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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61930 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

DIGNIDADE E CIDADANIA TECIDAS NO “NÓS COMPARTILHADO”: aprendizagens com mulheres pretas

DIGNITY AND CITIZENSHIP WOVEN INTO THE "WE SHARED": learning from black women

DIGNIDAD Y CIUDADANÍA TEJIDAS EN EL “NOSOTROS COMPARTIDO”: Aprendizajes con mujeres negras

Patrícia Baroni1 
http://orcid.org/0000-0003-1570-9816; lattes: 2974793513488242

Ruthianne Barbosa Pereira dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-6932-3807; lattes: 4055585462287155

1UFRJ E-mail: narrativas do campo@gmail.com

2UFRJ E-mail: barbosaolori@gmail.com


Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar as narrativas de três mulheres pretas e periféricas e suas táticas cotidianas em busca de dignidade, partindo da premissa de que o repertório legal brasileiro e as ações de âmbito governamental não asseguram o mínimo para a vida digna dessas mulheres. Ao acessar essas narrativas, um conjunto de memórias, leituras de si, são acionadas tecendo, assim, um “nós compartilhado” que abarca enfrentamentos, astúcias, sobrevivências cotidianas. A escolha metodológica pela pesquisa narrativa permitiu a aproximação das mulheres e com elas viver de uma maneira singular os modos como se sentiram com suas vivências, com suas realizações, seus desejos, suas dores, alegrias, suas peles. As conversas foram realizadas de maneira remota, através de chamadas de vídeo, recursos possíveis devido à pandemia de COVID-19. Os conceitos de Racismo Estrutural, de Ecologia dos Saberes, de Epistemologias de Sul, de Colonialidade e de Escrevivências são abordados e discutidos neste espaço enquanto um debate das mulheres da pesquisa nas suas vivências. A possibilidade de abertura de mais um espaço de debates e discussões, reflexões e autorreflexões compõem as conclusões deste artigo que vislumbra despertar múltiplos sentidos nos leitores ao fim deste passeio cheio de parágrafos e histórias.

Palavras-chave: narrativas; racismo estrutural; dignidade; nós compartilhado

Abstract

This article aims to present the narratives of three black and peripheral women and their daily tactics in search of dignity, starting from the premise that the Brazilian legal repertoire and government actions do not ensure the minimum for the dignified life of these women. When accessing these narratives, a set of memories, self-readings, are triggered, thus weaving a “shared knot” that encompasses confrontations, cunning, everyday survival. The methodological choice for the narrative research allowed the approximation of women and with them to live in a unique way the ways they felt with their experiences, with their achievements, their desires, their pains, joys, their skins. The conversations were carried out remotely, through video calls, resources made possible by the COVID-19 pandemic. The concepts of Structural Racism, Ecology of Knowledge, Southern Epistemologies, Coloniality and Scripturalism are addressed and discussed in this space as a debate by women in research in their experiences. The possibility of opening yet another space for debates and discussions, reflections and self-reflections compose the conclusions of this article, which aims to awaken multiple meanings in readers at the end of this tour full of paragraphs and stories.

Keywords: narratives; structural racism; dignity; we shared

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar las narrativas de tres mujeres negras y periféricas y sus tácticas cotidianas en busca de la dignidad, partiendo de la premisa de que el repertorio jurídico brasileño y las acciones del gobierno no aseguran lo mínimo para la vida digna de estas mujeres. Al acceder a estas narrativas, se desencadenan un conjunto de recuerdos, auto-lecturas, tejiendo así un “nosostros compartido” que engloba confrontaciones, astucias, supervivencia cotidiana. La elección metodológica para la investigación narrativa permitió la aproximación de las mujeres y con ellas vivir de manera única las formas que sentían con sus vivencias, con sus logros, sus anhelos, sus dolores, alegrías, sus pieles. Las conversaciones se llevaron a cabo de forma remota, a través de videollamadas, recursos posibilitados por la pandemia COVID-19. Los conceptos de Racismo Estructural, Ecología del Conocimientos, Epistemologías del Sur, Colonialidad y Escrituralismo son abordados y discutidos en este espacio como un debate de mujeres en investigación sobre sus experiencias. La posibilidad de abrir un espacio más para debates y discusiones, reflexiones y autorreflexiones componen las conclusiones de este artículo, que pretende despertar múltiples significados en los lectores al final de este recorrido lleno de párrafos e historias.

Palabras clave: narrativas; racismo estructural; dignidad; nosotros compartidos

INTRODUÇÃO

Este texto se dedica a dialogar com as narrativas de três mulheres que, em suas trajetórias, tecem práticas emancipatórias em prol de driblar a estrutura de marginalização, subalternização, segregação vigente na conjuntura brasileira atual. Para propor esse exercício, adotamos como caminho metodológico a pesquisa narrativa e afirmamos a singularidade presente nessa escolha. Viver uma situação é uma experiência singular. Contá-la oralmente é singular. Escrevê-la é singular. Ouvir a experiência de alguém e reproduzi-la é singular. Entretanto, ainda que toda e qualquer narrativa seja singular, a estrutura de opressão imposta, ora de maneira voraz, ora de maneira subliminar, determina os espaçostempos1 cabíveis às mulheres pretas e periféricas. Por isso, ao apresentarmos aqui as narrativas de Îs, de Carolina e de Monã, sabemos que muitas outras se lerão nelas. Evaristo (2009), ao tecer suas produções literárias experimenta esta condição: “[...] quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um corpo-mulhernegra em vivência e que, por ser esse o meu corpo, e não outro, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta” (p. 18).

Sendo assim, partimos da ideia de Bakhtin (2012) de que os outros nos constituem. Somos o que somos porque outros nos constituíram. Contribuindo com essa ideia, Deleuze e Parnet (2004) afirmam que somos sujeitos múltiplos, que não deixamos de ser uma coisa para então sermos outra, e que as influências, sejam elas familiares, profissionais, interpessoais, são reflexos e refletem, tanto em instâncias pessoais quanto coletivas.

Nesse sentido, quando apresentamos nossas narrativas, apresentamo-nos de maneira coletiva, atravessadas pela trajetória que é singular, mas ao mesmo tempo plural por construção de natureza social. E esse limbo nos alimenta, nos inquieta. Conviver com as diferenças para nós não é um problema. É poético. O problema se dá quando há negação de direitos e de oportunidades justificadas pelas diferenças. Por isso, adotamos a escrita deste artigo não apenas como um espaço de produção científica, mas também um espaço para exaltar essas praticantespensantes2 com quem dialogamos, e refletir com suas perspectivas, que também nos constituem. Não por acaso, as mulheres com quem conversamos nesta pesquisa estão bastante presentes em nossos cotidianos, mesmo que as relações entre nós não tenham sido materializadas. O “nós compartilhado”, desde os ensinamentos familiares até os corres3, quando a necessidade chama, torna-nos uma comunidade, que possui dores, sonhos, perdas, realizações, partilhas, desesperanças e conquistas.

Tornar este espaçotempo como de compartilhamento de narrativas, desloca este artigo do lugar de uma pesquisa acadêmica fria, com lugares demarcados para “quem pesquisa” e para “quem é pesquisado” para um processo de enredamento de vivências que nos constitui. Juntamente com as autoras e os autores que conosco dialogam ao longo desta escrita, estas narrativas iluminam nossas trajetórias e são, de fato, formativas. Para referenciar o diálogo tecido a partir do que culturalmente entendemos, consideramos e experienciamos, esbarramos no que historicamente vem sendo legitimado enquanto conhecimento acadêmico e nos seus princípios de produção, encontrando neles epistemicídios e etnocídios, semelhantes aos que as sociedades marginalizadas viveram e vivem. E como possibilidade de acessar saberes outros e ciente de sua legitimidade, propomos aqui tecer um olhar generoso e sensível para as escrevivências, conceito criado por Conceição Evaristo que convida à experiência do “nós compartilhado”.

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertence também. (EVARISTO, 2020, p.30-31)

Esse corpo-voz também é nosso, é coletivo. São falas negras, trajetórias negras, femininas, pobres e em contextos de vulnerabilidade social. Sendo assim, quando falamos, não falamos no singular. Chegaremos, com isso, às narrativas das companheiras que expressam parte de suas vivências neste espaçotempo. É importante ressaltar que nosso diálogo não ocorre de forma verticalizada ou mesmo partindo de uma perspectiva em que as narrativas das mulheres sejam analisadas ou mesmo encaixotadas, como se suas histórias não se entrelaçassem às nossas, e seus enfrentamentos e lutas não fossem semelhantes aos nossos. Com Baroni e Conceição (2020) desenhamos nossos lugares enquanto pesquisadoras imbricadas na pesquisa que propomos.

Enquanto mulheres pretas, atuantes na luta antirracista, reafirmamos que nossas histórias se entrelaçam com os relatos de nossos interlocutores. Declinamos da posição de meras observadoras para, junto com nossos atores, narrarmos a vida e denunciarmos as amarras do racismo e da discriminação racial. Nossas histórias, conversas e reflexões estão presentes em todas as análises e nos motivaram a tecer essa investigação. (BARONI; CONCEIÇÃO, 2020, p. 447)

Desta forma, acreditamos que essa potência externalizada nas narrativas pode contribuir de maneira integral e significativa para o ambiente acadêmico constituindo uma pesquisa científica necessária e de qualidade. Por fim, após as narrativas, teceremos algumas considerações e reflexões dadas durante o desdobrar da pesquisa, e, juntamente a isto, convidaremos como interlocutoras à possibilidade de compreender as Epistemologias do Sul (SANTOS, 2010). Quem sabe, a partir dessa possibilidade será possível fazer emergir uma outra epistemologia. Uma epistemologia mulher, preta e da favela, escrevivida, narrada e fonte de conhecimento.

ENTRELAÇANDO IDEIAS

Como citado anteriormente, o desenvolvimento desta produção se dará também pelo partilhar de saberes e de ideias de algumas autoras e autores que se dispõem a debater temáticas que estão postas neste espaço. Para isso, nos debruçaremos, neste momento, em uma conversa com alguns conceitos.

O primeiro deles é o de Epistemologias do Sul (SANTOS, 2010). Ao tratar das Epistemologias do Sul, os autores problematizam a ideia de que conhecimentos diversos, múltiplos e diversificados, sendo originários do Sul, entram em circulação como saberes subalternos. Propõem, portanto, que tais conhecimentos sejam validados, reconhecidos e valorizados da mesma forma que os conhecimentos do Norte foram convencionados como episteme ideal, superior. Os autores problematizam a naturalização dos conhecimentos e vivências de populações que foram dizimadas, usurpadas, destituídas de seus direitos violentamente como fontes de epistemologias inferiores. Defendem, portanto, uma ecologia de saberes para a promoção de uma sociedade igualitária e justa. As Epistemologias do Sul são uma denúncia do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo. Colonialismo, que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, o sentido da vida e das práticas sociais. Afirmação, afinal, de uma única ontologia, de uma epistemologia, de uma ética, de um modelo antropológico, de um pensamento único e sua imposição universal. (SANTOS, 1995)

O segundo conceito é o de ecologia dos saberes (SANTOS, 2007), que parte da concepção de que os saberes são plurais e de que há fontes inesgotáveis de conhecimentos, confrontando a imposição de uma monocultura tecida a partir do pensamento abissal. Com Santos (2010) defendemos que seja necessário vigorar a sociologia das emergências, no sentido de apontamento para novas compreensões e transformações a partir de uma perspectiva horizontal, democrática e justa, para que então, cheguemos ao cosmopolismo subalterno4. Pensamos que tais manifestações configuram a globalização contra-hegemônica, rompendo com a exclusão social, econômica, política, cultural. Os presentes processos de exclusão social são respaldados pela globalização neoliberal, tendo em vista que são produtos de relações de poder desiguais.

Para pensar nos mecanismos de composição do cosmopolitismo subalterno proposto por Santos (2010), enredamos essa reflexão com Certeau (1994), que propõe o conceito de tática. De acordo com o autor, as táticas escapam da lógica da estrutura vigente nas sociedades. São essas táticas que, em meio às dificuldades estabelecidas pelo sistema meritocrático desigual, permitem que essas populações sobrevivam. Assim, elas propõem uma resistência criativa todos os dias na esperança de que, em algum momento, não precisarão mais se submeter a tais conjunturas.

A paisagem imaginária de uma pesquisa sempre tem algum valor, mesmo que destituída de rigor. Restaura aquilo que se indicavam dia sobre o rótulo de “cultura popular”, mas para mudar em uma infinidade móbel de táticas aquilo que se representava como uma força matricial da história. Mantém, portanto, presente a estrutura de um imaginário social onde a questão não cessa de assumir formas diferentes e de surgir sempre de novo. Previne, também, contra os efeitos de uma análise que, necessariamente, não é capaz de aprender essas práticas a não ser nas extremidades de um aparelho técnico, onde alteram ou distorcem seus instrumentos. E assim o próprio estudo se faz marginal em relação aos fenômenos estudados. (CERTEAU, 1994, p. 105-106)

Considerando as táticas enquanto instrumentos dos subalternizados, enredamos a esse conceito a ideia de colonialidade (MIGNOLO, 2005). O autor propõe interpretar como as delimitações por territórios se refletem nas estruturas econômicas e culturais que perpetuam nas sociedades modernas. Entende como o processo de colonialidade e suas heranças não fazem sentido em uma sociedade globalizada, tendo em vista que essa herança exige linearidades (temporais, tecnológicas, intelectuais).

O imaginário moderno/colonial apresenta-se de modo muito distinto de acordo com o ponto de vista do qual o olhamos: a história das idéias na Europa ou a diferença colonial, as histórias forjadas pela colonialidade do poder nas Américas, na Ásia ou na África, ou aquelas das cosmologias anteriores aos contatos com a Europa a partir do século XVI, como na constituição do mundo moderno colonial, no qual os Estados e as sociedades da África, da Ásia e das Américas tiveram que responder e responderam de distintas maneiras e de distintos momentos históricos. [...] A configuração da modernidade na Europa e da colonialidade no resto do mundo (com exceções, por certo, como é o caso da Irlanda), foi a imagem hegemônica sustentada na colonialidade do poder que torna difícil pensar que não pode haver modernidade sem colonialidade; que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivativa. (MIGNOLO, 2005, p. 38).

Mignolo (2005) trata também do apagamento das histórias dos sujeitos que pertenciam aos territórios em exploração, oriundas das navegações e comercializações, talvez da grande Europa, e do movimento dessas populações na atualidade em busca do resgate de suas identidades e tradições. O autor afirma que fenômenos, tais como o racismo, são consequências não do colonialismo, mas da colonialidade, acrescentando que as marcas dessas dizimações se perpetuam nos descendentes de tais povos. Neste sentido, o apagamento de vozes, o suprimir de histórias das populações subalternizadas e as “verdades” contadas e legitimadas pela ideologia hegemônica do pensamento abissal, derivado da colonialidade, como já posto, destilam-se em marcas que se ramificam, vícios que se perpetuam até o espaçotempo presente, em forma de violências, destituições de oportunidades igualitárias e marginalização desses grupos sociais que entendemos, hoje, como minorias. Tecendo o caminho que parte da concepção de colonialidade, chegamos ao debate que trata do racismo enquanto fenômeno elaborado a partir desta mesma colonialidade.

O conceito de racismo enquanto fenômeno social complexo (ALMEIDA, 2020) abarca a perspectiva de que a raça define a vida e a morte, e que, portanto, se faz necessário tomar o racismo enquanto categoria de análise das grandes questões contemporâneas. O autor problematiza o fenômeno do racismo nas concepções individualistas, institucionais e estruturais, e também como seus tentáculos atravessam relações de subjetividades, de Estado e econômicas. Nos dedicaremos então, a partir da produção de Almeida (2020), a apresentar cada uma das concepções, iniciando pela individualista.

O racismo é uma imoralidade e também um crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente responsabilizados, disso estamos convictos. Porém, não podemos deixar de apontar o fato de que a concepção individualista, por ser frágil e limitada, tem sido a base de análises sobre o racismo absolutamente carentes de história e de reflexões sobre seus efeitos concretos. É uma concepção que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista inconsequente - “racismo é errado”, “somos todos humanos”, “como pode ser racista em pleno século XXI?”, “tenho amigos negros” etc. - e uma obsessão pela legalidade. No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”. (ALMEIDA, 2020, p. 37)

A partir desta citação, podemos observar que mesmo havendo ação da manifestação direta do racismo, não se pode reduzir este fenômeno a um aspecto comportamental, tendo em vista que as instituições orientam e formam os indivíduos, de maneira que suas ações e comportamentos são reflexos de um conjunto de normas e padrões estabelecidos e expelidos por estas instituições. Nesse sentido, estamos falando do racismo em uma concepção institucional. Almeida (2020) explica que “[...] o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na raça” (p. 37).

Ora, se racismo transcende comportamentos individuais, por estes comportamentos serem também resultados do funcionamento das instituições, que por sua vez buscam resguardar uma ordem social, e que para isso impõem regras e padrões racistas, esta mesma ordem social que as instituições buscam resguardar é uma ordem social racista. Assim sendo, podemos tratar aqui do racismo em uma concepção estrutural.

Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente - com todos os conflitos que lhes são inerentes -, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista. (ALMEIDA, 2020, p. 47).

Convidamos mais uma vez, de maneira incansável, a escritora brasileira Conceição Evaristo para esta conversa. Ao tecer o termo escrevivência, a autora propõe múltiplas possibilidades de compreensão, sem, no entanto, restringi-lo a elas. A escrevivência se dá no uso: no corpo, na fala, nas dores, nas alegrias, nas histórias, nos sentidos, nos gestos, nos medos, nos poemas. São narrativas de mulheres pretas, mas não exclusivas delas. São histórias atravessadas por trajetórias de muitas mulheres que se encontram nos seus textos. De maneira deliberada, a autora convoca à inquietação acerca do racismo violento a que mulheres pretas estão sujeitadas em nossa sociedade. É o racismo que assombra, que machuca, que traumatiza, que adoece e até mata suas vítimas.

Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço individual e coletivo pelo sistema escravocrata do passado e, ainda hoje, pelos modos de relações raciais que vigoram em nossa sociedade, coube aos brasileiros, descendentes de africanos, inventarem formas de resistência que marcaram profundamente a nação brasileira. (EVARISTO, 2009, p.18).

Kilomba (2020) contribui de maneira vasta com reflexões sobre o sistema estrutural racista, apresentando, através de narrativas, passagens vivenciadas por mulheres pretas. Trata-se de narrativas que expressam manifestações de violência e de preconceito raciais, de maneiras imensuráveis e desprezíveis, desde o toque desrespeitoso e invasivo ao corpo preto, entendido por objeto público de apreciação e de posse sem autorização, ao entendimento da criança preta como sendo sujeito para mão de obra, e não como detentora do direito à infância. Na produção de Kilomba (2020) fica demarcada a naturalização historicamente amparada e legitimada pela estrutura racista, segregadora e desigual preponderante.

Eu realmente odiava quando as pessoas tocavam o meu cabelo: “Que cabelo lindo! Ah, que cabelo interessante! Olha, cabelo afro...” E o tocava. Eu me sentia como um cachorro sendo acariciado... como um cachorro que está sendo tocado. E eu não sou um cachorro, sou uma pessoa. E [quando eu era criança] minha mãe nunca lhes dizia para parar, embora eu tivesse explicado para ela que eu não gostava daquilo. Mas ela não consegui entender por que eu não gostava: “Sim, mas seu cabelo é diferente e as pessoas só estão curiosas!” Ela não entendia por que eu não gostava. (...) Eu nunca tocaria no cabelo de alguém daquela forma, do nada! Quero dizer... como alguém pode fazer isso? (KILOMBA, 2020, p. 121)

Aqui, se afirma que a mulher preta é “diferente”. Mas quem é diferente? Quem é diferente de quem? Uma pessoa apenas se torna diferente no momento em que dizem para ela que ela é diferente daquelas/es que têm o poder de se definir como “normal”. A diferença é usada como uma marca para a invasão. Ser tocada, assim como ser interrogada, é uma experiência de invasão, uma violação. É possível que, ao se depararem com a leitura dessas vozes, parte dos leitores se questionem onde está o problema: não pode mais encostar? É de ouro agora? Isso porque, por anos, o racismo não foi visto nem refletido como problema teórico e prático significativo nos discursos acadêmicos, resultando em um déficit grandioso.

Portanto, mesmo uma produção escrita como essa, que expressa as agressões cotidianas experimentadas por mulheres negras, não se mostra suficiente para romper a estrutura colonial imposta. Transborda a emergência da escuta das pessoas que puderam vivenciar o amargo gosto de ter, em memória, episódios semelhantes, nos múltiplos sentidos do ouvir, no entrelaçar das escrevivências.

NARRATIVAS OUTRAS, MAS TAMBÉM NOSSAS

Me chame de Îs. Minha idade é trinta. Sou nascida em Belo Horizonte, mas venho de Santa Luzia, Minas Gerais. Atualmente, estou professora de yoga, hatta yoga, yoga sankofa, estudante de Pedagogia e pesquisadora da diáspora. (Narrativa de Îs)

Iniciamos aqui as conversas com três mulheres pretas que já atravessaram nossas trajetórias em outros momentos e que transbordam nas palavras seus enfrentamentos cotidianos. Os nomes adotados neste texto foram escolhidos pelas próprias mulheres. As conversas se deram de maneira remota, fazendo uso da plataforma meet entre agosto e dezembro de 2020. A escolha dessas mulheres se deu porque as conhecernos em outras vivências e esse fator trouxe o sentido que desejávamos alcançar: o nós compartilhado.

Apresentamos Îs, nome escolhido por ela para compartilhar suas histórias. Îs é uma mulher única. Nós somos mulheres únicas. Nós e Îs somos mulheres plurais. Possuímos narrativas outras, que também nossas. Identificação. Por isso, decidimos convidá-la para conversar nessa produção.

Sobre Pedagogia... talvez eu queira começar sobre esse lugar onde... esse lugar da professora, ele é um lugar que foi colocado. Ele já é um lugar que eu comprei esse roteiro. Um dos. Então, ele vai passar ali pela empregada doméstica que eu já fui, a cuidadora de criança que também já fui, então o terceiro seria a professora. Um lugar que ele já é posto. Mas também tem o lugar de passar a sabedoria, a oralidade, dos conhecimentos que a gente vai adquirindo, passando pra irmão, passando pra família. Então eu posso dizer que não era o lugar que eu queria ocupar porque também é o lugar que eu já estava ocupando. Mas de início não era. Eu queria fazer comunicação. É o que mais tem a ver comigo. Mas é isso, acabou sendo uma estratégia de mobilidade social para que eu possa conseguir desenvolver melhor isso. Então é um paradoxo, porque o meu eu mesma sempre ocupou esses lugares, mas não da forma que é estruturado dentro das formas do ocidente, que é muito violenta. Ela não te dá muita opção. São lugares que você tem que passar pra chegar em algum lugar. Então eu tenho a sensação gigantesca de que eu poderia estar em outros lugares, percorrido outros lugares em matéria, do que só esses que me são dados. Então não é um lugar que eu pensei ocupar. Eu pensei em ocupar outros lugares. Mas cheguei aqui com uma cota. (Narrativa de Îs)

A narrativa de Îs pode parecer, inicialmente, uma negação à docência. Mas quando mudamos o ângulo da lente, é possível perceber que o “não querer” a docência se apresenta como crítica à servidão. Quando Îs fala que o lugar da professora é um lugar que foi colocado, ela também aponta sua crítica à ideia do servir, de resolver situações não criadas por nós. A comparação do exercício da docência é feita com o cuidado dos irmãos mais novos que nós, mulheres negras, recebemos desde muito jovens enquanto uma condição/acordo social familiar. A isso podemos também associar o processo de responsabilização conferido à categoria docente pelo baixo desempenho (do que se entende por desempenho) escolar, como se o desenvolvimento e a aprendizagem se dessem exclusivamente pela atuação dos profissionais de educação dentro das salas de aulas. Novamente o “ter que” solucionar. O “ter que” é o servir. O não querer fazer, mas “ter que”. O histórico de luta e de resistência da comunidade docente por garantias de direitos e condições de trabalho mais justas, o enfrentamento com o Estado pela valorização da categoria, perpassa essa narrativa. É menos uma questão de não querer e mais uma questão de oposição à imposição.

Nós e Îs continuamos nossa conversa e caminhamos para a trajetória de maneira mais ampla, tratando da garantia e da negação de direitos. Mais uma vez, as palavras selecionadas por Îs foram ao mesmo tempo sutis e intensas.

Você pergunta se eu acho que na minha trajetória tive direitos negados, no caso ser mulher preta, pobre, da comunidade lgbt, então, é uma resposta que já está dada. Só não vê quem não tem consciência, ou na real, quem não quer usar a razão, que é tanto dita na academia para realmente adentrar a esses campos verídicos comprovados por datas, imagens no inconsciente de quem pratica. Então, eu acho que eles (direitos) me foram negados de todas as formas possíveis. Eu acho que o processo de enxergar, ele é doloroso. Acho que ele acontece quando você sai da sua redoma, quando você sai da sua comunidade, do seu quilombo, da sua família. Quando você ainda é pequeno, está vivenciando as coisas que estão dadas pra você na sociedade. Você vai seguindo, isso vai sendo incorporado na escola como camuflagem. Então, essa percepção é como o famoso doce na boca de criança, que você dá pra depois você descobrir que mais tarde estarão te tirando. (Narrativa de Îs)

O tal racismo velado é vivenciado todos os dias por nós quando ouvimos: “não fala assim! Você não é preta, você é morena!” Isso é racismo quando, sendo preta, você se torna uma pessoa inferior a quem tenta te embranquecer, dizendo que você não é.

Até então a gente tem a ingenuidade de achar que: “ah, talvez, não tenha sido por querer”. Isso a gente vai camuflando pra se autodefender também daquele rolê, que parece que tá acontecendo alguma coisa, mas não é bem isso que tá acontecendo, né? Mas você vai empurrando com a barriga. É isso aí, enfim, pode ser uma estratégia... tô refletindo enquanto respondo também. (Narrativa de Îs)

Seguimos nosso caminhar por esse nós compartilhado ouvindo Carolina (nome escolhido por ela para esta produção).

Me chame de Carolina. Eu tenho 21 anos. Sou do Rio de Janeiro, eu sou trancista e circense. Então, eu nunca pensei na minha vida em ser trancista e muito menos circense. Eu sempre quis muito ser estilista. Eu me lembro que eu tinha uns cadernos de desenho e que eu gostava muito de desenhar. Ser estilista é uma coisa que eu trago desde criança, desde o ensino fundamental. As memórias que eu tenho, eu lembro que eu ficava desenhando no pátio da escola. Mas a trança, eu tive esse encontro com a trança uma vez que uma prima minha, ela sempre fez nagô, essas coisas, sendo que eu nunca tinha parado pra analisar. Eu era bem nova. Aí teve uma vez que ela pegou pra fazer em mim. Aí, eu fiquei prestando atenção em como ela fazia, o jeito que ela fazia, sabe? Aí quando eu cheguei em casa, eu perguntei a minha mãe como ela fazia e o por quê. A minha mãe tinha umas coisas que sabia. Outras coisas ela pesquisou pra me falar. Enquanto ela foi falando, eu fui me achando naquilo, porque é muito isso: a gente se encontra. Porque não é só um penteado. É uma mensagem que estamos passando. (Narrativa de Carolina)

Retomando a discussão sobre o cabelo das mulheres pretas, ao mesmo tempo que a invasão através do toque no que é “diferente” ou a imposição do alisamento demarca o processo de colonialidade, acessar as narrativas ancestrais da população preta acentua a importância dos cabelos na constituição de um cosmopolitismo capaz de enfrentar a perspectiva colonial.

Historicamente, o cabelo único das pessoas negras foi desvalorizado como o mais visível estigma de negritude e usado para justificar a subordinação de africanas e africanos. Mais do que a cor de pele, o cabelo tornou-se eu mais a mais poderosa marca de servidão durante o período da escravidão. Uma vez escravizadas/os a cor da pele de africanas/os passou a ser tolerada pelos senhores brancos, mas o cabelo não, que acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização. O cabelo africano foi então classificado como “cabelo ruim”. Ao mesmo tempo, negros e negras foram pressionadas/os a alisar o “cabelo ruim” com produtos químicos apropriados desenvolvidos por indústrias europeias. (KILOMBA, 2020, p. 126-127)

Perguntas recorrentes relacionadas à higiene dos cabelos de pretos, não por cor, mas por etnia, jamais foram questionadas se tratando de cabelos de brancos. É verdade que trança é o referencial de cabelo de preto caído e não para o alto. Ainda assim, a trança não é só o penteado. Encantar-se pela cultura da sua origem também é algo construído. Tudo que é de preto se convencionou ser apresentado como algo ruim, demoníaco, marginal e tantos outros adjetivos que poderíamos citar. Entender-se como preto e preta na sociedade brasileira, sociedade esta que a todo momento mina a tentativa de ascensão do povo preto, é militância, é resistência, é entendimento. É conhecimento: de si e do outro.

Mais uma vez, como nas redes tecidas a partir do entrelaçar dos fios, trazemos os entrelaçamentos que o trabalho com as narrativas nos possibilita. E assim, apresentamos a terceira mulher preta desta pesquisa que escolheu ser chamada de Monã.

Me chame de Monã, sou animadora cultural e professora de dança Afrô. Certa vez, minha mãe foi chamada para dar aula de corte e costura, mas se inscreveu na Dança Afrô. Achei um absurdo porque a pessoa não tinha coordenação motora, gente! Eu nem sabia dar esse nome, mas eu sabia que ela não tinha jeito. O que é ter jeito, né, mas tinha esse julgamento. E aí eu falei: Mãe, a senhora se inscreveu pra Dança Afrô? Eu nem sabia o que era Afrô, mas falou “dança”, eu já achava um absurdo. E aí ela: Sim! Eu falei: mas a senhora não sabe dançar! E ela: ué? Mas eu vou dançar! Eu vou aprender! Vou ser a primeira bailarina! Eu: de trás pra frente, né? E ela: vai lá ver! Eu vou arrasar! E assim fomos eu e Vânia assistir. Vânia é treze anos mais nova que eu. Fomos assistir. Chegamos lá. Dito e feito! Todo mundo indo pra direita, a criatura indo pra esquerda sozinha e com movimentos criados por ela, solo! E a gente rindo. E ela fazendo a linda e maravilhosa no carão. Carão ela tinha. Fez o primeiro, fez o segundo e eu tô rindo. No terceiro, ela já passou e falou assim: eu pelo menos tô fazendo! Não tô sentada aí rindo dos outros. Levantei na hora. Começamos a dançar. Fiz um movimento com ela, fiz o segundo, tô procurando minha mãe. Cadê minha mãe? Minha mãe meteu o pé. Meteu o pé! Quando eu olho assim, tá ela indo embora. Mas aí também não consegui sair da aula. E isso já tem uns 30 anos. (Narrativa de Monã)

A narrativa continua agora debatendo o protagonismo preto dentro das construções fictícias das grandes mídias e emissoras. Sabemos que no mundo das artes, assim como nas universidades, na implementação de políticas afirmativas, não tem sido diferente.

Tem uma coisa dentro do mercado atual, que não é uma roda nova, mas também é uma nova roda. Dentro dessa nova roda tem uma estrutura de mídia muito importante para o povo preto, que pode não tá dentro do horário nobre de umas emissoras que não vou citar nome pra não dar prestígio a quem não me prestigia. Embora, tu sabe que eu faço meus trabalhinhos por lá! Mas é isso: eu sei até onde eu vou. Meu cachê chegou, tá massa! Mas, mesmo essa emissora, por que agora não abre mais protagonismo? É porque ela não quer estar fora dessa organização. (Narrativa de Monã)

Mais uma vez, ratificamos o mercado escasso com o qual a população marginalizada se depara há séculos. O racismo é tão naturalizado, como já dito, que a justificativa de incompreensão ou de inocência, de não intencionalidade, atravessa o discurso frequente de quem o comete. E sob alegação de que não são racistas, quem o comete incorpora elementos culturais do povo preto em seu uso e consumo, como uma alegoria. A divulgação de produtos que trazem as marcas da cultura negra cresce por tendências. O consumo desses produtos gera capital econômico para as grandes instituições e, de certa forma, a sensação de dívida paga para alguns segmentos. O problema é que, como toda tendência, em algum momento essas produções serão esmagadas, não por acaso, por outros produtos que impõem o modo de ser, de estar, de viver e de ser aceito pela branquitude5. Isso porque a produção negra não é uma regra. A ela cabe a tentativa de estabilidade dentro de um grande mercado, que é construído sobre a estrutura do racismo. Isso faz com que os artistas pretos enfrentem a desigualdade nas oportunidades e a baixa remuneração no exercício dos mesmos ofícios que a população não preta. A tensão também é produto da tendência atual. Há uma vigilância da branquitude sobre a possibilidade de ser lida pela sociedade como racista, mas não há preocupação de efetivamente não ser racista. Ser entendido como racista implica na repercussão que isso pode produzir. Afinal, como Almeida (2020) nos explica, as manifestações de racismo passíveis de punição são apenas as que se enquadram na concepção individualista, em que o racismo pode ser personificado.

Monã contou sobre um dos muitos episódios de racismo pelos quais passou. Ela narrou estar em uma loja à procura de um borrifador para colocar álcool e usar no dia a dia. Ao conversar com um amigo que a acompanhou, próximos ao balcão, uma mulher branca lhes perguntou se precisavam de ajuda.

Tanta gente na loja. Por que ela não tá perguntando para essas pessoas se querem ajuda? Somos dois pretos e entramos na loja, né? Ainda bem que não tinha nessa loja o que a gente queria. Quando a gente atravessou a rua, tinha um moleque preto vendendo borrifador numa barraca. Olha, isso é axé! Compramos logo dois. Falei para ele: sabe por que a gente tá comprando aqui? Não é porque é mais barato, não! A gente tá comprando aqui porque você é preto.

Algumas pessoas têm o direito de escolha, de gostos, de preferências. Para outras, cabe o que lhes é permitido. No caso de Monã, aparentemente ela escolheu comprar seu utensílio fora da loja. Não foi escolha. Ela não foi bem-vinda na loja onde tentou comprar o produto. Uma sociedade atravessada pela estrutura do racismo terá sempre muito o que se modificar. Uma sociedade onde se naturaliza a perseguição do povo preto nas lojas tem muito o que mudar. Uma sociedade onde não se vê o povo preto na televisão tem muito o que mudar. Uma sociedade que justifica o discurso do racismo como liberdade de expressão tem muito o que avançar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CAMINHO DAS PEDRAS

Apesar de tantos indicadores acerca do racismo arrolados no corpo do texto, de modo algum a pretensão desta pesquisa foi reforçar concepções relacionadas à predisposição de sujeitos pretos ao fracasso. O que pode ser levado em consideração são as práticas sociais de acordo com os marcadores sociais e individuais de cada sujeito. Ainda assim, possuímos nossas táticas emancipatórias. Certeau (1994) explica que é a relação social que determina o indivíduo, e percebe a individualidade como local onde se organiza a pluralidade de vivências sociais. Segundo ele, é possível compreender indivíduo a partir de suas práticas sociais.

Îs, que já foi empregada doméstica, que já foi cuidadora de crianças, transformou um ambiente que tinha tudo para não promover sua saúde mental, em tranquilidade para seguir em frente na sua vida acadêmica: um espaçotempo onde não havia familiares ou conhecidos. Também passou pelo processo de vender guloseimas na universidade e utilizou sua conexão com a ancestralidade e os saberes já trazidos na bagagem, para caminhar rumo à autonomia, ministrando suas aulas de yoga para comunidades diversas.

Carolina, por sua vez, foi até sua mãe para saber mais sobre uma cultura que é sua e que, outrora, lhe foi usurpada. Se aperfeiçoou no conhecimento das trancistas. O que antes, para ela, era apenas um penteado, hoje se tornou fonte de saber sobre o qual ela é referência em todo o município do Rio de Janeiro. O conhecimento de sua cultura, neste caso, se tornou base de autonomia e de independência econômica.

Monã se aperfeiçoou em suas aulas de dança oferecidas para comunidade até começar a ministrar suas próprias aulas de Teatro e Dança Afrô para essa mesma comunidade e também outras. Atualmente, ela trabalha em produções eventuais para a grande mídia, mas esse não é o foco do seu trabalho, nem sua principal fonte de renda. Foi o saber de sua comunidade que a fez artista e educadora.

Como essas mulheres, temos tantas outras e outros. As/os costureiras/os, que se arriscam desde bainhas de calças a tapetes de fuxicos. Os vendedores, que carregam o isopor com água, refrigerante, cerveja, sacolé, com a corda envolta por toalha, para evitar o corte no ombro, andando de um ponto a outro nas praias, no trem e no metrô. O que vende mesmo é a lábia desses trabalhadores. O preparar do discurso, o preparo das palavras-chaves que despertem o interesse da clientela, isso é saber subalternizado.

O pedreiro que, por vezes, pode não teve a possibilidade de acessar os saberes escolares da matemática, da química, da física. Fala de prumo, régua e utiliza todas essas matérias no processo de construção de seu trabalho. No fim, as paredes ficam alinhadas, o que não aconteceria caso nós, lidas pela sociedade como possuindo conhecimento superior devido ao ambiente acadêmico que estamos frequentando, não teria tal habilidade ou competência.

Assim se dá o entendimento do “nós” como fonte de pesquisa. E se nos constituímos também do outro, não apenas do “eu”, mas do nosso semelhante, do que nos é familiar, compreendemos esse “nós compartilhado” como fonte rica de contribuição que poderá ampliar nossas possibilidades epistemológicas, afinal, todo conhecimento é autoconhecimento.

Assim, com pesquisadoras praticantes que somos, pensamos na alternativa de caminharmos com incertezas. Com dúvidas e erros, mas com disposição e estudos ante ao enfrentamento desta estrutura. Sim, é cansativo! Nós também não aguentamos mais enfrentar, e enfrentar, e não descansar. Mas, infelizmente, somos convocadas/os/es para essa guerra que não inventamos, não defendemos, mas que enfrentamos dia após dia.

1Aprendemos com ALVES & OLIVEIRA (2008) que a junção de termos e a sua inversão, em alguns casos, quanto ao modo como são “normalmente” enunciados, tem sido uma forma de mostrar os limites para as pesquisas com os cotidianos, do modo dicotomizado criado pela ciência moderna para analisar a sociedade.

2Neologismo adotado por OLIVEIRA (2012) enquanto escolha epistemológica para referir-se aos praticantes como criadores na vida cotidiana.

3Expressão popular, oriunda da periferia, que se refere às atividades, geralmente informais, para se adquirir insumos financeiros.

4Segundo Santos (2007), o cosmopolitismo subalterno consiste numa “amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido tanto no que respeita à compreensão como à transformação do mundo”(p. 50-51)

5Compreendemos como branquitude o processo pelo qual nós, pessoas pretas, nos tornamos a representação mental daquilo com o que o sujeito branco não quer se parecer. Para nós, a branquitude é uma identidade dependente que existe através da exploração do negro; uma identidade relacional construída por brancos, que define a eles mesmos como racialmente diferentes dos pretos.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Novembro de 2021

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