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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro out./dez 2021  Epub 18-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.64090 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

ESTADO DE EXCEÇÃO, ESTADO DE GUERRA: os impactos da ascensão conservadora e da pandemia numa escola socioeducativa em contexto de privação de liberdade

STATE OF EXCEPTION, STATE OF WAR: the impacts of the conservative rise and the pandemic in a socio-educational school in a context of deprivation of liberty

ESTADO DE EXCEPCIÓN, ESTADO DE GUERRA: los impactos del ascenso conservador y la pandemia en una escuela socioeducativa en un contexto de privación de libertad

Fábio de Barros Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-6917-4469; lattes: 3743384856388291

1Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá. Pós-doutorando do PPGCIS/PUC-Rio Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Professor da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro E-mail: fabiojgk@hotmail.com


Resumo

Esse artigo decorre de pesquisa em andamento realizada no interior do sistema socioeducativo, a partir da inserção do autor como professor de sociologia de uma escola pública estadual, situada dentro de uma unidade de privação de liberdade do Departamento de Gestão Socioeducativa do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE/RJ). A abordagem à realidade investigada é feita a partir de premissas teórico-metodológicas afins ao campo do cotidiano escolar. A pesquisa pretende dialogar com ações, intervenções e iniciativas político-pedagógicas presentes no currículo da escola, que possam propiciar a transição de um contexto de exclusão e violação de direitos a outro que os garanta. As atividades de pesquisa vêm sendo realizadas ao longo do período da pandemia em que o trabalho presencial dos professores foi suspenso em uma primeira etapa e tornado híbrido em outra. Os dados parciais revelam crescimento muito significativo da exclusão e da violação a direitos sociais e políticos dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, atribuídas hipoteticamente ao esvaziamento da escola como espaço de garantia de direitos, por um período, e do recrudescimento de valores e políticas repressivas e punitivistas dentro e fora da instituição.

Palavras-chave: educação e direitos humanos; socioeducação; privação de liberdade

Abstract

This article approaches from an ongoing research carried out within the socio-educational system, based on the author's insertion as a sociology teacher at a state public school, located within a deprivation of liberty unit of Department of Socio-Educational Management of the State from Rio de Janeiro (DEGASE/RJ). The approach to the investigated reality is based on theoretical-methodological assumptions related to the field of everyday school life. The research intends to dialogue with actions, interventions and political-pedagogical initiatives present in the school curriculum, which can provide the transition from a context of exclusion and violation of rights to one that guarantees them. Research activities have been carried out throughout the period of the pandemic, in which the face-to-face work of teachers was suspended in a first stage and hybridized in another. Partial data reveal a very significant increase in the exclusion and violation of social and political rights of adolescentes, hypothetically attributed to the emptying of the school as a space to guarantee rights, for a period, and to the spreading of repressive and punitiveness values policies inside and outside the institution.

Keywords: education and human rights; socio-education; deprivation of liberty

Resumen

Este artículo surge de una investigación en curso realizada dentro del sistema socioeducativo, basada en la inserción del autor como docente de sociología en una escuela pública estatal, ubicada dentro de una unidad de privación de libertad de Departamento de Gestión Socioeducativa de el Estado de Rio de Janeiro (DEGASE/RJ). El acercamiento a la realidad investigada se basa en supuestos teórico-metodológicos relacionados con el campo de la vida escolar cotidiana. La investigación pretende dialogar con acciones, intervenciones e iniciativas político-pedagógicas presentes en el currículo escolar, que puedan brindar la transición de un contexto de exclusión y vulneración de derechos a otro que los garantice. Las actividades de investigación se han realizado durante todo el período de la pandemia, en el que el trabajo presencial de los docentes se suspendió en una primera etapa y se hibridó en otra. Datos parciales revelan un incremento muy significativo de la exclusión y vulneración de los derechos sociales y políticos de los adolescentes en el cumplimiento de medidas socioeducativas, hipotéticamente atribuidas al vaciamiento de la escuela como espacio de garantía de derechos, por un período, y al resurgimiento de valores y políticas represivas y punitivas dentro y fuera de la institución.

Palabras clave: educación y derechos humanos; socioeducación; privación de libertad

INTRODUÇÃO

O alfa e ômega da teoria política é o problema do poder: como o poder é adquirido, como é conservado e perdido, como é exercido, como é defendido e como é possível defender-se contra ele. (BOBBIO)

Esse artigo decorre de pesquisa em andamento, realizada no interior do sistema socioeducativo, a partir da minha inserção como professor de sociologia de uma escola pública estadual, situada dentro de uma unidade de privação de liberdade do Departamento de Gestão Socioeducativa do estado do Rio de Janeiro (DEGASE/RJ), no complexo da Ilha do Governador. Por inserção quero me referir a modalidade de pesquisa em que há imersão cotidiana na realidade investigada, na qual se pretende um mergulho no campo de pesquisas:

Que seja capaz de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referências de sons, sendo capaz de engolir sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando as coisas e as pessoas e me deixando tocar por elas, cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário. Com todos esses fatos anotados e organizados, percebo que só é possível analisar e começar a entender o cotidiano escolar em suas lógicas, através de um grande mergulho na realidade cotidiana da escola e nunca exercitando o tal olhar distante e neutro que me ensinaram e que aprendi a usar. (ALVES, 2008, p. 19)

Afastando-me da neutralidade e do olhar distanciado, invisto na compreensão teórico-metodológica em que ser membro da comunidade em estudo propicia vantagens ao pesquisador. Seja por ter acesso a informações em primeira mão, seja pela posição privilegiada de compartilhar experiências, costumes e valores com os sujeitos pesquisados. De acordo com Geertz (2012, p. 11): “Por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura”. Ao tocar a realidade social em investigação, alinho-me com a sua conceituação de cultura e com as premissas de sua etnografia:

O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na superfície. (GEERTZ, 2012, p. 4).

A pesquisa encontra suas premissas político-epistemológicas no campo de estudos do cotidiano escolar (OLIVEIRA, ALVES, 2008). Nessa abordagem, ao imergir na realidade investigada, o pesquisador desenvolve seu trabalho de pesquisa em parceria com outros sujeitos, não fazendo pesquisa sobre eles. Ao investigar a própria realidade, busca compreendê-la e compreender-se nela, interagindo com os demais partícipes da pesquisa e do cotidiano pesquisado, produzindo conhecimentos que só são possíveis por meio desse tipo de pesquisa, da reflexão privilegiada sobre a realidade, conhecendo-a de dentro, em sua complexidade, com suas contradições e possibilidades. Propõe-se a refletir sobre e dialogar com o universo pesquisado a partir do que nele capta, sem desconsiderar nenhuma de suas dimensões, sem desarticulá-lo, pensando-o a partir do que entende que ele é e do que poderia vir a ser, jamais do que deveria ser.

A hipótese que tem inspirado a pesquisa sustenta que a despeito da existência de uma legislação avançada e de um gabaritado e combativo Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes1 (SGD) – as ações e iniciativas externas ao sistema socioeducativo, ao prescindirem do protagonismo dos jovens que cumprem medidas em privação de liberdade, por mais importantes que sejam, não são capazes de assegurar direitos. Sem a ativação da cidadania política desses jovens, a partir das experiências participativas e de formação, propiciadas principalmente pela escola estadual socioeducativa, não se acumulará a energia política suficiente para fazer frente ao estado de exceção em vigor nas unidades socioeducativas, que suspende direitos em nome da segurança do sistema e de uma política de confronto. Circunstâncias que foram radicalizadas ao longo da pandemia, promovendo ainda mais exclusão e violações.

Para pensar esse processo, tenho trazido às pesquisas sobre escola e democracia conceitos, métodos e problemas afins de um campo da ciência política conhecido como transitologia, ao considerar que há uma disputa no interior da unidade socioeducativa pesquisada, entre um campo autoritário e outro democrático, sobre o que é a socioeducação.

As transições se delimitam, de um lado, pelo início do processo de dissolução de um regime autoritário e, de outro pela investidura de alguma forma de democracia. [...] É característico de uma transição o fato de, durante o tempo do seu transcurso as regras do jogo político não se verem definidas. Estas regras encontram-se não apenas em permanente mudança como também sujeitas a árdua contestação: os atores lutam não só para satisfazer os seus interesses imediatos e/ou os interesses daqueles a quem se propõe representar, mas, também, pela definição de regras e procedimentos cuja configuração determinará prováveis vencedores e perdedores no futuro. (O’DONNELL, 1988, p. 22)

A pesquisa se propõe a reunir informações, experiências e reflexões político-pedagógicas que acrescentem aos estudos sobre os processos de transição política no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, em favor dos esforços de democratização institucional e da garantia dos direitos dos meninos e das meninas em privação de liberdade:

[...] proceder uma ampliação simbólica dos saberes, práticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre as quais é possível atuar para maximizar a probabilidade de esperança em relação a probabilidade de frustração. Tal ampliação simbólica é, no fundo, uma forma de imaginação sociológica e política que visa um duplo objetivo: por um lado, conhecer melhor as condições de possibilidade da esperança; por outro, definir princípios de ação que promovam a realização dessas condições. (SANTOS, 2008, p. 118)

A ESCOLA COMO PRISIONEIRA POLÍTICA

Encorajada pelas circunstâncias e restrições colocadas pela pandemia, a direção da unidade socioeducativa desfechou um duro golpe no espaço escolar. Tornou um espaço belíssimo, aberto, acolhedor, arejado, aprazível, cercado por lindos jardins, criadouros de animais, hortas e árvores antiguíssimas em uma cela de presídio. Encerrou-a em muros, grades e arames farpados. Transformou-a numa caixa de cimento e ferros. Cercou-a, vedando toda a visão do entorno e os acessos aos jardins. Todas as evidências levam a crer que se almejou bem mais do que a segurança ou a proteção de servidores ou internos, pois não foi medida isolada. Veio acompanhada de outras interferências autoritárias no funcionamento da escola. Com a intervenção se quis criar um símbolo! Não havia motivos para a medida. Segundo as professoras mais antigas, com mais de vinte anos de trabalho neste lugar, jamais um interno fugiu da unidade a partir da escola, em período de aula. A intenção política, indisfarçável, foi submeter a escola. Enquadrá-la. Demolir a sua autonomia político-pedagógica. Edificaram um marco arquitetônico, estético e doutrinário do poder do Degase-cadeia sobre Degase-escola. Com requinte autoritário, taparam com cimento os lindos cobogós que separavam alojamentos e salas de aula. A troco de nada, subtraíram a beleza e a sutileza desse fino recurso de iluminação e ventilação, deixando o ambiente mais irrespirável e ainda mais sombrio. Em suas escassas saídas das celas imundas e quase sempre superlotadas, que em eufemismo insultuoso são chamadas de alojamento, os alunos encontravam no formato anterior, um ambiente que os permitia respirar um ar diferente, espairecer, ter uma dose diária de beleza. Por um pouco, podiam esquecer de que estavam dentro de uma unidade “prisional”. Afora a truculência do ato, o que nos desola é que esta distração propiciava melhores condições ao trabalho pedagógico. Pois a leveza da arquitetura se somava ao acolhimento cuidadoso, ao trato fraterno e ao ensino com base em métodos lúdicos, típicos da dedicada equipe de profissionais que ali trabalham. Gente que toma como bandeira o firme propósito de não permitir que a escola em nada se confunda com a “cadeia”.

Voltar ao ensino presencial após um ano de afastamento e dar de cara com um monumento horrendo ao encarceramento em massa dentro da escola foi um golpe duríssimo. Encheu-nos de tristeza! E em muitos casos, de indignação também. Para além de tijolos e grades, há relações de poder que vão sendo construídas e demolidas ao calor de uma tensão permanente que expõe as tramas e os meandros da disputa inconciliável por projetos político-pedagógicos entre os adeptos da educação e os adeptos da segurança pública no interior do sistema.

Há uma grande inconstância nas posições de direção da unidade socioeducativa em estudo. Seus dirigentes são trocados com muita frequência. Seja por razões externas, como as frequentes substituições do diretor-geral da instituição pelo governador, seja por razões internas, com a intensa disputa entre grupos de servidores dentro da unidade. Não raro as motivações se misturam. No momento da “prisão da escola”, a maioria da equipe que estava à frente da unidade tinha origem no antigo Educandário Santo Expedito (ESE). A tomada de decisão que levou à referida intervenção arquitetônica está fundamentada nas concepções de socioeducação deste grupo de servidores, composto especialmente por agentes socioeducativos. Também conhecido por “Bangu Zero”, esta foi a única unidade socioeducativa dentro do Complexo Penitenciário de Gericinó, na zona Oeste. Com o seu recente fechamento, os profissionais nela lotados migraram para outras unidades, em particular para a nossa no complexo socioeducativo da Ilha do Governador, que é o coração do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, sede da direção-geral do Degase/RJ. O ESE foi fechado pela pressão do SGD sobre os poderes executivo e judiciário. Foi motivada por sua inconformidade com a legislação, especificamente com o Art. 16 da Lei n. 12.594/12 que assegura que:

A estrutura física da unidade deverá ser compatível com as normas de referência do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE – [...] é vedada a edificação de unidades socioeducacionais em espaços contíguos, anexos, ou de qualquer outra forma integrados a estabelecimentos penais.

Não atendia a nenhum dos dois quesitos da lei. A estrutura era improvisada. Foi adaptada às pressas para atender a necessidade de remanejamento de internos depois de uma rebelião. Criado a partir de uma demanda temporária e pontual, em razão das exigências de um sistema superlotado, foi ficando. Foi erguida sobre as bases de uma unidade prisional desativada e, portanto, inadequada a esta finalidade. A proximidade com as demais unidades do complexo do qual fazia parte, levou-o a confundir a sua estrutura operacional com a do sistema prisional, mimetizando o seu regime disciplinar, seus procedimentos e valores, afastando-a dos princípios que regem a socioeducação. Esta última inconformidade era a mais grave. Embora os sistemas tenham em comum o regime de privação de liberdade, deveriam trabalhar em bases completamente distintas. A socioeducação é regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e tem por missão estabelecer e garantir direitos, com vistas a proteger esta etapa tão peculiar do desenvolvimento humano. Fechado fisicamente, como numa espécie de martírio, o ESE se mantém vivo enquanto paradigma socioeducativo punitivista. Seus valores sobrevivem no corpo de servidores egressos, que por esse motivo gozam de grande prestígio perante seus pares. Pois são portadores não apenas de toda uma expertise, em métodos e em formação profissional, encarnam o ideal corporativo de organização da carreira e do sistema socioeducativo.

Os recentes movimentos políticos dos agentes de segurança socioeducativos não deixam dúvidas da adesão a esta mentalidade que é largamente majoritária na categoria. Embora se possam verificar exceções, em servidores comprometidos com a missão original da instituição e com a legislação, o desejo explícito é o de se tornarem policiais penais em pacote completo: salários, vantagens, métodos, armas e valores repressivo-punitivistas. O movimento político da categoria em dois projetos de lei apresentados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) é representativo desse ideal: a PEC 33/2019 que transfere o Degase da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro para a Secretaria de Estado de Segurança Pública e o PL 8.400 de 2019 que assegura o porte de armas aos agentes socioeducativos. Ambas foram aprovadas pela Alerj, judicializadas pelo SGD e consideradas inconstitucionais em última instância. Em matéria publicada no site da Alerj no dia 20 set. 2020 a aprovação da PEC 33/2019 é saudada. Nela está indicada o propósito do projeto: “O DEGASE será incluído no rol dos órgãos da Segurança Pública, ao lado das polícias Civil, Militar, Penitenciária e do corpo de bombeiros e assinala [...] O que se deseja é que os servidores do Degase tenham o tratamento de policiais penais”. Em seguida traz trecho da fala do Presidente do sindicato da categoria, João Rodrigues, o SindDegase: “Nossos funcionários exercem de fato uma função primordial de segurança pública, uma categoria que vem sendo abandonada e pautada por muitas questões ideológicas. A gente lida com a criminalidade e protege a sociedade”. (ALERJ, 2020)

De acordo com os diplomas legais fundamentais que regem as políticas públicas voltadas para jovens em conflito com a lei, os espaços destinados à privação de liberdade têm uma dupla finalidade. Toda a legislação afim deriva da Constituição Cidadã de 1988 e tem um compromisso essencial: “[...] os pilares da ordem constitucional brasileira convergem para uma compreensão da pessoa humana como centro e razão última da ordem jurídica”. (SARMENTO, 2020, p. 74) Na letra e no espírito das leis não há margem de dúvida razoável de que a escola precede à cadeia:

Prevalência da ação socioeducativa sobre aspectos meramente sancionatórios. As medidas socioeducativas possuem em sua concepção básica uma natureza sancionatória, vez que responsabilizam judicialmente os adolescentes, estabelecendo restrições legais e, sobretudo, uma natureza sócio-pedagógica, haja visto que a sua execução está condicionada à garantia de direitos e ao desenvolvimento de ações educativas que visem a formação da cidadania. Dessa forma, a sua operacionalização inscreve-se na perspectiva ético-pedagógica. (SINASE, 2006, p. 47)

Em consonância com estes direitos, o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente emitiu nota acerca da PEC 33/2019 que é bastante representativa dos valores e perspectivas do SGD:

Certamente, não é a mudança para segurança pública que contribuirá para uma sociedade mais segura e para a preservação da integridade física das adolescentes e dos adolescentes privados de liberdade em unidades do sistema socioeducativo. Acreditamos que somente a mudança da lógica repressiva e punitiva – inclusive com violação de direitos fundamentais à dignidade – e com o respeito e condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, e a formação continuada dos agentes e melhor estrutura física das unidades do DEGASE, é que permitirá o cumprimento do objetivo de ressocialização, como preconizado na legislação nacional, na própria Constituição da República, que consagra os princípios de brevidade, excepcionalidade e condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

A legislação tem a virtude de acomodar de maneira equilibrada a dupla missão institucional da socioeducação em contextos de privação de liberdade. No entanto, a polarização da realidade política atual impede qualquer tipo de síntese dos campos em conflito, tornando os projetos em disputa inconciliáveis, pois não é possível transigir quando o que está em jogo é a garantia ou não dos direitos humanos. Cada uma dessas perspectivas político-pedagógicas parte de concepções de ser humano, de sociedade e de educação, absolutamente, díspares. Chamo-as de Degase-cadeia e de Degase-escola.

De acordo com (CÂMARA, 2020) a disputa em torno do que deve ser feito com os jovens em conflito com a lei é ancestral e atravessa a História do Brasil. Entretanto, nas idas e vindas políticas que caracterizam esse processo, a ascensão conservadora que viabilizou o golpe contra o governo Dilma em 2016, sobretudo após as eleições de 2018, produziu como corolário o acirramento das mazelas estruturais do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. De muitas maneiras, salta aos olhos o impacto dos discursos e de uma mentalidade abertamente contrária aos direitos humanos sobre o cotidiano da unidade. A identificação das “forças de segurança” com esses valores é evidente. Expressivas votações elegeram candidatos ultraconservadores nos três níveis federativos em nosso estado, tanto no poder executivo quanto no legislativo. Próceres da política nacional como Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e Marcelo Crivella, respectivamente presidente, governador e prefeito, são bem mais do que influenciadores. Com o poder de suas canetas em mãos, definem as políticas públicas na área, que tem execução e financiamento tripartite. O caso do ex-governador Witzel, criador orgulhoso das políticas do “caveirão voador” e do “tiro na cabecinha”, é ainda mais grave, pois tinha o Degase sob a sua batuta. Seu governo foi marcado pela implantação de uma política de segurança pública declaradamente contrária aos direitos humanos, que ostentava a criminalização da pobreza, a tortura e a licença para matar como agenda política. Nessa esfera, jamais houve qualquer dissimulação. A máxima fascista de que bandido bom é bandido morto, defendida abertamente em sua plataforma política, foi levada às últimas consequências enquanto esteve à frente do governo. Essas ideias e valores penetraram nas instituições do Estado na mesma proporção em que são legitimadas pelo significativo apoio da sociedade:

A política armamentista alinha-se a chamada “bancada BBB” (sigla para referir-se à bancada da bala, do boi e da bíblia) que, apesar das diferenças, estão unidas em torno da hierarquia social e de uma sociedade “dividida em merecedores e indignos, em que as ‘pessoas boas’ são coletivamente protegidas das ‘pessoas más’, através do que a lei e o lobby da linha dura chamam de ‘defesa social’ sob o slogan ‘o único criminoso bom é o morto’”. (MACULAY, 2019, p. 11)

ESTADO DE EXCEÇÃO, ESTADO GUERRA: A SOCIOEDUCAÇÃO COMO LÓGICA MILITAR DO CONFRONTO

Não há nada de novo ou extraordinário em afirmar que existe no sistema socioeducativo, como há nas favelas e periferias, um estado permanente de exceção, em que as leis do asfalto não valem para o morro e que, em nome da segurança pública, garantias e direitos são suspensos solene e sumariamente. No contexto socioeducativo pesquisado, em tudo são os agentes de segurança socioeducativa que têm a última palavra. Nessa evidente distorção, a indevida prerrogativa se impõe por uma presença autoritária, truculenta e abrangente. Sem maiores constrangimentos ou limitações, é exercida com ampla autonomia, em nome de razões, fundadas ou não, de segurança. Nas menores e mais desimportantes questões esse poder é reafirmado. Almeja a um poder total. Não se acanha em invadir questões exclusivamente educacionais. A título de exemplo, menciono um episódio. A escola precisou recorrer ao Ministério Público e à Defensoria Pública do Rio de Janeiro para que fosse permitido aos alunos levarem os livros da escola para os alojamentos. A toda e qualquer medida, justificáveis ou não, razoáveis ou não, impõem-se as razões de segurança. Com muito custo e articulação, conseguimos romper com essa proibição surreal. Em retaliação à conquista da escola e dos meninos, muitas vezes, quando são feitas as revistas periódicas nos alojamentos, os livros são jogados fora pelos agentes. Livros só são perigosos a tiranos, por seu poder de subverter e libertar ideias. Não representam risco à integridade física de ninguém, nem facilitam fugas. Em cada pequena coisa, o que se quer é consolidar a naturalização de um estado de exceção:

O “estado de exceção” é um conceito de tradição jurídica alemã que se refere à suspensão temporária da constituição e do império da lei, semelhante ao conceito de estado de sítio e à noção de poderes de emergência nas tradições francesa e inglesa. Uma longa tradição de pensamento constitucional considera que em épocas de graves crises e perigo, como o tempo de guerra, a constituição deve ser suspensa temporariamente, conferindo-se poderes extraordinários a um executivo forte ou mesmo a um ditador, para proteger a república. [...] O conceito constitucional de “estado de exceção” é evidentemente contraditório – a constituição precisa ser suspensa para ser salva – mas esta contradição é resolvida ou pelo menos atenuada pelo entendimento de que o período de crise e exceção é breve. Quando a crise deixa de ser limitada e específica, transformando-se numa crise generalizada, quando o estado de guerra e portanto o estado de exceção tornam-se ilimitados ou mesmo permanentes, como acontece hoje em dia, a contradição manifesta-se plenamente, e o conceito adquire um caráter completamente diferente. (HARDT, NEGRI, 2005, p. 27)

A lógica do confronto militar contra um inimigo inspira a organização do espaço socioeducativo. O jovem em privação de liberdade é o inimigo a ser derrotado. A transição política para a democracia, nesta atmosfera, se arrasta a passos lentíssimos e é marcada por avanços e, ultimamente, por muitos retrocessos. É um modelo institucional algemado ao passado. Trata-se, por óbvio, de um entulho autoritário:

A arquitetura institucional da segurança pública, que a sociedade brasileira herdou da ditadura e permaneceu intocada nesses trinta anos de vigência da Constituição cidadã, impediu a democratização da área e sua modernização. [...] Em outras palavras, a transição democrática não se estendeu ao campo da segurança pública, até hoje confinada em estruturas organizacionais ingovernáveis, incompatíveis com as exigências de uma sociedade complexa e com imperativos do Estado democrático de direito. (SOARES, 2019, p. 25)

Entretanto, não obstante, o mesmo modelo militarizado e autoritário está conectado com o sombrio tempo presente. Debruçado sobre os desafios colocados à luta democrática de nosso tempo, Negri (2005, p. 34) defende que há um estado de guerra global como uma nova forma de dominação:

[...] a guerra transforma-se na matriz geral de todas as relações de poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de sangue. A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer, uma forma de governo destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social [...] a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder passaram a ser permeados pela ameaça da violência da guerra.

Dentro da unidade, há uma belicosidade no ar que pode ser sentida a todo momento. É palpável. Mesmo quando há calma aparente, a impressão que se tem é que a temperatura está sempre alta. Certamente há espaços de mediação entre agentes e internos, mas o que sobressai é um conflito aberto, que se apresenta ininterruptamente. Com o costume e a rotina é possível desligar-se um pouco dessa atmosfera, mas a compreensão é de que, a qualquer momento, com uma única pequena fagulha, a coisa pode explodir. A casa pode virar, como se diz no jargão da “cadeia”, ou mesmo redundar em conflitos menores e graves. Calejados, nós professores reconhecemos os sinais e estamos sempre a postos e atentos. Não temos medo dos alunos. Não há razão para termos. No entanto, a rebelião é uma explosão, é uma catarse. E tudo pode acontecer. O protocolo de segurança exige a evacuação imediata.

Um aspecto que me intriga é que essa tensão é sempre alimentada, estimulada de parte a parte. O trato mútuo entre agentes e internos é incompatível com uma pacificação. Sem querer com isso igualar as responsabilidades, pois estamos falando de adultos com formação e missão profissional claras, por um lado, e adolescentes sob os cuidados do Estado, por outro. A ‘contrario sensu’, pela obviedade dos riscos generalizados, pela imprevisibilidade e por toda a desorganização que implica uma rebelião, no fundo, parece que o que se quer é ter a unidade funcionando sempre no limite, sempre em níveis altos de tensão. Não seria impertinente aventar que o cultivo e a manutenção dessa circunstância servem de lastro a toda uma política. É de onde se pode extrair a legitimidade necessária à tomada de medidas excepcionais de contenção que violam direitos. O manejo do medo e de um perigo são instrumentos de poder useiros e vezeiros. Desta forma se provoca um enorme desequilíbrio na relação entre os paradigmas Degase-cadeia e Degase-escola. Uma guerra para criar ou manter a ordem social não pode ter fim. Ela deixa de ter um caráter episódico para invadir as relações cotidianas:

Envolverá necessariamente o contínuo e ininterrupto exercício do poder e da violência. Em outras palavras, não é possível vencer uma guerra dessas, ou, por outra, ela precisa ser vencida diariamente. Assim é que se tornou praticamente impossível distinguir a guerra da atividade policial. (HARDT, NEGRI, 2005, p. 39)

A política do confronto impede a democracia dentro da unidade. Previsto em todos os diplomas legais que tratam dos direitos de crianças e adolescentes, o direito à cidadania política dos internos é solenemente violado.

Participação dos adolescentes na construção, no monitoramento e na avaliação das ações socioeducativas. É fundamental que o adolescente ultrapasse a esfera espontânea da apreensão da realidade para chegar à esfera crítica da realidade, assumindo conscientemente seu papel de sujeito. Contudo, esse processo de conscientização acontece no ato da ação-reflexão. Portanto, as ações socioeducativas devem propiciar concretamente a participação crítica dos adolescentes na elaboração, monitoramento e avaliação das práticas sociais desenvolvidas, possibilitando assim, o exercício – enquanto sujeitos sociais – da responsabilidade, da liderança e da autoconfiança. (SINASE, 2006, p. 48)

“A guerra exige invariavelmente estrita hierarquia e obediência e, portanto, a suspensão parcial ou total das trocas e da participação democráticas”. (HARDT, NEGRI, 2005, p. 39) A expectativa da legislação é que sejam formados cidadãos, sujeitos de direitos. Como seria possível atender a essa expectativa nesse contexto educacional conflagrado? A rigor, lhes são negadas a titularidade dos direitos mais elementares como os acessos à escola e à formação profissional. As idas à escola são irregulares e muito aquém da carga horária oficial. Quase sempre a retirada dos alunos para a escola é feita de maneira caótica e não respeita a organização por série e nem por turmas. É frequente, inclusive, a não retirada para a escola ou a retirada de contingente baixíssimo. A formação profissional atende a uma pequena parcela apenas. E ainda assim, os cursos oferecidos nem sempre preparam os alunos para uma alternativa profissional consistente e viável ao trabalho que exercem no mundo do crime. O mais grave é que sempre há um grande contingente de alunos que, por punição, não saem do alojamento/cela sequer para fazer as refeições. Ficam sem lazer, sem estudos, sem nada. São 24 horas dentro de um lugar fétido, quase sempre superlotado e insalubre em todos os sentidos. Entre as muitas definições e parâmetros possíveis, o regime democrático se distingue por três critérios que variam em seus alcances e graus de situação para situação: participação política, titularidade de direitos civis e sociais e suas respectivas garantias e solução negociada para os conflitos que são entendidos como inerentes ao sistema. A socioeducação está muito distante de qualquer entendimento do que seja democracia. Que sujeitos emergem desse processo educacional?

A SUBJETIVAÇÃO AUTORITÁRIA DA GUERRA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO BANDIDO

As circunstâncias oferecidas aos alunos sob o paradigma da política da guerra e do confronto apenas reforçam as identidades ligadas ao universo do crime. Indistintamente os que deveriam estar no centro de um sistema democrático e garantidor de direitos, para que assim pudessem ter experiências de subjetivação positivas, que lhes possibilitassem uma reinserção social em outras bases, são empurrados a um abismo que os próprios alunos chamam de escola do crime em relação aos presídios que seriam as universidades do crime. Numa experiência oposta, ao invés de serem acolhidos, passam a figurar com ainda mais clareza como alvos do sistema. Recebem todos os sinais que estão numa guerra na posição do inimigo a ser derrotado. Empreende-se cuidadosamente a construção social desses inimigos, que devem, agora, ser isolados, encarcerados ou abatidos, a qualquer custo. Com a velocidade e a escala de uma linha de produção industrial, são produzidas as “classes perigosas”. (HARDT, NEGRI, 2005) O propósito é identificar um inimigo que não é mais apenas externo e assim proceder a criminalização das várias formas de contestação e resistência social: “Ao apresentar o inimigo como encarnação do mal serve para torná-lo absoluto, assim como a guerra contra ele, tirando-o da esfera da política – o mal é o inimigo de toda a humanidade. (HARDT, NEGRI, 2005, p. 37) Ao desumanizá-los, compra-se a ideia abstrata de que esses jovens são monstros incorrigíveis:

Trata-se de um sujeito que “carrega” o crime em sua própria alma; não é alguém que comete crimes, mas que sempre cometerá crimes, um bandido, um sujeito perigoso, um sujeito irrecuperável, alguém que se pode desejar naturalmente que morra, que pode ser morto, que seja matável. No limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso pode ser morto. (MISSE, 2010, p. 25)

No entanto, olhando de perto, vê-se claramente que não são nem monstros, nem incorrigíveis. Essa é uma evidência constatável no cotidiano de professoras e professores, que têm um acesso privilegiado a esses jovens. Tratados com dignidade e carinho, revelam facetas bem diferentes do estigma que carregam. Abraçam seus professores, riem juntos, choram juntos, contam suas histórias. Falam de suas famílias, de seus gostos, de suas façanhas, de suas alegrias e de suas dores. Só é possível a construção de uma relação leve, franca e desarmada pela acolhida que a escola lhes dá. Ao criar um ambiente amigável, fundado na valorização da dignidade da pessoa humana, e tratando-os com o respeito que merecem, temos acesso a melhor versão desses jovens. O ato infracional cometido não tem a menor importância para a escola. Não vem ao caso. Não há julgamentos. Há apenas a relação entre professores e alunos, que quase sempre é afetiva e cuidadosa. Certamente essa compreensão deve algo a um vício (ou virtude) de formação profissional, compartilhado pela maioria de nós, que nos leva a ter uma fé inevitável no ser humano. Mas vai além disso, pois trata-se de uma convicção, decorrente da experiência, de que se fossem garantidas todas as condições e direitos a esses jovens, as chances de ressocialização seriam outras. Porém, na maior parte do tempo, o investimento dos recursos da instituição serve apenas para reforçar o que eles têm de pior e mantê-los fora de circulação social pelo maior tempo possível. É um profundo equívoco como política educacional e tanto mais como política de segurança pública.

Essa juventude encontra na transgressão social por meio do “crime” uma forma de afirmação possível (SOARES, 2019). Contestam a miséria, a falta de oportunidades e a opressão típicas em seus lugares de origem. Sem oportunidades, tornam-se presas fáceis de uma guerra brutal e desigual, em que “[...] as instituições públicas são cúmplices da criminalização ao encetar essa dinâmica mórbida, lançando ao fogo do inferno carcerário-punitivo grupos e indivíduos mais vulneráveis do ponto de vista social, econômico, cultural e psicológico”. (SOARES, 2019, p. 205) Ao tratar do racismo estrutural, Almeida afirma acerca das instituições que elas são apenas: “[...]a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2019, p. 47). Nesse processo de criminalização da pobreza, não é possível buscar compreendê-lo sem trazer à reflexão o fato de que a cada dez de nossos alunos, sete são negros. O encarceramento em massa como política de Estado tem cor2. Ao pensar as relações de poder e os arranjos institucionais que o sustentam, há um lugar de destaque para o poder judiciário:

O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por essa estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial. Além da privação da liberdade, ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento de vulnerabilidades. Tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social desses indivíduos negras e negros que, dificilmente, por conta do estigma social terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la. Essa é uma das instituições mais fundamentais no processo de genocídio contra a população negra em curso no país. (BORGES, 2019 p. 22)

Enxergados dessa forma, como monstros, esses meninos não têm praticamente nenhuma chance de reintegração social. Feitos inimigos públicos, são lançados, quase sem nenhuma solidariedade ou proteção social, nos fluxos intensos do encarceramento em massa ou do extermínio. Não é razoável e nem aceitável reduzir esses jovens ao ato infracional por eles cometido. Por óbvio são mais do que isso. Os processos de subjetivação são fenômenos complexos. “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”. (HALL, 2006, p. 13) Há um inesgotável repertório de identificações possíveis a estes jovens num contexto “[…] em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam” (HALL, 2006, p. 13). De modo que “[...] o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não só de uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). Michel Misse (2010), ao tratar dos processos de subjetivação que levam à construção da categoria “bandido”, sustenta que a formação do sujeito se dá no enfrentamento e negação das estruturas de poder, mas que nem sempre o sujeito que é ativado por esse embate é virtuoso. Nem sempre emerge desse processo um sujeito inclinado às lutas coletivas e altruístas. Sob certas condições, tem-se o bandido. Assim define o que chama de sujeição criminal:

A sujeição criminal engloba processos de rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social, especificamente ligadas ao processo de incriminação e não como um caso particular de desvio. Na sujeição criminal encontramos esses mesmos processos, mas potencializados por um ambiente de profunda desigualdade social, forte privação relativa de recursos de resistência à estigmatização e pela dominação (mais que apenas pelo predomínio) da identidade degradada sobre todos os demais papéis sociais do indivíduo. O rótulo de “bandido” é de tal modo reificado no indivíduo que restam poucos espaços para negociar, manipular ou abandonar a identidade pública estigmatizada. Assim, o conceito de sujeição criminal engloba processos de rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social, especificamente ligada ao processo de incriminação e não como um caso particular de desvio (MISSE, 2010, p. 23)

A escola socioeducativa é o espaço propício para que os processos positivos de subjetivação sejam ativados. A semeadura em solo escolar preparado com o compromisso de defender e praticar os valores encerrados nas doutrinas da dignidade da pessoa humana e da proteção integral de crianças e adolescentes pode levar a bons frutos. Só uma escola garantidora de direitos pode oferecer tais condições diante de um contexto tão inóspito aos direitos humanos e à cidadania política. Dentro de unidades socioeducativas de privação de liberdade, as escolas precisam ser ainda mais autônomas e democráticas. Hipótese que divido com Luiz Eduardo Soares (2019, p. 203):

Uma coisa é certa: ninguém muda para melhor se não plantar em terreno firme a fundação da nova subjetividade que se dispõe a desejar e construir – o verbo aqui é impróprio, porque não se trata de projeto racional e controlável. O solo firme, nesse caso, é autoestima revigorada. Para livrar-se de uma parte de si julgada negativa, destrutiva e autodestrutiva, é necessário confiar na parte saudável e positiva, porque é ela que garante força indispensável à mudança: é ela que garante ao agente do processo (protagonista e agente do processo) que a morte representará renascimento. Quem tem coragem para ousar a mudança tem valor suficiente para essa audácia suprema, tem por que lutar.

A ESCOLA EDUCATIVA NÃO PODE TUDO MAS PODE MUITO

Uma ideia recorrente entre os que atuam na escola, é que a nossa melhor chance de ter algum sucesso político-pedagógico com nossos alunos é investir em sua formação cidadã. Por esse caminho, como ponto de partida, podemos trabalhar as suas autoestimas de forma que não se sintam como monstros repulsivos ou invisíveis aos olhos da sociedade, mas cidadãos, seres humanos plenos de dignidade, capazes de escrever e protagonizar outras histórias. A utilização do jogo, do lúdico, da arte são aspectos importantes da metodologia de trabalho usada na escola. Nesse sentido, uma música se destaca pela genialidade, pela força da mensagem e pela quantidade de vezes que a usamos: “A vida é desafio” dos Racionais. Ela expressa bem esse movimento, pois sonhar é preciso:

[...] é necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível. Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase. Que o sofrimento alimenta mais a sua coragem. Que a sua família precisa de você. Lado a lado, pra ganhar te apoiar se perder. [...] É isso aí você não pode parar, esperar o tempo ruim vir te abraçar, acreditar que sonhar é preciso, é o que mantém os irmãos vivos. (RACIONAIS, 2002)

Nas três escolas públicas estaduais que funcionam dentro do complexo socioeducativo da Ilha do Governador não há o menor vestígio de gestão democrática. Nenhum dos institutos previstos em lei são observados nesses espaços escolares. Não há eleições para diretor de escola e nem há grêmios estudantis ativos. Os conselhos escolares existem apenas pró-forma e tem formato limitado por normativa da própria Seeduc-RJ. O projeto político-pedagógico não é feito de forma participativa com alunos, professores e responsáveis. Do ponto de vista da cultura institucional, o que se observa é a inserção dócil das escolas nas unidades socioeducativas. Muito pouco ou nada contestam os imperativos e as razões da instituição que as abriga. O que é reforçado pela postura igualmente submissa da Diretoria de Escolas Socioeducativas e Prisionais (DIESP) que é órgão da Seeduc-RJ, a quem as escolas se reportam. Há sempre alguma resistência e contestação por parte dos professores, mas sem a legitimidade de espaços de gestão participativa ativos e garantidos, essa energia política tende a se dissipar. A autonomia escolar parece surgir como uma condição à garantia do direito à educação, à qualidade do trabalho político-pedagógico e à gestão participativa. Pode-se achar que no contexto de uma unidade de privação de liberdade, a gestão democrática da escola é algo inconveniente ao bom funcionamento ou às exigências de segurança. Quanto a isso, podemos fazer duas ponderações. A primeira, é que, antes de tudo, é um direito cristalino, pacífico e assegurado em diferentes leis. É parte imprescindível do direito à educação (CF, 1988; ECA, Lei n. 8.069 de1990; LDB, Lei n. 9.394 de 1996) E a segunda, mas não menos importante, é que a ausência de mecanismos institucionais de participação e expressão política dos internos acaba por canalizar todas as energias e legítimas insatisfações com o sistema para métodos mais radicais, como as rebeliões, que embora tenham legitimidade política reconhecida, favorecem pouco o aprendizado que se deseja permitir. Agambem (2004, p. 23) sustenta que “[...] o problema do estado de exceção apresenta analogias evidentes com o direito a resistência”. Afirma que há a compreensão recorrente de que diante do arbítrio e da tirania, da violação de liberdades fundamentais garantidos pela Constituição, a resistência não é apenas direito dos oprimidos, mas um dever (AGAMBEM, 2004, p. 23).

Institucionalizar os conflitos e fortalecer os mecanismos de resolução negociada, por meio do exercício da política, pode resultar em distensão do espaço socioeducativo e, ao mesmo tempo, garantir a devida formação cidadã a essa juventude. Apenas o exercício efetivo da participação pode levar à formação de sujeitos de direitos com chances reais de ressocialização. É decidindo que se aprende a decidir (FREIRE, 2006). A escola pública socioeducativa é o espaço privilegiado para experimentação democrática, antídoto potente contra o arbítrio.

1O Sistema de Garantia de Direitos de crianças e adolescentes constitui-se numa articulação entre diferentes instâncias públicas governamentais e da sociedade civil com a finalidade de promover e proteger seus direitos.

2Segundo o Mapa do Encarceramento de 2015, à medida que os anos passam e as políticas de encarceramento em massa se intensificam, cresce a proporção de negros nos sistemas. Diante dos dados sobre cor/raça verifica-se que, em todo o período analisado, existiram mais negros presos no Brasil do que brancos. Em números absolutos: em 2005 havia 92.052 negros presos e 62.569 brancos, ou seja, considerando-se aparcela da população carcerária para a qual havia informação sobre cor disponível, 58,4% era negra. Já em 2012 havia 292.242 negros presos e 175.536 brancos, ou seja, 60,8% da população prisional era negra. Constata-se assim que quanto mais cresce a população prisional no país, mais cresce o número de negros encarcerados. O crescimento do encarceramento é mais impulsionado pela prisão de pessoas negras do que brancas. (BRASIL, 2015, p. 33)

REFERÊNCIAS

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Recebido: 00 de Outubro de 2021; Aceito: 00 de Dezembro de 2021

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