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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61610 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

CURRÍCULO E CULTURAS: a Educação Antirracista como direito humano

CURRICULUM AND CULTURES: Anti-Racist Education as a Human Right

CURRÍCULO Y CULTURAS: la Educación Antirracista como derecho humano

Márcia Maria Rodrigues Uchôa1 
http://orcid.org/0000-0003-0939-5646; lattes: 2457454652097563

Carlos Alberto Paraguassú Chaves2 
http://orcid.org/0000-0002-7479-0610; lattes: 2978339514056200

Carlos Eugênio Pereira3 
lattes: 7454868865298477

1PUC-SP E-mail: profa.uchoa@gmail.com

2Instituto Universitário do Rio de Janeiro - IURJ E-mail: carlos.paraguassu@gmail.com

3Instituto Universitário do Rio de Janeiro - IURJ E-mail: carloseugenioadv@yahoo.com.br


Resumo

Nosso objetivo, no presente texto, é apresentar algumas considerações acerca da implementação de uma Educação Antirracista, entendida como um direito humano, a partir de um currículo que reconheça e valorize as diversas culturas que permeiam o contexto escolar e promova um diálogo intercultural, dando vozes, sobretudo, às culturas da população negra, historicamente negadas e marginalizadas pelo processo de colonização. Trata-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico, com aporte teórico em Freire (1987), Cavalleiro (2001, 2005), Candau (2013, 2016), Almeida (2020), Gomes (2010, 2013), dentre outros. A Educação Antirracista, mediada por um currículo pautado na interculturalidade, problematiza as causas do racismo, busca a sua superação através de práticas de diálogo e intercâmbio cultural, visando a promoção da equidade social, o empoderamento das culturas da população negra e a valorização da dignidade humana.

Palavras-chave: currículo; interculturalidade; educação antirracista; diferenças

Abstract

Our objective in this text is to present some considerations about the implementation of an Anti-Racist Education, understood as a human right, from a curriculum that recognizes and values the different cultures that permeate the school context and promotes an intercultural dialogue, giving voices above all to cultures of the black population, historically denied and marginalized by the colonization process. This is a bibliographic research, with theoretical support in Freire (1987), Cavalleiro (2001, 2005), Candau (2013, 2016), Almeida (2020), Gomes (2010, 2013), among others. Anti-racist Education mediated by a curriculum based on interculturality problematizes the causes of racism, seeks to overcome it through practices of dialogue and cultural exchange, aiming at promoting social equity, empowering the cultures of the black population and valuing human dignity.

Keywords: curriculum; interculturality; anti-racist education; differences

Resumen

Nuestro objetivo en este texto es presentar algunas consideraciones sobre la implementación de una Educación Antirracista, entendida como un derecho humano, desde un currículo que reconoce y valora las diferentes culturas que permean el contexto escolar y promueve el diálogo intercultural, dando voces sobre todo a las culturas de la población negra, históricamente negadas y marginadas por el proceso de colonización. Se trata de una investigación bibliográfica, con apoyo teórico en Freire (1987), Cavalleiro (2001, 2005), Candau (2013, 2016), Almeida (2020), Gomes (2010, 2013), entre otros. La Educación Antirracista mediada por un currículo basado en la interculturalidad problematiza las causas del racismo, busca superarlo a través de prácticas de diálogo e intercambio cultural, con el objetivo de promover la equidad social, empoderar las culturas de la población negra y valorar la dignidad humana.

Palabras clave: currículo; interculturalidad; educación antirracista; diferencias

INTRODUÇÃO

De acordo com o antropólogo estadunidense Clifford Geertz, é através dos “padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através dos quais ele vive” (2015, p. 150). Nesse sentido, estudar a cultura e os seus padrões acumulados constitui-se em mecanismo de orientação dos sujeitos para o convívio em um mundo que seria desconhecido.

Cultura, na acepção antropológica, designa todo conhecimento adquirido socialmente, aquele que o indivíduo obtém por pertencer a um determinado grupo, o que inclui o conjunto dos modos de vida, moral, tradição, crenças, valores etc. É a partir destes convívios que se forma o ser social, como membro da coletividade.

A partir destas considerações, entende-se que a valorização das culturas na escola passa a ser uma tarefa imprescindível, em vista do reconhecimento dos sujeitos no processo de ensino e aprendizagem e das relações entre as diferentes culturas que integram o contexto educacional.

Sendo a educação um processo eminentemente social, que visa o preparo dos sujeitos para o convívio em sociedade, para serem pessoas autônomas, capazes de tomar decisões e elaborar julgamentos sobre a sua conduta e a dos demais, a sua efetivação perpassa a construção de um currículo pautado em conteúdos culturais, que permitam aos sujeitos compreender o seu entorno social, dialogar com as diferenças e realizar intercâmbios culturais, considerando que na contemporaneidade, os espaços sociais e educacionais são marcados pelo multiculturalismo e hibridismo cultural.

Nosso objetivo, neste trabalho, é apresentar algumas ponderações acerca da importância do reconhecimento e da valorização das culturas no currículo escolar, sobretudo as culturas da população negra, as quais foram historicamente escravizadas e exploradas pelo processo de colonização, tendo em vista a implementação de uma Educação Antirracista, que possibilita a equidade social e o empoderamento das populações negras.

Nesse sentido, partimos dos fundamentos do currículo articulado às culturas e pautado na interculturalidade. Na seção seguinte, explicitamos as faces do racismo, contemplando o conceito e as suas manifestações na sociedade e no contexto escolar. Destacamos na sequência, as demandas para a implementação de uma Educação Antirracista, que converge na concretização de direitos humanos, ao valorizar a dignidade humana. Por fim, apresentamos as considerações finais acerca do tema em tela.

CURRÍCULO E CULTURAS: A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO

A cultura, ao ser um sistema simbólico de representação social, indispensável para a existência e sobrevivência humana, encontra-se inerentemente vinculada ao currículo, haja vista que a educação é, essencialmente, um processo de transmissão da cultura, concretizado pelas práticas curriculares.

Numa perspectiva antropológica, a educação é indissociavelmente a humanização e socialização, nesse sentido estes deveriam ser os fundamentos das propostas de currículo construídas pelas escolas. Freire (1987) discorre que toda ação educativa precede uma reflexão acerca do ser humano e suas condições culturais.

A nossa concepção de currículo compreende tudo aquilo que se relaciona com a produção do conhecimento, seguindo uma acepção freireana é a política, a teoria e a prática do “quefazer” na educação, entendimento que reconhece a vocação humana para o “ser mais”, como sujeito inconcluso, inacabado e histórico (FREIRE, 1987). Assim, uma concepção dinâmica de currículo que considera os sujeitos do processo educativo.

O currículo, sob uma perspectiva de interculturalidade, consiste em uma proposta direcionada para a construção de práticas sociais ligadas ao “estar com o Outro”, entendê-lo e produzir sentido conjuntamente, a partir de um diálogo fundamentado no conhecimento sobre o Outro, a sua cultura, história, língua e identidade.

Candau (2013) menciona que a perspectiva intercultural promove uma educação para o reconhecimento do “Outro” e para o diálogo entre os diferentes grupos socioculturais, ao tempo em que propicia uma negociação cultural. Todas estas questões favorecem o enfrentamento aos conflitos decorrentes do convívio com a diversidade, além de possibilitar a inclusão das diferenças nas práticas educacionais.

Torres Santomé (2013) contribui com o debate ao pontuar que o currículo deve ser construído com a presença de conteúdos antirracistas, antissexistas, ecológicos, dentre outros, os quais devem integrar o programa de todas as disciplinas, não ficando reduzido a temas esporádicos ou marginais, ou seja, desvelando uma tradição comum em nossa cultura, de reduzir questões pontuais e necessárias a dias especiais, como: o dia do índio, do folclore ou da consciência negra.

Uchôa (2019) destaca que o currículo pautado na interculturalidade culmina em uma educação que possibilita a libertação dos sujeitos, a partir de um pensamento crítico que questiona, problematiza e resiste às práticas monoculturais, presentes historicamente no contexto educacional, assim como resgata e desoculta os saberes das culturas negadas.

Essa construção, segundo a autora, tem como ponto de partida a intraculturalidade, isto é, o adentramento na própria cultura dos sujeitos, pelo conhecimento dos processos constitutivos culturais e a apropriação do arbitrário cultural, em vista da construção da identidade e o empoderamento dos sujeitos socioculturais.

O currículo nessa concepção objetiva o diálogo entre as diferentes culturas presentes no contexto escolar, um diálogo que não subordina e nem hierarquiza os saberes e implica o reconhecimento da incompletude cultural (FREIRE, 1987), ou seja, ao reconhecer que nenhuma cultura é completa e suficiente, o diálogo surge como uma estratégia de interação, conhecimento e aprendizagem mútua.

A relação intercultural construída no diálogo, exige a desconstrução de estigmas, marcas depreciativas que são erroneamente atribuídas aos grupos socioculturais, a partir de ideias preconcebidas, sem nenhum fundamento racional. Importa nesse contexto a desnaturalização dos preconceitos e discriminações (UCHÔA, 2019).

O currículo pautado na interculturalidade constitui-se em uma via para a construção de uma Educação Antirracista, uma vez que é fundamentado no diálogo crítico, sem a hierarquização e subordinação cultural, também reconhece e valoriza os conhecimentos e saberes constitutivos das culturas Outras, enquanto trata dos conflitos decorrentes do convívio com a pluralidade, além de propiciar o desenvolvimento de atitudes de respeito e empatia ao Outro e promover a libertação dos sujeitos discriminados e oprimidos.

Acerca do diálogo crítico Shor destaca que:

[...] Se os estudantes se envolvem uns com os outros em um diálogo crítico, encaro isso como um ato de mobilização, porque decidiram tornar-se seres humanos que investigam juntos sua própria realidade. [...] Se estudam seriamente o racismo, ou o sexismo, ou a corrida armamentista, percebo aí um ponto de partida da transformação que pode desenvolver-se, a longo prazo, em sua opção pela mudança social. [...] (FREIRE; SHOR, 1986, p. 28).

Os autores ressaltam, ainda, que a aprendizagem se dá na interação com o Outro, mediada pelo mundo. Assim, aprendemos com o Outro, pela escuta atenta e pela palavra pronunciada também ensinamos, conectando conhecimentos e saberes mutuamente, na convivência com o diferente e as diferenças.

A aprovação da Lei n.º 10.639/2003 no Brasil, posteriormente alterada pela Lei n.º 11.645/2008, que trata da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nos sistemas de ensino brasileiro, simbolizou um avanço para os estudos culturais na educação, pois deu visibilidade ao “Outro negro” e ao “Outro indígena”, pelo reconhecimento das suas histórias e contribuições para a formação social e cultural do nosso país.

Gomes (2013) enfatiza a legislação como uma política afirmativa, que visa a correção de desigualdades, a construção de oportunidades iguais para os grupos étnico-raciais historicamente excluídos, ao tempo em que valoriza a história, a cultura e a identidade dos seus sujeitos.

Por mais que saibamos, passados quase vinte anos da aprovação da legislação, as suas determinações ainda não foram plenamente efetivadas nas práticas curriculares. É preciso trabalhar de forma mais aprofundada a perspectiva intercultural no currículo, reconhecendo a sua importância para o estabelecimento de uma educação, que favorece a dialogicidade e possibilita a emancipação dos sujeitos.

AS FACES DO RACISMO

Conceito de Racismo e Raça

O conceito de racismo, remete-nos à compreensão do conceito de raça, que segundo o antropólogo Kabengele Munanga (2003) reporta-nos às ciências naturais, onde o termo foi usado primeiramente no campo da Zoologia e da Botânica, para classificar as espécies vegetais e animais.

Com o tempo o conceito passou por outros campos semânticos. Entretanto, no século XVIII, os filósofos iluministas contestam as designações do processo de evolução e recuperam o conceito das ciências naturais para nomear os outros indivíduos que integram a antiga humanidade, aqueles provenientes de raças diferentes, denotando a ideia de classificação.

[...] Os conceitos e as classificações servem de ferramentas para operacionalizar o pensamento. É neste sentido que o conceito de raça e a classificação da diversidade humana em raças teriam servido. Infelizmente, desembocaram numa operação de hierarquização que pavimentou o caminho do racialismo [...] (MUNANGA, 2003, p. 2).

Ainda de acordo com o antropólogo, na atualidade o conceito de raça nada tem de biológico, mas está impregnado por uma conotação ideológica, e como tal, traz implícita a relação de poder e de dominação. E muito embora a biologia concorde com a inexistência científica de raça, o uso do conceito permanece como realidade social e política, considerando a raça como uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão.

No que diz respeito ao conceito de racismo, o filósofo e advogado Silvio Almeida (2020, p. 32) afirma: “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.

O autor destaca também que o racismo se articula com a segregação racial, com a divisão da sociedade em raças, em localidades específicas ou `a definição de espaços comerciais ou públicos, a partir dos membros exclusivos de grupos raciais que os frequentam, a exemplo do regime segregacionista nos Estados Unidos e do apartheid na África do Sul.

As manifestações do racismo na sociedade e na escola brasileira

Na sociedade brasileira, o racismo manifesta-se, de acordo com Cavalleiro (2005) a partir de uma lógica de segregação amparada em preconceitos e discriminações raciais que se reverberam nas diversas instituições sociais, dentre elas: escola, igrejas, meios de comunicação, sobretudo na família.

Tal prática, além de se constituir em uma violação individual, remete em termos coletivos, ao cotidiano da população negra, que encontra na cor, a explicitação da desigualdade. “Mesmo considerando as mudanças sociais ocorridas no decorrer do século XX, a situação da população negra brasileira permanece pouco alterada, sendo reproduzido um quadro de condição social aviltante e degradada em função do racismo contra esse grupo humano” (CAVALLEIRO, 2005, p. 66).

Os desdobramentos da desigualdade entre pessoas brancas e negras no país são evidenciados em diversos setores: na economia, no acesso à educação, à saúde e à moradia e na exposição à violência.

Almeida (2020) reforça a questão ao enfatizar que o racismo é estrutural na sociedade brasileira e integra a organização econômica e política da sociedade, o que reflete no cotidiano e nas relações interpessoais. É ele quem fornece o sentido e a lógica para a reprodução das desigualdades e da violência.

O racismo estrutural resulta da relação entre racismo e economia. Sob uma concepção marxista são as lutas de classe o motor da história e são as condições materiais dos sujeitos que determinam os demais aspectos de suas vidas, ou seja, os resultados da economia afetam diretamente a vida humana, daí a razão de ser estrutural (ALMEIDA, 2020).

Gomes (2010) evidencia que apesar das lutas do movimento negro e de outros setores da sociedade, o racismo no Brasil ainda é uma realidade e possui uma ambiguidade no seu modus operandi que contribui para a sua manutenção. De um lado, há o mito da democracia racial no país, apoiado na narrativa de que após o longo processo de escravidão, estabeleceu-se uma relação harmoniosa entre os diferentes grupos étnico-raciais, desviando o foco da desigualdade racial e as consequências para as populações negras. É o racismo que opera pela negação e dissimulação.

A invisibilidade das populações negras, sobretudo, em cargos de comando e de prestígio social é um modo explícito de racismo na sociedade brasileira, a qual é constituída majoritariamente por pessoas negras (o que inclui pretas e pardas). A esse respeito, Paixão (2006, p. 21-22 apud GOMES, 2010, p. 101) destaca:

São os negros (pretos e pardos) os que formam a maioria daquela população hoje privada do acesso aos serviços públicos e aos empregos de melhor qualidade, os que sofrem com mais intensidade o drama da pobreza e da indigência, e a violência urbana, doméstica e policial. O racismo, tal como praticado no Brasil, tende a considerar tais aspectos de realidades normais, desde que envolvam primordialmente a população afro-descendente. O modelo brasileiro de relações raciais consagra e eterniza as disparidades entre brancos, negros e indígenas em nosso país.

Nesse sentido, há que desmitificar o mito da democracia racial no nosso país, revelando os conflitos e as consequências das desigualdades decorrentes do racismo em nossa sociedade, sobretudo da violência a que as populações negras são submetidas, ou seja, é preciso desocultar e reconhecer o racismo como uma realidade, para poder combatê-lo e lutar contra tudo o que ele produz, desigualdade, humilhação e violência.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou, no ano de 2018, dados que reverberam a desigualdade racial no país e a manifestação do racismo na sociedade, conforme observa-se no Gráfico 1.

Fonte: Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21206-ibge-mostra-as-cores-da-desigualdade. Acesso em: 16 ago. 2019.

Gráfico 1 IBGE mostra as cores da desigualdade 

De acordo com o gráfico, fica patente a desigualdade racial no país, com desdobramentos na economia (maior taxa de desemprego é entre a população negra, menores rendimentos também e o trabalho infantil se acentua entre as crianças negras) e na educação, que registra a maior taxa de analfabetismo entre a população negra.

O Atlas da Violência 2020, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), enfatiza a violência contra as pessoas negras, como uma das principais expressões das desigualdades raciais existentes no país, de modo que os índices de letalidade na população negra são muito superiores aos cometidos contra a população não negra, o que se confirma no Gráfico 2.

Fonte: Ipea (2020, p. 48).

Gráfico 2 Violência contra os negros 

Nota-se que a taxa de homicídios de negros em 2018 foi de 37,8%, enquanto para as pessoas não negras foi inferior, totalizando 13,9%, além disso a pesquisa revelou que em quase todos os estados do Brasil, um negro tem mais chances de ser morto do que um não negro, com a exceção do estado do Paraná, que em 2018 apresentou uma taxa de homicídios de não negros superior à de negros.

Os dados do IBGE e os índices divulgados pelo Ipea explicitam de modo contundente o racismo na sociedade brasileira e os seus desdobramentos para a população negra, que reverbera nas instituições educacionais, consequentemente nas práticas escolares.

Acerca do racismo social que culmina na escola, Cidinha Silva (2001, p. 67-68) destaca:

[...] 1. para todas as séries do 1º grau o aluno negro apresenta índices de exclusão e repetência superiores ao aluno branco e vê-se excluído mais cedo do sistema de ensino; 2. os estudantes negros apresentam número maior de saídas do sistema escolar e voltas, sugerindo esta sinuosidade a dificuldade de interação entre o sistema escolar e o aluno negro, mas também a persistência deste segmento racial, tentando apesar das dificuldades manter-se na escola; 3. a porcentagem de negros sem atraso escolar é menor que a de brancos; 4. problemas intra-escolares são mais significativos na análise das freqüentes interrupções temporárias ou definitivas dos alunos negros para trabalharem (grifos nossos).

Ou seja, os índices de exclusão e repetência, a evasão e o atraso escolar e os problemas intraescolares são mais frequentes entre os alunos negros, o que demonstra que o racismo e a desigualdade racial que operam na sociedade, reverberam também na escola, instituição social que tem o dever de desconstruir essas realidades, contribuindo para a equidade social.

A educação é um direito social em nosso país, garantido na Constituição Federal de 1988, assim sendo tem o dever que responder às demandas que imperam na sociedade e que geram injustiças e desigualdades. A Educação Antirracista, além de ser um direito social, constitui-se em um direito humano, e assumi-la como tal significa afirmá-la como uma necessidade inerente, sobretudo aos sujeitos vitimados e oprimidos pelo racismo estrutural que se naturaliza nos cotidianos da nossa sociedade e que gera desigualdades, humilhações e violências aos sujeitos das culturas da população negra.

Ana Canen corrobora com a discussão ao enfatizar que “o currículo desafiador da xenofobia poderia se beneficiar de uma perspectiva multicultural pós-colonial e de estudos sobre a branquidade que vão além do reconhecimento da diversidade cultural, incorporando discursos que desafiam narrativas excludentes” (2014, p. 91).

Nesse sentido, evoca-se a ativista estadunidense Angela Davis e sua famosa inscrição “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, o que significa que a desconstrução do racismo precede ações antirracistas, construídas pela educação, tendo a escola, como espaço privilegiado para a sua efetivação e o currículo como o campo da sua materialização.

DEMANDAS DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

A epígrafe da filósofa e ativista estadunidense Angela Davis, convoca-nos a refletir acerca da realidade brasileira, impregnada por um racismo estrutural, que se naturaliza nos cotidianos, e, por assim o ser, muitas vezes, não é percebido por quem o pratica.

Cavalleiro (2001) destaca que a superação do racismo passa pelo seu reconhecimento, com ênfase para suas consequências e na busca da equidade social. A autora enfatiza que a construção de uma Educação Antirracista requer ações, tais como:

  • Problematizar as representações das imagens negras nos livros didáticos, questionando o modelo de beleza predominante ou a ausência das crianças negras nos livros. Os modelos impostos produzem estigmas indeléveis, a superioridade branca e a negação das identidades negras;

  • A linguagem usada pelo professor pode servir para a manutenção ou para a superação do preconceito racial, partindo das diferenças com positividade;

  • Acolhimento às crianças vítimas do preconceito e atitude no combate ao racismo;

  • Tratamento com igualdade às crianças brancas e negras, sem exaltar afeto maior às brancas, como comumente ocorre. A construção de uma identidade positiva dependerá do modo como a crianças negra é tratada;

  • Reconhecer a escola como um espaço potente para a construção de atitudes respeitosas;

  • Melhorar a qualidade do ensino e preparar os educandos para a prática da cidadania;

  • Erradicação do preconceito;

  • Reconquista da identidade positiva.

É necessário reconhecer que a escola é responsável pela manutenção do status quo discriminador ou pode ser uma instituição poderosa para a transformação dos processos de discriminação e exclusão. Para isso, precisa promover espaços de cidadania, vivências e diálogos entre os diferentes e as diferenças.

Além das questões pontuadas por Cavalleiro (2001), explicitamos, na Figura 1 a seguir, algumas ações para a implementação de uma Educação Antirracista.

Fonte: Construção dos autores (2021).

Imagem 1 Demandas de uma Educação Antirracista 

A Educação Antirracista supõe um conjunto de ações interligadas e articuladas para a sua implementação. Ela requer o reconhecimento do racismo, desvelando o mito da democracia racial existente no nosso país e problematiza a invisibilidade das populações negras e os seus papéis sociais, como enfatizado por Gomes (2010).

A Educação Antirracista exige a desconstrução dos preconceitos e dos estereótipos pela desconstrução das histórias heroicas presentes nas narrativas e pela produção de imaginários antirracistas através das literaturas negras. A literatura tem a função da denúncia, mas também do anúncio que é fundamental para a construção de imaginários.

Ela implica a intraculturalidade, isto é, o conhecimento dos processos constitutivos culturais e a apropriação do arbitrário cultural, em vista do empoderamento e construção de identidades socioculturais.

A Educação Antirracista ressignifica a diferença, superando a ideologia da negatividade e atribuindo um valor positivo, entendendo-a como riqueza cultural. A esse respeito, Romão (2001) destaca que a baixa autoestima entre as crianças negras não é inata, decorre das relações históricas e sociais.

Tem como demanda uma formação docente que instrumentalize os professores e demais profissionais da educação para combater o racismo, através da problematização das suas causas, superando discursos comumente presentes pautados no mito da democracia racial ou em convicções religiosas e/ou morais.

A Educação Antirracista pressupõe um currículo escolar numa perspectiva de interculturalidade, que parte do diálogo entre os sujeitos culturais, sem a subordinação e hierarquização das culturas historicamente negadas, um diálogo horizontal pautado no amor e no respeito ao outro (FREIRE, 1987).

Ela possibilita a equidade social e o empoderamento das pessoas negras, pela construção de um pensar crítico que questiona as práticas monoculturais que culminaram historicamente na construção de currículos monoculturais e eurocêntricos que privilegiaram a cultura branca, ao tempo em que concretiza a efetivação de direitos humanos, pela valorização da dignidade humana.

A afirmação da diferença como riqueza e o diálogo entre os diferentes sujeitos são condições precípuas para uma verdadeira Educação Antirracista, que tem como diretriz o estabelecimento de relações igualitárias, sem subordinação dos grupos socioculturais.

Realizar uma educação anti-racista é transformar o cotidiano escolar, fazendo, impreterivelmente, uma reflexão profunda sobre o que sentimos e como agimos diante da diversidade. Só o conhecimento dos nossos sentimentos e a elaboração de formas de lidar com a diversidade possibilitarão uma distribuição igualitária dos afetos e estímulos no espaço escolar [...] (CAVALLEIRO, 2001, p. 155).

Além das questões apontadas, faz-se necessária a compreensão de que a Educação Antirracista reconhece que os sujeitos não são iguais e as oportunidades também não o são, daí a importância da equidade social em uma sociedade desigual como a nossa, para que os sujeitos das culturas da população negra possam atuar com igualdade de condições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escola é, por excelência, o espaço da diversidade, sendo assim, cabe aos educadores considerar os alunos como sujeitos pertencentes a culturas coletivas e diversas. O respeito às diferenças é a primeira atitude que se espera de um educador comprometido com o combate ao racismo e com a construção de uma Educação Antirracista.

O pesquisador Paulo Sérgio Da Silva (2013, p. 239) pontua, em sua tese de doutorado, que:

[...] A efetiva implementação da Lei 10.639/03, irá ocorrer, de fato, a partir do momento em que as pessoas compreenderem, no contexto escolar e fora dele, a importância da erradicação do racismo do seio da nossa sociedade. A implementação da Lei 10.639/03 somente se efetivará, reafirmamos, na sua plenitude, no momento em que as diferenças étnicas deixarem de ser consideradas de modo vertical, em escala hierárquica.

Ou seja, as diferenças precisam ser ressignificadas no contexto escolar, sendo afirmadas com positividade e como características da nossa constituição enquanto povo brasileiro, que possui matrizes africanas, europeias e indígenas.

Importa ressaltar, nesse sentido, a importância do currículo pautado na interculturalidade, que tem como diretriz a diferença, concebida com positividade. Sob essa perspectiva, todos os sujeitos sentem-se valorizados por suas raízes culturais, consequentemente se apropriam das suas identidades culturais.

É imperioso destacar ainda, que quando a diferença é concebida como riqueza cultural, o diálogo entre os diferentes é fomentado pelo desejo recíproco do conhecimento, pela troca de saberes e converge no intercâmbio cultural, ferramenta de trocas e aprendizagens recíprocas. É na convivência democrática, que os sujeitos dialogam com seus parceiros e constroem a consciência crítica que lhes possibilitam transformar suas realidades e a sociedade.

O currículo, quando pensado e construído a partir das culturas dos sujeitos que permeiam o contexto escolar, valorizando, sobretudo, as culturas “outras”, aquelas que foram escravizadas, exploradas, expropriadas e negadas pelo processo de colonização, como as culturas da população negra, cumpre o seu papel social, garantindo a dignidade da pessoa humana.

Ademais, uma Educação Antirracista promove o pertencimento dos sujeitos negros: crianças, adolescentes e adultos que se sentem orgulhosos das suas matrizes ancestrais e reverberam na construção de suas identidades culturais.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Outubro de 2021

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