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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61973 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

O BALANCÊ DA SOPA DE LEGUMES - (RE)SIGNIFICAÇÕES DE UMA REFEIÇÃO COMO PRESENTE

THE VEGETABLE SOUP BALANCE: (RE) MEANINGS OF A MEAL AS A GIFT

EL EQUILIBRIO DE LA SOPA DE VERDURAS: (RE) SIGNIFICADOS DE UNA COMIDA COMO REGALO

Eduardo Garralaga Melgar Junior1 
http://orcid.org/0000-0001-8019-077X; lattes: 5669412019911659

Suelen Borges Loth Correa2 
http://orcid.org/0000-0002-0779-139X; lattes: 8871184980699952

Janaize Batalha Neves3 
http://orcid.org/0000-0001-6181-5818; lattes: 9762134144028265

1Universidade Federal do Rio Grande – FURG E-mail: eduardogmelgar@gmail.com

2Universidade Federal de Pelotas – UFPEL E-mail: suelenbloth@gmail.com

3Universidade Federal de Pelotas – UFPEL E-mail: janabneves@hotmail.com


Resumo

Neste artigo, apresentamos a história da sopa que foi presenteada à professora que alfabetizou quem já estava sentenciada ao não aprender. Nesse sentido, buscamos, com as experiências da professoraalfabetizadora e da menina que aprendeu a ler, as potências heterotópicas do acontecimento cotidiano. Nessa direção, as experiências foram muitas e trouxeram, nas heterotopias cotidianas, as possibilidades de reflexão aos currículospraticados. Para tanto, buscamos, nos Estudos do/no/com os Cotidianos, as práticas de uma escola da rede pública de Pelotas- RS que institui artes de lutas e resistências à precariedade da vida. Nos encontros com as heterotopias cotidianas, foi possível (re)inventar maneiras de contrapor o olhar institucional normalizador que, ao aprisionar os corpos, busca aniquilar sonhos e desejos. A soparefeição dada pela aluna à professoraalfabetizadora com quem aprendeu a ler foi o deleite para pensar a escola como produtora de insurgências capazes de criar sonhos e esperançar caminhos com a educação. Ao olhar, sentir e viver as experiências no/do/com os cotidianos, a criatividade fabrica diferentes escolas ao instituído.

Palavras-chave: heterotopia; cotidiano; educação; currículo

Abstract

In this article, we present the story of the soup that was given to the teacher who taught those who were already sentenced not to learn to read. In this sense, we searched with the experiences of the literacy teacher and the girl who learned to read, the heterotopic potencies of the daily event. In this direction, the experiences were many and brought the possibilities of reflection to the curricula practiced in everyday heterotopias. Therefore, we searched in Studies of/in/with the Daily Life, the practices of a public school in Pelotas-RS, which institutes arts of struggle and resistance to the precariousness of life. In the encounters with everyday heterotopias, it was possible to (re)invent ways to counteract the normalizing institutional gaze, which, by imprisoning bodies, seeks to annihilate dreams and desires. The relief given by the student to the literacy teacher who, because she learned to read, was the delight to think of the school as a producer of insurgencies capable of creating dreams and hoping for paths with education. By looking at, feeling and living the experiences in/from/with daily life, creativity makes different schools of what is instituted.

Palavras-chave: heterotopia; everyday life; education; curriculum

Resumen

En este artículo, presentamos la historia de la sopa que se le dio a la maestra que enseñó a los que ya fueron sentenciados a no aprender a leer. En este sentido, buscamos con las experiencias de la alfabetizadora y la niña que aprendió a leer, las potencias heterotópicas del hecho cotidiano. En ese sentido, las experiencias fueron múltiples y trajeron las posibilidades de reflexión a los currículos practicados en las heterotopías cotidianas. Por ello, buscamos en Estudios de / en / con la Vida Cotidiana, las prácticas de una escuela pública en Pelotas-RS, que instituye artes de lucha y resistencia a la precariedad de la vida. En los encuentros con las heterotopías cotidianas, fue posible (re) inventar formas de contrarrestar la mirada institucional normalizadora que, aprisionando cuerpos, busca aniquilar sueños y deseos. El alivio que le dio la alumna a la alfabetizadora que, por haber aprendido a leer, fue el deleite de pensar en la escuela como productora de insurgencias capaz de crear sueños y esperar caminos con la educación. Al mirar, sentir y vivir las experiencias en / desde / con la vida cotidiana, la creatividad hace diferentes escuelas de lo instituido.

Palavras-chave: heterotopía; vida cotidiana; educación; currículum

VOLTAR, EXPERIENCIAR E SENTIR

Neste artigo, o balancê remexe, ao apresentarmos a história da sopa que foi presenteada à professora que alfabetizou quem já estava sentenciada ao não aprender. Já no quarto ano, frequentando as turmas de apoio em turno inverso, a estudante que ofereceu a sopa como presente ainda não estava alfabetizada. Diante do cenário, a professoraalfabetizadora, que há quase cinco anos vinha trabalhando com as turmas do primeiro e segundo ano, lecionando nos turnos da manhã e da tarde, assumiu a tarefa de não permitir o fracasso da escola. Nesse sentido, buscamos, com as experiências da professoraalfabetizadora e da menina que aprendeu a ler, as potências heterotópicas do acontecimento cotidiano.

Nestas idas e vindas da fabricação diária dos modos de estar, vamos em Foucault (2016) compreendendo esse refazer constante que mais nos parece levar à constituição diária da metamorfose ambulante, tão bem retratada na canção de Raul Seixas. Modos de estar que, de tão cotidianos e diluídos no tempo, assumem feições naturalizadas e se configuram em um “Ser”, não raro, essencializado. Pensando assim, compreendemos que a heterotopia escolar existe no drible das normas e procedimentos. Ela é parte das sensações, dos modos de ser de cada um/a, da relação que cada sujeito estabelece consigo e com o acontecimento fluido que, de tão efêmero, muitas vezes não somos capturados/as por ele.

Os fenômenos heteróclitos do conto possibilitaram a Foucault (2016), na escrita de “As palavras e as coisas”, o desenvolvimento conceitual da heterotopia que se constitui nos acontecimentos e antidisciplinas de desvio ao padronizado. No fazer heterotópico, o lugar praticado transborda possibilidades. Nele, as coisas são projetadas em um espaço irreal. Vemonos do lado de lá, vê-se onde estamos ausentes e a nossa própria sombra em visibilidade. O espelho, como heterotopia, auxilia nesse voltar-se a si, à contestação e à busca por uma história menor construída a partir de inúmeros traços silenciosos e de fragmentos de existências, demonstrando que a história não é uma duração, mas uma pluralidade de durações que se entrelaçam umas nas outras.

Nesse ínterim, a defesa da história como acontecimento permite fazer surgir momentos de ruptura, planos de discursos, falas singulares, estratégias de poder e focos de resistências. O acontecimento apresenta uma deliberada interação com o espaçotempo. Essa interação, entretanto, não se determina por meio da conexão entre o ideal e o real. Se o acontecimento não se reduz à sua mera execução, ele também não é arquitetado como um sistema intrinsecamente interligado com o espaço-tempo idealizado ou transcendental. Por isso, a noção de acontecimentos ignora os amplos e universais acontecimentos privilegiados nas metanarrativas, aqueles que buscam harmonizar o finito com o infinito ou a concretude e o abstrato. O acontecimento, na perspectiva de Foucault (2005), não se reduz aos investimentos presentes na lógica ideal-real e/ou universal-particular. Ele se beneficia da relatividade e se esquiva de parâmetros epistemológicos ortodoxos. O acontecimento não se limita ao fato de que a ocorrência seria suscetível de receber tratamentos cartesianos. Nessa direção, a heterotopia vai se utilizar (da ausência) da norma para dar vida e sentido ao acontecimento, instituir corpos diferentes, promover ações não inscritas em espaço algum, é o espaço incomum do acontecimento, é a prática das sensações que são singulares e únicas. Não existe espaço para generalizações e homogeneização, vez que a heterotopia desvela as distopias do lugar e as anormalidades assumem diferentes formas e contextos. Ela “se põe a funcionar plenamente quando os homens [e as mulheres] encontram uma espécie de ruptura absoluta, com seu tempo tradicional” (FOUCAULT, 2017, p. 426). A ruptura intervém, junto com o acontecimento, na escola. Assim, os diferentes posicionamentos de seus/suas praticantespensantes desconectam e desorientam esse lugar, desorganizando-o e re-projetando a reorientação de suas decisões e ações. As heterotopias dizem respeito a isto, a esse emaranhado de situações desordenadas que acontecem cotidianamente que produzem sentidos aos existires da escola.

Ao contestarmos o consensual e o emergir dos acontecimentos que se fizeram heterotópicos, trazemos à tona a invenção, as artes do golpe por golpe e a vidapraticada que trouxe paladar às relações escolares a partir da experiência da professoraalfabetizadora, a quem chamaremos de Cris. Nesse caminho, as discussões sobre a Heterotopia (FOUCAULT, 2013) e o Cotidiano1 (CERTEAU, 2014) buscaram, nas insurgências da vida, as reflexões para pensarmos no currículopraticado que se contrapõe à disciplina dos corpos e de vidas. A narrativa que se segue busca, em Michel de Certeau, Nilda Alves, Regina Leite Garcia, Michel Foucault e Inês Barbosa Oliveira, as ferramentas para problematizar o acontecimento que ocorreu em uma escola da rede pública municipal de Pelotas/RS, que vive, em seu currículo, um levante à precarização da vida e nas artes de se inventar com o currículo emergido com as práticas da escola.

Na invenção da vida, as subjetividades vão ganhando “vãos” nessa órbita formada pelos usos de práticas que fabricam os cotidianos. É notório que falar sobre isso é dizer sobre as pluralidades culturais e artes tecidas pelos sujeitos que aguçam os sentidos e produzem espaçospraticados no vaivém da sua vida. É nesse movimento que emergem as potências criadoras da escola em seus espaçostempos de realizações heterotópicas. As produções de existência dão sentidos às ações docentes que se contrapõem aos circunscritos do currículo oficial. Nesse movimento, é preciso estar aberto/a aos acontecimentos para a compreensão da experiência como produtora da heterotopia.

Do ponto de vista da experiência, [...] o importante é a exposição, nossa maneira de expormos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. [...] O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião (BONDÍA LARROSA, 2002, p. 25).

Estamos convencidos/as de que, para viver a heterotopia na escola, precisamos nos permitir experienciar algo que não seja o conhecido, driblar a disciplina e sentir as oportunidades da ocasião, transformando em atitudes as reações diversas que buscam padrões. Ao buscar sentir o que há de amorosidade nas práticas pedagógicas, as situações heterotópicas trazem outros sentidos à escola, produzindo o “não lugar”, já que não isso está inscrito institucionalmente.

É preciso usar os sentidos para compreender o que Certeau (2014) propõe nos Estudos do Cotidiano. Não nos parece a simples descrição de fatos, situações, acontecimentos e ocasiões, tampouco nos parece ser os limites narrativos de insucessos e fracassos. Antes de tudo, do que já está previsto, inscrito em algum lugar, orientado e normatizado pelas instituições, está circunscrito, aqui nos interessam os usos da rebeldia e as insurgências, as experiências, em suas sutilezas (BONDÍA LARROSA, 2002), constituídas nos currículospraticados da professoraalfabetizadora. Nesse sentido, tomamos “como objeto não a escuma dos dias, o desconcerto e a confusão do discurso político, as lamentações de uns, as censuras dos outros”, mas o sentir que buscamos é “daquilo que, mais profundo, e ainda misterioso, se manifesta essencial em uma grande confusão de palavras” (CERTEAU, 2014, p. 11). Nos vãos e nas brechas entre o dizer e o fazer é que se encontra o que ainda não sabemos e o que precisamos aprender com os outros da escola.

É no voltar sempre que a reflexão vai sendo produzida. Ao percebermos os acontecimentos, as práticas heterotópicas vão sendo significadas e os sentidos dessas maneiras de fazer nos ensinam que voltar ao que aconteceu nos auxilia a compreender o imprevisível, ou seja, aquilo que até então, havíamos nos tornado com as práticas. No pensamento de Certeau, a questão “‘Como se criar?’, que toma o lugar daquela que fora a “imperiosa urgência: ‘criar o quê e como’”? (CERTEAU, 2014, p. 12).

Quando voltamos a buscar o sentir da heterotopia escolar, transportamo-nos para aquilo que é necessário para a “proliferação disseminada” de criações anônimas e “perecíveis” que irrompem com vivacidade e não se capitalizam” (CERTEAU, 2014, p. 13). Nesse momento, “tratase de esboçar uma teoria das práticas cotidianas” a fim de “extrair do seu ruído as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de ‘resistências’ ou de inércias em relação ao desenvolvimento da produção ‘sociocultural’ […] a rede de uma antidisciplina” (CERTEAU, 2014, p. 16). Nessas maneiras de fazer, os/as praticantespensantes vão fazendo usos que não estão sob a vigilância do sistema e que escapam às análises por não estarem previstos em algum lugar. Esses usos e essas redes de antidisciplinas auxiliam na fabricação das heterotopias e essa “‘fabricação” são as produções poéticas escondidas que se disseminam nas regiões pretensamente definidas e ocupadas pelos sistemas da produção do poder.

O cotidiano impregnado por suas rotinas e normatizações coloca, nos sentidos, uma venda que busca instaurar silêncios na escola. Não se trata somente de medo de expor o que se faz e, tampouco, receio de punição por ir ao desencontro do que é estabelecido pela máquina compressora da burocracia que, em vários momentos, busca aniquilar os sentidos daquilo se faz. Na pobreza da burocracia, o olhar para o inesperado escapa, a sensibilidade do toque é substituída pelos formulários e o cheiro que está ali não está aguçado para sentir as histórias dos espaçospraticados. Nilda Alves e Regina Garcia (2002) nos falam que precisamos buscar

[...] entender, de maneira diferente do aprendido (que já sabemos não dar conta do que buscamos), as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano de modo geral, exige que estejamos dispostos/as a ver além daquilo que outros já viram e muito mais: que sejamos capazes de mergulhar inteiramente em uma determinada realidade, captando sutilezas sonoras, sentindo a variedade de sabores, tocando coisas e pessoas e nos deixando tocar por elas, cheirando os cheiros que estão em cada ponto de nosso caminho diário e aprendendo a ler o corpo, este desconhecido que tantos sinais incompreensíveis nos dá (ALVES; GARCIA, 2002, p. 261).

Como ler com esses corpos, mergulhar em suas situações, sentir os paladares, os cheiros, os toques, as sutilezas que estão na escola, o que fazemos delas ou a partir delas, fará a diferença numa educação que tenha, como proposta, a transformação social popular. Nas provocações que nos fazem as autoras, voltamos ao cotidiano escolar para senti-lo e, com isso, perceber o quanto ainda não o sentimos porque estamos nas lógicas repressivas dos fazeres da rotina instituída e normatizada pensada por outros. No diálogo entre nossas vivências escolares e o acontecimento protagonizado pela professoraalfabetizadora e a estudante, o cotidiano apresenta o espaçotempo da heterotopia.

AS INFÂNCIAS, VIVÊNCIAS E ACONTECIMENTOS

As práticas orientam nossas vivências a partir das experiências tecidas. Os acontecimentos são, para nós, potência para que as heterotopias se apresentem como uma alternativa, um revés às normas que condicionam nossos corpos e subjetivam nossas maneiras de ser e estar. Quando falamos sobre as heterotopias na escola, trazemos a diluição do lugar escolar em espaços de (re) significações, deslocando as orientações cristalizadas que submetem aos praticantes outras formas de compreender a vida, apresentando a potência de perpassar todos os conceitos que se formulem sobre a escola e contestando a ideia de um sentido único. Há um transbordamento impossível de conter. Tudo isso e mais um pouco vai nos auxiliar a entender o mundo e com ele vamos aprendendo a viver, construindo significados à vida. Essa que opera acolá de seus aspectos orgânicos e materialidades biológicas, mas que ganha, sendo-lhe atribuído sentido com a experiência de narrar sobre ela (CAETANO, 2016).

Diferente de tudo que já havia sido vivido na escola, enquanto estudantes, professores/as, funcionários/as e responsáveis, uma refeição como presente era algo novo. Quando a professora do segundo ano recebeu a sopa de legumes como forma de presente e agradecimento, apresentounos o que Certeau (2014) vai chamar de “artes de fazer”. Foi o acontecimento ocorrido no espaçotempo do inesperado que escapou ao jogo na trama das relações entre a professora, sua turma e a estudante.

Já no quarto ano, frequentando as turmas de apoio em turno inverso, a estudante não estava alfabetizada. Foi quando a escola e a professora Cris tiveram a ideia de convidá-la a frequentar, em turno inverso, a turma do segundo ano. Com as atividades concomitantes às de sua turma, mais as aulas de apoio e as práticas de alfabetização da turma do segundo ano, a estudante foi alfabetizada. Cris é a professoraalfabetizadora que há quase cinco anos vem trabalhando com as turmas do primeiro e segundo ano, com 40h na escola, lecionando nos turnos da manhã e da tarde.

O desencaixe e o deslocamento, as potências heterotópicas do acontecimento inesperado são contrapontos aos lugares dados e às situações previsíveis, operando aberturas às transformações dos/as praticantespensantes. A refeição como presente inaugurou um espaço criado emergido de uma ruptura sempre fugaz com o tempo e o lugar. Ela nos possibilitou compreender a produção de outros olhares e espaços intocáveis, efeitos únicos sentidos por cada um/a naquele acontecimento.

O imaginário e as emoções infantis estavam à flor da pele. Quando não havia nenhum presente possível, surge o inesperado, algo que lhe era muito cativo. Com isso, a estudante, sem nenhuma dúvida, nos deu uma lição de gratidão. Não importava o objeto, a coisa a ser dada, o presente adquirido ou feito, importava ser algo que lhe fosse significativo. Diante do carinho que percebia por parte de seus/suas colegas à professora, a estudante estava lá pensando em algo para também presenteá-la.

A sopa havia sido feita pela mãe com o auxílio da estudante, com legumes e verduras colhidos na horta no quintal da casa simples da família de muitas pessoas. Aquela sopa, que expressava gratidão, era o que alimentava corpos desejosos de comida. A menina ajudava na lida da horta, plantava e cuidava dos legumes, parecia ser o espaço doméstico favorito. O certo era que a horta lhe fazia muito bem. Ela ajudava a produzir os alimentos, para que sua mãe pudesse fazer a sua refeição, a sopa de legumes. Entre o prazer e a vontade de presentear a professora, existia um sentimento, espaçotempo não inscrito em lugar algum. Ele produziu existências que impulsionaram a menina a servir e a presentear sua professora.

A menina distanciou-se do que era consensual, transgrediu a norma, produziu possibilidade em sua atuação, assumiu uma forma diferente, contestou, com sua produção, o sonho, a necessidade, a vontade de ter o que não possuía e, não tendo, criou sua própria tática, inventou caminhos alternativos que a conduziram à experiência que desejava, diante da ocasião que lhe era possível, potencializando o nosso acontecimento heterotópico. Por vezes, é preciso fazer de um limão mais de uma limonada “por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião” (CERTEAU, 2014, p. 47).

Na escola da professora Cris, as situações vividas pelos/as estudantes e responsáveis encontram-se nos modos precarizados em que lutam para manter a vida. Há muitas semelhanças que fazem um balancê de emoções, trazendo outras significações para a vida, com a sede de viver rompendo, ou ao menos tentando, com o paradigma da sobrevivência.

Certeau (2014, p. 81) nos auxilia a visualizar um “imenso campo de uma arte de fazer diferente dos modelos que reinam (em princípio) de cima para baixo da cultura habilitada pelo ensino (do superior ao primário) e que postulam, todos eles, a constituição de um lugar próprio”. O autor vai nos chamar a atenção para o fato de que a ordem das coisas está justamente naquilo que chamamos de táticas populares dos praticantespensantes. É preciso, na resistência e na insurgência, produzir uma “economia do dom”, a “estética de golpes” e uma “ética da tenacidade” (CERTEAU, 2014).

Das generosidades, das produções artísticas, das muitas e outras maneiras de contrapor e negar a ordem estabelecida, vamos construindo caminhos sinuosos que (não) estão em disputa, mas que significariam outras percepções do jogo de ser fazer existir, em que a organização social se constitui como máquina produtiva da inexistência. Quando os sonhos e as expectativas são interpelados pela posição superior ao subalterno, eles doem e, às vezes, aniquilam vontades e projetos. A arte de fazer o contraponto, de se recolocar à espreita é a arte do golpe. Dar a volta por cima, na contramão do que nos é ensinado, é a desconstrução dos limites internalizados.

Somos o que vivemos e como nos projetamos nesse viver que se faz no acontecer da arte praticante do pensante. Nesse remexer, vamos percebendo que as astúcias do cotidiano trazem à tona situações antes não vividas, talvez não imaginadas, outras nunca sentidas, que hoje produzem sentido às nossas vidas. As experiências de precarização vividas nas periferias da existência se encontraram em solo pelotense, ditando o mando de campo, as quais, no deslize da estratégia, foram contornadas por táticas criadas por seus/suas praticantespensantes. A invenção do cotidiano não foi no confronto, ela contornou e fabricou outros meios para a sobrevivência.

Os atravessamentos cotidianistas de lá e cá interagiram nas (im)possibilidades e (im)previsibilidades. As vontades e os sonhos são muitas vezes cerceados pelo olhar atento da vigilância que nos institui o que é propício àquele lugar, coordenando nossos corpos ao “bem” comum pré-determinado. Nesse lugar, em que não existe respeito às diferenças e às individualidades dos/as praticantespensantes, a sopa contornou a situação e a refeição – inimaginada-tornou-se um mimo.

[...] Foucault nos convida – ou melhor, nos impõe – a pensar de outros modos: a possibilidade de fazer uma escola outra na escola estabelecida. O posicionamento do “fora” da escola (a escola outra) na escola mesma. E, em meu ponto de vista, esta perspectiva é bem mais real do que a produção de uma utopia pedagógica. Em outras palavras, para além de uma utopia pedagógica, heterotopias pedagógicas; para além de uma outra escola, a produção cotidiana de escolas outras, lá, no interior da escola mesma. (GALLO, 2015, p. 442)

As heterotopias são as invenções desse cotidiano que se justapõem ao lugar imperativo a outros espaços de encontros. Elas são capazes de criar outras escolas dentro da mesma escola, proporcionando atravessamentos ao cotidiano que nos permitem tensionar o que está posto, produzindo diferenças na diferença. Na vida escolar daquelas crianças e da professora Cris, a refeição, que não estava posta, produziu um contraespaço, tornando-se a sopa uma inquietação, constituindo-se como uma prática que promoveu reflexões. As artes do golpe e as artes de fazer e viver estão para nos mostrar que podemos driblar e criar para nos fazer existir em um mundo que produz e naturaliza inexistências dos/as pobres. A potência da criação do/a praticantepensante está nas esbravejas cotidianas de rasgar a existência e viver a vida.

Nós, que sobrevivemos driblando as estratégias, criando contraespaços a partir das ocasiões vividas, somos perspicazes e temos a sensibilidade ao que nos é dito e proporcionado. Isso nos auxilia a fazer a balbúrdia, a andar à espreita, a ir pelas beiradas, burlando, assim, as normas que buscam nos alinhar ao que já estaria comprometido a nós.

Como uma estória, a poesia, um conto e uma história de vida são conjunções de intercruzamentos imaginativos e neles os cotidianos são emaranhados. Foi nessa encruzilhada que a “Sopa de Legumes” da professoraalfabetizadora Cris foi semelhante em emoções, percepções e histórias insurgentes de manutenção da vida. O agradecimento e acolhida produziram na Cris o cuidado sempre terno e a certeza de que estava produzindo afeto, aquele necessário à aprendizagem.

REMEXES - SENTIDOS E EMOÇÕES DAS EXISTÊNCIAS NA VIDA

As emoções falam de maneira diferente. Cada um/a sabe o que sente e como as dimensões desse sentir impactam e direcionam suas ações, percepções, olhares, sonhos, cuidados de si. Nem tudo é tão tangível, nem tudo é dito e lido. Algumas coisas simplesmente estão ali, são sentidas pelo/a praticantepensante e as palavras não são suficientes para expressar. Faltam sentidos no mundo e é preciso fazer petições para dar conta dessas heterotopias que balançam o pretensamente conhecido, fazendo-nos voltar casas no jogo de tabuleiro. Sem esboçar, dizer e apontar, as emoções estão em nossas entranhas e transpiram pelos nossos poros, dizem pelo olhar, se impõem com os gestos. Assim, seres indomáveis de dimensões múltiplas se levantam na insurgência, buscando oxigênio para garantir suas vidas.

Nas artes de se fazer com a escola, sempre é preciso mais. Estar atenta às sutilezas e ter sensibilidade ao acontecimento, talvez tenha sido esse movimento que mobilizou a família da aluna de Cris a presenteá-la com o possível, a sopa. A comida não somente sustenta a materialidade do corpo biológico e mantém a vivência da organicidade, ela também dá sabor e sentidos a tudo isso.

A caneta, a flor ou bombom são afagos que fazem parte do cotidiano da escola. Trata-se de algo consensual. Logo, logo, vem a cartinha, quando os/as estudantes passam a acreditar que estão alfabetizados/as. Ela costuma ser a primeira manifestação de carinho das/os estudantes às professoras. Quem com crianças trabalha e não teme o toque sabe do abraço terno cheio de suor. Na invenção do cotidiano escolar, Gallo (2015) vai nos chamar a atenção que

[...] uma via para pensar alternativamente a escola é a de pensá-la orientada para a vida e não para o saber. Uma escola que seja um lugar de aprender a viver, um lugar de exercício de inquietar-se consigo mesmo, de vivenciar o cuidado de si, de conhecer-se para ser e para bem viver, de produzir-se a si mesmo como um sujeito singular. Poderíamos ver essa tarefa do repensar e refazer a escola como utopia; mas também podemos vê-la e praticá-la como heterotopia (GALLO, 2015, p. 445).

Nesse sentido, corroborando com Gallo (2015) e Foucault (2013), vamos compreendendo que, ao abrir as entranhas da escola e do lugar institucionalizado, vamos costurando e produzindo práticas de uma escola que se vê, se sente e se deleita das ocasiões produzidas em seus acontecimentos heterotópicos. No currículo, a sacralização do lugar e do tempo vai sendo desestabilizada, a invenção de espaços outros é propiciada e o encontro de existências tecidas nos cotidianos vividos pelos praticantespensantes é criado, instituindo, com o currículo, outros currículos.

O potencial dos espaçoscriativos inaugurados pela estudante que presenteou a professoraalfabetizadora instituiu rupturas, fazendo com que, na escola, residisse o acontecimento heterotópico. A ação da estudante inaugurou outras formas de acolhidas à gratidão, ao carinho e ao reconhecimento. Uma sopa de legumes, algo que ama e que compartilha com tamanha sutileza, trouxe à docente oxigênio para seguir, trilhando os trilhos da docência em Pelotas, tão castigada com sequestros de direitos. Para Butler (2018, p. 32), “a precariedade enfatiza nossa substitutibilidade e nosso anonimato radicais tanto a determinados modos socialmente facilitados de morrer e de morte quanto a outros modos socialmente condicionados de sobreviver e crescer”. A filósofa estadunidense aponta que “a possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda vida que importa” (ib.). Se uma vida não é passível de luto e de condições dignificantes é porque, antes, ainda enquanto parecia vida, não era vivível.

A professora possui quase 15 anos de docência no magistério, expõe que já recebeu muitos presentes, desde “patos, frangos, coelhos e até tatus”, além de “verduras, frutas, mel, pães e bolachas feitos em casa”, grande parte em suas andanças profissionais em escolas localizadas na zona rural. “Lá fora”, expressão usada para dizer que alguém trabalha ou reside na zona rural, o reconhecimento é outro, diz a professora. No geral, os/as estudantes têm uma condição de vida melhor porque conseguem produzir seus alimentos e a comunidade é mais unida.

O campinho de futebol da pracinha próxima e a gangorra da praça da caixa d'água são refúgios antes e depois da escola. São os espaços praticados para os quais os/as estudantes foram atribuindo sentidos. A imaginação é tanta que, volta e meia, temos que ir lá buscar os/as que não ouvem o sinal para entrar. É compreensível. Lá, independentemente da idade, as crianças estão separando os materiais ou preparando as carroças para buscar, nas caçambas espalhadas pela cidade, os resíduos de materiais para a reciclagem.

Embora o tempo na pracinha seja curto, já dá para pensar que existem outras formas de viver aquela vida, de construir sonhos, de projetar presentes e de fazer amigos. A menina que levou a refeição vive um contexto semelhante ao da maioria das crianças da escola, não obstante, o seu pai seja reciclador e, com esse ofício, busque manter a dignidade da família. Cris, a professora, como é carinhosamente conhecida pelos estudantes e pela comunidade, nos fala com emoção que “nunca tinha recebido uma refeição de presente”. Sim, foi uma refeição. Ela ganhou uma sopa de legumes num pote de sorvete de 2 litros, preenchido pela metade, ainda “quentinho em suas mãos”. A felicidade da estudante de 14 anos de idade era ímpar e única com o sorriso de Cris, era heterotópica.

Ao chegar à escola, a estudante estava acanhada. Se via que o agrado que trazia era diferente de tudo que já tinha observado, com o sorriso estampado e o suor visto a olhos nus, a emoção e o nervosismo tomavam conta da estudante. Observava atentamente a professora e seus colegas, à espreita do melhor horário para entregar o presente. A única certeza era de que tinha que ser no início, pois a sopa quentinha estava e assim ela desejaria que a professora a recebesse. Uns/umas levavam cartinhas, outros/as balas e bombons. Lá estava ela com o pote de sorvete em mãos, embrulhado para não ser visto, a surpresa iminente tornaria o auge de sua euforia. Ao observar, viu aos poucos a turma se organizando para o início das atividades, a reação de seus colegas também a preocupava, o que poderiam pensar?

Coragem e insurgência, lá estava a estudante de pé à beira da mesa da professora, diante da turma, segurando um pote de sorvete, um pouco trêmula, com o olhar feliz e muito nervosa, entregando-lhe o mimo jamais recebido em outro lugar. A professora recebeu e, ao olhar o que havia ganhado, talvez conhecendo a realidade da estudante, expressou, no abraço e na lágrima que não pôde ser presa, a emoção que sentia. A estudante continuava eufórica, foi o primeiro agrado que conseguira dar à sua professora. No diálogo, sugeriu que a professora dividisse com seus filhos: “Isso mesmo! Como você adivinhou qual é o prato preferido deles e meu?”, disse Cris.

Na hora do recreio, enquanto as/os estudantes saíam para o pátio, a professora Cris deslocava-se para a sala dos professores. A recepção do acontecimento heterotópico, vivido e embargado de sentimentos, entre Cris e sua aluna, não teve, para algumas de suas colegas de docência, a mesma percepção. A emoção sentida com lágrimas deu lugar ao riso de canto de boca e ao deboche à “arcada” em relação ao gesto da estudante e à forma como a professora segurava e acolhia aquela sopa.

Algumas professoras não entenderam o gesto da estudante, sentiram repulsa pelo pote de sorvete. A situação precarizada da família a levava a se alimentar de doações de pessoas próximas e de profissionais da escola. A horta era o que garantia os temperos e legumes. Na direção da escola, a professora dizia-se “engasgada pela emoção”, deixando a todos/as emocionados/as, uma situação jamais presenciada na escola. Com o pai desempregado, a mãe, que possui deficiência intelectual, assim como a estudante, que ainda não era alfabetizada, buscava, na escola, o refúgio para aliviar as tensões da vida.

As palavras, o toque, as lágrimas e a emoção ecovam àquela altura. A atmosfera e a energia eram algo sublimes e indescritíveis. Elas voavam sem direção, emocionavam a cada instante que a professora e sua equipe relembravam o “profe, eu te trouxe uma sopa, a mais gostosa de todo mundo e eu ajudei a fazer. Eu te amo”. Na ocasião, a professora disse para a estudante, na presença da turma onde o acontecimento ocorreu, que guardaria para o jantar, pois recém havia almoçado. Àquela altura, a professora precisou ir à sala da direção, para absorver o ocorrido, precisava recompor-se, as emoções eram visíveis, a cada lágrima, a certeza do mais belo e afago presente. A estudante ressaltou que, como nunca conseguira dar algo a professora, pensou em dar aquilo de que ela mais gostava, a sopa de legumes. Nas palavras da estudante: “se eu gosto, a professora vai gostar”.

É preciso audácia para sentir as sutilezas e as táticas (FOUCAULT, 2017), a emoção sentida pela maioria das professoras e professores que se emocionaram com o acontecimento após o relato da professora Cris. Isso continuará sendo um balancê em suas vidas profissionais. Os/as praticantespensantes buscam, nas rupturas, a produção de outros espaços, atribuindo-lhes novos usos, práticas que vão “jogar com o terreno que lhe é imposto” (CERTEAU, 2014, p. 94), provocando experiências que (re)significarão a escola e seu cotidiano, produzindo acontecimentos heterotópicos de espaço de inquietação, de contestação e de produção de si com outros e com a escola.

A refeição virou um mimo, houve uma contestação do espaço, daquilo que nós objetivamos como ideal de agradecimento. Algo que o cotidiano nos colocava como consensual, agora, estava (re)significado e foi atravessado pelo acontecimento heterotópico. As invenções e as transgressões estão postas, acontecem no cotidiano da escola e operam movimentos e práticas que possibilitam a potência inerente dos usos que fazemos na criação de outros espaços e contraespaços.

A maioria dos/as estudantes vive de auxílios de programas sociais, intercalados com trabalhos de reciclagem. Assim vivia a família da estudante, a reciclagem era o único meio para conquistar o pão. A estudante chegou ao final do ano letivo alfabetizada. Sua leitura do mundo letrado instituído pela sociedade escriturística, como nos descreve Certeau (2014), era também as lentes que operavam a decodificação das palavras e seus sentidos para a mãe da aluna.

Com a invenção da escola, criaram-se espaços para que modos e usos de seus/suas praticantespensantes, pudessem produzir, à primeira vista, a inquietude e a diferença, fazendo emergir acontecimentos heterotópicos para quem apenas os lê e não os sente. Contudo, os/as praticantespensantes mergulhados/as no contexto em que a produção da experiência aconteceu, podem fazer, com esses acontecimentos, uma contestação com outrosolhares e usos. É o/a praticante produzindo e contestando a naturalização do espaço que lhe impõe a vida.

(IN)CONCLUSÕES DE UM CURRÍCULOPRATICADO

A escola (re)inventa e cria contraespaços, é seduzida pela vida e, com ela, cria, potencializa práticas outras que não estão assentadas no tempo e nem sacralizadas no currículo oficial. A prática do desvio e da dissimulação, necessária à descoberta de outras formas de ser e viver na maquinaria da inexistência, se configura como o primeiro exercício que devemos aprender. Quando os sonhos e as expectativas são interpelados pela posição superior ao subalterno, eles doem e, às vezes, aniquilam vontades e projetos. A arte de fazer o contraponto, de se recolocar à espreita é a arte do golpe. Esse foi o movimento criado pela estudante e potencializado pela professora. Dar a volta por cima, na contramão do que nos é ensinado, é a desconstrução dos limites internalizados.

Os acontecimentos heterotópicos oxigenam. Nos limítrofes entre a vida e a margem, vamos construindo significados ainda não apreendidos. As formas de viver e as artes de ser nos remetem ao latente presente. Nesse espaçotempo, vamos percebendo que as fronteiras inexistem aos sentimentos e às percepções da vida. A escola, ao fabricar, potencializa e, nessa produção, institui maneiras de suavizar a vida tão sofrida, criando possibilidades que, ao dialogarem com a vida cotidiana, instauram novas artes de luta e resistência, instauram a educação como direito humano.

As rotinas diante da fabricação de existências não encontram ancoragem para práticas vigilantes. Uma escola que propõe práticas que dessacralizam corpos e comportamentos vê, nas pequenas sutilezas, as táticas que inauguram outros espaços, modos de operar contraespaços, espaçostempos criados e praticados pelos/as seus/suas praticantespensantes. Tensionar o lugar posto, aprisionado pelas normas oficiais, propõe um contraponto. Produzir a diferença e alimentar a produção de existências se justapõem à promoção da invenção de artes de ser e fazer.

Na dessacralização do lugar monocultural, o espaço do encontro de culturas tensiona as interações, cria e inventa possibilidades de se contrapor às redes de vigilância das políticas curriculares que insistem em prescrever, quando produzimos movimentos curriculares nos cotidianos das escolas. Nessas mobilizações estranhas, por vezes, a heterotopia se instala e se encontra na criação de praticantespensantes que, a seus modos e maneiras, vão tecendo outras escolas.

O cotidiano da escola é o espaçotempo em que as teorias são postas à prova e lá vão se desconstruindo, porque as orientações não conseguem apreender os usos que fazemos. Nossas práticas estão para além do que está dito, escrito e orientado. Somos autores/as de nossas leituras. Os/as estudantes criam a todo instante e nos impõem a invenção diária de uma escola que se faz a partir das existências de seus/suas praticantes.

Os acontecimentos de uma escola que vive o banquete servido pela ocasião fazem com que ela seja capaz de se recolocar em outro espaço. Um “não-lugar” que não está apreendido pelo sistema, mas que é latente e vivo, configurando-se em espaços criativos e insurgentes a múltiplas formas de sentir e fabricar as artes de ser e fazer. As artes do golpe estão aí, olhe ao lado, à frente, abaixo, acima e sinta as inúmeras possibilidades de ser o contraponto, o ponto de resistência, a contramão ao sistema.

1 Ferraço, Soares & Alves (2018) apresentam como as pesquisas do/no/com o cotidiano foram surgindo há cerca de 30 anos, tendo como contribuição os Estudos sobre o Cotidiano iniciados por Michel de Certeau (2013, 2014). Para os/as autores/as, o Estudo do “Cotidiano” – ou cotidianos, como preferem afirmar, no campo da pesquisa em educação, foi se configurando como Estudos no/dos/com os cotidianos. Os termos foram utilizados para buscar dar conta da dimensão criativa da vida e, principalmente, da vida em sociedade nos diferentes modos de existência nos múltiplos espaçostempos (OLIVEIRA, 2012) em que ela se inventa e se realiza. Os/as autores/as nos apresentam os cotidianos como espaços criadores em que são produzidas existências e redes de significados, nos quais praticantespensantes tecem suas práticas (ALVES, 2008) e a heterotopia se faz presente.

REFERÊNCIAS:

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Outubro de 2021

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