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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.67 Rio de Janeiro out./Dez 2021  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.53460 

Artigo

IMAGINAÇÃO CRIADORA, CRIAÇÃO LITERÁRIA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL

CREATIVE IMAGINATION, LITERARY CREATION AND CHILD DEVELOPMEN

IMAGINACIÓN CREATIVA, CREACIÓN LITERARIA Y DESARROLLO INFANTIL

Neire Márcia da Cunha1 
http://orcid.org/0000-0002-7235-900X; lattes: 1006331268160436

Ana Maria Esteves Bortolanza2 
http://orcid.org/0000-0003-4608-2139; lattes: 1422415145212310

1Universidade de Uberaba – UNIUBE, Secretaria Municipal de Educação de Uberaba E-mail: neire.cunha@uniube.br

2Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL E-mail: amebortolanza@uol.com.br


Resumo

A escola tem papel primordial na formação e desenvolvimento das capacidades superiores da criança, assim como de sua autonomia no processo de apropriação e objetivação dos bens materiais e imateriais da humanidade. O estudo é parte de uma pesquisa qualitativa, de natureza dialógica (2016-2019), cujo objetivo foi compreender o processo de formação de autoria em crianças de 9 e 10 anos de uma escola pública. O artigo tem o objetivo de discutir a formação da imaginação criadora da criança e suas relações com a criação literária, em seu desenvolvimento, à luz dos escritos de Vigotski. Os resultados mostram que a formação e o desenvolvimento da atividade combinatória do cérebro – a imaginação criadora – está condicionada ao acesso da criança aos bens culturais construídos pela humanidade, por meio dos modelos de criação, nas artes, na literatura, na ciência, entre outras, bem como a apropriação e objetivação de riqueza da diversidade humana que promove o desenvolvimento consciente da personalidade e da inteligência infantil, ao longo de sua história de vida. Conclui-se, portanto, que a formação e o desenvolvimento da personalidade criadora da criança estão condicionados ao ato de criação encarnado na atividade, seguindo a linha de futuro do desenvolvimento infantil, impulsionados pelo trabalho colaborativo com parceiros mais experientes culturalmente. Nesse processo, a escola como locus da cultura mais elaborada da atividade humana tem um papel fundamental

Palavras-chave: imaginação criadora; criação literária; desenvolvimento infantil

Abstract

The school has a fundamental role in the formation and development of the child's superior capacities, as well as its autonomy in the process of appropriation and objectification of the material and immaterial goods of humanity. The study is part of a qualitative research, of a dialogical nature (2016-2019), whose objective was to understand the process of formation of authorship in children aged 9 and 10 years in a public school. The article aims to discuss the formation of the child's creative imagination and its relationship with literary creation, in its development, in the light of Vigotski's writings. The results show that the formation and development of the combinatorial activity of the brain - the creative imagination -is conditioned to the child's access to the cultural goods constructed by humanity, through the models of creation, in the arts, literature, science, among others, as well as the appropriation and objectification of the richness of human diversity that promotes the conscious development of children's personality and intelligence, throughout their life history. It is concluded, therefore, that the formation and development of the child's creative personality are conditioned to the act of creation embodied in the activity, following the future line of child development, driven by collaborative work with more culturally experienced partners. In this process, the school as a locus of the most elaborate culture of human activity has a fundamental role.

Keywords: creative imagination; literary creation; child development

Resumen

La escuela tiene un papel fundamental en la formación y desarrollo de las capacidades superiores del niño, así como su autonomía en el proceso de apropiación y objetivación de los bienes materiales e inmateriales de la humanidad. El estudio forma parte de una investigación cualitativa, de carácter dialógico (2016-2019), cuyo objetivo fue comprender el proceso de formación de la autoría en niños de 9 y 10 años en una escuela pública. El artículo tiene como objetivo discutir la formación de la imaginación creativa del niño y su relación con la creación literaria, en su desarrollo, a la luz de los escritos de Vigotski. Los resultados muestran que la formación y desarrollo de la actividad combinatoria del cerebro - la imaginación creativa -está condicionada al acceso del niño a los bienes culturales construidos por la humanidad, a través de los modelos de creación, en las artes, la literatura, la ciencia, entre otros. , así como la apropiación y cosificación de la riqueza de la diversidad humana que promueve el desarrollo consciente de la personalidad e inteligencia de los niños, a lo largo de su historia de vida. Se concluye, por tanto, que la formación y el desarrollo de la personalidad creativa del niño están condicionados al acto de creación plasmado en la actividad, siguiendo la línea futura del desarrollo infantil, impulsada por el trabajo colaborativo con socios de mayor experiencia cultural. En este proceso, la escuela como lugar de la cultura más elaborada de la actividad humana tiene un papel fundamental.

Palabras clave: imaginación creativa; creación literaria; desarrollo infantil

INTRODUÇÃO

O artigo tem como finalidade discutir o processo de desenvolvimento da imaginação criadora e suas relações com a criação literária e o desenvolvimento humano, na perspectiva dos escritos de Vigotski e outros autores da teoria histórico-cultural, tendo em vista a superação da visão fragmentada da formação da função da imaginação na criança. Com base nos estudos de Vigotski (1996; 2018) e Elkonin (1987), definimos o curso do desenvolvimento humano como um processo único e singular, uma unidade complexa, na qual o processo de transformação passa pelos sentidos e significados objetificados e cristalizados nas atividades humanas, em um determinado momento histórico. Nesse sentido, a escola como locus da cultura mais elaborada da atividade humana tem papel primordial na formação e desenvolvimento das capacidades superiores da criança, e de sua autonomia no processo de apropriação e objetivação dos bens materiais e imateriais da humanidade.

A escola como lugar de cultura mais elaborada situa-se na esfera complexa da atividade humana. Reiteramos Magalhães (2014, p. 15) que define a escola como lugar em que se objetivam os conhecimentos científicos na esfera da atividade não cotidiana, portanto,

[...] uma objetivação da esfera da atividade não cotidiana, da esfera complexa da atividade humana. Por isso, é uma atividade que exige reflexão, intenção, fundamentação teórica. No entanto, a lógica que tem orientado o trabalho docente é a lógica do cotidiano. A questão estaria, então, em encontrar formas de impactar positivamente a compreensão do professor numa perspectiva de transformação da lógica que orienta seu pensar e agir na escola da infância.

Entendemos, nessa perspectiva, que a educação escolar deve formar os conceitos científicos na esfera complexa da atividade humana, o que requer um ensino intencional com a finalidade de desenvolvimento dos alunos. Isso implica que os conteúdos curriculares sejam norteados por uma lógica da esfera complexa que direcione o trabalho educativo do professor.

O estudo é resultado de uma pesquisa de natureza dialógica (2016-2019), que trata da formação da autoria em crianças de 9 e 10 anos que frequentavam o 4º ano do ensino fundamental, de uma escola pública de Uberaba-MG. A pesquisa foi fundamentada, principalmente, nos estudos Vigotski. Tendo como pressuposto a natureza social do desenvolvimento humano, neste artigo, discutem-se os aspectos psicológicos que permeiam a função imaginativa e a atividade criadora que a constitui, a criação literária no processo de desenvolvimento da criança.

Estruturamos o artigo em cinco tópicos. O primeiro tópico aborda duas atividades que emergem na vida em sociedade originárias e objetivadas pelas e nas ações e relações humanas: a atividade reprodutiva e a combinatória. No segundo tópico, analisam-se os aspectos e os mecanismos psíquicos que envolvem a imaginação criadora. A formação e o desenvolvimento dos processos de (re)elaboração das percepções vividas são discutidos no terceiro tópico. No quarto tópico, apresentam-se algumas peculiaridades que envolvem o processo de rupturas e modificações da atividade da imaginação criadora no decorrer da vida. Por fim, no quinto tópico, detalha-se o curso de desenvolvimento e sua relação com a imaginação criadora.

A ATIVIDADE DA IMAGINAÇÃO CRIADORA

Em acordo com os estudos vigotskianos (2000; 2018), as funções psíquicas superiores desempenham papel fundamental no desenvolvimento, pois dão sustentação ao processo de humanização da criança. Ao desenvolvê-las no processo de apropriação e objetivação da realidade, por meio dos instrumentos e dos signos, a criança vive uma reestruturação interfuncional que reconfigura essas funções. De modo dialético, essa nova reestruturação entre as funções psicológicas em desenvolvimento, desencadeadas pelas generalizações constantes do meio em que vive a criança, favorece as ações e os significados de suas atividades, o que lhe permite atribuir novos sentidos a elas e a sua própria vivência.

Entende-se por vivência, segundo Vigotski (2018, p. 77), a forma pela qual a pessoa “[…] toma consciência, atribui sentido e se relaciona afetivamente com um certo acontecimento” da vida que, de algum modo, afeta a sua relação com o outro e consigo mesma.

Smolka (2009), na apresentação que faz do livro Imaginação e criação na infância (VIGOTSKI, 2009), destaca a relevância da ação pedagógica no sentido de criar condições de inserção e participação efetiva da criança na produção histórico-cultural da humanidade. Utilizamos esse aporte teórico para compreender o processo de formação e o círculo que envolve o desenvolvimento da atividade criadora da imaginação. Vigotski (2009) destaca que as atividades que emergem no decorrer da vida em sociedade, num determinado contexto, direcionadas e concretizadas pelas e nas ações e relações humanas, são essencialmente de dois tipos: a reprodutiva e a combinatória.

A primeira, reprodutiva ou de memória, é intrínseca às questões ligadas à memória. Esse tipo de atividade é intimamente ligado à reprodução ou à repetição de “[…] meios de conduta anteriormente criados e elaborados ou [de] ressuscitar marcas de impressões precedentes”, de acordo com Vigotski (2009, p. 11). Possui como base a plasticidade cerebral, isto é, a capacidade desse órgão em ser modificado e de manter os traços dessas modificações que chegaram a ele por meio de experiências vividas no decorrer da vida. Assim, segundo Vigotski (2009, p. 12), esse tipo de atividade “[…] se sustenta na repetição daquilo que existe na vida social, sendo que nela não se cria nada de novo)”.

A segunda, denominada atividade combinatória ou criadora, consiste na atividade em que o ser humano produz algo novo. Para Vigotski (2009, p. 11), essa criação pode ser uma elaboração do pensamento ou de ações ou correlações distintas daquelas existentes, “[…] um objeto do mundo externo ou uma construção da mente ou do sentimento, conhecida apenas pela pessoa em que essa construção habita e se manifesta”. Em sua base está a capacidade combinatória do cérebro de imaginar, projetar e estabelecer conexões. “A psicologia denomina de imaginação ou fantasia essa atividade criadora baseada na capacidade de combinação do nosso cérebro” (VIGOTSKI, 2009, p. 14). A atividade criadora da imaginação proporciona ao ser humano construir e alterar o seu presente, projetando-se para o futuro do seu desenvolvimento.

Nessa perspectiva, a atividade criadora possui como núcleo estruturante a imaginação ou a fantasia que possibilita e potencializa a criação de novas formas de (re)elaboração da cultura, cristalizadas em todas as esferas da vida humana, nas áreas das artes, das ciências, das técnicas.

Tendo por base os estudos de Ribot, Vigotski (2009) observa que todas as objetivações humanas, os objetos da cultura humana, todos eles são imaginação cristalizada, porque qualquer ato criador, qualquer elaboração do pensamento, grandiosa ou pequena, são combinações novas ou uma reelaboração da imaginação humana. Para Vigotski (2009, p. 15-16), “[...] grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos”. Por isso, assevera Vigotski (2009, p. 16), devemos valorizar “[…] a presença da imaginação coletiva, que une todos esses grãozinhos, não raro insignificantes da criação individual”, como forma de criarmos as bases sólidas para o desenvolvimento da imaginação criadora, seja ela de cunho individual ou coletivo.

Posto que compreendemos a sustentação do ato de criação individual e/ou coletivo como a capacidade combinatória do cérebro, a capacidade de combinar o existente de novas e diferentes maneiras, entendemos que o ímpeto de criação – o movimento impetuoso do ato criador da atividade humana – contém em seu mecanismo psíquico a movimentação da atividade da imaginação criadora.

A partir dos estudos vigotskianos, no tópico seguinte, desvelamos os mecanismos psicológicos e os aspectos que constituem o círculo a envolver a atividade da imaginação criadora e seu desenvolvimento.

MECANISMOS PSÍQUICOS DA IMAGINAÇÃO CRIADORA

Vigotski (2009) explica que na gênese do processo de formação da atividade da imaginação criadora estão as percepções humanas da realidade a que a pessoa pertence e/ou daquelas de foro íntimo, ligadas às experiências de vida pessoal. À vista disso, na gênese dessa atividade estão as vivências coletivas e pessoais que afetam ou afetaram a criança em seu desenvolvimento. Enfim, são elas – as vivências - o alicerce sobre o qual se sustenta a futura atividade da imaginação e da criação. Sobre essa base, se ergue o processo de (re)elaborações das percepções e impressões experimentadas pela criança de modo único e singular.

Para compreendermos os mecanismos psíquicos que envolvem a atividade da imaginação criadora, faz-se necessário entender aspectos importantes da relação fantasia (imaginação) e realidade que se origina das emoções, sentimentos e atitudes tipicamente humanas. Nessa perspectiva, tanto a imaginação ou fantasia quanto a realidade são instâncias que fazem parte da vida humana. No movimento contraditório e dinâmica da vida, essas instâncias se entrelaçam e se interpenetram constituindo o processo de desenvolvimento da atividade da imaginação criadora.

O autor ressalta quatro aspectos que envolvem a imaginação criadora e a realidade concreta, integrando o círculo de desenvolvimento da atividade da imaginação. Para Vigotski (2009, p. 20), o primeiro aspecto consiste, “[…] no fato de que toda obra da imaginação se constrói sempre de elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa”. Todos os elementos que constituem ou constituíram a vida e as excitações anteriores arquivados na memória de uma criança nutrem a atividade da imaginação criadora.

A fantasia se apoia na memória e ambas se inter-relacionam. Aa fantasia usa a memória, dispondo “[...] de seus dados em combinações cada vez mais novas. [...]”, sendo que “a novidade dessa função [imaginação] encontra-se no fato de que, dispondo dos traços das excitações anteriores, o cérebro combina-os de um modo não encontrado na experiência real”. Essas combinações cerebrais, cada vez mais complexas e singulares, nutrem a memória da pessoa, possibilitando novas generalizações da realidade. (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

O segundo aspecto da relação entre fantasia e realidade é de cunho mais complexo, não se trata da articulação dos elementos que constituem a fantasia e a realidade, mas do produto dessa relação que contém em sua natureza novas formas de combinações cerebrais, nas quais as excitações anteriores foram (re)elaboradas internamente de acordo com a forma como a pessoa se relaciona com os outros e/ou com os objetos e as atividades humanas. Nas situações já experimentadas, projetadas e objetivadas pela imaginação coletiva, a criança produz novas formas de combinações cerebrais desenvolvendo sua capacidade imaginativa, apoiada e ancorada na riqueza e na diversidade humana.

Nas palavras de Vigotski (2009, p. 24-25), a função imaginativa “[...] não funciona livremente, mas é orientada pela experiência de outrem, atuando como se fosse por ele guiada, que se alcança tal resultado, ou seja, o produto da imaginação coincide com a realidade”. O seu desenvolvimento, portanto, está condicionado às experiências alheias, aos aspectos sociais e culturais de uma determinada coletividade de seu entorno. A experiência da diversidade humana orienta o desenvolvimento dessa função, pois o produto da imaginação coincide com as necessidades e os motivos da vida social e cultural.

Nessa perspectiva, a atividade da imaginação criadora

[...] transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal. A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria experiência, mas pode aventurar-se para além deles, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica ou social alheia. Assim configurada, a imaginação é uma condição totalmente necessária para quase toda atividade mental humana. (VIGOTSKI, 2009, p. 25).

O desenvolvimento de grande parte das atividades psíquicas humanas está condicionado à atividade combinatória ou criadora da imaginação. Os seres humanos aprendem com as experiências alheias, as apropriações e objetivações socioculturais das gerações precedentes, usadas como base de sustentação para novas aprendizagens ampliando as experiências e condições de vida em sociedade, de maneira a ultrapassar o limite de próprio desenvolvimento. Essa condição alavanca tanto o processo de desenvolvimento da criança que a vivência na coletividade amplia suas percepções da realidade, por conseguinte, ela passa a se relacionar de forma mais ampla com a experiência histórico-cultural no meio em que vive.

O terceiro aspecto diz respeito ao papel das emoções nas experiências vivenciadas na relação imaginação e realidade. Para Vigotski (2009, p. 25-26) “[...] a emoção parece possuir a capacidade de selecionar impressões, ideias e imagens consonantes com o ânimo que nos domina num determinado instante”. Por isso, a ideia de que a imaginação está condicionada às combinações emocionais dominantes em determinados momentos dado o estado de ânimo da criança (alegria, tristeza, raiva, rancor, entre outras), no qual as emoções convergem para certas imagens, ideias e percepções em relação, as quais modelam o tom emocional da criança animando-a naquele instante de modo específico e singular.

Essas combinações emocionais específicas, nomeadas por psicólogos da época de dupla expressão dos sentimentos, contêm em si duas formas de expressão: podem se manifestar interna ou externamente. As formas de expressão dos sentimentos podem tanto ser visíveis em nossas expressões faciais, corporais e tônus muscular quanto serem refletidas ou refratadas na psique humana, por meio da seleção peculiar de elementos da realidade, de ideias ou de imagens. As combinações emocionais específicas não possuem uma relação lógica entre si, mas se relacionam por meio de impressões ou imagens que convergem a um signo emocional comum, isto é, “[...] exercem em nós uma influência emocional semelhante, [essas combinações emocionais específicas] tendem a se unir, apesar de não haver qualquer relação de semelhança ou contiguidade explícita entre elas” (VIGOTSKI, 2009, p. 26). Desse modo, para Vigotski (2009, p. 26), “O sentimento seleciona elementos isolados da realidade, combinando-os numa relação que se determina internamente pelo nosso ânimo, e não externamente, conforme a lógica das imagens”.

A chamada dupla expressão dos sentimentos potencializa e cria formas novas de linguagem interior para os sentimentos, que, segundo Vigotski (2009, p. 26-27), “[...] resulta uma obra combinada da imaginação em cuja base está o sentimento ou o signo emocional comum que une os elementos diversos que entraram em relação”. Essa forma de linguagem interior do sentimento em sua essência constitui uma forma de imaginação mais subjetiva, única, própria do sujeito, porque tende a unir impressões ou imagens distintas, sem relações explícitas entre si de modo único e singular, que guiada pelas emoções e sentimentos entra em relação devido ao tom emocional comum.

A forma da imaginação subjetiva, guiada pela linguagem interior do sentimento que anima a pessoa, torna-se mola propulsora na (re)criação de necessidades e motivos novos para o desenvolvimento da atividade criadora da criança, porque neste campo, da linguagem interior do sentimento, a função imaginativa transita sem limite de forma autônoma potencializando consideravelmente as condições das combinações cerebrais, a criação de neoformações de produção do inusitado, do genial, o que evidencia o enflorar-se da diversidade humana.

Vigotski (2009) adverte-nos sobre a existência de uma relação emocional reversa entre imaginação e emoção, denominada por ele de lei da realidade emocional da imaginação. Se antes os sentimentos atuavam na atividade criadora da imaginação, agora, de modo oposto, a atividade criadora da imaginação exerce influência nas emoções e sentimentos das pessoas. Destaca que,

A essência dessa lei foi formulada por Ribot, do seguinte modo: ‘Todas as formas de imaginação criativa contêm em si elementos afetivos’. Isso significa que qualquer construção da fantasia influi inversamente sobre nossos sentimentos e, a despeito de essa construção por si só não corresponder à realidade, todo sentimento que provoca é verdadeiro, realmente vivenciado pela pessoa, e dela se apossa. (VIGOTSKI, 2009, p. 28).

Ratificando os estudos de Ribot, Vigotski (2009) ressalta que a atividade criadora da imaginação, em qualquer de suas construções, pode influir nos sentimentos que funcionam como centros de forças afetivas e despertar estados de ânimos comuns. As (re)criações da atividade da imaginação tocam os sentimentos de modo peculiar, pois as suas construções podem ser hipotéticas no sentido de não fazerem parte da vida, mas os sentimentos, as sensações e as emoções que despertam são reais e invadem os sentimentos. Ao serem refletidas e/ou refratadas intimamente pela criança, tornam-se parte da linguagem interna dos sentimentos, orientadas pelo signo emocional comum que as constituiu.

Podemos entrever a influência emocional do compartilhamento de um signo emocional comum na atividade criadora da imaginação quando o resultado ou o produto dessa atividade se encarna, concretiza-se nos objetos culturais, como por exemplo na música, na arte, entre outros, e dá visibilidade às reações, aos sentimentos que despertam na criança.

O último aspecto apontado pelo autor em relação a essa ligação – imaginação e realidade – consiste na ideia de que as criações da imaginação podem ser uma construção completamente nova, apesar de sua relação com as produções culturais e emocionais existentes, algo genuíno, único, do ponto de vista das construções imaginárias, inéditas, projetadas internamente na criança. No entanto, para concretizar-se como atividade criadora da imaginação, essa criação projetada internamente pela criança necessita encarnar-se como produto ou instrumento material e imaterial da cultura, só assim ela completa o círculo que envolve o seu desenvolvimento e passa a existir concretamente na realidade. Nas palavras de Vigotski (2009, p. 29), “[...] ao ser externamente encarnada, ao adquirir uma concretude material, essa imaginação ‘cristalizada’, que se fez objeto, começa a existir realmente no mundo e a influir sobre outras coisas”.

Os quatro aspectos apresentados, neste estudo, constituem o círculo que envolve o desenvolvimento da atividade criadora da imaginação. Sobre isso, Vigotski (2009, p. 30) esclarece que

Os elementos [os produtos da imaginação] de que são constituídos foram hauridos da realidade pela pessoa. Internamente, em seu pensamento, foram submetidos a uma complexa reelaboração, transformando-se em produtos da imaginação. Finalmente, ao se encarnarem, tornam à realidade, mas já com uma nova força ativa que a modifica. (VIGOTSKI, 2009, p. 30).

Desse modo, entende-se que a imaginação se nutre da seiva da vida na qual a pessoa se encontra imersa, e seu desenvolvimento depende da riqueza e da diversidade das experiências adquiridas por ela. O produto da imaginação está condicionado à lei da realidade emocional e ao complexo processo de reelaboração interna e, finalmente, completa o seu círculo de desenvolvimento com uma nova força ativa que a modifica, transforma-se em produto da imaginação. Ao cristalizar-se como instrumento material ou imaterial, promove mudanças na pessoa que a objetivou e na coletividade da qual participa.

Desse modo, o produto da atividade da imaginação criadora, erigido da psique humana, ganha sua concretude ao ser objetivado no ato de criação do homem. Ao concretizar-se, seja pela linguagem (oral, escrita, artística, teatro, dança, literatura, entre outras) ou em qualquer outro instrumento cultural, torna-se novo centro de forças criativa, adensando a história de determinada coletividade.

A atividade da imaginação criadora na forma mais subjetiva – orientada pela linguagem interior do sentimento – também se constitui nesse círculo de desenvolvimento, sendo que os aspectos intelectuais e emocionais “[...] revelam-se igualmente necessários para o ato de criação. Tanto o sentimento quanto o pensamento movem a criação humana”. A preponderância de um desses elementos em dada situação não anula a existência do outro, visto que o “[...] pensamento preponderante e emoção preponderante – são quase equivalentes porque tanto um quanto o outro envolvem os dois elementos inseparáveis e indicam apenas a preponderância de um ou de outro”. (RIBOT apudVIGOTSKI, 2009, p. 30).

PROCESSO DE (RE)ELABORAÇÃO DAS PERCEPÇÕES VIVIDAS

Em relação ao processo complexo de elaboração e reelaboração criativa das percepções vividas, Vigotski (2009) ressalta quatro fatores psicológicos subjacentes a esse processo: a dissociação, a modificação, a associação e a combinação de imagens individuais. As impressões que temos da realidade constituem-se em uma unidade única e complexa que se compõem de múltiplos fatores.

Ao distinguir os fatores psicológicos que constituem a atividade criadora da imaginação -dissociação, modificação, associação e combinação de imagens individuais – Vigotski (2009) reitera que a motivação dessa atividade são os desafios, as necessidades e os motivos cada vez mais complexos e amplos emanados das relações da pessoa na vida sociocultural. “Se a vida ao seu redor não o coloca diante de desafios, se as suas reações comuns e hereditárias estão em equilíbrio com o mundo circundante, não haverá base alguma para a emergência da criação”. (VIGOTSKI, 2009, p. 40). Os desafios que emergem das necessidades históricas, sociais, emocionais, culturais e cognitivas, intrínsecas e explícitas nas atividades e relações humanas, são a mola propulsora do processo de criação no homem.

O processo de dissociação e associação das impressões vivenciadas constituem-se em processos fundamentais da atividade da imaginação criadora do homem. O processo de dissociação de dada impressão da realidade passa pela experiência da pessoa em decompor essa unidade única e complexa em seus aspectos, em seus elementos. Nesse movimento, alguns aspectos ou elementos são destacados e, por isso, se conservam, já outros são esquecidos pela pessoa. O destaque desses traços “[...] e a rejeição de outros são o que, devidamente podemos denominar dissociação”. (VIGOTSKI, 2009, p. 36).

Em decorrência da natureza dinâmica do psiquismo humano, “[…] segue-se o da modificação a que se submetem os elementos dissociados”. (VIGOTSKI, 2009, p. 36). Durante o processo de dissociação, a aceitação de alguns traços e rejeição de outros rompem-se com a relação originária na qual foram gerados, desencadeando mudanças nos traços que foram realçados e conservados. Essa modificação ocorre em consequência das características da pessoa e sua relação com a realidade, subjacentes à dinâmica desse processo. No entrelaçar dos fatores que envolvem os aspectos da personalidade e aqueles absorvidos e objetivados nas esferas da vida humana, as impressões vividas são transformadas. “São em si mesmas, processos; movem-se, modificam-se, vivem e morrem. Nesse movimento, está a garantia de sua modificação sob a influência dos fatores internos que as distorcem e reelaboram”, segundo Vigotski (2009, p. 37). Esse mecanismo psicológico – a modificação – é condição fundamental para o desenvolvimento do pensamento abstrato e a formação de conceitos pela criança.

Ligado ao processo de dissociação e modificação das impressões da realidade, encontra-se a união ou a associação dos elementos que foram dissociados e modificados. O processo contraditório e único da associação desses elementos resulta em uma combinação de imagens pessoais originais que compõe o sistema lógico e complexo que constitui nosso pensamento e nossas emoções. A união ou a associação desses elementos “[...] pode ocorrer em bases diferentes e assumir formas variadas: desde a união subjetiva de imagens à cientificamente objetiva, correspondente, por exemplo, a conceitos geográficos”. (VIGOTSKI, 2009, p. 39). Assim, a associação desses elementos sobre bases diversas – ligadas aos sentimentos, às emoções, ao pensamento, à linguagem, às artes, às ciências, entre outras – gera variadas formas de (re)criação humana, nas quais encontra-se a atividade da imaginação criadora que possibilita a transformação dos aspectos vivenciados de novas e distintas maneiras.

O círculo que envolve o processo de constituição e desenvolvimento da atividade criadora da imaginação se completa quando ela se cristaliza em imagens externas, quando o produto da imaginação se incorpora em um material da realidade concreta e se torna um objeto cultural como, por exemplo, a escrita, a obra de arte, a ciência, enfim, em um instrumento material ou imaterial da cultura humana.

RUPTURAS E MODIFICAÇÕES DA ATIVIDADE DE IMAGINAÇÃO CRIADORA

Algumas das peculiaridades que envolvem o processo de rupturas e modificações da atividade da imaginação criadora sinalizam traços de caráter evolutivo e involutivo de seu desenvolvimento, marcando os momentos de crises no desenvolvimento humano.

De acordo com o estudo dos aspectos que envolvem a relação entre realidade e imaginação, em síntese, a imaginação se constrói de elementos tomados da realidade, está condicionada à lei da realidade emocional, depende da riqueza e da diversidade da experiência anterior da criança e necessita concretizar-se na realidade, tornar-se objeto cultural. Vigotski (2009) destaca que dois desses aspectos, o primeiro e o segundo, apresentam-se com a mesma intensidade, com o mesmo grau de influência no adulto ou na criança, pelo fato de a imaginação se constituir de elementos da realidade concreta e ter como base a lei da realidade emocional. Já os terceiro e quarto aspectos dependem da riqueza e da diversidade da experiência anterior e necessitam concretizar-se como uma objetivação da cultura, assim vão sendo desenvolvidos gradualmente durante o processo de desenvolvimento da criança.

Outra peculiaridade desse processo consiste na diferenciação da atividade da imaginação criadora em momentos críticos do desenvolvimento e a apresentação das distintas atividades nas quais esse tipo de atividade se transforma e/ou se transfigura no decorrer do desenvolvimento da imaginação criadora. Trata-se da diminuição do desejo da criança de desenhar, explicado por Vigotski (2009, p. 49):

A criança começa a ter uma relação crítica com os seus desenhos; os esquemas infantis deixam de satisfazê-la; eles aparecem-lhe por demais objetivos e ela chega à conclusão de que não sabe desenhar, pondo de lado o desenho. Podemos observar a mesma retração da fantasia infantil quando desaparece o interesse da criança pelas brincadeiras ingênuas da primeira infância e pelos contos de fadas. A duplicidade da nova forma de imaginação que agora se inicia pode ser facilmente observada pelo fato de que a atividade da imaginação mais difundida e popular nessa idade é a criação literária. Essa criação é estimulada pela ascensão das vivências objetivas, pela ampliação e pelo aprofundamento da vida íntima do adolescente, de tal maneira que nessa época, constitui-se um mundo interno específico. No entanto, esse lado subjetivo, na forma objetiva, tende a encarnar-se em versos, narrativas, nas manifestações criativas que o adolescente percebe da literatura dos adultos que o cerca. O desenvolvimento dessa imaginação contraditória segue pela linha de atrofia de seus momentos subjetivos e pela linha de crescimento e consolidação dos momentos objetivos. Em geral, como regra, rapidamente, a maioria dos adolescentes ocorre de novo processo de retração do interesse pela criação literária; o adolescente começa também a ser crítico em relação a si, do mesmo modo que, antes, criticava seus desenhos; ele começa a ficar insatisfeito com a insuficiente objetividade de seus escritos e deixa de escrever. (2009, p. 49).

Na citação identificamos quatro ocorrências distintas da atividade da imaginação criadora no decorrer do desenvolvimento da criança: o desenho, a brincadeira, a criação literária e as narrativas pessoais objetivas. Nessa perspectiva, se considerarmos os períodos de crises (VIGOTSKI, 1996; 2018) pelo quais a criança passa durante o seu desenvolvimento e os relacionarmos às atividades explícitas, podemos inferir que, de um a três anos de idade, a atividade da imaginação criadora é vivenciada e objetivada pela criança em seu desenho, por meio dele expressa sua própria singularidade e seus sentimentos e necessidades.

Na crise dos três anos, essa objetivação da criança é transformada de acordo com sua relação com o meio, passando por uma descontinuidade e uma transfiguração. O desenho não satisfaz mais suas necessidades, considerando-o insuficiente para expressar sua singularidade e, por isso, o deixa de lado. No entanto, essa forma de manifestação não desaparece, continua em estado latente como as demais atividades que virão à tona durante o curso de seu desenvolvimento. Vivenciada a crise dos três anos, a atividade da imaginação se reconfigura, encarnar-se no jogo protagonizado ou brincadeira do faz-de-conta.

Aos sete anos aproximadamente, passa por outra crise, ocorre nova transfiguração da atividade da imaginação criadora, o jogo protagonizado como forma de objetivação de seus sentimentos e desejos se retrai novamente. À medida que cresce, seu interesse pela ampliação e compreensão de questões relacionadas à sua vida íntima, ampliam-se também suas necessidades e desejos para (re)elaborá-las, em decorrência de suas vivências com o mundo concreto. Essa contradição entre ampliar a compreensão de seu mundo íntimo e, ao mesmo tempo, a necessidade crescente de (re)elaborá-lo motiva uma nova transfiguração da atividade da imaginação, que se encarna na forma mais difundida e popular dessa atividade: a criação literária.

Nesse movimento, encorajada pela ampliação de suas vivências em coletividade e seu crescente interesse pelas relações e objetivações humanas provocam o surgimento de necessidades novas de expressão do sentimento que constituem o seu mundo íntimo, de forma singular e objetiva, encarnando-se em poemas, narrativas pessoais que se incorporam à criação literária dos adultos. Nessa perspectiva, essa atividade segue a orientação de declínio dos aspectos subjetivos num contínuo fortalecimento dos aspectos objetivos, evidenciando a luta íntima entre seus interesses subjetivos e objetivos que compunha a atividade anterior: a criação literária.

Nesse continuum, ao vivenciar a crise dos 13 anos, retrai-se o interesse do adolescente por esse tipo de atividade. Ele passa a criticar a falta de objetividade de suas criações, passando a uma forma mais objetiva de expressão de sua própria narrativa. Desse modo, nesse período, a atividade de criação literária entra em declínio, diferenciando-se na adolescência da forma como se manifestava na infância. Para Vigotski (2009, p. 48), isso marca “[...] uma profunda reestruturação da imaginação: de subjetiva ela transforma-se em objetiva”.

Desse modo, a atividade da imaginação criadora é decorrente de um processo lento e paulatino, (re)criada de maneira específica e gradual em cada etapa da vida, de acordo com as condições das pessoas, “[…] desenvolvendo-se de formas elementares e simples para outras mais complexas. Em cada estágio etário, ela tem uma expressão singular; cada período da infância possui sua forma característica de criação”. (VIGOTSKI, 2009, p. 19).

A cada etapa da vida, a imaginação se desenvolve entrelaçada com as atividades especificas com as quais a criança se relaciona com em determinado ciclo de sua vida e com a riqueza da experiência sociocultural à qual pertence.

O DESENVOLVIMENTO E A RELAÇÃO COM A IMAGINAÇÃO CRIADORA

Com base nos estudos de Ribot, Vigotski (2009) destaca a principal lei de desenvolvimento da atividade da imaginação criadora, segundo a qual o seu desenvolvimento pode ser representado por uma curva, na qual a atividade da imaginação criadora passa por um período ascendente no curso do desenvolvimento infantil, depois de relativa estabilidade, e, finalmente, entra em declínio na fase adulta. Esse declínio, destaca o autor, não significa dizer que a capacidade imaginativa da pessoa diminui ou extingue-se na fase adulta, apenas muda a forma de manifestação, tornando-se menos evidente e mais casual. De modo que, ressalta Vigotski (2009, p. 48), “[…] a atividade da imaginação na forma como se manifestava na infância, retrai-se na adolescência”.

Embora haja uma retração da imaginação criadora na forma que se manifestava antes, ao entrar em declínio na adolescência não finda, apenas retrai-se, “[…] porque a imaginação criadora não desaparece por completo em ninguém, ela apenas transforma-se em casualidade”. (VIGOTSKI, 2009, p. 48). Na fase adulta, pode revelar-se como um acontecimento eventual que surge das necessidades e das condições inerentes à sua existência. Essas ideias atestam que, “[...] onde quer que se conserve uma ínfima parte de vida criativa, aí também tem lugar a imaginação”. (VIGOTSKI, 2009, p. 48). Os traços que marcam essas mudanças, principalmente no momento de ruptura entre a infância e a adolescência, na crise dos treze anos, marcam a transfiguração mais acentuada dessa atividade, momento em que entra em declínio a forma como se manifestava antes. “Nesse período, ocorre uma profunda reestruturação da imaginação: de subjetiva ela transforma-se em objetiva”.

A imaginação da criança é mais incipiente que a do adulto e funciona de forma distinta. Segundo Vigotski (2009, p. 46), “A criança é capaz de imaginar bem menos do que um adulto, mas ela confia mais nos produtos de sua imaginação e os controla menos”. Na fase adulta, a imaginação atinge a maturidade, seu desenvolvimento depende de um vasto e variado processo de apropriação da herança sociocultural, não só pela diversidade e riqueza das experiências da pessoa, “[…] como também o caráter, a qualidade e a diversidade das combinações que se unem a esse material rendem-se de modo significativo às combinações dos adultos”. (VIGOTSKI, 2009, p. 47). Assim, de acordo com Vigotski (2009, p.22), “[…] quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material está disponível para a imaginação dela”.

Nessas condições, tanto a imaginação se desenvolve alicerçada nas experiências alheias, como é necessária ao desenvolvimento da imaginação coletiva, porque, segundo Vigotski (2009, p. 25), “[…] há uma dependência dupla e mútua entre a imaginação e a experiência. Se no primeiro caso a imaginação apoia-se na experiência, no segundo é a própria experiência que se apoia na imaginação”. Esse processo contraditório de desenvolvimento da imaginação é único e singular, sendo a apropriação e a objetivação da herança sociocultural uma construção única, distinta de pessoa para pessoa, diferente de uma etapa a outra. A forma como apropriamos e objetivamos as experiências vividas em determinado momento é condição básica para o desenvolvimento da atividade da imaginação criadora.

A CRIAÇÃO LITERÁRIA E A IMAGINAÇÃO CRIADORA

Cândido (2004, p. 174) conceitua literatura de forma ampla, “[…] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações”. Para o autor, “[…] a organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo” (CÂNDIDO, 2004, p. 177).

Entendemos que o ato de criação não é atitude simples, sendo que as necessidades que nos impulsionam ao ato criador não correspondem com as nossas condições concretas de criação. O ato de criação está condicionado à capacidade combinatória da psique humana, à riqueza e diversidade das vivências emocionais e socioculturais e às condições e possibilidades de desenvolvimento da imaginação criadora, da apropriação de conhecimentos, de procedimentos e técnicas necessárias à sua produção e de modelos de criação que nos afetam. Portanto, para Vigotski (2009, p. 42), “A criação é um processo de herança histórica em que cada forma que sucede é determinada pelas anteriores”. Desse modo, as condições e capacidade da criação no futuro estão condicionadas ao processo de apropriação e objetivação da vida no momento presente. Por isso, o processo de criação de uma criança necessita ser percebido como um processo, e não como um produto final, pois, segundo Vigotski (2009, p. 100-101), “[...] O importante não é o que as crianças criam, o importante é que criam, compõem, exercitam-se na imaginação criativa e na encarnação dessa imaginação”.

De acordo com Vigotski (2009, p. 20), “O melhor estímulo para a criação infantil é uma organização da vida e do ambiente das crianças que permita gerar necessidade e possibilidade para tal [criação]”. Por isso, as crianças precisam vivenciar, praticar, aperfeiçoar a atividade da imaginação criadora desde os primeiros anos de vida com a ajuda de alguém mais experiente culturalmente, para que possam desenvolvê-la de modo autônomo e consciente.

Vigotski (2001, p. 325) salienta que “Ensinar o ato criador da arte é impossível, entretanto, isso não significa, em absoluto, que o educador não possa contribuir para a sua formação e manifestação”. Assim, entendemos, que a atividade da imaginação criadora, em suas várias formas – desenho, jogo protagonizado, criação literária, narrativas pessoais objetivas – constituem-se fontes de formação e desenvolvimento da singularidade humana, projetando a criança para o futuro do seu desenvolvimento, de maneira a possibilitar descobertas e inovações necessárias à vida em sociedade. “[...] tudo isso faz parte desse trabalho cujo produto final transcende o momento de criação, adquire uma existência autônoma, e escapa do domínio do criador, produzindo efeito e efeitos no próprio autor e naqueles que o recebem”. (SMOLKA, 2009, p. 33).

A interação sociocultural, as atividades e as relações humanas intrincadas nesse processo, ao serem apropriadas pela pessoa na interação sígnica do qual participa, promovem o desenvolvimento de funções psíquicas superiores, como por exemplo do pensamento verbalizado, linguagem escrita, imaginação, memória lógica, autocontrole da conduta, entre outras, aumentando o nível de consciência em relação à própria vida e a coletividade.

Refletir sobre o ato de criação literária é considerar essa forma de criação condicionada acima de tudo à relação dinâmica entre pensamento, imaginação e linguagem. As relações entre essas funções proporcionam a mediação da linguagem interior na criação de sentidos e significados que constitui a consciência. Na dinâmica desse movimento, o ir e vir do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento, ancorado na linguagem interior e nutrido pela imaginação criadora, eleva o nível de consciência da criança em relação ao seu discurso escrito e a instiga à tomada de consciência de si e do mundo que a circunda.

À GUISA DE ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ressaltamos a relevância de promover o pleno desenvolvimento da criança tendo por base de sustentação a atividade da imaginação criadora em suas várias transfigurações: o desenho, a brincadeira, a criação literária e as narrativas pessoais objetivas. Essas atividades constituem as linhas principais de desenvolvimento da pessoa. A criação literária em seu desenvolvimento pleno propicia as condições necessárias à expansão e ao enriquecimento da vida íntima da criança, a apropriação da riqueza cultural da humanidade e a possibilidade de ela vivenciar as relações e as atividades coletivas de forma a ampliar sua relação com o mundo externo, criando uma linguagem específica para os sentimentos que a prepara para compreender e narrar de forma mais objetiva o seu mundo íntimo.

Entendemos com Vigotski (2009, p. 42) que, “Qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio. Sua criação surge de necessidades que foram criadas antes dele e, igualmente, apoia-se em possibilidades que existem além dele”, portanto, qualquer ato criador se constitui nas condições necessárias ao seu processo de formação. Nesse sentido, o ato de criação se constitui como um longo processo de desenvolvimento da pessoa na relação com suas vivências emocionais, socioculturais, em dado tempo histórico-cultural.

Concordamos com Vigotski (2009) que, a fim de criar bases sólidas para o desenvolvimento da atividade da imaginação criadora, o ato educativo deve manter-se necessariamente na necessidade de ampliar a experiência cultural da criança. “Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou, mais ela sabe e assimilou: quanto maior a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em sua experiência – sendo as demais circunstâncias as mesmas –, mais significativa e produtiva será a atividade de sua imaginação”. (VIGOTSKI, 2009, p. 23).

Consideramos que a formação e o desenvolvimento da personalidade criadora estão condicionados ao desenvolvimento do ato de criação encarnado na atividade humana, no presente. Por isso, a orientação desse movimento – formação e o desenvolvimento da personalidade criadora – deve seguir a linha do futuro de desenvolvimento, guiado pelo trabalho colaborativo com parceiros mais experientes culturalmente, a fim de que a criança se torne protagonista de suas histórias e produtora de cultura.

Ratificamos com Smolka (2009) que “A criação não emerge do nada, mas requer um trabalho de construção histórica e participação da criança na cultura”. Desse modo, as vivências emocionais e socioculturais da criança são aspectos fundamentais para o pleno desenvolvimento da imaginação criadora, porque propiciam condições de mobilidade cognitivas e emocionais indispensáveis ao processo criador, criam novas necessidade e motivos para a criação, despertam a reação criadora impulsionando a criança ao ato; ao ampliar suas condições e sustentar o processo de apropriação e objetivação da cultura humana, necessários para o desenvolvimento da criança.

Nessa perspectiva, o ato de criação é condição imprescindível e insubstituível do processo de humanização, porque, de acordo com VIGOTSKI, (2009, p. 51) a atividade criadora, o ato genuinamente novo, mesmo que ele seja a combinação do velho de novas formas, “[...] é o destino de todos, em maior e menor grau; essa atividade também é companheira normal e constante do desenvolvimento infantil”. Desse modo, defendemos que a atividade criadora necessita ser formada na criança desde os primeiros meses de vida, tornando-se fonte de aprendizagem e desenvolvimento logo em seus primeiros dias. Como vimos, quanto mais abundantes e enriquecedoras forem as experiências e as vivências emocionais e socioculturais da criança, mais densas e favoráveis são as condições de desenvolvimento consciente de suas potencialidades.

Assim, a formação e o desenvolvimento da atividade combinatória do cérebro – a imaginação criadora – está condicionada ao acesso da criança aos bens culturais construídos pela humanidade por meio dos modelos de criação, isto é, as artes, a literatura, a ciência, entre outros, bem como para a apropriação e objetivação da riqueza e diversidade humana, condicionando o desenvolvimento consciente da personalidade e da inteligência infantil ao longo de sua história de vida.

REFERÊNCIAS

CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio d Janeiro: OURO SOBRE AZUL, 2004. [ Links ]

ELKONIN, Danil Borisovich. Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia: In: La Psicologia evolutiva y Pedagógica en la URSS (Antología). Moscú: Progreso, 1987. [ Links ]

MAGALHÃES, Cassiana. Implicações da teoria histórico-cultural no processo de formação de professores da Educação Infantil. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2014. [ Links ]

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. Apresentação e comentários. In: VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. Tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. [ Links ]

VYGOTSKI, Lev Semenovich. Obras Escogidas. v. IV. Madrid: Visor Distribuciones, 1996. [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010. [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Imaginação e criação na infância. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka: tradução Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009. Série: Ensaios Comentados. [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Psicologia da arte. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 2ed. [ Links ]

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia. Organização e tradução: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes; Tradução: Claudia da Costa Guimaraes Santana. Rio de Janeiro: e-Papers, 2018. [ Links ]

Recebido: Agosto de 2020; Aceito: Janeiro de 2021

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