à escola descobrem que:

[...] como no lar, para conquistar alguma satisfação, tem de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. Introjetando a autoridade paterna através de um tipo rígido de relações, que a escola enfatiza, sua tendência, pelo próprio medo da liberdade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos que as deformaram (FREIRE, 1987, p. 116).

Maturana (2001) também investe em refletir sobre esta causa, quando enfatiza que as crianças não nascem nem amando nem odiando ninguém. Elas vão amar ou odiar na mesma medida e proporção em que forem amadas ou odiadas. Afirma ainda que uma criança que cresce no respeito e em um ambiente de cooperação, acolhimento e amorosidade, será capaz de aprender qualquer coisa e adquirir todas as habilidades que desejar quando adulta. Seu aprendizado será tão mais facilitado quanto mais de amor e de acolhimento for seu ambiente de coexistência. E vai mais além:

[...] eu diria que 99% das patologias humanas são patologias do amor. E é por isso que, no desenvolvimento da criança, o amor — e o amor é aceitação do outro na convivência — é fundamental. Se se interfere com isto têm-se diferentes patologias, de caráter distinto no desenvolvimento da criança, dependendo do momento em que se interfere nessa condição de aceitação mútua (MATURANA, 2001, p. 96).

De fato, nos educamos por meio da relação, da interação, do convívio com os outros e nesse processo aprendemos a ser gente pela convivência, pela amorosidade para com o outro. Para Freire (1987), o educar é construir o outro, humanizar o humano sem esquecer da luta em denunciar e superar as mazelas da desumanidade. Em síntese, a educação e o ato educativo possibilitam promover, nos sujeitos, a capacidade de interpretação e criticidade sobre os diferentes contextos em que estão inseridos, bem como, desmitificá-los, qualificá-los e “instrumentalizá-los” para agir diante dos contextos com o objetivo de superação, transformação e conscientização.

Para Maturana (1995, p.72), educar é “uma ação que permita a um ser vivo continuar sua existência em determinado meio ao produzir aí seu mundo. Nem mais nem menos”. Ou seja, conhecemos ao fazer o que fazemos e fazemos ao conhecer o que fazemos.

Por sua vez, as relações humanas pautadas pelo diálogo, pela sensibilidade e amorosidade são fortalecidas e dão movimento ao ato educativo em si, fundamentado e efetivado nos princípios e perspectivas da humanização, do compromisso ético e gnosiológico.

Constata-se, então, que o ato educativo como um ato de amor é um guião que percorre as obras de Freire (1921-1997) como fé na humanidade, fé nos homens e na sua libertação. Para Maturana (1928-2021), o amor que fundamenta o ato educativo é condição que desencadeia as interações e, por consequência, as mudanças estruturais internas dos sujeitos. Ou seja, fica evidente que o amor/amorosidade é condição primeira para que o ato educativo aconteça. Que tornemos o amor/amorosidade um que-fazer permanente em nossa existencialidade, na busca do ser-mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água, a vida” (FREIRE, 1997).

Inicia-se e finaliza-se o artigo com epígrafes do mestre que nos permite compreender o lugar do amor como centralidade do que-fazer de Freire (1921-1997). Especificamente sobre a passagem acima, esta foi a declaração dada em depoimento ao jornalista e escritor brasileiro Edney Silvestre, no mês de abril de 1997, ao ser perguntado sobre a maneira de como gostaria de ser lembrado. Pelos desconhecidos cursos da vida terrena, no mês de maio do mesmo ano, o mestre nos deixou. Nos deixou em corpo, em matéria, mas vive em sua militância em favor dos oprimidos e dos esfarrapados do mundo, na luta por uma educação emancipadora e libertadora. E, é encharcado por essa amorosidade que devemos dar continuidade ao seu legado.

No artigo, objetivou-se tecer aproximações filosóficas entre Paulo Freire (1921-1997) e Humberto Maturana (1928-2021) a respeito do conceito de amorosidade e seus desdobramentos para o ato educativo. Apesar de partirem de matrizes epistemológicas distintas – este pelo viés da Biologia do conhecer e aquele pela pedagogia libertadora – pontos de convergência são possíveis a partir do entendimento do amor/amorosidade como condição da socialização humana. Para tanto, buscou-se inicialmente realizar uma contextualização para caracterizar suas teorias e compreender o conceito subjacente ao termo. Em seguida, os entrelaçamentos foram feitos articulando o termo ao ato educativo e seus desdobramentos na educação.

Para Freire (1921-1997), a amorosidade está voltada para o compromisso com o outro, respeitando-o em suas diferenças e diversidades. Por isso, a dialogicidade deve fundamentar o ato educativo e o educador deve manter uma relação horizontalizada de acolhimento, para a construção de um mundo verdadeiramente democrático. Pode-se mencionar aqui os Círculos de Cultura como expressão de amorosidade, uma vez que o diálogo entre os sujeitos, envolvidos sobre temas dos seus cotidianos sociais enaltecem a escuta, a voz, a consciência crítica e a formação como sujeitos do conhecimento que se faz e se re-faz sobre a realidade de mundo.

Para Maturana (1928-2021), o amor é a emoção que fundamenta a coexistência social e se refere à aceitação do outro como tal. Isto significa a aceitação mútua, a aceitação do outro na convivência. O amor e as emoções se dão no diálogo, no conversar, entendido como o resultado do entrelaçamento do emocionar com o linguajar. Para o teórico, a falta de amor configura-se como inexistência de fenômeno social. E, sendo a educação um fenômeno social em essência, o ato educativo deve ser pautado por uma relação de amor/ amorosidade.

Ao tecer convergências entre estes teóricos, percebe-se que o amor/amorosidade, para além de uma compreensão piegas, deve fundamentar a ação humana e especialmente o ato educativo para a construção de espaços de convivência horizontalizados na busca da consciência crítica e emancipatória do sujeito.

Com isto, o sonho de um caminho que leve a amorosidade pelas estruturas do ato educativo só é possível por práticas horizontalizadas de cooperação e colaboração e não pela competição e pelas relações verticalizadas.

A partir do aprofundamento dos estudos de Freire (1921-1997) e Maturana (1928-2021) sobre o conceito de amorosidade, é inevitável considerar que amar o outro em sua essência é o verbo de ação que possibilita encontrar os caminhos no ato educativo que estabelece a consciência, a autonomia e a mudança dos sujeitos nas convivências sociais por entre eles estabelecidas.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Outubro de 2021

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