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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro Oct./Dez 2021  Epub Feb 18, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61743 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

O DIREITO À EDUCAÇÃO E A CIDADANIA NOS/DOS CURRÍCULOS PENSADOSPRATICADOS

THE RIGHT TO EDUCATION AND CITIZENSHIP IN/OF CURRICULUM THINKING AND PRACTICE

EL DERECHO A LA EDUCACIÓN Y LA CIUDADANÍA EN / DEL PENSAMIENTO Y LA PRÁCTICA CURRÍCULAR

1Professor da Universidade Federal do Acre e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE/Ufac. Bolsista Pós-Doutorado (PROCAD-Amazônia/CAPES) E-mail: rafamg02@gmail.com

2Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Acre. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: diegorosaop@gmail.com


Resumo

O objetivo deste artigo é promover reflexões sobre a relação intrínseca entre o direito à educação e os princípios constitucionais de cidadania e da dignidade da pessoa humana nos tempos atuais, à luz da transição entre o paradigma da ciência moderna e o paradigma da pós-modernidade, defendida pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. A partir das concepções da pesquisa no/do/com cotidiano, objetiva-se a valorização das práticas diárias, levando em conta a diversidade, a pluralidade e a heterogeneidade dos sujeitos envolvidos nos currículos pensadospraticados. Destaca-se que nos cotidianos escolares as políticaspráticas curriculares conectam-se diretamente aos meios e modos de vida dos membros da sociedade, tendo em vista que os currículos emergem a partir do trabalho coletivo e contínuo. Entende-se que a construção de uma sociedade efetivamente cidadã e democrática demanda uma nova cultura educacional, proveniente da valorização e cooperação das múltiplas formas de aprendizagem. Nessa direção, apostamos na necessidade de desinvizibilizar as práticas escolares voltadas para o reconhecimento da dignidade, cidadania e do sentimento de união na tentativa de romper com a cultura autoritária, hierárquica e vertical impregnada nas diferentes relações sociais.

Palavras-chave: cotidiano; currículo; cidadania; dignidade; emancipação

Abstract

The purpose of this article is to promote reflections on the intrinsic relationship between the right to education and the constitutional principles of citizenship and human dignity in current times, considering the transition between the paradigm of modern science and the paradigm of post-modernity, defended by Portuguese sociologist Boaventura de Sousa Santos. Based on the research conceptions in/of/with daily life, the objective is to value daily practices, considering the diversity, plurality and heterogeneity of the subjects involved in the curricula thought to be practiced. It is noteworthy that in everyday school curriculum policies and practices are directly connected to the means and ways of life of members of society, considering that curricula emerge from collective and continuous work. It is understood that the construction of an effectively citizen and democratic society demands a new educational culture, arising from the appreciation and cooperation of multiple forms of learning. In this direction, we bet on the need to deconstruct school practices aimed at the recognition of dignity, citizenship, and the feeling of unity to break with the authoritarian, hierarchical and vertical culture impregnated in different social relations.

Keywords: daily; resume; citizenship; dignity; emancipation

Resumen

El propósito de este artículo es promover reflexiones sobre la relación intrínseca entre el derecho a la educación y los principios constitucionales de ciudadanía y dignidad humana en los tiempos actuales, a la luz de la transición entre el paradigma de la ciencia moderna y el paradigma de la posmodernidad, defendida por el sociólogo portugués Boaventura de Sousa Santos. A partir de las concepciones de investigación en / de / con la vida cotidiana, el objetivo es valorar las prácticas cotidianas, teniendo en cuenta la diversidad, pluralidad y heterogeneidad de los sujetos involucrados en los currículos pensados para ser practicados. Es de destacar que en el día a día las políticas y prácticas curriculares escolares están directamente conectadas con los medios y formas de vida de los miembros de la sociedad, considerando que los currículos surgen del trabajo colectivo y continuo. Se entiende que la construcción de una sociedad efectivamente ciudadana y democrática exige una nueva cultura educativa, que surja de la apreciación y cooperación de múltiples formas de aprendizaje. En esta dirección, apostamos por la necesidad de deconstruir prácticas escolares orientadas al reconocimiento de la dignidad, la ciudadanía y el sentimiento de unidad en un intento de romper con la cultura autoritaria, jerárquica y vertical impregnada en las distintas relaciones sociales.

Palabras clave: cotidiano; reanudar; ciudadanía; dignidad; emancipación

INTRODUÇÃO

O debate sobre a política educacional brasileira, especificamente no tocante as ações públicas voltadas ao currículo escolar, sempre levantou argumentos e discursos acalorados. Apesar de antiga, a discussão sobre o tema ainda conserva grande vivacidade e atualidade, seja pelas polêmicas que provoca, seja pelas demandas efetivas de transformação da educação nacional em todos os níveis.

Vivemos em uma época ímpar, segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, determinada pela crise do paradigma moderno e pela transição, ainda indefinida, para a pós-modernidade. A realidade pós-moderna promoveu uma corrosão nos fundamentos universais e soberanos, pautado pela previsibilidade e ausência de perturbações. Os pontos de orientação firmes e solidamente demarcados foram substituídos por inúmeras e distintas concepções, que muitas vezes vão em direções opostas.

Diante do atual cenário contemporâneo extremamente diversificado, complexo e acelerado; a tarefa de educar torna-se cada vez mais árdua e não menos angustiante. Os indivíduos sentem-se perdidos frente as permanentes e rápidas mudanças que proporcionam um ambiente onde os vínculos sociais são criados instantaneamente e rompidos a qualquer momento. Reduziu-se a duração e a intensidade das relações de intimidade. Paralelamente, ocorre a gradativa desvalorização dos espaços e das vivências públicas.

Diariamente os sujeitos são expostos a uma infinidade de informações, discursos e metas de vida que contrasta com as reais possibilidades de absorção e consumação, tornando os indivíduos melancólicos e, muitas vezes, depressivos. Além do mais, o ambiente de constante competição, base da ordem urbana capitalista, gera um forte sentimento de repulsa para com o outro, proporcionando ambiente fértil para a intolerância e estimulando a insensibilidade em relação à angústia alheia.

O receio e a indiferença frente ao próximo e com as vivências coletivas, enfraquecem a solidariedade e cria uma cultura de completa apatia, tornando as pessoas inábeis para a convivência social cotidiana, restringindo a possibilidade de diálogo e ampliando a extensão das bolhas ideológicas e das câmaras de eco. Ademais, a superficialidade das interações pessoais reforça a compreensão individualista da realidade, que enxerga o outra como empecilho para a realização das suas vontades e projetos, deteriorando a esfera comunitária.

Nesse contexto, o âmbito escolar constitui “lócus” privilegiado para a transformação da realidade atual, à medida que promove o contato com valores, crenças e atitudes heterogêneas, possibilitando que os indivíduos ultrapassem o senso comum de maneira crítica e criativa. A atividade escolar tem o condão de fomentador a colaboração e convívio com o diverso, criando condições para a vida em comum, sem prejuízos à individualidade.

No presente trabalho entendemos que a noção de currículo, especialmente os currículos pensadospraticados (OLIVEIRA, 2012) nos cotidianos escolares, é muito mais ampla do que os temas ou conteúdos postos. Consiste no reflexo da imensa diversidade cultural dos funcionários, professores e alunos; bem como das conjunturas e interesses sociais, econômicos e, até mesmo, políticos que integram o próprio ambiente acadêmico. Assim sendo, o currículo é criado e reinventado diariamente, assimilando práticas e eliminando aspectos; revelando, dessa forma, possibilidades até então inimagináveis.

A interação coletiva entre os alunos e os demais sujeitos no ambiente escolar tem o condão de propiciar o reconhecimento e a ampliação de novas realidades e formas de participação social, muitas vezes desprezada na conjuntura atual excludente e focada na individualidade. Assim sendo, compreender e fazer emergir as práticas e experiências para uma educação cidadã é de grande relevância, pois a evolução da sociedade requer o exercício de uma cidadania ativa e participativa.

Evidencia-se o modo por meio do qual a educação favorece o desenvolvimento de indivíduos conscientes e interessados na promoção do bem comum, a partir da ampliação de espaços de debates e participação, onde o diálogo é peça fundamental, em contraposição à polarização atual. A aprendizagem voltada para a cidadania proporciona a mudanças de valores, de atitudes, de comportamentos e de crenças em favor da prática da tolerância, da paz, e do respeito ao ser humano, em um processo ativo.

A atividade educativa não ocorre de maneira isolada, apartada da realidade cotidiana, mas é sempre uma reação aos estímulos do ambiente e do próprio organismo do sujeito. Aprende-se por analogia, por associação, uma vez que no decorrer do processo vários sentidos e habilidades são estimuladas simultaneamente. Ignorar tal fato implica em desprezar elementos tão relevantes quanto o próprio ato de aprender.

Sendo assim, a sociedade precisa legitimar um modelo pedagógico que promova a mutualidade e a colaboração entre seus membros, propiciando o interesse e, consequentemente, a participação nas questões públicas. A educação é elemento fundamental para o avanço e aprimoramento da sociedade democrática.

A preparação das crianças não é uma responsabilidade exclusiva da escola, mas sim da família e da comunidade, isto é, dos contextos de aprendizagem formal e informal. Nesta lógica é necessário perceber em simultâneo como as ações desenvolvidas retroalimentavam as interações das crianças com o seu contexto social. Tal concepção propõe interpretações que demonstram a interdependência dinâmica, entre indivíduo e o meio, tendo em vista que o contexto social, econômico e político possui papel central para a configuração das ações e interações dos indivíduos.

Boaventura defende que os problemas modernos devem ser enfrentados de maneiras alternativas, inéditas; uma vez que o modelo atual não é capaz de oferecer soluções satisfatórias: “Se querermos ter uma compreensão mais ampla do mundo, temos de refundar as nossas ciências sociais. Temos que repensá-las” (SANTOS, 2018, p.117). Nessa circunstância, onde tudo é fugaz, líquido, a acepção de cidadania, assim como a da educação, deve ser fluída, maleável, em um processo de continua emancipação, para que não se torna anacrônica e obsoleta em um curto espaço de tempo. A educação deve abarcar todos os fatores e seus encadeamentos na evolução e transformação do indivíduo.

Compreendendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana

As ciências sociais consolidaram a importância da sociabilização para o desenvolvimento dos seres humanos. Desde a sua concepção, os indivíduos estão sob influência de uma série de estímulos que fazem parte, direta ou indiretamente, do avanço de suas habilidades, para além das capacidades biológicas.

A vida em sociedade por si só já contribui com a transformação dos seus membros, vez que promove o contato com visões heterogêneas de mundo, ampliando horizontes. Os inúmeros e complexos vínculos (família, amigos, trabalho, igreja etc.) exercem ingerência na formação do sujeito. Há uma relação intrínseca entre o indivíduo e a sociedade

Segundo o dicionário o termo cidadania consiste na condição de quem possui direitos civis, políticos e sociais, que garante a participação na vida política. A expressão indica também a qualidade de cidadão, que torna o indivíduo membro de um determinado Estado. Desta forma, a cidadania é inerente à sociedade e aos indivíduos que a constituem, gerando vínculos e o compartilhamento de hábitos, crenças e tradições.

Nesse contexto, pretende-se, inicialmente, resgatar e atualizar a noção de cidadania, sem qualquer pretensão de esgotar o debate sobre o tema. Admitiremos o atributo da evolução não linear ou sistemática da cidadania, ao longo de toda a história. Com o passar do tempo, novos elementos e significados foram sendo agregados ou sofreram mutações, decorrente das próprias alterações sociais. Trata-se, efetivamente, de ideia completamente dinâmica, que oscila de acordo com o contexto social, político e econômico de cada época. “A cidadania não é um conceito unívoco, sua conceituação é histórica e depende estritamente da percepção do momento histórico em que é forjada.” (GALLO, 2004, p. 136).

Assim, entendemos que o conceito de cidadania não se esgota na mera detenção dos direitos políticos e no exercício do voto, pois possui liame imediato com os direitos humanos, destinados para a defesa da dignidade humana e para a concretização dos seus direitos fundamentais (ARENDT, 2006). Não por acaso, foi alçada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, pela Constituição Federal de 1988, associado intrinsicamente com a dignidade da pessoa humana, em consonância a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Apesar do ordenamento jurídico não possuir uma definição específica sobre a dignidade da pessoa humana, pode-se defini-la como a característica inerente ao todo e qualquer ser indivíduo que o faz merecedor de respeito tanto por parte do Estado quanto da comunidade, coibindo o tratamento cruel ou degradante. Trata-se da concepção que confere aos seres humanos um status diferenciado na natureza, um valor intrínseco e a titularidade de direitos independentemente de atribuição por qualquer ordem jurídica. (BARCELLOS, 2019). Salienta-se que a dignidade da pessoa humana integra o conjunto de direitos sociais, denominado como o mínimo existencial, os quais o Estado é obrigado a garantir para que todo e qualquer indivíduo tenha uma vida para uma vida decente, razoável

Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo (BONAVIDES, 2001), p. 231, irradiando efeitos para todo o arcabouço jurídico nacional. Diante disso, a reflexão acerca da variedade e multiplicidade de conceitos se faz tão necessária, sendo essencial para identificar as relações existentes entre o dever estatal de promover condições necessárias para o pleno respeito aos direitos fundamentais e a sociedade brasileira.

Destaca-se que nunca se falou e ouviu tanto em cidadania e dignidade como nas últimas décadas, no Brasil. Tais temas constituem o centro de interesse de diferentes setores da sociedade: movimentos sociais, meios de comunicação, partidos políticos, organizações sindicais, instituições governamentais, organizações privadas e, notoriamente, a própria legislação. Uma educação conscientizadora e emancipadora, que garanta qualidade de ensino e acesso à cidadania, dignidade e a democracia, tem sido proposta tanto pela Carta Magna, quanto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Todavia, tais concepções, particularmente a cidadania, se tornaram noções vagas, abstratas, meramente formais, e muitas vezes utilizadas apenas para a retórica política ou institucional. Assim, seu conteúdo ético e valorativo tem se esvaziado, em virtude do desgaste de sua repetição completamente descomprometida. Tal contexto, nos leva a avaliar o aspecto material da cidadania, superando a mera compilação de conteúdos vagos ou ditames legais peremptórios, levando em conta o contexto social amplo e heterogêneo da realidade brasileira.

Enquanto a cidadania formal é atribuída aos indivíduos que preencham os requisitos constitucionais, a cidadania material é adquirida pela prática ao longo do tempo, como quase tudo na vida: andar, falar etc. Assim, a verdadeira cidadania tem a educação como base para o seu desenvolvimento, tendo a escola papel fundamental no seu processo de construção, à medida em que permite o intercâmbio de valores, conteúdos, crenças e, principalmente, atitudes, que possibilitam a transposição do senso comum pelo raciocínio crítico e criativo. “O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno (...) A educação é um pré-requisito necessário para a liberdade civil.” (MARSHAL, 1967, p. 73).

Deste modo, uma sociedade verdadeiramente democrática e cidadã é aquela que possibilita a criação e a expansão de pontos de contato entre indivíduos e grupos sociais, suprimindo as barreiras de classe, raça, gênero e do próprio território nacional que impedem a ampliação dos diversos comportamentos, conceitos e maneiras de enxergar a realidade. Portanto, a comunidade deve ser um emaranhado de canais que possibilitem o contato e o diálogo entre seus membros, alargando suas convicções e princípios comuns, para que possam promover mudanças significativas no presente e no futuro.

Compreendo os currículos e sua relação com a política

Articular as noções de cidadania e dignidade da pessoa humana relacionando tais elementos com o que entendemos por currículo e sua relação com a vida cotidiana da escolar, é apontar que o currículo precisa ir além de sua função primeira, ou seja, apenas formar, bem como partir ao encontro do que lhe é exterior para promover a ampliação de horizontes, colocando os sujeitos frente a uma constelação de possibilidades e formas de aprendizagens plurais. Dessa forma, a elaboração curricular não se restringiria a uma relação do conhecimento que se limitasse à mera explicação de fatos e eventos, e sim se configuraria como um palco de potenciação da realidade mais ampla ao sujeito.

Oliveira (2012) parte da ideia de que os currículos são criação cotidiana dos praticantes das escolas, tecidos por meio de usos singulares das normas e regras colocadas para consumo e em diálogo permanente com elas. A ideia é fazer emergir o debate sobre a noção de que as redes de conhecimentos tecidas pelos praticantespensantes do cotidiano dão origem a práticas curriculares emancipatórias, frutos dos diversos modos de inserção social destes no mundo, inclusive no campo do embate político e ideológico que habita a sociedade no atual cenário das discussões escolares e sobre as políticas curriculares.

Ao aprofundar o debate sobre a criação curricular cotidiana e a emancipação social, Oliveira (2012) afirma que o desenvolvimento cotidiano das práticas participativas e solidárias assumem grande importância na tessitura da emancipação social, em todos os espaços estruturais nos quais estamos inseridos, assim como a busca de sua ampliação institucional, A autora anuncia que as práticas pedagógicas desenvolvidas nessa perspectiva possuem relevância na formação das subjetividades daqueles que delas participam, tornando-se fundamentais nessa compreensão de desinvisibilização de existências não hegemônicas como meio de produção de futuros outros.

O reconhecimento e a valorização dos múltiplos currículos pensadospraticados, inventados pelos praticantespensantes dos cotidianos escolares, permitem, também, afastarmo-nos da ideia moderna e individualista de emancipação. Entendemos, ainda, que o currículo se situa na articulação entre a escola e a cultura. Logo, a escola é, ao mesmo tempo, produtora e reprodutora da cultura na sociedade em que se situa, trazendo em seu cotidiano as contradições, conflitos, referências identitárias e movimentos de diferença que fazem dela – e de suas tramas curriculares – um campo de contestações e de conflitos.

Portanto, na dimensão da tessitura curricular cotidiana entram em jogo as relações entre currículo e cultura. O currículo como uma prática cultural envolve, nele mesmo, a negociação de posições ambivalentes de controle e de resistência, conforme nos lembra Macedo (2006) quando define que o currículo precisa ser pensado como prática política e espaço de lutas e tensões ou uma arena de produção cultural. A ideia é compreender o currículo como um lugar híbrido de valores culturais, espaço no qual as culturas negociam com a diferença, favorecendo a partir de suas práticas a interação entre as variadas culturas, seja como objeto do ensino seja como produção cotidiana.

Assim, pensar o cotidiano escolar como espaçotempo de negociações de sentidos, de (re)criação e (re)invenção dos saberesfazeres, valores e emoções, requer ressaltar que este mesmo espaçotempo não é neutro e nele coexiste uma série de fatores externos e internos, influenciadores da maneira como os currículos são pensadospraticados e tecidos. Como um dos fatores, podemos citar a dimensão política, campo de muitos embates e disputas, passível de permear e subjetivar os usos que os praticantes fazem dos produtos e das regras oferecidas para o seu consumo (CERTEAU, 1994).

Frangella (2012) aponta que os estudos sobre as políticas vêm caminhando por binarismos e superposições, nas quais as diferentes abordagens apontam para a escola como cenário de desenvolvimento de ações prescritivas, advindas de esferas externas a elas. Contudo, quando buscamos assumir a cultura como produção cotidiana, enveredamos por uma dimensão onde a prática curricular não será apenas produto de determinações, mas sim permeada de possibilidades múltiplas que podem e vão influenciar as redes de conhecimentos envolvidas.

Com o apoio de Alves et all (2003), reforço nosso argumento de que as políticas do Estado ignoram que “políticas” também são práticas comuns, ordinárias, sobretudo em sua variedade cotidiana. Assim, quando se pensa nas políticas de currículo precisamos considerar que nos múltiplos espaçostempos onde se realizam as políticas oficiais, vivem os sujeitos praticantes, responsáveis por tecer e ressignificar as propostas que lhes são apresentadas.

Nas redes dentrofora das escolas (ALVES, 2010) encontram-se os atos de negociação, que com significados dialógicos são tecidos como base consensos e dissensos, embates e disputas, permeados por demandas externas ou ainda internas. Nesse sentido, podemos delimitar nosso campo da discussão curricular com o entendimento de que a tessitura dos currículos pensadospraticados percorre processos não lineares e envoltos nas/das redes de saberesfazeres das professoras e suas vidas cotidianas, que também são configuradas pelas redes de sujeitos e suas subjetividades.

Desse modo, as políticas de currículo necessitam de uma compreensão para além das questões que envolvem sua produção, seleção, distribuição e reprodução do conhecimento. Na verdade, elas precisam ser pensadas em uma perspectiva que favoreça a heterogeneidade e a variedade de saberesfazeres, que podem ser lidos por diferentes sujeitos e de diferentes formas, sem a pretensão de homogeneizar práticas, discursos e identidades, em outras palavras, de compreender sua pluralidade.

Macedo (2006) defende que é necessário apontar para o fato de que a definição de políticas públicas não exaure a produção curricular com prescrições construídas exclusivamente nas esferas e por sujeitos de poder, mas também não se reduz a experiências tecidas apenas no chão da escola. Nesse sentido, trazemos à tona a noção do ciclo de políticas proposta por Ball (1989), quando aponta que a produção curricular é uma dinâmica a se desenvolver continuamente em três contextos associados: o contexto de influência, o contexto da produção de textos e o contexto da prática.

Precisamos ter a atenção para a necessidade de partirmos do pressuposto de que as políticas, entendidas em sua complexidade e características contraditórias, possuem um movimento permanente nos espaçostempos, delineando sua trajetória e grau de (in)certeza sobre seu objetivo final. Considerando os pressupostos de Stephen Ball, seu modelo de análise das políticas está em permanente transformação, propagando a noção do ciclo de políticas, que auxilia a pensar as relações políticas e suas nuances nos/dos cotidianos escolares.

Para Ball (2001) a política curricular se constitui de forma cíclica e no enredamento de diferentes contextos. Assim, no que se refere ao cotidiano escolar, vamos compreendê-lo como espaçotempo de significação e de produção de sentidos, e não mais espaçotempo definido a partir da prescrição, bem como de sua repetição. Quando passamos a pensar o papel dos cotidianos escolares nas políticas curriculares, vamos assumir a necessidade de compreender a política para além do fim em si mesma, que envolve redes de subjetividades, poderes e saberes. Portanto, não se trata de trabalhar em função apenas do que está posto, é necessário ressignificar as redes tecidas por meio da compreensão de seus embates e negociações cotidianas, pensando em suas possibilidades.

Assumir a dimensão do ciclo de políticas como elemento de mediação da tessitura curricular, significa admitir que as políticas como mediações são codificadas de formas complexas a partir de embates, acordos, bem como interpretações e reinterpretações por parte das autoridades públicas, e decodificadas. Pensar essa dimensão das políticas públicas em face ao currículo também significa atribuir significados outros por parte dos sujeitos praticantespensantes envolvidos advindos de suas em suas histórias, experiências e possibilidades (Ball, 2006).

Portanto, não podemos compreender as políticas curriculares de forma simplista, como mera ordenação do sistema educativo ou validação dele pelas chamadas autoridades competentes. Tampouco é possível vislumbrar somente os interesses dos empenhos políticos. Por isso, o estudo das políticas curriculares exige um cuidadoso alinhamento do elemento político.

Torna-se necessário ter como perspectiva a combinação entre os diferentes elementos, encontrando-se os modos como eles se articulam estabelecendo mecanismos de intervenção-regulação. Isso impõe o desafio de estudo dos modelos políticos, refletidos ou não nas práticas cotidianas, nem sempre claras, indo além das orientações técnico-pedagógicas, extraindo delas as articulações e redes que as sustentam, na compreensão do componente político.

Ball (2001) propõe como direção para o desenvolvimento de estudos que abarquem ou se aproximem da complexidade das políticas curriculares, que se associem tanto à produção quanto à implementação das políticas, concebendo-as como processo, considerando também seus efeitos e produtos. Assim, o autor define política como “[...] uma economia de poder, um conjunto de tecnologias e práticas que são realizadas ou não em espaços locais. Políticas são tanto textos e ações, palavras e obras que são executadas bem como as intencionadas” (BALL, 2001, p.10).

Compreender as políticas curriculares por meio da noção do ciclo de políticas vai ao encontro da necessidade de identificar os distintos grupos, sujeitos e espaçostempos que a produzem. Tal busca de entendimento tem como intuito identificar ou trazer à tona suas institucionalidades e intencionalidades para o jogo do processo político, bem como considerar as diferentes formas de relação e interação existentes com esses grupos, apesar do enfoque na ação dos governos.

Nesse sentido, entra em jogo a noção da “política como discurso” que aponta para as disputas por poder, pelo controle de bens (recursos) e de discursos, em termos de vantagens e legitimidade sociais. Ball (2001) enfatiza os limites impostos pelo próprio discurso, afirmando que, embora haja variedade de discursos, existem enunciações dominantes em relação a outras, construindo e permitindo as subjetividades, as vozes, o conhecimento e as relações de poder. Com efeito, as relações discursivas atuam frente ao que pode ser dito e pensado, mas também sobre quem pode falar, quando, onde e com que autoridade.

Na tessitura de certas possibilidades de pensamentos (ideias e conceitos) e na exclusão de outras, encontramos estabelecida uma dimensão dentro da qual as políticas se movem e os consensos e conflitos acontecem, denominadas por Ball (2001) como contextos: o contexto da influência, o contexto da produção de textos e o contexto da prática. Tendo isso em vista, observemos as relações entre os contextos propostos pelo estudioso em questão a fim de buscarmos entender como engendram as políticas de currículo:

Abordando inicialmente o contexto da influência, Ball (2001) nos ajuda a compreender que esta conjuntura é aquela na qual os discursos políticos, que servem de base para a política, são construídos. Correspondem a Espaçotempo no qual as políticas, ou o pensamento sobre as políticas, são ou podem ser formados e/ou transformados, a partir da ação política. É neste contexto que os grupos de interesse e as redes sociais operam, dentro e em torno de partidos políticos, do governo e do processo legislativo, buscando adquirir apoio para seus argumentos e legitimidade para seus conceitos e soluções propostas.

Nesse contexto, estão envolvidas as influências globais e internacionais que podem ser entendidas tanto pelo fluxo de ideias – mediante a redes políticas e sociais que envolvem a circulação internacional de ideias, o processo de “empréstimo de políticas” e os grupos e indivíduos que “vendem” suas soluções no mercado político e acadêmico – quanto pelo patrocínio e, em alguns aspectos, pela imposição de algumas “soluções” oferecidas e recomendadas por agências multilaterais.

Ainda sobre o contexto de influência, é possível dizer que a participação das redes sociais, partidos políticos, do governo, da sociedade civil organizada, de organismos internacionais e do processo legislativo, viabiliza atuações, mesmo que momentaneamente, possuidoras de legitimidade, fomentando um discurso de base para as práticas políticas dos diversos grupos sociais.

É nesse processo que os discursos ao mesmo tempo em que recebem apoio, também são questionados nas arenas públicas formais, tendo como fonte a contribuição da circulação internacional de ideias, o empréstimo de políticas e até a venda de soluções, como aponta Mainardes (2006):

É nesse contexto que grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam nesse contexto as redes sociais dentro e em torno de partidos políticos, do governo e do processo legislativo (MAINARDES, 2006, p.51).

Referente ao contexto da produção de textos pode-se apontar que este denota o espaçotempo onde os textos políticos são produzidos. Geralmente, eles estão articulados com a linguagem do interesse público mais geral e podem tomar várias formas, entre elas: os textos legais oficiais e textos políticos, comentários formais e informais sobre os textos oficiais, pronunciamentos oficiais, vídeos, entre outros.

O produto do contexto de elaboração de texto explicita o resultado de disputas e acordos realizados por grupos atuantes em diferentes instâncias legais, competindo pelo controle das representações das políticas. Tal processo desencadeia uma relação simbiótica com o contexto de influência, porém, não evidente ou simples, tendo em vista que o contexto de influência está frequentemente relacionado com interesses mais estreitos e questões ideológicas.

Dessa forma, os textos políticos não mantêm, necessariamente, coesão e coerência interna. Eles podem ser contraditórios e utilizar os termos-chave da política de modo diverso, precisando de se realizar uma leitura em relação ao tempo e ao local específico de sua produção, tendo em vista não serem feitos nem finalizados no momento legislativo (MAINARDES, 2006).

Assim, chegamos ao contexto da prática, haja vista ser considerada uma arena de conflitos e contestações, envolvendo a interpretação e a tradução dos textos para a realidade, conforme é percebida pelos “leitores”. Alguns aspectos evidenciam essa leitura sobre a prática curricular em acontecimento e ajudam a compreender a singularidade da maneira como a política é estruturada em cada instituição. Um deles é a presença sempre de interação de uma nova política com aquelas existentes e, portanto, presentes anteriormente no contexto da prática, tendo em vista que políticas diferentes, muitas vezes, solicitam ações diversas realizadas simultaneamente.

Nesse sentido, Arroyo (2011) também afirma que focalizar os currículos como espaço de disputa e (re)produção de culturas, políticas e práticas, é percebê-los como espaçotempo onde vivenciamos e negociamos sentidos que fazem com que nossas redes de conhecimentos possam ser percebidas como práticas potentes, plenas de aspectos políticos. Assim, entender os currículos pensadospraticados nos tempos atuais aproxima-nos da noção de que sentir os currículos como criação cotidiana pressupõe trazer à tona as variadas formas como são tecidos.

Cabe ressaltar que, para Ball (2001), os variados contextos não devem ser vistos de modo segmentado, mas sim inter-relacionados e ainda variados. Portanto, os espaçostempos para a produção e circulação de propostas curriculares surgem nessa dinâmica e não há como ignorar a presença de processos de negociação, de conflito, bem como de polêmica na luta pela constituição de textos definidos curricularmente e que, em determinado tempo e espaço, seja consagrado como a política curricular.

Dias (2009) nos traz, com base também em Ball, o destaque dado à figura dos sujeitos e grupos sociais na produção da política o que acaba por desviar-se de uma tendência de políticas educacionais que atribuem ao Estado um papel de controle extremamente marcante, considerando a ação de forças externas, a exemplo dos organismos internacionais com prevalência sobre as decisões locais.

O fato é que, conforme Mairnardes (2007) aponta, o posicionamento de Ball provocou diversas críticas ao modelo de abordagem das políticas educacionais, sobretudo, quando o autor parte em defesa dos focos de análise que estejam para além das verticalizações. Ainda segundo Mainardes (2007), tais verticalizações independem de serem vistas em relações “de cima para baixo”, quando destacam o poder central, ou “de baixo para cima”, quando destacam o campo da prática nessa produção.

Esse breve estudo acerca das noções de conhecimento, currículo, cultura e política, busca compreender as relações que tais questões possuirão ao se entrelaçarem e, assim, fomentarem significações. Esse processo nos leva entender a pertinência da ideia de que os cotidianos escolares são espaçotempo de tessitura de currículos pensadospraticados e de políticas de currículo, podendo emergir deles ideais contra hegemônicos de micropolíticas e conhecimentos.

Alves et al (2012) apontam que os currículos fazem parte da “arte de governar”, salientando seu caráter de um campo para ressignificação das relações práticasteóricaspolíticas, tornando necessário compreender como os produtos advindos dos contextos de influência e de produção dos textos são e continuam sendo “consumidos”, usados, “adotados”, “escritos”, tornando-se currículos “realizados”, pelos praticantespensantes da vida cotidiana.

Portanto, os currículos são, também, uma realização decorrida das situações mais próximas dos indivíduos envolvidos nos cotidianos escolares, em seus dentrofora, embora, inevitavelmente, sempre relacionados às redes que compõem o conjunto do social, ou seja, os contextos de influência (BALL, 2001). Ao considerar que os sujeitos não estão confinados em um único lugar, afirmamos que, em suas vidas cotidianas, eles estabelecem usos diferenciados dos produtos e das regras, como nos lembra Certeau (1994), num processo de desenvolvimento de táticas inscritas nas possibilidades oferecidas pelas circunstâncias vivenciadas.

As diferentes “artes de fazer” dos praticantes, os usos e táticas que eles desenvolvem cotidianamente, são inscritas e delimitadas pelas redes de relações de forças entre o forte e o fraco, definidas em circunstâncias em que eles podem aproveitar-se para empreender suas “ações” no âmbito político. São modos de praticar o currículo cotidianamente que se assumem, como definiu Oliveira (2012) em currículos pensadospraticados.

Assim, no contexto das práticas vão transitar sujeitos múltiplos, oriundos de contextos diversos e que, juntos ou não, atuam de diferentes formas nas/das distintas arenas de negociação em que se inscrevem. Por esse motivo, necessitamos entender a vida cotidiana da escola na perspectiva da multiplicidade, composta por maneiras de fazer, ora convergentes, ora divergentes.

Ganha relevância nessa perspectiva o fato de que os sujeitos praticantes desenvolvem ações, fabricam formas alternativas de uso, tornam-se produtoresautores, disseminando alternativas, manipulando os produtos e as regras, para além do consumo puro e simples, mesmo que de modo invisível ou marginal (CERTEAU, 1994).

Ball (2006) também acentua que entender política como prática exalta a liberdade, demonstrando que há mais vida nas salas de aula e nas escolas do que seria perceptível por meio de uma pura e simples constatação de produtos, textos e currículos que atendam demandas oriundas de relações verticalizadas. Afinal, na vida cotidiana, existem outras preocupações, demandas, pressões, propósitos e desejos não inseridos de modo explícito nos textos das políticas.

Da busca pelas políticaspráticas emancipatórias no/do cotidiano

Com base em nossas compreensões de currículo e como estas se articulam com as políticas, partimos do pressuposto de que apesar de um discurso oficial de valorização da educação, de respeito às diversidades e da ênfase em conhecimentos relativos aos valores públicos vinculados à cidadania, não é raro que o cotidiano escolar exponha os alunos à atos de discriminação, exclusão e intolerância. Assim, a escola acaba favorecendo a manutenção do enorme hiato entre a proclamação de direitos e sua efetivação.

Os fundamentos do paradigma moderno ainda exercem grande influência no âmbito curricular, sendo o da unidade o mais robusto e longevo. Segundo o postulado a legitimidade dos métodos e teorias está diretamente atrelada a possibilidade de aplicação global, isto é, que possam ser unificados e repetidos de maneira indistinta. Nesse sentido, o uno é incompatível com o múltiplo, gerando a superioridade de determinados conhecimentos em detrimento da existência de uma variedade de saberes.

A referida centralização conduz ao autoritarismo e descarta as singularidades e especificidades da vida. As tramas formadas por inúmeras sabedorias, na criação curricular cotidiana, tendem a ser desconsideradas, desqualificadas e, até mesmo, ocultadas. Os procedimentos hierarquizados, advindos do âmbito empresarial, ganham destaque, afastando, assim, a coordenação horizontal e participativa. As pautas e propostas governamentais têm ganhado um peso muito significativo, chegando às instituições de ensino com grandes traços de obrigatoriedade

A autonomia passa a ser vista como um risco ao processo educacional e, assim, sendo os instrumentos normativos e reguladores são empregados no controle da atividade docente, muitas vezes usados de maneira intimidadora. Supostamente a qualidade do ensino está intrinsecamente ligada às restrições e limites impostos à liberdade do professor na sala de aula, a interação é suplantada por uma retórica monopolista e unilateral.

O presente trabalho possui a premissa de que não há como ocorrer a aprendizagem e o desenvolvimento constante do indivíduo, que proporciona perspectivas de transformações pessoais e coletivas, sem que haja espaço para as práticas e experiências locais. A política educacional, calcada em uma base nacional comum definida de cima para baixo, por instâncias distantes da realidade, implica em profundo golpe na concretização do direito à educação.)

Com efeito, uma educação realmente comprometida com os valores de cidadania, tolerância e respeito se expressa menos nos discursos e mais nas condutas e comportamentos que regem as ações pedagógicas no cotidiano de uma instituição escolar. Não se vivencia os valores cidadãos e democráticos em abstrato, teoricamente, de modo passivo. Portanto, somente por meio da experiência que se obtém a energia, a motivação e o entusiasmo, essenciais para estimular o almejado sentimento de união, solidariedade e pertencimento ao espaço público.

Sendo assim, o objetivo principal da pesquisa consiste em compreender como docentes inventam seus currículos articulando as decisões e propostas das esferas oficiais com práticas emancipatórias, utilizando suas utilizando suas táticas, suas artes de fazer (CERTEAU, 1994). A ideia de que os currículos são criados, efetivamente, na fluidez e na espontaneidade inerentes ao cotidiano escolar é chave a nossa argumentação, contrastando com o processo de engessamento curricular advindo de inúmeras políticas pedagógicas.

A ideia da construção de redes horizontais que por meio do diálogo e da crítica entre todos os interessados enriquece imensamente o processo, na medida em que preserva as singularidades, ao mesmo tempo que constrói algo em comum, de baixo para cima numa mudança procedimental viabilizadora da ampliação da intensidade democrática dos currículos. Mediante a integração de conceitos, conteúdos e de metodologias busca-se compreender o mundo em sua complexidade e diversidade e romper com a lógica individual, simplificadora e restrita.

Nesse contexto, ao analisar a ação docente partimos do pressuposto de que o professor tem um papel fundamental a desempenhar nesse processo, por se encontrar no ponto de contato entre a teoria e a prática. É por meio do educador que o conhecimento se aproxima do caso concreto, suas peculiaridades e variáveis, interligando os modos de aprendizagem e os sujeitos envolvidos, em continua construção e mutação, possibilitando o intercâmbio de experiências, essencial para uma educação verdadeiramente coletiva e emancipatória.

Deste modo, uma formação para o exercício da cidadania transcende o que está posto na legislação e nos conteúdos prescritos, pois decorre de um projeto educativo pragmático, emancipatório e, acima de tudo, democrático; concebido de forma coletiva e voltado para os interesses comuns da coletividade, e não somente para uma parcela restrita da sociedade. Nesse sentido, os indivíduos assumem o papel de cidadão ativos, críticos e conscientes da realidade a qual estão inseridos, sendo capazes de transformá-la.

Nessa circunstância, onde tudo é passageiro, momentâneo, a acepção de cidadania, assim como a da educação, precisa ser flexível, em um processo de continua evolução, uma vez que as condições sociais e do próprio aluno se modificam com o passar do tempo, sob o risco de se tornar obsoleta. Acreditamos que o currículo deve considerar todo o complexo e vasto encadeamento de fatores que evoluem e influenciam uns aos outros diariamente, sendo a cidadania e a dignidade pontos de partida para o surgimento de novos comportamentos e direitos, capazes de alterar transformar os indivíduos e, por conseguinte, a sociedade, tornando-a mais solidária e humana.

A construção de uma sociedade verdadeiramente cidadã, altruísta e democrática perpassa uma educação que estimula a formação e a expansão de pontos de contato entre indivíduos e grupos sociais, suprimindo as barreiras de classe, raça, gênero e do próprio território nacional que impedem a ampliação dos diversos comportamentos, conceitos e maneiras de enxergar a realidade. Sendo assim, para efetivas transformações na sociedade brasileira, o cotidiano escolar deve consistir em um emaranhado de caminhos que possibilite o convívio harmônico entre seus múltiplos e distintos membros, alargando suas convicções e princípios comuns, para que possam promover mudanças significativas no presente e no futuro.

Considerações finais

O objetivo das reflexões e análises deste artigo é favorecer e estimular a criação de táticas (CERTEAU, 1994) que relacionem os diferentes segmentos que integram o currículo, de modo que o sujeito absorva e ressignifique os diversificados saberes, possibilitando, desta forma, o desenvolvimento de suas próprias concepções. Para tanto, é imperioso que o ambiente escolar estimule a promoção de dinâmicas interativas e colaborativas entre os alunos, promovendo múltiplas conexões entre os diversos campos de do conhecimento.

Pretende-se retirar as práticas cotidianas do ostracismo, para que possam ser entendidas como outras formas de educação emancipatória, tomando o alunos e professores como sujeitos ativos, dotados de peculiaridades e características únicas. Nesse sentido, compreende-se que o processo de aprendizagem não se restringe à mera transmissão de conteúdo, muitas vezes impostos de forma vertical, possuindo como objetivo principal o desenvolvimento das capacidades críticas do envolvidos, por meio do convívio com o diferente e da solução prática de problemas, relacionados com a realidade em que estão inseridos.

O conhecimento advindo das experiências reais e ordinárias foi retirado do ostracismo e ganhou espaço como matriz de saber, múltipla, fluída e repleta de significados. As atividades habituais, ecléticas e cheias de meandros, anteriormente negligenciadas, passaram a ser valorizadas. O processo diário e contínuo de acepção e modificação das formas, modelos e diretrizes vigentes, possibilita a inclusão e o destaque das sabedorias singulares e em constante mutação, adquiridas e formadas no decorrer da vida cotidiana do indivíduo. O professor, no decorrer da prática educacional cotidiana, improvisa, inventa, burla e cria regras.

Busca-se superar a abstração advinda da utilização atual do termo cidadania, que na maioria das vezes consiste em uma questão meramente teórica ou semântica. Para tanto, fomenta-se a coexistência concreta e harmônica entre as múltiplas e diversas concepções de vida, respeitando suas especificidades e diversidades, sem a submissão ou a supressão do outro. Não se trata, contudo, de buscar e catalogar as práticas, costumes e hábitos para uma eventual padronização da estrutura social, mas sim a valorização das pessoas reais, únicas e distintas no seu modo de sobreviver e de lidar com acontecimentos no decorrer da vida.

Desta forma, entende-se que atividade educativa não ocorre de maneira isolada, apartada da realidade cotidiana, mas é sempre produto da interação entre os estímulos do ambiente e do próprio sujeito. Aprende-se por analogia, por associação e, por que não, pelo sentimento, uma vez que no decorrer do processo vários sentidos e habilidades são estimuladas simultaneamente. Ignorar tal fato implica em desprezar elementos tão relevantes quanto o próprio ato de aprender, que vai muito além do cotidiano escolar.

Conceber o cotidiano escolar enquanto um espaçotempo de convivência e conciliação de conhecimentos heterogêneos é desafiador e, ao mesmo tempo, assustador, pois, muitas vezes, acaba por contradizer e enfraquecer os alicerces de crenças e dogmas, tidos como verdades irrefutáveis e inquestionáveis. No entanto essa partilha e intercambio é fundamental para a promoção de um sentimento de tolerância e cooperação, uma vez que a harmonia entre diferentes vozes, acaba por encurtar as distâncias e minimizar a polarização e a dicotomia advindas do paradigma moderno. É um instrumento que permite valorizar os mais variados passados para criar perspectivas futuras completamente novas e inimagináveis.

A pluralidade e a solidariedade interdisciplinar, por mais árdua que seja, é o caminho para superação do reducionismo no conceito de aprendizagem e educação. Em um cotidiano que, muitas vezes, insiste em propagar certezas, verdades absolutas e monolíticas; a prática educacional cidadã, busca incertezas por meio da reflexão e do senso crítico, para implementação de uma educação cidadã, isto é, que levanta temas polêmicos e promova questionamentos sem receios de eventuais equívocos, refletindo a realidade atual repleta de pontos de convergência e divergência.

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Setembro de 2021

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