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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.67 Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.53442 

Artigo

CULTURAS INFANTIS, BRINCADEIRAS E APRENDIZAGEM ESCRITA NA PRÉ-ESCOLA

CHILDREN'S CULTURES, PLAY AND WRITTEN LEARNING IN PRESCHOOL

CULTURAS INFANTILES, JUEGO Y APRENDIZAJE ESCRITO EN PREESCOLAR

Claines Kremer1 
http://orcid.org/0000-0003-2166-6971; lattes: 5964734379583652

Maria Carmen Silveira Barbosa2 
http://orcid.org/0000-0002-3416-4914; lattes: 5017016632945997

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul E-mail: claineskremer@gmail.com

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul E-mail: licabarbosa@ufrgs.br


Resumo

Este artigo é subsequente a uma pesquisa de Mestrado fundamentada em diálogos teóricos entre a Pedagogia da Infância e a Antropologia Interpretativa, que teve como objetivo compreender as culturas infantis e o ponto de vista de crianças acerca da aprendizagem da brincadeira e da escrita do nome na pré-escola. Metodologicamente, o estudo orientou-se nos pressupostos da Pesquisa com Crianças e da Etnografia. Para este artigo, os dados construídos no campo empírico foram organizados em duas unidades analíticas: a primeira com foco na relação entre brincadeira e aprendizagem, e a segunda com ênfase na apropriação que as crianças fazem sobre a escrita dos nomes. Os resultados sugerem que as culturas infantis são intimamente relacionadas às aprendizagens das crianças e conclui-se que elas devem ser consideradas na discussão de processos educativos na pré-escola.

Palavras-chave: aprendizagem; crianças pequenas; culturas infantis

Abstract

This article is subsequent to a Master's research based on theoretical dialogues between Childhood Pedagogy and Interpretive Anthropology, which aimed to understand children's cultures and children's point of view about learning to play and name writing in preschool. Methodologically, the study was guided by the assumptions of Research with Children and Ethnography. For this article, the data constructed in the empirical field were organized into two analytical units: the first with a focus on the relationship between play and learning, and the second with an emphasis on the appropriation that children make about the writing of names. The results suggest that children’s cultures are deeply related to children’s learning and conclude that they should be considered in the discussion of educational process in preschool.

Keywords: learning; young children; children’s cultures

Resumen

Este artículo es subsecuente a una investigación de Maestría fundamentada en diálogos teóricos entre la Pedagogía de la Infancia y la Antropología Interpretativa que tuvo como objetivo comprender las culturas de los niños y el punto de vista de los niños sobre aprender a jugar y escribir nombres en el preescolar. Metodológicamente, se orientó en las premisas de la Investigación con Niños y de la Etnografía. Para este artículo los datos construidos en el campo empírico fueron organizados en dos unidades analíticas. La primera con foco entre juego y aprendizaje, y la segunda con énfasis en la apropiación que los niños hacen sobre la escritura de los nombres. Los resultados sugieren que las culturas infantiles están íntimamente relacionadas con el aprendizaje de los niños y se concluyó que ellos deben ser considerados en la discusión de procesos educativos en preescolar.

Palabras clave: aprendizaje; niños pequeños; culturas infantiles

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As experiências de aprender das crianças, em contextos de Educação Infantil, são marcadas por singularidades. Em suas primeiras experiências na escola, as aprendizagens das meninas e dos meninos são intensas e intimamente relacionadas a seus modos particulares de compreenderem e integrarem-se ao mundo, em seus contextos, em suas culturas. Enquanto aprendem, as crianças constroem e compartilham sentidos para aquilo que conhecem e exploram em seu cotidiano. Barbosa (2013, p. 220) demarca que “[...] as crianças não aprendem somente aquilo que ensinamos a elas. Elas aprendem porque querem compreender o mundo em que vivem. Querem dar sentido às suas vidas”. Essas singularidades preceituam que as discussões sobre aprendizagem na Educação Infantil devem estar comprometidas com o diálogo com as crianças, o conhecimento sobre os contextos educativos e socioculturais que definem as suas infâncias e com a diversificação de experiências significativas para elas (ROCHA; LESSA; BUSS-SIMÃO, 2016).

Por esse viés, tem-se como prerrogativa que a criança é um ator social, sujeito de direito e coprodutor de cultura (BARBOSA, 2010; CORSARO, 2005; CONH, 2005); também se assenta que as aprendizagens nas creches e pré-escolas sobejam a listagens de conteúdos disciplinares, posto que os conteúdos, na Educação Infantil, têm como fulcro as práticas sociais (BRASIL, 2009). Em uma escola de Educação Infantil, a título de exemplo, a ação de uma criança que realiza múltiplas tentativas para aprender a amarrar o sapato, por vezes, pode ser compreendida como banal e corriqueira, mas é uma ação complexa. Nessa aprendizagem, estão correlacionadas observações anteriores da criança, que envolvem desejo, necessidade, reconhecimento de sua corporeidade e de suas habilidades, autonomia e a apropriação de um dado cultural da sociedade na qual está inserida (BROUGÈRE; ULMANN, 2012).

Partindo da lógica acima, este artigo tem como objetivo socializar os resultados de uma pesquisa de Mestrado que buscou compreender o ponto de vista de um grupo de nove crianças acerca de suas brincadeiras e aprendizagens de escrita do nome na pré-escola. O aporte teórico que subsidiou o estudo foi construído no diálogo entre a Pedagogia da Infância (BARBOSA, 2010; ROCHA, 2010; CARVALHO; FOCHI, 2017) e a Antropologia (GEERTZ, 1989; FONSECA, 1999), especialmente a Antropologia da Criança (COHN, 2005; PIRES, 2008; TASSINARI, 2015). Essas aproximações teóricas trouxeram uma contribuição valiosa para a interpretação da produção simbólica das aprendizagens das crianças na instituição educativa, as quais, somadas à experiência empírica, permitiram acessar sentidos muito peculiares que as crianças compartilhavam nos seus percursos de aprendizagem.

O desenho metodológico da investigação foi constituído a partir dos pressupostos da Pesquisa com Crianças (CORSARO, 2005; ALDERSON, 2005) e da Etnografia (FONSECA, 1999; GEERTZ, 1989). No trabalho de campo, foi verificado que, de modo criativo, as meninas e os meninos produziram versões específicas de significados para o que aprendiam, muitas vezes divergentes aos significados que os adultos atribuíam para as aprendizagens delas. A capacidade de agência das crianças, ao se apropriarem, construírem e reinterpretarem versões de sentidos para o que aprendiam, configurou-se em um ponto de intersecção entre o aprender e a produção cultural infantil. A partir dessa proposição empírica e à luz de interlocuções teóricas, foram problematizadas duas versões das crianças sobre as suas aprendizagens: aprender para brincar e aprender para se relacionar.

Para discutir tais versões, este artigo está organizado em cinco seções. Na primeira, são iniciados os diálogos teóricos do estudo em que são destacados alguns princípios e contribuições da Pedagogia da Infância e da Teoria Antropológica Interpretativa, com ênfase na Antropologia da Criança. A segunda seção versa sobre o percurso teórico metodológico e nela são apresentadas as escolhas e as adequações dos instrumentos e dos métodos da Pesquisa com Criança Etnográfica. Na seção três, é apresentado o ponto de vista das crianças, com encontros e contrapontos interpretativos com os discursos adultos, no que tange à noção da relação entre as brincadeiras e as aprendizagens na pré-escola. Na quarta seção, são problematizados os sentidos das crianças quanto à escrita do nome, sendo essa uma das principais aprendizagens da pré-escola. Na última seção são apresentadas as considerações finais, que apontam para a necessidade de participação das crianças e de valorização de suas culturas infantis em seus contextos educativos.

INTERLOCUÇÕES TEÓRICAS

A Pedagogia da Infância, em interlocução com a Sociologia da Infância, reconhece as crianças como atores sociais e sujeitos de direitos que, ao interagirem com seus pares e com os adultos, participam ativamente da apropriação e produção cultural. Além disso, depreende a infância — em sua heterogeneidade — como uma categoria social, geracional e histórica. Na direção de afirmação dos direitos das crianças, a elaboração teórica da área estabelece um conjunto de indicações pedagógicas orientando que as relações educativas devem ter um caráter horizontal, assegurar a participação infantil, reafirmar a criança como partícipe dos contextos educativos que vivenciam e possibilitar espaços e tempos adequados para as experiências de infância. Nessa perspectiva pedagógica, as aprendizagens das crianças são compreendidas como resultados das relações sociais e das partilhas dos significados coletivos experienciados pelas meninas e meninos (BARBOSA, 2010).

Ao que se refere às práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular das instituições infantis, a Pedagogia da Infância indica que devem estar vinculados os saberes das crianças, as interações e brincadeiras, e os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, tal qual preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) em seu artigo terceiro. Carvalho e Fochi (2017), no movimento de tradução desses pressupostos, propõem o termo Pedagogia do Cotidiano para chamar atenção às experiências dos bebês e das crianças pequenas nas creches e pré-escolas. Os autores defendem o cotidiano como eixo estruturante da Pedagogia da Educação Infantil e apostam na valorização desse eixo nas ações pedagógicas no sentido de ser um ponto de encontro entre o discurso pedagógico e as culturas infantis.

É nesse cotidiano, o lugar e o tempo em que se constrói a unidade teórico-prática, que se estabelecem as relações das/os docentes e crianças, das crianças com os seus pares e com os espaços (CARVALHO; FOCHI, 2017). É também nesse cotidiano que as aprendizagens das crianças na pré-escola são construídas, significadas e compartilhadas. Nessa lógica, busca-se na pesquisa olhar para o cotidiano e tornar visíveis as experiências de aprendizagem das crianças pequenas, a partir delas e de suas relações. Esse intento de olhar para o Outro em seus contextos, valorizando seus pontos de vista, e o reconhecimento da criança como um ser humano competente, sujeito de direito que interfere no mundo e é por ele interferido, é a ligação que conecta os diálogos teóricos entre a Pedagogia da Infância e Antropologia Interpretativa.

Para compreender o ponto de vista das crianças sobre o que aprendem, ou seja, que significados são construídos e compartilhados nas suas aprendizagens, é imperativo que, ao tomálas como atores sociais, seja reconhecido que elas, em seus cotidianos, são capazes de construir sentidos. Também, é indispensável assentir que tais construções e compartilhamentos são elaborados em um sistema simbólico, que é compartilhado entre as crianças e os adultos. Isso implica reconhecer que as crianças não são apenas produzidas pelas culturas, mas tal qual os adultos, são produtoras de seus próprios repertórios culturais (COHN, 2005). Esses são os principais postulados da Antropologia da Criança, um ramo da Antropologia Interpretativa, que se constituiu a partir da revisão dos conceitos mais fundamentais da área, especialmente a concepção de cultura.

Na teoria interpretativa ou simbólica, formulada pelo antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989), o autor defende que o conceito de cultura é semiótico, ou seja, as culturas são formadas por significados contidos em um mesmo sistema simbólico. Nessa direção, não são os valores, as leis e as crenças que definem as culturas, mas o que é tácito, implícito e subentendido nesse conjunto. Cohn (2005), para tornar indubitável esse preceito, elabora a seguinte analogia:

[...] pensemos os valores como as palavras em uma frase, e a cultura como o sistema linguístico que permite que as pessoas articulem as palavras, as frases e as ideias de um modo que faça sentido para si e para os outros. Utilizamo-nos desse sistema simbólico todos os dias, embora não o conheçamos por inteiro, nem tenhamos consciência de o fazer. É como a gramática que permite que articulemos uma fala – pode ser conhecida, mas não precisa ser retomada conscientemente pelo falante (COHN, 2005, p. 18).

Nesta concepção, o conceito de cultura passa a ser entendido como um sistema simbólico, reconhecido tanto por sua condição estruturada, quanto pelas relações e interações dos sujeitos que formam e constroem sentidos a essa estrutura. Essa noção de cultura torna possível rever também o papel dos sujeitos em suas sociedades, inclusive das crianças. Rompe-se, assim, com a noção de que a criança é apenas receptora de cultura, uma aprendiz passiva, e passa-se a reconhecer a sua agência (COHN, 2005).

Na Antropologia da Criança, as meninas e os meninos são reconhecidos como atores sociais que agem no mundo e compartilham do mesmo sistema simbólico dos adultos. As crianças fazem parte desse sistema, mas os sentidos que elas elaboram são particulares e diferentes daqueles dos adultos (CONH, 2005). Sob essa ótica, o conceito de Cultura de Pares, formulado pelo sociólogo americano William Corsaro (2005), é profícuo para a compreensão dos significados singulares construídos pelas crianças para as suas aprendizagens na pré-escola. Na definição do conceito, o autor afirma que:

As crianças apreendem criativamente informações do mundo adulto para produzir suas culturas próprias e singulares. Defino cultura de pares com um conjunto estável de atividades e rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares (CORSARO, 2005, p. 31, grifo nosso).

Na noção de apreender criativamente informações do mundo adulto está, ainda que de forma implícita, o compartilhamento de crianças e adultos na estrutura de uma mesma cultura. Isso significa que as culturas infantis são uma construção que se dá no coletivo, em que as crianças, por meio de experiências situadas nos aspectos sociais e culturais da cultura ampla da qual fazem parte, ao interagir com os adultos, negociam entre si, compartilham, preservam e produzem as culturas (CORSARO, 2005). Portanto, a partir dessas conjecturas teóricas, são apresentados na seção seguinte os princípios metodológicos desenvolvidos na realização da pesquisa.

PERCURSO METODOLÓGICO

Quais são os pontos de vista das crianças pequenas acerca de suas brincadeiras aprendizagens de escrita na pré-escola? Nessa pergunta, que foi o fio condutor do estudo, revelase o desejo por descobertas. Walsh (2003) lembra que explicar como as crianças realmente são, com base em nossas experiências de adultos, na qualidade de pais ou professores, é muito mais simples do que descobrir. Descobrir exige que os esforços investigativos sejam dimensionados a lugares pouco transitados, a contextos poucos (re)conhecidos. É uma ação que requer tempo e não uma efêmera visita (WALSH, 2003).

Nesse sentido, o esforço investido no percurso metodológico representa os passos dados em direção às descobertas, conquanto seja entendido que as descobertas são sempre um ponto de vista, ou seja, uma interpretação. Esses passos estão ancorados em 5 princípios, os quais foram formulados para essa investigação, a partir da interlocução teórica entre a Pedagogia da Infância e a Antropologia Interpretativa apresentada na seção anterior, a saber:

  1. As crianças, como agentes do mundo, sabem dar sentido a suas experiências;

  2. Esses sentidos são construídos de modo particular, em um sistema simbólico, que é compartilhado entre crianças e adultos;

  3. O cotidiano das crianças é, por excelência, fonte de aprendizagens;

  4. O ponto de vista das crianças é comunicado por diferentes linguagens;

  5. As crianças têm direito de expressar ou não suas opiniões sobre os assuntos que lhes dizem respeito.

Esses princípios auxiliaram na caracterização do estudo como uma Pesquisa com Crianças Etnográfica. Isso significa que não foram excluídas as informações do mundo adulto, mas que foram privilegiadas as interações com as crianças e as relações que elas estabeleceram com os sujeitos (crianças e adultos) com quem conviviam. Dessa maneira, há uma aproximação à Pedagogia da Infância, que chama a atenção para “[...] o entorno social e as experiências das crianças como agentes e como receptores de outras instâncias sociais, definidas, portanto, no contexto das relações com os outros” (ROCHA, 2010, p. 5), sem deixar de reconhecer os desafios que são postos.

O desenho metodológico proposto para a Pesquisa com Crianças assumido nessa investigação foi artesanal, ou seja, construindo-se no campo, na relação, observação e participação das crianças. Os postulados da Pesquisa com Criança indicam a necessidade de um(a) pesquisador(a) aberto(a) ao cotidiano que busque superar o silenciamento das meninas e dos meninos na tradição científica e que os reconhece como interlocutores competentes, que podem informar e opinar sobre os seus mundos sociais de diferentes maneiras (ALDERSON, 2005). É defendida, nessa perspectiva metodológica, a fundamentalidade de estudar as crianças em seus próprios termos, a partir da ideia de que a participação delas, os seus pontos de vista, as suas representações e a escuta de suas linguagens sejam os principais elementos estruturantes das pesquisas (GRAUE; WALSH, 2003; CORSARO, 2005; SARMENTO, 2008).

Ao dar continuidade aos diálogos teórico-metodológicos, foram tomados emprestados os preceitos da Etnografia. Como afirmam James e Prout (1990), a etnografia é uma metodologia, cuja utilidade para o estudo da infância está na possibilidade de as crianças participarem mais diretamente da produção dos dados em comparação com as pesquisas experimentais. Essa perspectiva etnográfica promoveu o questionamento sobre as certezas e as verdades, implicou em posturas vulneráveis às surpresas de um cotidiano, e permitiu a compreensão do mundo a partir de outras lógicas (PEIRANO, 2014).

Inspirada nessas bases teórico-metodológicas, a investigação esteve comprometida com um comportamento ético e com uma atitude humilde e respeitosa com as crianças e com os adultos durante todas as etapas da pesquisa. É partilhada a compreensão de Walsh (2003), de que entrar na vida de outra pessoa é ser um intruso nessa vida e que, para isso, é preciso permissão, pois é ela que define uma relação de respeito entre as pessoas. Sob esse prisma, para pedir permissão às crianças, foram explicitados os interesses da pesquisa e afirmada a possibilidade de recusa em qualquer parte do processo. Para Soares, Sarmento e Tomás (2005, p. 58) “[...] informar as crianças acerca dos objectivos e da dinâmica da investigação (se estes não foram definidos com elas) é um passo essencial, o qual deverá cautelar que tais objectivos e dinâmicas se traduzam em conhecimento válido”.

Quanto à exposição dos nomes das crianças, optou-se pela utilização de suas iniciais em letra maiúscula, prática essa que auxilia na manutenção do anonimato (FONSECA, 2010) sem substituir seus nomes por outros fictícios. Para o corpo docente e para os pais ou responsáveis, foi elaborado um termo de consentimento livre contendo o desenvolvimento da investigação. O trabalho de campo foi realizado com nove crianças de uma turma de pré-escola, em uma instituição pública de Educação Infantil no litoral norte do Rio Grande do Sul. As crianças participantes da pesquisa configuravam um grupo com quatro meninos e cinco meninas e suas idades correspondiam entre quatro anos e dois meses à cinco anos e onze meses. Embora esta seja uma pesquisa com crianças e os dados tenham sido construídos quase que exclusivamente com e por elas, duas professoras responsáveis pela turma (uma titular e uma auxiliar), também tiveram participação ao passo que ocorriam situações de conversas durante o acompanhamento das crianças.

A construção dos dados empíricos ocorreu entre agosto e dezembro de 2018 e os encontros com as crianças foram realizados dois dias por semana, no turno da manhã, com duração de aproximadamente 3 horas de observação por visita. Tais observações foram realizadas durante o acompanhamento da jornada diária das crianças e ocorreram nas diversas situações e espaços da vida cotidiana na escola tais como: brincadeiras no pátio, brincadeiras na sala de referência, momentos de realização das propostas da professora e marcadores da rotina (entrada, lanche, almoço e saída). Nestes encontros foi possível acompanhar os percursos de aprendizagens e compartilhar com as crianças as suas vivências diárias no espaço escolar.

Em relação às técnicas e aos instrumentos, foram utilizados a observação participante (GEERTZ, 1989; COHN, 2005; FONSECA, 1999), notas de campo (BOGDAN; BIKLEN, 1999) e diário de campo (WINKIN, 1998). Os registros das experiências em campo e das observações foram organizados por meio de notas de campo, entendidas por Bogdan e Biklen (1999) como relatos escritos pelo pesquisador sobre o que ele ouve, vê, vivência e pensa no decorrer da pesquisa. Nessas notas, o objetivo foi o de registrar pequenos detalhes de acontecimentos, descrever rapidamente o que as crianças faziam e diziam, e rabiscar palavraschave para aprofundamentos posteriores.

As notas foram ampliadas como descrições densas (GEERTZ, 1989) em um diário de campo virtual. Nele, as notas das observações foram agrupadas diariamente em forma de episódios, permitindo que ficassem reunidos em um só documento todos os dados produzidos. Para Winkin (1998, p. 138), “[…] o diário deve ser o lugar do corpo-a-corpo consigo mesmo, ante o mundo social estudado”, e tem como função expressar a emotividade do vivido, registrar tudo o que se observa e organizar as observações de forma reflexiva e analítica. O diário foi, por conseguinte, o instrumento principal para a interpretação das regularidades do fenômeno investigado e facilitou o trabalho de escrita final.

Em face do exposto, após discorrer sobre os preceitos teóricos, metodológicos e éticos que acompanharam a investigação, são apresentadas, na subsequência, as análises interpretativas produzidas a partir dos encontros com as crianças.

APRENDER PARA BRINCAR: “QUANDO TU APRENDER A VIRAR [ESTRELINHA] TU VAI SER DA EQUIPE”

A Pedagogia da Infância e a Antropologia da Criança, perspectivas distintas entre si, confluem na noção de que é importante privilegiar situações informais de aprendizagens e valorizar o cotidiano das/e entre as crianças. A importante guinada no conceito de criança e de infâncias permitiu a pesquisadores das diferentes áreas que lançassem suas atenções investigativas para os grupos de pares das crianças. Para Delalande (2012), “[…] as expressões cultura infantil e sociedade infantil são, portanto, usadas para conceitualizar as práticas infantis sem apagar ao mesmo tempo a sua heterogeneidade e as suas interações com o mundo dos adultos” (DELALANDE, 2012 p. 71).

Nesse sentido, há uma aproximação à Delalande (2012, p. 70) no entendimento de que “[...] uma socialização horizontal que completa a aprendizagem recebida dos adultos e se apoia nesta para se organizar” permite um afastamento de uma visão binária como se fossem dois universos paralelos. Contudo, destaca-se que, por mais que as aprendizagens horizontais das crianças sejam complementares ao que aprendem com os adultos, o porquê dessas aprendizagens, seus usos e os seus significados são muitas vezes diferentes. Nesta seção discute-se, portanto, o ponto de vista das meninas e meninos da pré-escola sobre a relação que fazem entre brincadeira e aprendizagem.

Para interpretar a produção simbólica particular das crianças, antes foi necessário contextualizar os discursos produzidos pelos/dos adultos sobre brincadeira e aprendizagem. Durante o campo empírico, com muita frequência, são ouvidas as docentes estabelecendo relações entre as brincadeiras e as aprendizagens. E é interessante como, para cada brincadeira, havia sempre um possível desenvolvimento de uma competência para uma aprendizagem formal. Eram comuns discursos como: ao brincar de esconde-esconde as crianças aprendem os números; ao brincar com areia e potes melhoram a motricidade fina, o que ajuda a pegar o lápis com mais firmeza; brincadeiras tradicionais como ovo choco e passa-anel ensinam às crianças a esperar a sua vez. Em suma, para as docentes, brincar é uma atividade importante que auxilia as crianças a aprender. Isso pressupõe dizer que, no ponto de vista adulto, ao brincar, a criança aprende; ou seja, é possível subentender que, pedagogicamente, as crianças brincam para aprender, mas as crianças dizem e indicam o contrário: que elas aprendem para brincar.

Esse é motivo pelo qual o porquê, os usos e os significados das aprendizagens horizontais das crianças aparecem, muitas vezes, em distinção àquilo que os adultos que estão com elas pensam sobre as aprendizagens na pré-escola. Na concepção das crianças, há determinadas aprendizagens que são necessárias para que elas possam se envolver em algumas brincadeiras. Subir na batcaverna (trepa-trepa) e pular lá de cima é um bom exemplo verificado na pesquisa. O espaço, de aproximadamente um metro e meio de altura, é considerado perigoso para saltar, até que se aprenda; mas um dos meninos, o C., é um excelente saltador e faz saltos de cima da batcaverna com muita habilidade e frequência. Para acompanhar o C. em suas brincadeiras — como se houvesse um código criado e compartilhado entre as crianças — era essencialmente necessário aprender a pular de lugares altos e se arriscar.

Em uma conversa com M.A. e A., as meninas disseram que havia algumas aprendizagens que lhes causavam medo, como por exemplo, aprender a subir em árvores lisas ou pendurar-se no portão, mas que eram importantes de serem aprendidas, para que pudessem brincar com o C. Se fosse perguntado aos adultos por que era importante aprender a pular de lugares altos, provavelmente se ouviriam respostas endereçadas ao desenvolvimento do equilíbrio ou da motricidade ampla. Prosseguindo na discussão, e fazendo um deslocamento do campo das suposições, são apresentados a seguir dois episódios vivenciados no campo, os quais podem ilustrar a noção das crianças de que se aprende para brincar.

O primeiro episódio tratava-se de uma brincadeira de super-heróis no pátio externo da escola. Dois meninos (entre eles o O.) corriam atrás de inimigos a combater e, logo, outras crianças se juntaram à dupla; entre elas estava A. Já com um grupo maior de crianças, subiram no trepa-trepa, local onde se encontrava a colega B. A menina, interessada em entrar na brincadeira, sem intervalo de tempo escolheu sua personagem:

B.: eu vou ser a sereia mágica!

O.: não, tu não pode!

B.: posso sim! Por que não?

O.: porque tu não sabe fazer estrelinha. [B. afasta-se e vai brincar de balanço e perguntamos para O. se era necessário saber virar estrelinha para brincar]

O.: sim. Porque se tu tiver dando uma estrelinha ninguém chega perto para te dar um golpe. [Observamos que algumas crianças começaram a se afastar e uma delas foi a A. Percebemos A. tristonha e perguntamos se ela não iria mais brincar]

A.: a Ladybug não vira estrelinha e ela luta. [O. está atrás de nós e ouve a conversa]

O.: ela vira, sim! Sempre quando ela tá lutando ela vira. [A. abaixa a cabeça tristonha. O. se solidariza com a colega e tenta lhe conceder um abraço, mas A. recusa, cruzando os braços]

O.: não fica triste, A. Quando tu aprender a virar [estrelinha] tu vai ser da equipe tá? (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Esse episódio evidencia aprendizagens das e nas relações sociais, que envolveram amizades e inimizades, solidariedade, construção de regras, exclusão, poderes, desejos, produção de culturas infantis (DELALANDE, 2012). Mas, como ênfase, a cena preconiza o ponto de vista das crianças de que há aprendizagens que são laboradas como requisito para poderem brincar, isto é, no ponto de vista das crianças mais se aprende para brincar do que se brinca para aprender. B. e A. entenderam, mesmo em discordância, que não poderiam brincar no jogo simbólico de super-heróis proposto por O. enquanto não aprendessem a virar (fazer) estrelinhas.

O segundo episódio envolveu um menino que desejava integrar-se em uma brincadeira com duas meninas. M.A. e N. estavam brincando com uma boneca do tipo bebê. C. observou atentamente as meninas tirando a roupa da boneca, a fralda, recolocando a fralda e a roupa. Depois de algum tempo observando, ele pediu às meninas se elas poderiam ensiná-lo a trocar a boneca. M.A. respondeu que não, pois apenas meninas sabem brincar de boneca, e N. reforçou o argumento da colega, dizendo que só meninas cuidam de um bebê. C., em uma distração delas, pegou a boneca e correu. As meninas retiraram a boneca dele e, como se quisessem definir o afastamento do colega na brincadeira, colocaram-na nos braços do colega Y., pedindo a ele que cuidasse e não deixasse ninguém a pegar. C. pegou outra boneca e tentou colocá-la nos braços de M.A., como um convite a brincarem juntos, mas a menina rejeitou e ele desistiu.

Sem a pretensão de ater-se profundamente às questões de gênero, que são explícitas nesse exemplo, é interessante notar que as crianças se referem à troca e ao cuidado da boneca como uma atividade para meninas, mas, quando se tratou de protegê-la, entregaram-na ao Y. Se o comportamento e a divisão de atuação do sujeito na sociedade são culturais (LARAIA, 2017), e se as crianças, em suas brincadeiras, dizem que cuidar de um bebê é uma atividade para meninas e que proteger um bebê é uma atividade para meninos, o que isso significa? Em cenas cotidianas como essas, uma interpretação é que as crianças estão apreendendo criativamente informações, valores e referências do mundo adulto para proveitos próprios, isto é, produzindo e compartilhando as suas culturas de pares (CORSARO, 2005). Em outras palavras, é clara a agência das crianças ao acessarem as teias de significados que dão sentido aos modos de organização da sociedade de que fazem parte, ou seja, “[...] a criança participa da reprodução cultural, através dos constrangimentos a que está sujeita como integrante do meio social” (THOMASSIM, 2010, p. 149).

Ademais, a reinvindicação de C. e as suas insistentes tentativas de participar da brincadeira implicam no reconhecimento de que a reprodução cultural das crianças não é apenas uma imitação. Ela ocorre de maneira interpretativa, elaborada no interior de seus grupos de pares e pode ter efeitos sociais (CORSARO, 2005). Todavia, a cultura de pares e a divisão de atividades culturais na interação com um bebê não importavam para C. Em contrapartida, é possível interpretar que o pedido do menino para aprender a trocar a boneca tem o mesmo sentido no episódio antes comentado, em que A. demonstrava querer aprender a virar estrelinha, ou seja, brincar! C. não desejava brincar de bonecas para aprender a trocar as fraldas de seus possíveis futuros filhos. Ele intencionava aprender a trocar as fraldas para brincar de boneca, já que, como nos diz M.A., só as meninas o sabem.

Essa reflexão é válida para pôr em realce que as significações das crianças podem ser distintas, mas não estão desconexas às dos adultos. Ainda que díspares, os significados de crianças e de adultos sobre o brincar não estão necessariamente em oposição, pois ambos reconhecem e reivindicam sua importância. Isso tonifica o reconhecimento de que “[...] a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa” (COHN, 2005, p. 20). Ao colocar as significações em contraste, é denotada a heterogeneidade das aprendizagens na pré-escola e os múltiplos sentidos que são construídos para elas.

Na pré-escola, as crianças aprendem enquanto brincam e, enquanto brincam, experimentam e ampliam seus repertórios de aprendizagem, mas a razão pela qual elas brincam não é impreterivelmente construir uma nova aprendizagem. O brincar na pré-escola “[...] é sempre uma experiência transformativa, que consome um espaço e um tempo e é intensamente real para a criança. Brincar é aprender-se brincante nas e das linguagens” (BARBOSA; RICHTER, 2009, p. 29). Ainda, convém ressaltar que a produção de sentidos distintos para as aprendizagens não se resume apenas às brincadeiras. Assim, na subseção seguinte, são problematizadas concepções das crianças sobre a escrita do nome.

APRENDER PARA RELACIONAR-SE: “MAS TU SABE ESCREVER O NOME DE TODOS OS COLEGAS?”

Nos estudos de Geertz (1989) sobre a cultura balinesa, foram classificados seis tipos de nomes por meio dos quais uma pessoa bali é reconhecida e chamada durante a sua vida. Para o autor, esses seis tipos de nomes são ordens simbólicas da definição-pessoa e são essas ordens simbólicas que definem o que é ser uma pessoa balinesa e como ela é no interior de sua vida social em Bali. Os estudos de Cohn (2000a; 2000b), que trataram da concepção Xikrin da infância e do desenvolvimento infantil, também apresentaram um breve panorama sobre a dimensão simbólica dos nomes das pessoas Xikrin. A autora verificou que, tão logo quando nascem, as crianças Xikrin recebem um nome, mas que esse nome é considerado “forte” demais para os bebês. Por essa razão, é recorrente que as crianças sejam referenciadas por kurere (para as meninas) e por bokti (para os meninos), até que elas aprendam a andar (COHN, 2000b). A atribuição de um nome ao sujeito, e os significados dessa prática, foi também interesse de Mellati (2010), que ofereceu uma interpretação sobre como ocorre e o que significa a transmissão de nomes pessoais no sistema cultural Craô. Segundo o autor:

Ao entrar no mundo, posto por seus genitores, o indivíduo não passa de um organismo a mais. Ao receber, entretanto, um nome, o indivíduo passa a formar um nó de uma vasta rede de relações sociais: com o nome ele passa a ser membro de certas metades e de certo grupo, recebe determinados papéis rituais, passa a contar com amigos formais (hópi e hópitxoi) e tende a usar os mesmos termos de parentesco que o seu nominador (MELLATI, 2010, p. 25).

Com as diferentes pesquisas acima, é possível sugerir a premissa de que os nomes, pseudônimos, apelidos ou títulos pelos quais uma pessoa é reconhecida em sua sociedade estão atrelados a significados balizados pela cultura. Em nossa sociedade, a atribuição de um nome a uma criança que nasce é uma obrigatoriedade instituída legalmente por meio do registro civil de nascimento. Além de um preceito legal, o nome tem também uma dimensão simbólica em nosso contexto. A própria escolha do nome de uma criança, realizada geralmente pelos pais, é muitas vezes carregada de sentimentos, de histórias, de afetividade, e é por meio dele que a maioria das pessoas será reconhecida e chamada durante as suas trajetórias de vida.

No interior da escola, o nome das crianças ganha ainda outros desdobramentos simbólicos, relacionados especialmente à linguagem escrita. No cotidiano da pré-escola, a aquisição da língua escrita ocorre por meio de inúmeras situações comunicativas, tais como a contação de histórias, as brincadeiras com as palavras, as narrativas de fatos, as conversas e, também, nas interações com materiais como livros, revistas, quadrinhos, jornais (BRASIL, 2017). No grupo em que foi realizada a pesquisa, essas possibilidades eram ofertadas diariamente às crianças, mas, além delas, verificou-se que a escrita do nome próprio é a primeira imersão intencional propiciada às crianças com o objetivo de auxiliá-las na decodificação do sistema escrito.

As professoras da turma compartilhavam da ideia de que o contato com o nome era uma interessante estratégia para que as meninas e os meninos, a partir de suas identidades, se familiarizassem com as letras. Ainda do ponto de vista pedagógico das docentes, conquanto não seja uma obrigação aprender a escrever o nome na pré-escola, essa prática se articularia com os campos de experiências, escuta, fala, pensamento e imaginação e o eu, o outro e o nós, propostos na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). Em síntese, para os adultos, os sentidos de as crianças aprenderem a escrever seus nomes estão vinculados à identidade e à alfabetização.

No entanto, entre as crianças são construídos outros significados, nos quais, embora muitas vezes sejam nitidamente distintos dos adultos, é possível observar pontos de encontro, posto que os sentidos produzidos pelas crianças sobre o que aprendem na pré-escola são realizados em um mundo social compartilhado com os adultos. Nessa perspectiva, algumas dimensões simbólicas da aprendizagem da escrita dos nomes na pré-escola, no ponto de vista das crianças, têm correlação com a alfabetização e com a identidade, mas outras apresentam singularidades e ressignificações particulares. Para elucidar essas versões das crianças sobre a aprendizagem da escrita dos nomes, próprios e dos amigos, estão reproduzidos três excertos do diário de campo:

Excerto 1 – [M.A. quer o diário de campo da pesquisadora, que está com K. , e tenta negociar com o colega]

M.A.: tu escreve uma coisa e me dá, tá K.? [K. não entrega e ela busca outra estratégia]

M.A.: deixa eu escrever teu nome para ti ver?

Excerto 2 – [M.A. está copiando as letras do cartaz de aniversariante. M.E. se aproxima da colega e as duas começam a conversar]

M.E.: quer que eu te ensine a escrever?

M.A.: não. Eu já sei!

M.E.: mas tu sabe escrever o nome de todos os colegas?

M.A.: não. Não sei o da B.

M.E.: eu sei o da B. e o de todo mundo. [Ela levanta as sobrancelhas como uma provocação à colega por saber mais. M.A. fica muito irritada, suspira profundamente e mostra-lhe a língua]

Excerto 3 – [M.E. escreve seu nome e mostra para a professora]

Professora: muito bem, M.E.! Parabéns! [A menina volta sorridente, vai até o painel da chamada, pega o peixinho com o nome do K., da B. e da A. Ela escreve todos os nomes e volta a mostrar à professora, que a elogia novamente] (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Nos três excertos, são notórios os aspectos práticos da aprendizagem da escrita dos nomes. Nos casos análogos, a escrita funciona como um mecanismo para as crianças se relacionarem. As relações estabelecidas por meio da prática da escrita do nome são, no entanto, de circunstâncias diferentes. No primeiro excerto, M.A. aplica a aprendizagem do nome do colega para tentar convencer K. a entregar-lhe o caderno. No excerto seguinte, a habilidade de saber escrever o nome do outro é empregada por M.E. para destacar-se em relação à colega. No terceiro excerto, aprender a escrever os nomes dos colegas serve de prerrogativa para receber elogios e, também, para ter acesso aos murais sem ressalva por parte das professoras.

Não há como ignorar que estar inserido em um contexto de vida social em que a linguagem escrita é uma prática importante faz com que essa aprendizagem carregue as marcas da cultura ampla, como a apropriação da decodificação do código escrito. Inclusive, é possível verificar o elo com as práticas subjacentes (escolarizantes) de seu contexto escolar nas formas de participação autônomas das crianças na cultura letrada. M.E. e M.A., em suas tentativas de aquisição do sistema de escrita, priorizaram o treino grafomotor e a cópia, atividades propostas regularmente pelas professoras. Fizeram-no porque práticas de leitura e escrita estão presentes na pré-escola e as crianças têm expectativas quanto ao seu processo de alfabetização (KREMER; GOBBATO; FORELL, 2018).

É possível interpretar que as crianças, nessas práticas independentes, estariam reproduzindo instruções anteriores. No entanto, problematizar apenas esse viés seria um equívoco e uma desconsideração de sua capacidade de agenciamento. O simples fato de reconhecer as crianças como atores sociais permite entender, no dado acima, que, por meio das informações sobre escrita do mundo adulto, elas transformaram e criaram situações de letramento para atender às suas necessidades próprias (NEVES, 2010). Essas práticas das crianças, intimamente relacionadas às suas vivências na escola, demonstram que “[...] as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida, mas também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural” (COHN, 2005, p. 17).

Barbosa e Delgado (2012, p. 124) afirmam que “[…] o ato da escrita é um ato criativo, singular, para além da reprodução do que já foi escrito pelos adultos” e, por essa perspectiva, é possível perceber que o que há de paridade entre os excertos exibidos é que aprender a escrever o seu nome, ou o nome dos colegas, foi ressignificado pelas crianças. No uso que as crianças fizeram da escrita, havia interesses particularmente infantis. Para M.A., aprender a escrever o nome de um colega funcionou como uma moeda de troca para a posse de um material; para M.E., aprender a escrever o nome de todos os colegas a permitia sobressair-se e receber elogios.

Por essa perspectiva, há a interpretação de que os interesses e os usos singulares das crianças na escrita dos nomes reafirmam a ideia de que as culturas infantis estão atreladas às aprendizagens na pré-escola, uma vez que é a partir delas que as crianças produzem os sentidos para o que aprendem. Portanto, é necessário “[...] pensar intencionalmente no cenário onde experiências físicas, sensoriais e relacionais das crianças acontecem” (GOBBATO, 2011, p. 167) e acolher os significados construídos e compartilhados pelas crianças sobre suas aprendizagens, os quais nem sempre seguem as lógicas dos adultos, e nem precisam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste epílogo, são sistematizados os principais apontamentos/conclusões/conhecimentos produzidos na pesquisa e tecidas algumas reflexões que emergiram da composição do processo de investigação. Como mote da discussão, foram tomadas duas versões das crianças sobre as suas aprendizagens na pré-escola. A primeira refere-se à brincadeira (aprender para brincar) e a segunda é sobre a escrita do nome (aprender para relacionar-se), ambas atividades centrais na turma de pré-escola com a qual a pesquisa foi realizada. Nesses dois aspectos, foi identificado que as meninas e os meninos, em seu cotidiano na instituição, produziram e compartilharam significados específicos para o que aprendiam e que, muitas vezes, as suas significações eram distintas aos sentidos que os adultos atribuíam para as aprendizagens delas (CONH, 2005). Esses modos criativos e particulares das crianças se apropriarem e reinterpretarem as suas aprendizagens configuraram-se em um ponto de intersecção entre aprendizagem e produção cultural.

No que se refere às brincadeiras e à sua relação com as aprendizagens, a síntese interpretativa sugere que os significados das crianças e dos adultos, embora não estejam em oposição — ambos reconhecem e reivindicam sua importância —, são de certa forma díspares. Enquanto para os adultos as crianças brincam para aprender, no ponto de vista infantil, muitas aprendizagens são laboradas para que possam brincar. Já na discussão sobre a produção da escrita do nome, identificou-se que, no contexto da pré-escola, essa aprendizagem também teve desdobramentos simbólicos específicos entre as crianças. Pode-se dizer que a concepção delas conversa com o ponto de vista pedagógico ao passo que, tal qual as docentes, as meninas e os meninos identificam a escrita do nome como um processo de aquisição da língua escrita e também a relacionam com a identidade. Entretanto, no interior de seus grupos de pares, as crianças conferem à escrita do nome outro sentido, pois ela é utilizada como mecanismo para se relacionar, seja para se conseguir algo, para se destacar ou para receber elogios.

Por meio dessas interpretações, propõe-se que as culturas infantis estão intimamente conectadas às aprendizagens, posto que é a partir delas que as crianças constroem sentidos para o que aprendem e que essa conexão pode trazer anúncios de outras possibilidades para as escolas infantis pensarem nas aprendizagens das crianças. A primeira delas diz respeito à construção de espaços escolares comprometidos com as culturas infantis conectadas às aprendizagens. É sabido que as crianças e os adultos compartilham o mesmo sistema simbólico e que isso não significa que as crianças pensam, vivem e interpretam o mundo igual aos adultos (CORSARO, 2005). Nesse sentido, comprometer-se com as culturas infantis é dar um passo à frente na legitimação do sujeito-criança na qualidade de criança, isto é, valorizar as crianças e suas potências infantis nas suas condições de infâncias que estão.

O estudo aponta também a possibilidade de que, a partir da escuta das crianças, seja possível reconfigurar alguns discursos que são construídos sobre a relação entre brincadeiras e aprendizagens na pré-escola. Se pedagogicamente são realizadas brincadeiras com as crianças para que elas aprendam, porque é compreendido que elas aprendem enquanto brincam, é possível também, pedagogicamente, auxiliar as crianças a aprender as coisas que elas precisam para brincar e, assim, romper com o pensamento de que todas as brincadeiras precisam necessariamente resultar em uma aprendizagem canônica. Isso parece uma maneira mais respeitosa de tratar a brincadeira como elemento central na vida das crianças, para que, a partir daí, seja possível, em contextos de Educação Infantil, relacionar as aprendizagens com as brincadeiras de modo mais responsável com as expressões infantis.

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Recebido: Agosto de 2000; Aceito: Setembro de 2021

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