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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61672 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

DIREITOS HUMANOS, LAICIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR: “eu sempre rezei o pai nosso na escola”

HUMAN RIGHTS, LAICITY AND SCHOOL EDUCATION: “I always prayed for our father in school”

DERECHOS HUMANOS, LAICIDAD Y EDUCACIÓN ESCOLAR: “siempre recé el padre nuestro en la escuela”

Fábio Alves Gomes1 
http://orcid.org/0000-0003-4911-1185; lattes: 4750985697939221

Wanda Maria Junqueira de Aguiar2 
http://orcid.org/0000-0003-0265-9354; lattes: 1565105678352914

1Universidade do Estado do Amazonas E-mail: fbgomes@uea.edu.br

2Pontifícia Universidade Católica de São Paulo E-mail: iajunqueira@uol.com.br


Resumo

Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa sobre direitos humanos e educação escolar. O objetivo geral foi investigar a dimensão subjetiva do processo educacional de uma escola pública da cidade de São Paulo. A abordagem metodológica e o procedimento de produção de informação foram inspirados na pesquisa crítico-colaborativa. Os procedimentos de análise e interpretação das informações foram fundamentados na proposta dos núcleos de significação. O materialismo histórico-dialético e a psicologia sócio-histórica constituem a fundamentação teórico-metodológico desta pesquisa. Os resultados evidenciam: a ausência de fundamentação teórica que oriente as práticas de enfrentamento e violência na escola, recorrendo-se à religião cristã para responder a esta questão; a resistência em abordar temas considerados divergentes dos dogmas cristãos no currículo escolar.

Palavras-chave: educação escolar; direitos humanos; laicidade

Abstract

This study presents the results of a survey on human rights and school education. The general objective was to investigate the subjective dimension of the educational process of a public school in the city of São Paulo. The main objective was to investigate the subjective dimension of the educational process in a public school in the city of São Paulo. The methodological approach and the information production procedure were inspired by critical-collaborative research. The procedures for analyzing and interpreting the information were based on the proposal of meaning nuclei. Historical-dialectical materialism and socio-historical psychology constitute the theoretical-methodological foundation of this research. The results show: the lack of a theoretical foundation to guide the practices of confrontation and violence in school, using the Christian religion to answer this question; the resistance to address topics considered divergent from Christian dogmas in the school curriculum.

Keywords: school education; human rights; laicity

Resumen

Este estudio presenta los resultados de una investigación sobre derechos humanos y educación escolar. El objetivo general fue investigar la dimensión subjetiva del proceso educativo en una escuela pública de la ciudad de São Paulo. El enfoque metodológico y el procedimiento de producción de información se inspiraron en la investigación crítico-colaborativa. Los procedimientos de análisis e interpretación de la información se basaron en la propuesta de núcleos de significado. El materialismo histórico-dialéctico y la psicología socio-histórica constituyen el método y fundamento teórico-metodológico de esta investigación. Los resultados evidencian: la ausencia de fundamentación teórica que oriente las prácticas de enfrentamiento y violencia en la escuela, recurriendo a la religión cristiana para responder a esta cuestión; la resistencia a abordar temas considerados divergentes de los dogmas cristianos en el plan de estudios escolar.

Palabras clave: educación escolar; derechos humanos; laicidad

INTRODUÇÃO

O presente estudo compõe uma série de análises e interpretações empreendidas pelo grupo de pesquisa Atividade Docente e Subjetividade, do Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a partir da proposta de pesquisa e formação junto a uma escola pública municipal da capital paulista. Tal pesquisa é parte do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD), coordenado pela PUC-SP, agregando ainda pesquisadores da Universidade Federal do Alagoas, Universidade Federal do Piauí e Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

O objetivo geral das pesquisas desenvolvidas no PROCAD foi investigar a dimensão subjetiva do processo educacional, dando visibilidade às significações constituídas por docentes e gestores e suas relações com o processo de transformação do indivíduo como ser mediado pela história e pela cultura.

No primeiro contato com a escola, foi solicitado aos docentes e gestores que apresentassem temas que considerassem importantes e que atendessem às suas necessidades formativas. Sendo assim, trouxeram como sugestão os temas: gestão escolar, autoconhecimento, nutrição escolar, inclusão de estudantes com deficiência e direitos humanos. Os resultados aqui apresentados derivam das discussões realizadas no subgrupo sobre direitos humanos.

OS DIREITOS HUMANOS: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO

A discussão sobre quais poderiam ser os objetos de investigação por meio do método materialista histórico-dialético não raramente apresenta posições equivocadas. Uma delas diz respeito à suposta impossibilidade de tratar os temas que não estejam diretamente relacionados à economia política, uma vez que Marx e Engels dedicaram-se a apreender o fenômeno do capital e da sociabilidade burguesa. Há, também, outras interpretações errôneas:

Atualmente, no diversificado e heterogêneo campo dos adversários (e mesmo detratores) de Marx, a crítica se concentra especialmente sobre dois eixos temáticos. O primeiro diz respeito a uma suposta irrelevância das dimensões culturais e simbólicas no universo teórico de Marx, com todas as consequências daí derivadas para a sua perspectiva metodológica. Apesar de amplamente difundida em meios acadêmicos, trata-se de uma crítica absolutamente despropositada, facilmente refutável com o recurso à textualidade marxiana [...]. O segundo eixo temático relaciona-se a um pretenso “determinismo” no pensamento marxiano: a teoria social de Marx estaria comprometida por uma teleologia evolucionista – ou seja, para Marx, uma dinâmica qualquer (econômica, tecnológica etc.) dirigiria necessária e compulsoriamente a história para um fim de antemão previsto (o socialismo). (NETTO, 2011, p. 15)

Outro equívoco é a compreensão de que a materialidade, segundo o método materialista histórico-dialético, necessariamente refere-se a fenômenos observáveis. Na primeira tese sobre Feuerbach, Marx (2007) refuta essa distorção, visto que a materialidade é constituída da relação contraditória entre dimensão objetiva e subjetiva:

O principal defeito de todo materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente. (MARX, 2007, p. 533)

Dito isso, espera-se que sejam enfrentados quaisquer estranhamentos quanto à discussão do tema dos direitos humanos fundamentada no materialismo histórico-dialético.

Os direitos humanos, embora relativamente recentes, resultam de um longo processo sócio-histórico. Registros arqueológicos comprovam a existência de declarações de direitos humanos desde a Antiguidade, como o Cilindro de Ciro1 ou o Código de Hamurabi2. No século XVIII, França e Estados Unidos eram países que já haviam adotado uma Declaração pelos Direitos Humanos. Porém, foi com o advento da primeira e da segunda grandes guerras que se fortaleceu um movimento internacional, com o objetivo de criar uma organização para prevenção de guerras e promoção da paz. Uma tentativa frustrada de tal organização foi a fundação da Liga das Nações, em 1919 que, por não conseguir impedir a segunda guerra, deixou de existir. Em 1945, com a participação de 50 países, institui-se a Organização das Nações Unidas (ONU) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019). Três anos depois, na assembleia geral da ONU em Paris, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento elaborado por representantes dos países-membros da organização, contendo o que seriam direitos inalienáveis humanos.

Assinalamos, todavia, que razões que motivaram a criação da ONU - a morte em grande escala e a fome-, existiam há séculos nos países colonizados na América, Ásia e África. Enquanto povos originários das mais diversas etnias eram escravizados e assassinados, não houve tal mobilização internacional em favor da paz. Quando o genocídio chega à Europa e à América do Norte surge o clamor liberal pelos direitos humanos. Apesar de conclamarem liberdade, igualdade e fraternidade, países europeus justificavam as colonizações e, posteriormente, com as independências das colônias, seguiram justificando o imperialismo e a exploração da classe trabalhadora.

Concluímos que os “humanos” em questão eram, do ponto de vista hegemônico, apenas homens, brancos e detentores de propriedade privada. Daí a importância de firmar nossa posição, não contra os direitos humanos, mas contra a visão excludente de direitos para alguns. Logo, a crítica não equivale à recusa dos direitos humanos, já que são os movimentos operários os primeiros a requererem (muitos pagando com a própria vida) direitos humanos básicos relacionados à: alimentação, condições dignas de trabalho, moradia, segurança, educação, participação política etc. São esses movimentos que lutaram (e lutam) contra a desumanização da sociabilidade capitalista em suas diversas formas de alienação.

A perspectiva sócio-histórica desvela a contradição que afirma a liberdade, mas explora homens e mulheres; que fala em igualdade, mas justifica as desigualdades sociais. Abordar os direitos humanos, segundo o materialismo histórico-dialético, é posicionar-se ética e coerentemente em favor da emancipação humana.

A busca por emancipação política, por meio dos direitos civis, foi tema de discussão de Marx (2010) em “Sobre a questão judaica”. O autor analisa a busca dos judeus por direitos civis no Estado alemão confessional cristão e faz duras críticas ao Bruno Bauer, que se opunha à reivindicação judaica.

Do ponto de vista de Bauer, os judeus não deveriam buscar direitos civis porque, ao invés de reivindicarem que o Estado alemão reconhecesse a especificidade da religião judaica, deveriam abdicar da religião, tal como deveriam fazê-lo também os cristãos, uma vez que, para o filósofo, a emancipação dos homens prescindia a suplantação de toda religião:

Bauer exige, portanto, por um lado, que o judeu renuncie ao judaísmo, que o homem em geral renuncie a religião, para tornar-se emancipado como cidadão. Por outro lado, de modo coerente, a superação política da religião constitui para ele a superação de toda a religião. De acordo com Bauer, o homem deve renunciar ao “privilégio da fé” para acolher os direitos humanos universais. (MARX, 2010, p. 34, 36, 47).

Considerando as contradições dos judeus alemães naquela ocasião (a alienação religiosa e o individualismo), Marx faz a análise da situação não a partir da posição idealista de Bauer (o ideal seria que o Estado alemão fosse laico), mas a partir do real, ou seja, da concretude do Estado alemão naquele momento. Comparando a Alemanha com os Estados Unidos e a França, onde a secularização do Estado já havia se efetivado, conclui: “[...] A questão judaica deve ser formulada de acordo com o Estado em que o judeu se encontra” (MARX, 2010, p. 37). A supressão do Estado religioso não significaria nem supressão da religião, tampouco significaria emancipação humana. Para Marx, embora a emancipação política representasse algum avanço, seria insuficiente, pois a emancipação humana só seria possível por meio da supressão do Estado burguês. Clemesha (2010), alerta que, apesar de não ter plenamente desenvolvida a tese de que o proletariado seria a única classe portadora do universal, em “Sobre a Questão Judaica” está o assentamento das bases do materialismo histórico-dialético.

E este é o ponto que discutiremos aqui: a luta pela emancipação de todos os sentidos e qualidades humanas, pela igualdade entre todos os humanos, pelo fim de toda forma de opressão e alienação, não exclui a importância dos direitos humanos “dentro da ordem mundial vigente”:

[...] os direitos humanos têm, sim, um caráter burguês. São direitos, como todos os outros, que integram a sociabilidade que se ergue sobre os alicerces do capital, da propriedade privada. Nem por isso são menosprezáveis agora nem suprimíveis no socialismo, a não ser por via social. Pois, se de um lado eles contribuem – independentemente das intenções dos que os defendem – para a reprodução da sociabilidade capitalista, de outro lado, eles também possibilitam a defesa e a ampliação do espaço de realização do indivíduo e, portanto, do gênero humano nesta mesma sociedade. De modo que a luta pelos direitos humanos, como pelo conjunto das objetivações democrático-cidadãs, não só é válida como pode ter um papel muito importante. Mas é preciso ter claro que ela pode ter um caráter reformista ou revolucionário. Terá um caráter reformista, e, portanto, contribuirá para a reprodução dessa ordem social desumana, se tiver como fim último o aperfeiçoamento da cidadania e da democracia. Terá um caráter revolucionário se tiver clareza quanto aos seus limites e se estiver articulada com lutas claras e radicalmente anticapitalistas. (TONET, 2002, p. 72).

Concordando com Tonet (2002), concebemos a importância dos direitos humanos em sua forma transitória, como um meio necessário para alcançar o fim da sociabilidade capitalista. Homens e mulheres precisam de reformas para produzir a satisfação de suas necessidades, ou seja, para transformarem o mundo, precisam estar vivos:

O primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimentas e algumas coisas mais (MARX, 2007, p. 32-33).

Fundamentados no materialismo histórico dialético, então, que dialeticamente enfrentamos as contradições dos direitos humanos sob a perspectiva liberal e, concomitantemente, reivindicamos no tempo histórico atual a efetivação dos direitos humanos no tratamento digno a todos os homens e mulheres como posicionamento ético-político, entendendo-nos como participantes da genericidade humana.

MÉTODO

O materialismo histórico-dialético e a psicologia sócio-histórica constituem a fundamentação teórico-metodológica deste estudo. Conforme citado anteriormente, a materialidade é constituída dialeticamente das dimensões objetiva e subjetiva (MARX, 2007). Sendo a subjetividade uma dimensão não observável, como apreendê-la? Segundo Aguiar (2015):

Recorrendo a Vigotski, podemos afirmar que as palavras/signos são nossos pontos de partida para apreende a constituição da subjetividade, um ponto de partida entendido aqui como um momento do desenvolvimento teórico. Ao destacar a importância dos signos, devemos enfatizar que entendemos a linguagem ao mesmo tempo como mediação da subjetividade e como instrumento produzido social e historicamente, materializando assim as significações construídas no processo social e histórico. (AGUIAR, 2015, p. 158-159).

A fala, portanto, é a exteriorização da subjetividade dos sujeitos e analisá-la para além da aparência exige do pesquisador um esforço na busca das mediações sociais e históricas da realidade objetiva que constituem a dimensão subjetiva.

Lócus e participantes da pesquisa

A pesquisa foi realizada em uma escola pública municipal da cidade de São Paulo. Os encontros aconteceram no horário de estudo coletivo. Compuseram o subgrupo dos direitos humanos dez docentes do Ensino Fundamental.

Procedimentos de produção da informação

O procedimento de produção de informação da pesquisa foi inspirado na Pesquisa Crítico-Colaborativa (MAGALHÃES, 2019), por esta ser também fundamentada no materialismo histórico-dialético e na psicologia sócio-histórica. Nela, o grupo participa da escolha dos temas a serem estudados e as discussões ocorrem de forma horizontal, não centrada na figura do pesquisador ou do formador. As informações produzidas dizem respeito às opiniões coletivas, que revelam a visão de mundo de determinado grupo social. Ora, essa opinião coletiva somente é possível se estiverem reunidos participantes que falam de um mesmo lugar. Embora os grupos sejam formados por indivíduos singulares (com visões de mundo que se ora se aproximam, ora se distanciam, ora entram em contradição), eles dividem o mesmo tempo e espaço e vivem experiências comuns.

Foram realizados dois encontros de uma hora e meia de duração cada, que foram gravados em áudio e transcritos para análise. Embora o tempo de encontro seja insuficiente para a formação sobre um tema tão complexo, ficaram evidentes quais os pontos que deveriam ser aprofundados posteriormente por aquele coletivo. A intenção desses encontros não era responder às necessidades imediatas do cotidiano escolar, mas provocar quanto aos pontos sobre os quais precisavam se debruçar minuciosamente. As problematizações, ao focarem as questões do cotidiano que se naturalizam e tornam-se práticas cristalizadas, criam a condição da crítica e evidenciam as necessidades formativas, constituindo, assim, uma situação social de desenvolvimento.

Procedimentos de análise e interpretação das informações

Os procedimentos de análise e interpretação das informações foram fundamentados na proposta dos Núcleos de Significação (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2016). Por significações entende-se a articulação entre as categorias sentidos e significados, estudadas por Vigotski (2001), nas quais se expressam a relação dialética entre pensamento e linguagem. A palavra é, então, o dado empírico que apresenta a aparência do fenômeno; e o procedimento núcleos de significação é uma forma de, partindo do empírico, compreender e explicar a sua dimensão concreta.

As falas transcritas dos sujeitos foram organizadas em três etapas: o levantamento de pré-indicadores, a sistematização de indicadores e a sistematização dos núcleos de significação.

A primeira etapa, o levantamento dos pré-indicadores, exige do pesquisador a leitura exaustiva das transcrições, atentando para as repetições, ênfases, frases não concluídas, contradições e expressões que revelam emoções, analisando os enunciados, levando em conta o sujeito histórico e não o “sujeito individualizado”, tendo em vista a apreensão dos significados históricos e socialmente construídos (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2016).

A segunda etapa consiste em reunir os diversos pré-indicadores por similaridade, complementaridade ou contraposição: os indicadores contêm agrupadas as subcategorias que tratam de um mesmo tema geral. É nessa fase da análise que as contradições entre os indicadores se tornam mais evidentes, exigindo do pesquisador a elaboração da síntese, formando núcleos de significação, que é a terceira etapa. Nos núcleos de significação, as falas, separadas em partes para análise, voltam à sua forma inicial, à totalidade, não mais como falas coladas no significado imediato da palavra, mas analisadas e interpretadas pelo pesquisador, que terá alcançado seu propósito ao apresentá-las constituídas pela realidade concreta, apreendida dos conteúdos analisados.

Os dados produzidos resultaram em oito indicadores que foram organizados em três núcleos de significação: a) “Eu sempre rezei o pai nosso na escola”3: a questão da religiosidade; b) As contradições do cotidiano docente; c) Os impedimentos aos direitos humanos. O presente texto trata apenas do primeiro núcleo, formado por três indicadores: A religiosidade cristã na escola laica e a expressão da intolerância às outras religiões; a religião como reguladora dos conteúdos a serem discutidos; a religiosidade como ferramenta para manter a disciplina e atingir a humanização.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Um dos desafios para quem opta pelos grupos de discussões é o risco de “perder o fio da meada”, pois um assunto de interesse pode ser facilmente desviado para outro que não seja relevante para a pesquisa, perdendo-se de vista a intencionalidade da discussão. Dado que o objetivo da pesquisa é analisar a dimensão subjetiva sobre os direitos humanos na escola, a temática da religiosidade pode parecer ser um “desvio” do real foco da discussão. Porém, os(as) docentes participantes apontaram a relação entre religiosidade e direitos humanos.

A dinâmica do encontro se deu da seguinte forma: os(as) docentes liam coletivamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e comentavam os aspectos que consideravam relevantes, fomentando as discussões. Uma docente destacou, logo de início, as expressões “direitos e liberdades”, associando-as à liberdade e à tolerância religiosa:

[...] o segundo [artigo] “todo o homem tem capacidade de gozar os direitos e liberdades...”. Aí tá. Aí está falando de raça, de religião, acho que cabe na escola né? Até por ela ser laica, de respeitar as questões de gênero [...] A gente ainda não conseguiu evoluir em relação a isso, né? (Docente 5).

Então, nós pensamos numa escola laica, respeitando as diferenças, apesar de que já tem um avanço, já tem uma escola que avançou nesse sentido. [...] Até no caso da escola laica né? A gente não entende que tem casos de professor que força[...] não sei aqui, a gente vê professor que leva um textinho religioso, tem caso de escolas que[...] (Docente 4)

Ao voltarem para a leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, outro docente destaca o artigo 26, seguido de uma provocação:

A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade, do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem [...] promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos […] menos aqueles que a gente não gosta [...] (Docente 3).

Menos aqueles que não concordam comigo [...] (risos) (Docente 2).

O diálogo evidencia a existência de uma preferência religiosa na escola, dando a entender que as expressões “compreensão” e “tolerância” propostas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos não ocorria, a não ser que os grupos religiosos coincidissem com determinada religião. Os outros participantes passam a identificar ou denunciar os elementos que comprovam tal preferência:

Então... a coerência: eu sou cristã, a escola é laica, beleza, a gente fez todo esse discurso. Mas na porta da secretaria, tem uma bíblia (Docente 1).

Uma bíblia com o terço em cima (Docente 2).

E tem um santo ali, já não tem? Tiraram o santinho dali? (Docente 4).

É [...] E eu sou católica, mas eu não acho certo impor a minha fé, você entendeu? (Docente 4).

Acho que a Nossa Senhora de Aparecida está na sala da M. (Docente 1)

A presença de objetos identificados com o catolicismo (terço, imagens de santos, bíblia) evidencia a não secularização do espaço público escolar, apesar de constar na Constituição Brasileira que a mesma é laica. Alguns docentes se mostraram incomodados, mas a maioria aparentemente atenuava essa mistura entre a coisa pública e religião. Além dos objetos tidos como sagrados, os(as) docentes também apontaram o incômodo com as festas de comemoração de feriados católicos na escola (Páscoa, a Festa Junina, o Natal).

A fala do grupo refere uma prática comum nas escolas (exceto nos colégios confessionais não cristãos): rezar o Pai Nosso, escrever versículos bíblicos no cabeçalho das lições, fazer orações antes das refeições e comemorar efemérides cristãs. Elementos da doutrina cristã como a ressurreição de Cristo na Páscoa, seu nascimento virginal no Natal, a Festa Junina em louvor aos santos católicos São João, Santo Antônio e São Pedro, estão tão arraigados na cultura escolar que não raramente usam-se discursos naturalizantes que justifiquem a imposição de dogmas religiosos aos estudantes, de forma a relativizar a exclusão de ateus, evangélicos, testemunhas de Jeová, judeus, budistas, mulçumanos etc.

A questão da prática é também complicada, porque quando você faz a festa junina, os alunos que não são católicos, eles não vêm. Até... falou assim “ah ele não vai dançar festa junina? Por quê? Ah, tadinho [...] não vai poder participar”. (Docente 1).

A docente apontou que o fato de um estudante não participar de uma comemoração católica na escola não é problematizado e a revisão deste tipo de prática não é realizada, como se nada pudesse ser feito a respeito: “Ah, tadinho”. E o direito dos estudantes à escola laica, reivindicado pelas famílias, na recusa a participar de tais atividades, é tratada como “encrenca”, implicância gratuita:

Mas a família da A. não encrenca com a Páscoa nem com o Natal, ela encrenca só com a festa junina (Docente 3).

Algumas instituições optam por seguir comemorando as efemérides cristãs, descaracterizando suas raízes para que adquiram um aspecto de neutras, como se fossem universais (a festa junina passa a ser chamada de festa da colheita, por exemplo). Ao relativizar práticas excludentes, a escola esvazia seu papel de dialogar criticamente sobre a razão de ser das coisas ao invés de simplesmente as reproduzir. A essa reprodução mecânica denominamos de “comportamento fossilizado”:

Esses modos e formas de conduta que se encontram, que surgem de forma estereotipadas em determinadas circunstâncias, vem a ser formas psicológicas petrificadas, fossilizadas, originadas em tempos remotíssimos, nas etapas mais primitivas do desenvolvimento cultural do homem, que se tem conservado de maneira surpreendente, como vestígios históricos em estado pétreo e ao mesmo tempo vivo na conduta do homem contemporâneo. (VIGOTSKI, 2000, p. 63).

Talvez essa prática se tornaria um incômodo se os objetos que fazem referência ao catolicismo no espaço escolar fossem substituídos por outros de religiões diversas: Qual seria a reação dos que participam do espaço escolar se, ao invés de uma bíblia, tivesse o corão? E se ao invés da imagem de um santo católico, tivesse a imagem de uma divindade do Candomblé ou do Hinduísmo? Por que esses objetos católicos estão ali e desde quando? Esse movimento de tentar apreender “o que é” pelo que ele “não é”, ou seja, debruçar-se sobre o ser pela sua negação é fundamental para apreender suas contradições e constituição. Questionar “como o que é adquiriu essa forma?” e “por que ela se mantém?” é um modo de buscar as mediações que constituíram o fenômeno, a fim de que se perceba que este não é transcendente, senão produção humana, ou seja, a materialidade é histórica.

A história da educação brasileira começa, justamente, por meio da ação católica. Os primeiros educadores do território colonizado foram os padres jesuítas. Já laicização do Estado brasileiro é muito recente, data de pouco mais de um século.

Segundo Cunha (2013), a laicidade do Estado brasileiro teve início com a imigração branca, favorecida pelo poder público nas primeiras décadas do século XIX, para substituir a força de trabalho negra e pagã e contribuir com o projeto de miscigenação e branqueamento da nação. Protestantes, em sua maioria, influenciaram a laicização do casamento, do registro de nascimento (sem batismo) e do óbito.

Em 1824, foi outorgada a primeira constituição brasileira que, apesar de afirmar o Estado como oficialmente católico, permitia a liberdade religiosa, desde que não fossem construídos templos. Entretanto, é com a constituição de 1891 que se declarou, finalmente, que nenhum cidadão brasileiro poderia ter prejuízo de seus direitos civis em decorrência de confissão religiosa ou a ausência dela. Assim, por meio dessa constituição se instituiu a liberdade de cultos públicos e a secularização dos cemitérios.

A laicidade do Estado, expressa na forma da lei, não foi garantia de sua efetivação, como ocorre com outras leis no campo da educação como a Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003) e a Lei nº 11.645 (BRASIL, 2008), nas quais é afirmada a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras, mas acabam ficando apenas no campo ideal.

A ideologia conservadora, a fim de ocultar sua verdadeira intenção proselitista, defende-se da exigência de laicidade nas instituições públicas, afirmando que há uma tentativa de silenciar ou perseguir cristãos, invertendo o significado de laicidade. Um docente participante da pesquisa faz a correta síntese: “O laico não quer dizer que você não vá falar, que você não vai explicar sobre todas as religiões” (Docente 9). Trata-se do direito humano a uma escola que respeite a diversidade. Uma docente narra sua experiência como estudante da escola pública, quando era constrangida diante da turma por ser evangélica e não rezar na sala de aula com a professora e colegas:

[...] “você não vai participar”, professora mandava levantar [...] e rezava [...] “você não vai participar. Todo mundo se levanta, você fica sentada”. Era diferente, era estranho[...] ...você tem a crítica dos amigos, “por que você não reza?” [...] Hoje se fala evangélica, até meio chique, mas antes era crente. Gente, ser crente era coisa [...] (Docente 8).

A situação vexatória narrada é semelhante a que estudantes de diferentes religiões enfrentam durante as atividades ligadas às comemorações cristãs no espaço escolar e, vale dizer, que ferem o direito humano de respeito à escolha religiosa (ou não religiosa) individual.

Há um argumento em defesa das práticas religiosas na escola, segundo o qual todas as religiões são boas e que, no fim das contas, todas pregam o amor ao próximo, isto é, não há mal algum em seguir com essas práticas.

Eu sou protestante, assim, minha igreja não comemora dessa forma e a gente tem um outro entendimento. Mas igual [...] as crianças compram chocolate e tal, mas não para comemorar a Páscoa [...]

Justificativa do tipo assim "tudo bem comemorar a Páscoa porque todo mundo acredita em Jesus", não [...] (Docente 3)

É, nem todo mundo é[...] (Docente 2).

Uma docente, porém, questiona essa relativização: “Daí eu viro e falo assim: ‘eu quero que seja um projeto que valorize a espiritualidade da umbanda’, nossa, isso daqui vai virar um fervo” (Docente 1).

A intolerância às religiões de matrizes africanas é, em última instância, não apenas a negação ao que difere do cristianismo, mas expressão de racismo. Os mitos gregos, por exemplo, não são questionados pelos grupos conservadores quando são ensinados na escola, de sorte que Prometeu e Epimeteu são apenas figuras mitológicas e Obatalá e Exú são expressão do mal e sua simples menção pode trazer mau agouro.

É, mas teve um ano aqui que fizeram uma festa do folclore, e foi um “fuzuê”, Boi Tatá, não sei o que, o pessoal caiu em cima, isso é coisa do demônio [...] (Docente 2)

A gente tem religiões de matrizes africanas que não tem Jesus como símbolo, que é o mais presente na nossa cultura aqui, mas a gente tem indígenas, a gente tem judeus[...] Judeus aqui a gente não tem, mas a gente tem budistas[...] Esse discurso da Páscoa, do Natal, gente, tem que[...] Eu acho assim, a escola, enquanto sociedade, nesta sociedade que a gente tem e que o calendário está definido dessa forma, a ceia do Natal significa isso porque esta religião definiu isto dessa forma. Mas por exemplo, eu acho que se você tem um aluno que é da umbanda, que é do candomblé, e manifesta isso, porque eles têm muito medo de manifestar, de dizer que são para não ser retaliados, apanharem, e tudo mais, que você comente que existe outras datas e que existe o dia de um santo [...] (Docente 3).

A afirmação dos direitos humanos parece eleger, na prática social, um tipo de humano e um tipo de fé, ou seja, o humano burguês e a fé cristã. É naturalizada a imposição de uma determinada crença sobre as demais, uma vez que é permitido referendar uma em detrimentos de outras. No entanto, a laicidade deveria “proporcionar a certeza de que nenhum direito humano seja restringido ou obstado por interferência de valores religiosos sob ação do Estado” (FIGUEIREDO, 2016, p. 41). Assim, a escola, como representante do Estado, deve ou afirmar todas as expressões religiosas na sua historicidade manifesta nos diferentes contextos histórico-sociais, garantindo a liberdade de crença e a diversidade dos credos, ou não afirmar nenhuma.

Na última década temos testemunhado, no Brasil, a reação dos grupos conservadores às políticas afirmativas direcionadas às mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+. Dentre as formas de reação, estão as centenas de projetos de leis municipais e estaduais que propõem a proibição da educação para equidade de gênero e contra a LGBTQIAfobia, as denominadas “PL Contra Ideologia de Gênero”. Esses grupos, orientados por dogmas religiosos, consideram que a escola deva ser um espaço politicamente neutro e não discutir as questões de gênero.

Os defensores de tal ideia encorajam a perseguição a docentes por meio de denúncias das aulas em que o tema é abordado, seja por meio de depoimento de estudantes ou até mesmo gravação não autorizada de áudio e vídeo, com o intuito de criar um clima de insegurança, e a criminalização das práticas pedagógicas que tratem dos direitos de mulheres e pessoas LGBTQIA+, que são as principais vítimas da violência de gênero. Essa ideologia de abstenção da escola nas discussões sobre direitos humanos, em nome de uma suposta neutralidade, pode levar a escola passar a se omitir diante da vulnerabilidade de crianças e adolescentes, ao invés de cumprir sua função social como uma das instituições que zela pelos direitos.

Os(as) docentes narraram um episódio em que um estudante vítima de homofobia recorre à gestão da escola em busca de reparação, afirmando sua orientação homossexual. A equipe gestora decide convidar os responsáveis pelo estudante a irem até a unidade para uma conversa. Foi relatado que o pai do estudante compareceu à escola e, ao saber do motivo do encontro, disse às gestoras que aquele assunto era circunscrito apenas à família. A postura do pai do estudante foi apoiada por alguns docentes:

[...] É o que eu falo, a escola não tem o direito de interferir nesse tipo de coisa. (Docente 1).

E o J. falou que o pai dele levou ele no médico, porque queria que ele fizesse um tratamento hormonal, tomasse hormônio masculino para poder [...] como se isso fosse um problema só de [...] uma coisa complicada (Docente 2).

Aí este médico [...] cabe a este médico fazer um tratamento psicológico, até para tratar com o pai ou o filho [...] Mas aí já saiu do âmbito da escola [...] (Docente 1).

A concepção de que a orientação homossexual é passível de tratamento médico expressa a dissonância entre a escola e os direitos humanos. Tais expressões tem como gênese histórico-social a mediação da igreja católica e do pensamento conservado ao longo da história da ciência e na prática das políticas públicas.

O limite tênue entre o normal e o patológico tem servido para ocultar e patologizar todo aquele que foge à norma social vigente, isto é, ao pensamento hegemônico produzido por formas de sociabilidades heterogêneas a partir dos valores e ideias daqueles que dominam os meios de produção. Nesse sentido, tanto a medicina quanto a psicologia formam instrumento de normalização dos comportamentos desviantes, sem, contudo, caracterizarem em si mesmo algo patológico. Somente em 1999, por meio da Resolução 01, de 1999, do Conselho Federal de Psicologia, declara-se que a homossexualidade não é vista como doença e proíbe o seu tratamento. Há reações por grande parte dos grupos religiosos e psicólogos cristãos pela revogação da Resolução.

O conservadorismo religioso, intolerante e partidariamente organizado, nesse contexto, alia-se aos tradicionais detentores do poder político e passam a bloquear qualquer tentativa de avanço efetivo em direitos humanos, sobretudo, neste caso, nas demandas por reconhecimento, por autonomia das mulheres e igualdade de direitos para a população LGBTT (FIGUEIREDO, 2016, p. 3).

Tal qual Figueiredo (2016), indaga-se: falar de desigualdade de gênero é ideológico, mas silenciar sobre ela, não é? Tratar de homofobia é ideológico, mas ignorar a violência contra LGBTQI+ não é?

Outra justificativa para as práticas religiosas cristãs na escola é a crença de que esta pode ser resposta aos problemas de indisciplina e violência escolar:

Eu sempre rezei o pai nosso na escola. Sempre, anjo da guarda[...] nunca foi proibido. Sempre rezei com os alunos e as classes eram muito mais calmas do que são hoje [...] quando se pregava alguma coisa [...] agora não pode nada, tem isso que eles estão tendo (Docente 9)

Mas é uma maneira gente de humanizar [...] (Docente 7)

A criança não é mais calma? (Docente 9).

Para tentar humanizar um pouquinho mais, as crianças e os jovens (Docente 4).

A articulação das significações permitiu constatar a atribuição do caráter de humanização às práticas religiosas cristãs dentro da escola, cuja moral expressa está afirmada a partir dos valores cristãos. A alienação do trabalho reduziu a prática docente aos saberes técnicos estéreis conformados às formas de opressão próprias das sociedades de classe, e, portanto, fetichizou a escola e reificou os seus processos, atribuindo ao divino o poder de humanizar.

O conjunto de falas ilustra o processo de alienação que precisa ser enfrentado com a afirmação da escola enquanto instituição laica, por dois motivos: primeiro, para se opor à universalização do cristianismo como forma superior de religião a ocupar os espaços públicos de ensino, sem qualquer constrangimento em detrimento de outras formas de expressão que compõe a diversidade étnico-racial do Brasil, como as religiões de matrizes africanas ou qualquer outra que não seja a cristã; segundo, “a separação entre Estado e religião é uma maneira de assegurar o direito aos direitos humanos sem qualquer tipo de discriminação e de garantir a liberdade de crenças e diversidade de credos.” (FIGUEIREDO, 2016, p. 36).

A escola é um potente espaço de humanização e não pode esvaziar-se de sua função social para delegar às práticas proselitistas a possibilidade de humanizar. Discutir, de modo participativo e democrático os valores morais e a ética, deve ser algo que se dê de forma transversal em todos os componentes curriculares para que os estudantes percebam o valor histórico de tais afirmações. A cisão processual e histórica da função da educação e seu caráter quase que exclusivo para transmissão de conteúdo e preparação para o mercado de trabalho está esvaziando-a de seu caráter humanizador. Dessa forma, ensina-se que o enfrentamento às desigualdades sociais que produzem sofrimento e exclusão, e que a degradação da natureza e do mundo dos homens se dá pela queda moral e corrupta do homem, que deve ser reestabelecida pela força divina do Deus cristão. Logo, o Estado se exime de responder às questões sociais que atingem diretamente a escola e apregoa o uso de orações e amuletos religiosos como proteção para o mal escamoteado, isto é, aquele que nos aflige diretamente e não podemos ver ou entender. E diante da limitação e vulnerabilidade sentida, apela-se para a força do ser supremo onipresente e onisciente, buscando um sentido para o caos produzido pela sociabilidade capitalista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não sendo o único, a escola é um lugar fundamental para o ensino dos direitos humanos e, sobretudo, para seu zelo. Infelizmente, a escola pode incorrer em justamente o contrário, negligenciando alguns direitos humanos. Para a transformação dessa realidade, não podemos esquecer que “as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem que ser educado” (MARX, 2007, p. 533).

A análise das falas dos(das) participantes dessa pesquisa (por ser expressão da subjetividade, que é constituída na realidade objetiva) contém a totalidade social e exterioriza pensamentos e afetos. A apreensão das mediações constitutivas do processo da relação objetividade-subjetividade possibilita não apenas explicar a realidade concreta como também, a partir dos conhecimentos produzidos sobre o fenômeno investigado, buscar formas para sua superação.

Consideramos um caminho para mediar as discussões de formação docente sobre a educação na perspectiva dos direitos humanos a provocação por meio de questionamentos: Essa prática pedagógica exclui algum grupo religioso? Essa prática surgiu a partir de quê, qual a sua historicidade? Qual é o objetivo dessa prática na escola? Essas práticas são reproduções pura e simples ou estimulam a criticidade? O Projeto Político Pedagógico dessa escola é laico ou confessional? É excludente ou inclusivo?

Entendemos, com Marx (2010), que os direitos humanos na democracia liberal são insuficientes para a emancipação humana. A transformação da realidade implica a compreensão crítica da realidade e a práxis para sua superação. Se naturalizados os processos de exclusão e opressão, não surgem as necessidades de sua superação. É nessa relação dialética entre materialidade e consciência que objetividade e subjetividade são transformadas. A defesa da laicidade do Estado não se constitui, portanto, uma defesa contrária às religiões, mas da separação entre religião e Estado.

A análise empreendida neste estudo não teve a pretensão de culpabilizar os(as) docentes. Ao contrário, a perspectiva teórico-metodológica assumida afirma que o sujeito individual expressa a contradição social. A constatação empírica de formas de subjetivação e objetivação alienadas implica posicionamento ético-político coletivo que, por sua vez, compreende a constante crítica das formas reificadas e fetichizadas de política para que, assim, haja a efetivação dos direitos do humano concreto, ou seja, síntese de múltiplas determinações histórico-sociais, e a gestação de novas formas de sociabilidade. Esse estudo constitui-se, por fim, numa contribuição para se pensar o currículo escolar para além das práticas cristalizadas que excluem e silenciam a diversidade da constituição histórico-social humana.

1Encontrado nas ruínas da Babilônia em 1879, o cilindro de argila com escrita cuneiforme foi traduzido pela ONU e considerado o primeiro documento de Direitos humanos conhecido da história (CASTILHO, 2015).

2Encontrado em 1901, na cidade de Susa, onde hoje está localizado o Irã, o documento com 282 artigos legislativos com punições duras a crimes e um conjunto de direitos básicos à população (Id.; Ibid)

3As frases ou palavras com aspas (“”) são expressões retiradas do conjunto das falas dos(das) docentes, e seu uso tornou-se um recurso de complementaridade e afirmação da materialidade das falas para representação do conjunto de significações apresentado por aquele indicador e/ou núcleo de significação.

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Outubro de 2021

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