INTRODUÇÃO
O foco desse estudo é a produção curricular engendrada nos/pelos cursos de formação acadêmico-profissional de bacharéis de Direito quanto à temática direitos humanos. Para tanto, recorre-se a uma pesquisa documental realizada nos textos dos projetos pedagógicos e das matrizes curriculares de dois cursos de graduação ofertados em instituições de educação superior da região sul-brasileira.
Buscou-se problematizar as práticas discursivas e não-discursivas agenciadas na/pela produção curricular, como possíveis efeitos na subjetivação e atuação profissional dos bacharéis, à medida que essas implicam em formas de pensar e posicionar-se frente às dinâmicas culturais e políticas em contextos históricos, sociais, educacionais e pedagógicos diversos. Com isso, questionar a própria categoria de “humanos” e as reformas curriculares que visam sua introdução no debate jurídico, considerado que essa mudança não dá conta de responder as transformações necessárias para a promoção de uma perspectiva decolonial, ou seja, capaz de colocar em evidência demandas de categorias culturais e sociais até então alijadas no plano social.
Para tanto, operou-se com o conceito de discurso criado por Foucault como prática que constitui um conjunto de enunciados e funciona enquanto dispositivo de relações de poder-saber. Trata-se de compreender os discursos como materialidades: “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. (FOUCAULT, 2014, p. 55).
Nesse sentido, a perspectiva trazida por Corazza (2001, p. 09) ao “conceber um currículo como uma linguagem”, como conjunto de “signos” agenciados nos tempos e espaços em que é construído e pelos “significantes, significados, sons, imagens, conceitos, falas, língua, posições discursivas, representações, metáforas, metonímias, ironias, invenções, fluxos, cortes”, tangencia esse estudo.
Ao indagar “o que quer um currículo?” a autora apresenta a ideia de um currículo como ser falante que cria e coloca em funcionamento certa vontade de verdade acerca dos saberes, normas, prescrições, relações, modos de produção subjetiva, nele e através dele engendrados. Vontade de verdade do que anuncia e que dependerá sempre do modo como será traduzido em sua época e lugar: “Ousa-se, assim, uma resposta geral, que é dada para ser desconstruída. Invariavelmente, quando perguntado, um currículo costuma responder que quer ‘um sujeito’, que lhe permita reconhecer-se nele. Por isto, qualquer currículo, seja ele qual for, tem ‘vontade de sujeito’. (CORAZZA, 2001, p. 15).
No estudo realizado, buscou-se mapear conjuntos de enunciados discursivos presentes nos documentos analisados que remetem a abordagem do tema direitos humanos nos currículos, interrogando-os quanto à vontade de verdade que expressam. Enunciados encontrados nas ementas dos componentes/disciplinas que compõem as matrizes curriculares de dois cursos de Direito e que indicam a incorporação deste tema nos estudos feitos durante a formação acadêmico-profissional dos bacharéis.
A formação e atuação profissional coloca em jogo práticas discursivas e não-discursivas que podem corroborar ou não no combate à discriminação e na garantia da cidadania em termos de direitos humanos dos segmentos em situação de vulnerabilidade, como: crianças, mulheres, negros/as, comunidades indígenas, sujeitos LGBTQIA+, entre outros. Demandas que carecem do direito à cidadania, desde os processos históricos coloniais e que se mantém numa posição de subalternidade frente ao epistemicídio cultural gerado pelo regime de verdade eurocêntrico e, reforçado pelas macropolíticas neoconservadoras contemporâneas. Daí porque interrogar a produção de verdades colocadas em funcionamento pelo aparato jurídico que serve de base a formação e profissionalização dos/as acadêmicos de Direito, sabendo que os currículos dessa área carregam a herança de uma tradição eurocêntrica e tendem a centralizar no pensamento moderno liberal os discursos que sustentam a distribuição do conhecimento.
A produção da vontade de verdade do aparato jurídico
Foucault (2002) analisa as contingências históricas em que, nas culturas ocidentais, o discurso jurídico constituiu-se enquanto domínio de poder-saber que regula as práticas sociais. O objetivo de suas pesquisas foi mostrar como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que, não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos. Trata-se do surgimento do sujeito de conhecimento (saber homem) via a história dos domínios científicos que regulam as relações sociais, mediante práticas de controle e da vigilância, condições históricas sob as quais a verdade jurídica aparece.
Foucault afirma que (2002, p. 17): “O conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, bem como ele não é natural, é contra-natural”. Entendimento que o leva a afirmar: “As condições políticas, econômicas, de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por conseguinte, as relações de verdade”.
Trata-se do problema da governamentalidade, que Foucault denomina como:
[...] o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bem específica, bem complexa, de poder, que tem como alvo principal a população, como forma mais importante de saber, a economia política, como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança. Governamentalidade é a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não cessou de conduzir, e há muitíssimo tempo, em direção à preeminência desse tipo de saber que se pode chamar de “governo” sobre todos os outros: soberania, disciplina. Isto, por um lado, levou ao desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo e por outro, ao desenvolvimento de toda uma série de saberes. (FOUCAULT, 2006, p. 303).
Sendo assim, as formas jurídicas contribuíram para o entendimento de que a verdade jurídica é produto de um contexto histórico e social, não é universal, nem incontestável, tendo em vista que varia de acordo com o paradigma vigente. Isso mostra que toda relação social e produção da verdade está ligada ao poder. Logo, o direito enquanto resultado das relações sociais deixa de ser imparcial ou isento. O discurso jurídico é fruto das práticas do poder presentes no contexto social e influencia na sua produção.
Segundo Foucault (2006), o surgimento e funcionamento do aparato jurídico se dá por meio do poder pastoral e do fortalecimento das instituições que o exercem, o que permitiu o desenvolvimento das ciências do homem. Nesse sentido, na chamada sociedade de soberania, o poder era, antes de tudo, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos através da disciplina. As novas formas do poder concernem, precisamente, à biopolítica, privilégio de se apoderar da vida, causar a morte ou deixar viver (FOUCAULT, 2008).
Quando se fala sobre igualdade jurídica, reporta-se, de imediato, às garantias constitucionais que servem de parâmetro para a administração político-jurídica nos Estados Modernos. Nesse contexto, Foucault (1987), observa que as diversas instituições da modernidade em suas estruturas organizacionais e nos modelos culturais, que as condicionam, desenvolvem elementos de um pacto social voltado a garantia da igualdade entre indivíduos que vivem em condições desiguais.
Na governamentalidade política moderna, técnicas de dominação exercidas sobre os outros e técnicas de si nas artes de governar que induzem ao cuidado de si e dos outros, convergem entre si e funcionam mediante formas ascéticas engendradas pela moral cristã, o poder pastoral, as disciplinas, as práticas de confissão e outras tecnologias a serviço da Igreja cristã, do Estado, da polícia, da justiça, da escola, dentre outras instituições. Portanto, desde uma perspectiva foucaultiana, o poder pastoral e disciplinar estão integrados à forma jurídica do Estado moderno (CASTRO, 2016).
Segundo Foucault essa multiplicação dos objetivos do poder pastoral e do fortalecimento das instituições que o exercem permitiu o desenvolvimento das ciências do homem. Assim, onde antes só haviam sujeitos, sujeitos jurídicos aos quais se podia tomar seus bens e sua vida, agora, há corpos e populações. As novas formas do poder pastoral, concernem, precisamente, ao governo dos corpos, à disciplina, e ao governo das populações, a biopolítica.
As práticas e os saberes jurídicos funcionam como vetores e agentes da normalização efetuados sobre a vida em sociedade. Contudo, se a utopia jurídica do Humanismo conformou uma sociedade fundamentada em direitos e garantias resguardadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, tais prerrogativas não se estenderam a todos os indivíduos, pois a disseminação da norma na sociedade ocidental assentada no princípio da igualdade não passa de uma metanarrativa universal que não esconde a desigualdade social e nega a diversidade cultural.
O aparato jurídico age, simultaneamente, na regulação da vida das populações e no governo dos corpos. Resulta que as relações sociais e humanas são guiadas por uma espécie de lógica que, se poderia dizer, invisível e insidiosa, pois, não emana de um único lugar, nem sempre é enunciada por um soberano, mas, está em toda parte. Expressa-se por meio de julgamentos, recomendações, repetidas e observadas cotidianamente, que servem de referência a todos/as sujeitos envolvidos/as nessas relações. Assim, institui-se um padrão normalizador que, constantemente reiterado, acaba por tornar-se onipresente. Daí porque a norma se naturaliza e se faz penetrante (LOURO, 2008).
O aparato jurídico que toma como referência valores morais burgueses e cristãos, favorece a cristalização das posições desiguais, naturalizando a cultura eurocêntrica pela qual alguns se tornam mais humanos que outros. Entram em ação relações de poder-saber que envolvem a legislação e ações judiciais, as quais, visam governar os sujeitos nomeados e posicionados hierarquicamente.
O projeto decolonial
Nas Américas, inúmeros movimentos de resistência foram deflagrados e desembocaram na adoção de regimes republicanos desde meados do século XIX e início do século XX. Nesses tempos modernos de industrialização, a exploração do trabalho associada ao colonialismo de caráter étnico-racial, marcadores de gêneros e geracionais, contribuiu para a manutenção do padrão mundial capitalista. Articulada às formas históricas de controle, noção de raças superiores e inferiores, gêneros, gerações e classes subalternas foram as categorias sociais expropriadas pela mais-valia, um excedente inquantificável transformado em valor de uso e de lucro imanente.
O poder de vida e de morte é impresso e disseminado sobre os corpos não apenas de forma deliberada e pelo uso da violência extrema, mas também pelas inúmeras formas de produzir saberes, relações, afetos e percepções em torno da vida e do mundo. Algumas culturas se sobrepõem às outras e reservam a elas um estatuto ilusório e ilegítimo, como acontece em nosso país em relação às práticas religiosas, linguagens, modos de vida e valores das coletividades quilombolas, indígenas e afro-brasileiras. Lógica maniqueísta de diferenciação entre um “eu” - cuja referência é o homem branco, cristão, heterossexual e capitalista - e o “outro”, herdeiro de uma subontologia: “alguns seres estão abaixo de outros seres”. (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 36-41).
A subontologia se desdobra na colonialidade dos corpos, gêneros e sexualidades que não se expressam de acordo com o padrão cultural hegemônico ditado pelo modelo eurocêntrico, biológico, binário, cis-heteronormativo. Imposição cultural e social que gerou movimentos de resistência no mundo todo desde as décadas de 1960, 1980 e 2000, os quais foram encampados por operários/as, estudantes, mulheres, feministas, LGBTQI, negros/as, indígenas, trabalhadores/as Sem Terra, comunidades quilombolas, dentre outros/as coletividades. Lutas travadas por dentro e em torno do aparelho estatal, procurando abrir brechas para inclusão de direitos negligenciados pelo Estado liberal associado ao sistema capitalista excludente.
Daí que o movimento da decolonialidade vem sendo forjado, desde então, como uma reviravolta epistêmica em construção, pois trata-se de “uma luta que busca alcançar não uma diferente modernidade, mas alguma coisa maior do que a modernidade”, ou seja, “uma outra ordem mundial é a luta pela criação de um mundo onde muitos mundos possam existir, e onde, portanto, diferentes concepções de tempo, espaço, subjetividade possam coexistir e também se relacionar produtivamente”. (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 35-36).
Logo, o combate a colonialidade dos saberes e subjetividades, como estratégia macropolítica deve visar a resistência à assimetria das posições sociais desiguais que distribuem os lugares e os conhecimentos herdados pelas diferentes culturas no interior das relações de poder. A operação de insubordinação própria da esfera micropolítica visa, diferentemente, desmanchar tais relações, dissolvendo seus personagens, seus respectivos papéis e a própria cena. E se esse combate se dá por afirmação e não por oposição, como é o caso na esfera macropolítica, é porque a diferenciação entre o pessoal e o extrapessoal não é dialética, mas paradoxal, e enfrentá-la implica ações afirmativas de um devir-outro dos personagens na cena das relações de poder. Em última análise, cada gesto de insurreição micropolítica é, nele mesmo, um movimento de ressurreição da vida (ROLNIK, 2018).
É pela construção de movimentos organizados que se opera a insurreição macropolítica, construção do comum que coopera na insurgência micropolítica, quando agentes de ambas esferas se aproximam via ressonância intensiva por frequências de afetos (emoções vitais). Trata-se de tecer múltiplas redes de conexão e colaboração entre subjetividades e grupos que estejam vivendo situações distintas, com experiências e linguagens singulares, cujo elemento de união são “embriões de mundo que habitam”, impondo a urgência da criação de mundos outros, vidas outras. Se buscamos sair da situação de subalternidade insurgindo-nos apenas na esfera macropolítica, nada garante que a subjetividade recupere sua plena existência, isso depende de como nos apropriamos da pulsão vital (ROLNIK, 2018).
Cabe ressaltar que, os sujeitos não participam da vida social e cultural como meros receptores, atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias. Ao invés disso, os sujeitos estão implicados, e são participantes ativos na construção de suas subjetividades, atuação profissional e social. Se múltiplas instâncias sociais, entre elas, as universidades, exercitam uma pedagogia da cidadania e colocam em ação várias tecnologias de governo, esses processos prosseguem e se completam através de tecnologias de autodisciplinamento e autogoverno que os sujeitos exercem sobre si mesmos nos diversos espaços em que estão inseridos e atuam.
A análise dos agenciamentos engendrados via aparato jurídico para manutenção de regimes de verdade que regulam e conformam a ordem estabelecida e as correlações desses dispositivos com a formação dos/as bacharéis de Direito, é o propósito da análise feita a partir dos textos dos projetos pedagógicos e das matrizes curriculares de dois cursos de Direito. Antes de apresenta-la, aborda-se, na sequência, a produção curricular como desdobramento das condições históricas, sociais e culturais em que são produzidas as configurações dos currículos de um modo geral.
Produção curricular: formação profissional, política e ética
Segundo Sacristán, na produção curricular entram em ação mecanismos de regulação que procuram justificar sua utilização, o que faz e para que o faz. Mas, não se limita a isso, ou seja, os objetivos e conteúdos prescritos num currículo não estão circunscritos apenas a certas tradições. “Por meio desse projeto institucional, são expressadas forças, interesses ou valores preferências da sociedade, de determinados setores sociais, das famílias, dos grupos políticos, etc”. (SACRISTÁN, 2013, p. 23).
Portanto, a produção curricular tende a coincidir com o que se costuma idealizar em termos de realidade a ser alcançada na vida social. Surge aí, uma nítida distância entre o projeto educacional e a efetiva realidade existente, um “abismo teleológico” que é inevitável, pois, a própria realidade não existe enquanto tal (SACRISTÁN, 2013).
Com base em Bernstein (1988), o autor afirma ainda que essas projeções pelas quais os currículos se configuram no tempo escolar e no conjunto de conhecimentos a serem ensinados, indicam práticas de uma educação moral pela qual a formação de sensibilidades está voltada ao entendimento do mundo e desenvolvimento do indivíduo e cidadão. Essa formação moral extrapola a prescrição e organização formal dos currículos, pois está engendrada no seu próprio funcionamento.
Daí procede o entendimento de que o modo como se configura a seleção e organização dos currículos sustenta e visa sustentar um tipo de formação profissional voltada para a inserção dos sujeitos na sociedade tal como essa funciona. A tendência a conformar os currículos ao que preserva a conjuntura social e cultural vigente em cada época e lugar.
No entanto, a produção curricular também é atravessada por outras forças que forjam transformações na vida social e que também acabam provocando a reconfiguração das práticas discursivas mobilizadas pelos e através dos currículos. São forças que resistem à captura das potências e capacidades inventivas mobilizadoras do poder da vida que não se ajusta aos padrões impostos pelo projeto social, cultural e social hegemônico. Assim que o currículo se constitui em território de disputa e espaço de encontro que escapa ao controle, que resiste, extrapola o planejado, abrindo-se a outras possibilidades (PARAÍSO, 2016).
Logo, a produção curricular tanto pode forjar modos de subjetivação e atuação associados ao que parece dado, quanto pode eleger e combinar outros modos de pertencer a vida social e cultural presente. É preciso que “a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele”. (FOUCAULT, 2017, p. 136).
Levando em conta o atual cenário brasileiro de disputas provocadas pela expansão e proliferação da moral neoconservadora no campo educacional, forjar resistências a essas forças que induzem um forte retrocesso nas conquistas democráticas é “dizer não” e mover agenciamentos outros que gerem novas potências: “Resistir é fazer do ‘não’ uma intensidade de vida como potencialidade de mudanças. Após o não é preciso todo um movimento intensivo que mobilize agenciamentos potentes para encontrar saídas. Então, após dizer o não a tudo que entristece, desanima e impede o movimento, é preciso seguir e dizer um sim à vida”. (PARAÍSO, 2016, p. 406).
Criar novas configurações curriculares que contemplem temas relevantes como direitos humanos possibilita aos sujeitos pedagógicos pensar sobre elas e posicionar-se diante das situações em que a cidadania é ameaçada nos contextos democráticos. Enquanto cidadãos/cidadãs e agentes sociais, os profissionais do Direito irão lidar com esses desafios. De modo que, a formação e a atuação profissional estão imbricadas com a tomada de decisão e a construção de uma postura política, social e ética que pode fomentar o comprometimento com a justiça social enquanto combate à todas as expressões e relações de desigualdade.
Nesse sentido, a abordagem da temática direitos humanos nos currículos de formação dos/as profissionais do Direito pode colocar em discussão o jogo de forças que se estabelece na vida social e corroborar na transformação das desigualdades geradas pela lógica eurocêntrica, de modo a propiciar uma formação crítica que subsidiem a atuação profissional voltada à recusa do que se mostra naturalizado socialmente.
Na sequência, apresenta-se as análises feitas da problemática anunciada no trabalho com base nos textos dos projetos pedagógicos e das matrizes curriculares de dois cursos oferecidos pelas instituições de educação superior que compuseram esse estudo.
Os discursos anunciados nos currículos do Direito
Conforme o Projeto Pedagógico do Curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), editado em 2010, a Faculdade de Direito foi fundada em 12 de setembro de 1912. Foi incorporada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 04 de maio de 1936. E, em 27 de julho de 1950, tornou-se estabelecimento federal de ensino superior integrado à Universidade Federal de Pelotas. Foi incorporada à Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em 1947. E, em 1969, tornou-se estabelecimento federal de ensino superior integrado à Universidade Federal de Pelotas (UFPEL, 2010).
Entre os seus princípios, anuncia-se “a priorização para formação de um cidadão capaz, crítico e criativo, o respeito à dignidade humana e dos seus direitos fundamentais, e, tendo em vista a realidade brasileira e fiel às inspirações da ética e do bem comum”. (UFPEL, 2010, p. 2-3).
Em sua justificativa, o texto legal apresenta um questionamento em relação ao “império absoluto das leis” que impõe aos juristas uma visão dos textos legislativos como uma verdade que sobrepõe a vida e as relações sociais. O que reveste esse profissional de uma ilusão de ótica nascida na concepção dogmática do direito e da lei. Essa visão é apontada como uma necessária adaptação dos currículos às problemáticas jurídicas postas pelas mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas. O documento informa que as alterações curriculares, ocorridas em 1997 e 2005, visaram atender as expectativas dos estudantes, reveladas num questionário respondido em 2002 onde manifestaram frustração com o curso, em relação a falta de uma visão humanista do Direito, sendo que a procura pelo curso era motivada pelo sentimento de diminuir a injustiças sociais (UFPEL, 2010).
Afirma o documento que o processo ensino-aprendizagem reflete o descompasso nas relações entre professor e aluno, apelasse para uma transformação do professor em educador, de modo que, os sujeitos envolvidos no processo de ensinar e aprender tornam-se coadjuvantes na produção do conhecimento que é o objeto de saber de ambos (UFPEL, 2010).
Com base nessas prerrogativas, esperava-se encontrar elementos que reverberassem essa prática discursiva na seleção e organização dos componentes curriculares e suas ementas, de modo que a matriz curricular contemplasse temáticas voltadas à formação social, crítica e criativa dos/as profissionais do Direito, incluindo o tema dos direitos humanos, à medida que essa seria uma das problemáticas a ser incorporada para dar conta das intenções anunciadas.
O enunciado “grade curricular” que aparece no PPC1 remete a uma concepção curricular assentada na vertente tecnicista, produção da conotação de currículo como tecnologia de ensino marcada pelo aprisionamento do conhecimento em disciplinas fragmentadas, e que submete o trabalho docente às diretrizes, normas, avaliações controladas, competências já privilegiadas, materiais didáticos prescritivos de objetivos, metodologias, conteúdos e atividades operacionais.
Como ressaltado por Arroyo (2013, p. 38): “Quando os currículos se fecham a essa dinâmica do próprio conhecimento terminam presos a conhecimentos superados, passados de data, de validade. Quando se abrem às indagações, vivências postas na dinâmica social, se enriquecem, revitalizam. Há tantos conhecimentos vivos pressionando, disputando o território dos currículos”.
O PPC e a matriz curricular analisados remetem a permanência de um caráter dogmático da Lei e do Direito, à medida que, a distribuição dos conhecimentos produzidos no processo de ensino e aprendizagem reproduz as especialidades das áreas jurídicas, tais como: direito penal, direito processual penal, direito civil, direito processual penal, direito trabalhista, direito processual trabalhista, direito previdenciário, direito internacional, direito tributário, entre outras, em componentes/disciplinas isoladas.
Em meio as grades dessa estrutura, alguns componentes obrigatórios e optativos ofertados ao longo do curso indicam a abordagem do tema direitos humanos nos estudos a serem feitos durante o curso:
O componente Ética – Geral e Jurídica, uma disciplina obrigatória ofertada no 6º ano, apresenta em sua ementa: “Ética, Moral e Direito; Gnosiologia do Direito; Axiologia do Direito; Direitos Humanos. O Código Profissional de Ética”. Esses temas são desdobrados nos objetivos: “Oferecer aos acadêmicos do Curso de Direito uma visão geral da Ética de modo a contribuir com sua formação humanista e assegurar seu compromisso com a Ética nas suas atividades como profissional do Direito”; e “Compreender os fundamentos da Ética; Perceber a importância Ética na vida profissional do jurista; Despertar um compromisso ético com a Sociedade e a cidadania; Orientar para a formação ética profissional” (UFPEL, 2010).
Os estudos realizados no componente são subsidiados por um referencial teórico que contempla a reflexão em torno do discurso da ética pautado no pensamento moderno e pós-moderno, enquanto verdade apoiada na ciência, no direito, na moral e religião moderna, que consagrados pelo princípio republicano do estado constitucional do mundo-da-vida cosmopolita, e na relação entre direito e justiça. Portanto, percebe-se, nesse conjunto de enunciados, a abordagem do tema direitos humanos proposta a partir de uma análise macropolítica dos pressupostos que constituíram a emergência do tema no campo jurídico sob ponto de vista epistêmico e cultural moderno e pós-moderno.
O componente Direito das Minorias, uma disciplina optativa, em sua ementa anuncia a análise crítica das leis voltadas a proteção dos direitos sociais de pessoas em situação de vulnerabilidade: baixa renda, minorias religiosas, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, mulheres, idosos, diversidade sexual, refugiados, minorias étnicas e raciais, entre outras (UFPEL, 2010).
A matriz curricular traz ainda, o componente Direitos Humanos, também como disciplina optativa, na qual a ementa prevê: estudo a construção histórico-conceitual dos direitos humanos; organização e funcionamento do Estado Democrático de Direito; a proteção nacional e internacional dos direitos humanos; cidadania emergente, democracia na experiência Latino Americana e educação em direitos humanos como prática transformadora (UFPEL, 2010).
Parece-nos que, as reformas curriculares realizadas neste curso não se deram a partir de uma discussão apropriada das concepções e práticas pedagógicas que o próprio PPC anuncia. Percebemos que, a inclusão do tema dos direitos humanos sugere a abertura dos saberes jurídicos às demandas sociais emergentes dos grupos minoritários, contudo, sem questionar as noções fundamentais de humano, direito, cidadania, democracia, dentre outras que são anunciadas. Com isso, o currículo do curso parece não contemplar suficientemente uma abordagem decolonial.
O segundo PPC analisado refere-se ao Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), editado em 2019. Essa instituição de educação superior foi criada com a Lei Federal nº 11.640 editada em 11 de janeiro de 2008 (BRASIL, 2008).
Diferentemente da UFPEL, a Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) surgiu no bojo das políticas de expansão da oferta efetivadas na primeira década dos anos 2000, visando a interiorização da educação superior pública em regiões brasileiras que careciam do acesso. Desde sua implantação, a UNIPAMPA assumiu o discurso de comprometimento com o desenvolvimento regional. Essa prerrogativa de aliar a universidade as demandas econômicas locais geraram o questionamento de um grupo de pesquisadores/as dessa instituição, ao alertarem: “O debate democrático em torno do papel social que a UNIPAMPA venha a cumprir deve ser ampliado, de forma a extrapolar as necessidades de desenvolvimento econômico e agregando princípios, valores e ações voltadas à formação integral de sujeitos sociais emancipados e éticos”. (MARCHIORO et al, 2007, p. 716).
Segundo o PPC, o curso de Direito foi autorizado pela Portaria n° 332, de 5 de maio de 2015, publicada no DOU de 05/05/2015. E como concepção do curso de Direito, afirma que a Educação Superior precisa ter o compromisso de levar o aluno a aprender, a ter capacidade de construir e reconstruir o seu conhecimento através de si mesmo, de seu contato com a realidade. Assim, tornar-se-á “cidadão livre, autônomo, consciente, crítico e autocrítico, participativo e comprometido consigo e com seu entorno” (UNIPAMPA, 2019 p. 39).
Quanto às políticas de ensino, afirma ser determinante, na sua área de concentração, a relação que este pretende manter com a região em que está inserida (Fronteira Brasil-Uruguai). Além de um grande número de disciplinas voltadas ao estudo do Direito Internacional, de um modo geral os saberes são contextualizados em problemáticas da região da fronteira (UNIPAMPA, 2019).
Já o perfil do egresso, segundo o PPC deverá assegurar:
[...] sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania. (UNIPAMPA, 2019, p. 55)
No PPC afirma-se que as políticas de educação em direitos humanos constituem um dos principais eixos da formação-profissional do Direito e que é abordada de forma direta ou transversal nos componentes curriculares obrigatórios:
Direitos Humanos e Relações Internacionais, ofertada no 2º semestre, cuja ementa apresenta os enunciados “Relações Internacionais, Atores, Organizações Internacionais, Globalização e Integração regional, Países Emergentes e Direitos Humanos, Estabilidade Internacional, Política Externa”. (UNIPAMPA, 2019, p. 102).
Direito Internacional Humanitário, ofertada no 9º semestre, que apresenta o seguinte objetivo na ementa: “proporcionar conhecimento sobre o conjunto de regras que visam proteger a pessoa humana naquelas situações de conflito armado”. (UNIPAMPA, 2019, p. 132).
Direito das Políticas Públicas, ofertada no 10º semestre, no qual está previsto o estudo das “políticas sociais distributivas, redistributivas e regulatórias na sociedade brasileira” sob perspectiva das relações capitalistas e das desigualdades sociais geradas pela sociedade de classes. (UNIPAMPA, 2019, p. 134).
Também são anunciadas atividades complementares (ACG) como componentes curriculares de caráter acadêmico, científico, cultural e social que visam possibilitar o conhecimento de habilidades e competências do discente, inclusive adquiridas fora do ambiente acadêmico, sobretudo nas relações com o mundo do trabalho, integrando-se às diversas peculiaridades regionais e culturais (UNIPAMPA, 2019, p. 71).
Outras formas de flexibilização curricular estão presentes nos Projetos de Ensino propostos pelos/as professores/as do Curso, entre eles destaca-se as atividades promovidas pelos grupos:
Mulheres, Violência e Sistema de Justiça Criminal - O Grupo de Estudos é voltado para a reflexão do impacto da legislação e das políticas públicas nas mulheres, sobretudo a partir do funcionamento do sistema de justiça criminal e dos arranjos institucionais utilizados para construir e sustentar práticas de subalternidade em ambientes responsáveis por inserir as mulheres em um circuito de marginalização e de precariedade. (UNIPAMPA, 2019, p. 77).
Direito, Cidadania e Fraternidade – Possui o objetivo de fazer pesquisas, reflexões e quiçá encontrar respostas sobre a viabilidade e efetividade práxis e teórica da fraternidade, que fora “esquecida” desde a Revolução Francesa e, atualmente está sendo estudada por doutrinadores estrangeiros e nacionais, bem como vem sendo utilizada em decisões por magistrados brasileiros como fundamento aliado à dignidade humana e a cidadania. (UNIPAMPA, 2019, p. 79).
Vemos que, o tema direitos humanos é incorporado desde o início do curso, se estende ao longo da formação em diferentes formatos acadêmicos, pois faz parte dos estudos promovidos nos componentes curriculares obrigatórios e nas atividades complementares.
Porém, as duas matrizes analisadas mantêm a herança epistemológica eurocêntrica e moderna na concepção e disseminação do saber jurídico. Embora o tema direitos humanos seja citado em ambas matrizes curriculares, observa-se que, oferecem uma abordagem bastante restrita de direitos humanos por seu caráter geral sem que as dimensões políticas, sociais e culturais sejam trabalhadas e permitam uma análise contextualizada dos regimes de verdade e relações de poder-saber engendradas pelas disputas de descolonização dos currículos, as quais surgem em decorrências dos movimentos decoloniais.
Considera-se que ambos os cursos têm como referência o saber-poder jurídico calcado no modelo legal e no regime democrático, herança da modernidade e do liberalismo europeu e americano que serviram de base para a produção do sistema judiciário brasileiro. Assim, a perspectiva de análise da justiça, cidadania e direitos humanos segue ainda reproduzindo, de certo modo, a cultura eurocêntrica e não coloca em ação demais demandas sociais e culturas que possuem modos próprios de conceber e disputar direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na análise documental feita reafirma-se a relevância da abordagem dos direitos humanos na formação científico-profissional de bacharéis do Direito, a inserção de espaços e tempos de estudo e discussão dessa temática com vistas a fomentar o pensamento e posicionamento social, político e ético na atuação profissional dos sujeitos.
As matrizes curriculares analisadas, referente aos PPC dos Cursos de Direito de duas instituições federais de educação superior da região sul-brasileira, seguem a tendência histórica de priorizar a formação profissional via aquisição de um conhecimento sustentado na concepção liberal de justiça, cuja origem se deu no pensamento iluminista e na institucionalização do Estado Democrático de Direito moderno, como produtores dos dispositivos direito canônico e lei civil. Composição de uma vontade de verdade que constitui “o humano” como razão universal referendada no modelo civilizatório do colonizador branco e europeu, produzido pelo liberalismo como “o cidadão”.
Desse modo, os enunciados discursivos presentes nas matrizes curriculares mostram estarem relacionados com os contextos e processos históricos em que se deram e se dão a criação dos cursos e os processos de formação acadêmico-profissional propostos. As práticas discursivas e não-discursivas percebidas nos dispositivos curriculares permitem perceber a permanência de estruturas curriculares fragmentadas e herdeiras da tradição jurídica moderna.
Não é possível afirmar que a abordagem dos direitos humanos, embora presente em ambos os currículos, seja feita perspectiva decolonial capaz de favorecer a formação e atuação dos/as profissionais de Direito quanto aos problemas sociais e culturais de sua época e às demandas de grupos posicionados como subalternos na vida social, política e cultural, no sentido de romper com a cultura legalista, seus pressupostos formalistas e o papel do judiciário que não atende a pluralidade cultural e as demandas de diferentes grupos étnico-raciais, de gênero, entre outros (SOUSA JUNIOR, 2003).
Nesse entendimento, ainda que em lugar de um direito humano particular eurocêntrico fosse concebido um conceito de Direitos Humanos “transmoderno, pluriversal, mais incluso de todas as epistemologias, e que ainda não seria universal. Porque a universalidade - é apenas um instrumento legitimador de dominação colonial. E prova disso é a inexistência de um sistema internacional de proteção de Direitos Humanos”, pois enxerga as violações sofridas por comunidades originárias a partir de uma lente específica. “Em 500 anos de massacre indígena e 49 de existência da Corte Interamericana, apenas um caso brasileiro chegou a ser julgado - e sequer reconheceu a violência de disputa territorial”. (ALMEIDA; HOLZINGER, 2020, p. 242-243).
Reitera-se que, portanto, o combate da colonialidade do ser, saber e poder proposto pela virada epistemológica e política decolonial requer o redimensionamento da formação e atuação dos profissionais do Direito. Não basta adquirir o conhecimento da legislação e a maestria do aparato jurídico ao deter um conhecimento acadêmico específico da área jurídica. É preciso que deem conta das problemáticas sociais e culturais a serem legisladas, de modo que possam compreender e posicionar-se diante das situações que enfrentarão no exercício da profissão nos Tribunais e demais espaços de atuação social.