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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro Oct./Dez 2021  Epub Feb 18, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.61578 

Os currículos na compreensão da educação como direito humano: dignidade e cidadania na reflexãoação curricular

CURRÍCULO-AÇÕES-SILÊNCIOS: um olhar para a formação inicial do professor de literatura na UFAM

CURRICULUM-ACTIONS-SILENCES: a look at the initial formation of literature teachers at UFAM

CURRÍCULO-ACCIONES-SILENCIOS: una mirada a la formación inicial del profesor de literatura en la UFAM

Iolete Ribeiro da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-9416-6866; lattes: 6024598140248335

Priscila Vasques Castro Dantas2 
http://orcid.org/0000-0002-5459-6458; lattes: 9460408881000132

1Universidade Federal do Amazonas (UFAM) E-mail: ioleteribeiro@ufam.edu.br

2Universidade Federal do Amazonas (UFAM) E-mail: priscilavasques84@gmail.com


Resumo

A partir da teoria histórico-cultural, da dialogia e da inter-relação literatura-sociedade objetiva-se refletir, aqui, acerca do/a professor/a de literatura em sua formação inicial no Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas, observando o currículo como espaço (ou não) de práxis e de construção do conhecimento que considera a literatura, bem como o trabalho com o texto literário, lugar de poiesis, de formação humana, de compreensão de si, do outro e do contexto sócio-histórico-cultural. Observa-se, para isso, em análise discursiva, o Projeto Pedagógico do Curso e o trabalho do grupo de estudos Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa.

Palavras-chave: currículo; formação inicial do/a professor/a de literatura; teoria histórico-cultural

Abstract

Based on the historical-cultural theory, from the dialogue and the literature-society interrelation, the objective is to consider, here, about the literature teacher in their initial formation at the letters degree -Portuguese Language and Literature at the Federal University of Amazonas, observing the curriculum as a space (or not) for praxis and construction of knowledge that considers literature, as well as the work with the literary text, place of poiesis, of human formation, of self-understanding, the other and the socio-historical-cultural context. For this, in discursive analysis, the Course Pedagogical Project and the work of the study group Gender relations, power and violence in Portuguese-language literatures.

Keywords: curriculum; initial formation of the literature teacher; historical-cultural theory

Resumen

A partir de la teoría histórico-cultural, de la dialogía, de la interrelación literatura-sociedad se objetiva reflexionar, aquí, acerca del/de la profesor/a de literatura en su formación inicial en el Curso de Letras – Lengua y Literatura Portuguesa de la Universidad Federal del Amazonas, observando el currículo como espacio (o no) de praxis y de construcción de conocimiento que considera la literatura, así como el trabajo con el texto literario, lugar de poiesis, de formación humana, de comprensión de sí, del otro y del contexto socio-histórico-cultural. Se observa, para eso, en análisis discursivo, el Proyecto Pedagógico del Curso y el trabajo del grupo de estudios Relaciones de género, poder y violencia en literaturas de lengua portuguesa.

Palabras clave: currículo; formación inicial del/de la profesor/a de literatura; teoría histórico-cultural

REFLEXÕES PRIMEIRAS

O ser humano é sujeito social, formado histórica e culturalmente a partir de sua performance no corpo político que é a sociedade. Nesse performar, as vozes que se enunciam se fazem polifonia – entendida, neste texto, da perspectiva bakhtiniana, que considera polifônicos os discursos, sendo polifonia a multiplicidade de vozes e consciências em um mesmo discurso (BAKHTIN, 2010, p. 6) – e, assim, múltiplos modos de olhar e vivenciar o existir se operacionalizam, em perspectiva dialógica – para Bakhtin (2010, p. 232), dialogar, além da troca de enunciados, é ligação entre discursos, que considera os múltiplos campos sociais e políticos.

Quando falamos em discursos, em polifonia, precisamos compreender que, como representações das vozes que compõem o corpo social, os discursos têm força de ação, seja de modo explícito, seja de modo velado. Tendo força de ação, então, os discursos vão se traduzir em práticas, em norteadores dos processos no corpo social, dentre os quais está posto o processo de formação inicial do/a professor/a.

Ao pensar na formação inicial e sabendo que esta tem natureza polifônica e dialógica, sendo as forças de poder que operacionalizam as ações no corpo social vozes ativas em seu discurso, faz-se necessário refletir acerca dessa formação, partindo da compreensão de que os mecanismos de controle do poder vigente se interpõem nessa experiência.

É necessário pontuar, de início, que, se quisermos uma formação inicial fundada no pensamento crítico-reflexivo, precisamos entender, primeiro, que a formação do sujeito-leitor se constrói, para além da decodificação alfabética, nas interações do sujeito no contexto sócio-histórico-cultural. Essas interações incluem, então, a passagem pela escola e, consequentemente, o convívio com o/a professor/a e com o trabalho deste/a em torno da leitura e, no recorte específico que aqui pretendemos, a leitura do texto literário, considerando que este é campo muito fértil para o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo, viabilizando o trabalho com o texto literário, portanto, como espaço de vozeamento dos sujeitos no ambiente escolar, sendo a literatura, assim, lugar de resistência aos discursos de poder vigentes.

Diante disso, objetivamos refletir, neste artigo, em análise discursiva, acerca do/a professor/a de literatura em sua formação inicial, observando o currículo como espaço (ou não) de práxis e de construção do conhecimento que considera a literatura, bem como o trabalho com o texto literário, lugar de poiesis, de formação humana, de compreensão de si, do outro e do contexto sócio-histórico-cultural.

Precisamos lembrar que, nas engrenagens de poder vigentes, existimos, especialmente no Brasil, a partir da lógica do obscurantismo, da negação da ciência e da colonização das mentes em favor de um discurso que operacionaliza a manutenção do status quo de subalternidade e silenciamento. Em nosso entender, contudo, a literatura deve se fazer fissura nestes mecanismos de poder, podendo viabilizar, na formação inicial do/a professor/a de literatura, espaço para debates, tão necessários à construção do pensamento crítico-reflexivo, o que se coloca na contramão da homogeneização deste tempo de subjugação, de ausências e desconstrução de sentidos que ora experimentamos.

Krenak (2020, p. 13) chama atenção para o processo de “zumbificação” que temos vivenciado e ao qual precisamos resistir, retomando nosso fio originário, ligado à literatura oral, à contação de histórias. Para o autor, contar uma história é “adiar o fim do mundo”; na literatura – lugar de fruição, de expressão do nosso processo sócio-histórico-cultural – está posta, dessa perspectiva, a manutenção do nosso existir.

Diante disso, parece-nos claro que o ensino de literatura e a formação do/a professor/a de literatura precisam ser contraposição aos discursos de homogeneidade, uma vez que é no campo da subjetividade e de uma coletividade que compreende a diversidade subjetiva que a literatura pode assumir-se espaço de reflexão crítica. Na leitura literária, portanto, podemos “adiar o fim do mundo”.

Para pensar sobre as questões que permeiam a formação inicial do/a professor/a de literatura a partir do currículo e das ações e silêncios que se alinhavam a ele, propomos, neste trabalho, que se lance luz, em análise discursiva, sobre a formação inicial do/a professor/a de literatura no contexto do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas (Letras – LP/UFAM), dando ênfase às ementas das disciplinas de estudos literários elencadas no Projeto Pedagógico do Curso e ao trabalho desenvolvido no âmbito do grupo de estudos Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa, o qual foi escolhido para ser discutido neste artigo por conta dos temas que discute, descritos já no nome do grupo. É preciso dizer que apenas este grupo de pesquisa, na área de estudos literários do mencionado Curso, aborda estas questões, alinhando-se os demais grupos de estudo a um perfil mais canônico de análise literária, o que os leva a não serem de nosso interesse neste artigo.

No que tange ao currículo busca-se dialogar, aqui, com o que postula Arroyo (2013, p. 18-19) acerca de currículo como território de disputa, espaço de tensionamento, bem como com a compreensão de Silva (2016, p. 12-13) de currículo e identidade. É preciso mencionar, no que se refere ao Projeto Pedagógico do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas (PPC de Letras – LP/UFAM, 2010), que este não traz nenhuma discussão, nem mesmo introdutória, da compreensão do Curso acerca de currículo. O documento menciona apenas o que se espera do licenciado em Letras e, em seguida, parte para a descrição da matrizcurricular – conjunto de disciplinas obrigatórias e optativas, descritas do seguinte modo:

a) Conteúdos específicos: língua portuguesa, literaturas brasileira e portuguesa, linguística, teoria da literatura, línguas clássicas e estrangeiras, língua latina; b) Conteúdos pedagógicos: psicologia, didática, legislação do ensino, metodologia e libras; c) Conteúdos da prática como componente curricular: práticas curriculares; d) Estágios supervisionados: estágios supervisionados e TCC; e) Atividades acadêmico-científico-culturais: atividades complementares; f) Conteúdos complementares optativos: língua portuguesa, literatura, linguística, análise do discurso, línguas indígenas (PPC LETRAS – LP, 2010, p. 13-14).

Destacamos, por fim, que este artigo integra pesquisa que se volta para a formação inicial e posterior exercício da docência do professor de literatura, a qual conta com autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas, Parecer n. 4.752.888, CAAE n. 46255721.1.0000.5020.

O SUJEITO-PROFESSOR NA FORMAÇÃO INICIAL: SUBJETIVIDADES, CURRÍCULO E PODER

Saviani (2013, p. 13) aponta que “[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica”. Se ela é produzida, não podemos deixar de apontá-la como parte do processo sócio-histórico-cultural em que o ser humano se integra. Consequentemente:

[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI, 2013, p. 13).

A formação inicial é parte desse processo de construção coletiva, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, que é a educação. O sujeito-professor começa a ser forjado no trânsito teóricoprático dos anos de graduação e, quando falamos em trânsito teórico-prático, estamos pensando na experiência que parte do currículo e se integra à inserção desse sujeito, enquanto ser no mundo, na cultura, na história, na sociedade. Este sujeito é, portanto, construído ao longo de sua própria trajetória e, assim, a sua relação com a formação inicial é também elemento formativo de sua subjetividade; é face desse processo de ser/estar no mundo.

Acerca da subjetividade, Gonçalves e Furtado (2016, p. 8; p. 29-30) indicam que esta é uma construção que se dá a partir das interações sociais e culturais do ser humano, as quais ocorrem dentro da sua historicidade. Dizem também que, considerando esta noção de experiência histórica, é preciso lembrar que a afirmação do ser humano como sujeito, desde a modernidade, foi viabilizada pelo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas.

Neste contexto, faz-se necessário destacar que, se o capitalismo engendra a experiência histórica do sujeito, ele, por conseguinte, impõe limites na formação deste e acaba por atrelá-la às condições sociais e políticas impostas pelos interesses do mercado. Logo, a noção de “sujeito livre” forjada pelo capitalismo, que define este sujeito como individual, racional e natural, é limitada. Na prática, o que se concretiza “[...] é uma experiência condicionada pelo contexto social e histórico, o que, em função de posições ideológicas, entre elas o liberalismo, termina por ser ocultado na compreensão dessa experiência concreta” (GONÇALVES, FURTADO, 2016, p. 30).

Observar o sujeito-professor, na formação inicial, portanto, requer observar teoria e prática como espaços de desenvolvimento da subjetividade, espaços esses que não podem ser olhados sem a compreensão de que são lugares de tensionamento, de atuação dos mecanismos de poder vigentes. Então, para que a formação se viabilize numa perspectiva de práxis, ou seja, como atividade material transformadora (VÁZQUEZ, 2011, p. 239), é preciso que se oportunize o desenvolvimento do sujeito-professor na convergência entre teoria, prática e reflexão crítica, a qual se faz emancipadora e ressignificadora do processo formativo e do próprio existir sob os olhos do poder.

A partir dessas questões, para refletir sobre o currículo, vale trazer o que aponta Silva (2016, p. 12-13):

Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo, pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade.

Nessa percepção de currículo que se associa à identidade, vale pensar sobre as múltiplas construções identitárias que podem se apresentar na formação inicial do professor de literatura. Se, por um lado, pode-se desenvolver uma perspectiva crítico-reflexiva no trabalho com o objeto literário e seu entorno, por outro, pode-se caminhar na linha de uma replicação do modelo de poder vigente, mantendo, assim, a zumbificação a que Krenak (2020, p. 13) faz menção.

Desse modo, parece se referendar a importância de a formação docente lidar com as discursividades e, de uma perspectiva histórico-cultural, levar em consideração os sujeitos, humanizando o processo acadêmico de construção do conhecimento para viabilizar, adiante, uma prática docente igualmente humana. Silva (2016, p. 37-42) destaca, na discussão do currículo, os trabalhos de Bowles e Gintis – para quem a escola espelha o funcionamento social, na lógica capitalista, reproduzindo as relações de poder, dominação e subalternidade – e os trabalhos de Bourdieu e Passeron, centrados numa visão de que a chave de reprodução está nas metáforas econômicas oriundas do poder vigente, como demonstra, por exemplo, a utilização do conceito de “capital cultural”. Aqui notamos, mais uma vez, que tudo se inter-relaciona no processo sócio-histórico-cultural; não há ser fora da cultura, deslocado do tempo histórico e fora do alcance dos mecanismos que regem a sociedade.

Acerca do conceito de “capital cultural” destacado por Silva (2016, p. 41) na obra de Bourdieu e Passeron, é interessante observar o seguinte trecho:

O domínio simbólico, que é, por excelência, da cultura, da significação, atua através de um ardiloso mecanismo. Ele adquire sua força precisamente ao definir a cultura dominante como sendo a cultura. [...] Para que essa definição alcance sua máxima eficácia, é necessário que ela não apareça como tal, que ela não apareça justamente como o que ela é, como uma definição arbitrária [...] baseada apenas na força [...] da classe dominante. É essa força original que permite que a classe dominante possa definir sua cultura como a cultura.

Se a lógica da dominação, a partir da cultura, se operacionaliza assim, parece-nos evidente que o currículo, funcionando como mecanismo nessa máquina de poder, baseia-se naquilo que é do interesse da hegemonia, logo, “[...] ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante” (SILVA, 2016), p. 41 e os “falantes naturais” desse código são os oriundos da classe dominante. Um currículo que não oportuniza nenhuma relação de identidade com os subalternos, no qual não se proporciona o debate para o reconhecimento de si no processo social, é um currículo que silencia, violenta e serve ao poder; torna-se “[...] capital cultural institucionalizado” (SILVA, 2016, p. 39).

Diante disso, entendemos que, se a literatura pode e deve assumir sua função humanizadora (CANDIDO, 2011), uma vez que “[...] responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo” (COMPAGNON, 2009, p. 26), a formação do professor de literatura precisa ser espaço para a reflexão-ação, fazendo-se, desse modo, resistência à cultura hegemônica. A lógica de manutenção da hegemonia (SAVIANI, 2013, p. 46), contudo, sempre vai trabalhar pela naturalização de sua cultura, de modo que formar para quebrar essa parede só se viabiliza na reflexão-ação.

A partir dessas questões, buscamos observar, discursivamente, numa leitura dialógica (BAKHTIN, 2010), as ementas das disciplinas obrigatórias da área de estudos literários do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas (Letras – LP/UFAM), as quais constam do Projeto Pedagógico do Curso (atemo-nos à versão vigente, que é a versão 2010, regulamentada pela Resolução n. 023/2010-CEG/CONSEPE/UFAM e modificada pela Resolução n. 029/2016-CEG/CONSEPE/UFAM) e, em contraposição, a vivência do grupo de estudos Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa, a fim de refletir sobre as vozes que se enunciam nesse jogo de poder que é a formação.

A CULTURA HEGEMÔNICA E A FORMAÇÃO: UM OLHAR PARA AS DISCIPLINAS DE ESTUDOS LITERÁRIOS NO CURSO DE LETRAS-LP/UFAM

Acerca dos tensionamentos do currículo, é importante destacar o que diz Arroyo (2013, p. 450-451) sobre a segregação que age, historicamente, em favor da manutenção da subalternização, da subcidadania:

A segregação dos espaços e das instituições da justiça, do poder, do trabalho, da produção da riqueza tem agido e agem em nossa história como os processos brutais de manutenção dos coletivos populares como subcidadãos. [...] Sair dos cursos de formação com análises mais aprofundadas da história da segregação cidadã nos ajudaria a ter posturas mais críticas sobre o peso real, histórico da escolarização como descondicionante da cidadania condicionada a outros processos mais brutais. Ter mais clareza desses processos ajudará a libertar-nos do peso de um discurso social, político que condiciona à escolarização de qualidade e à responsabilidade docente a solução de todos os males, do atraso econômico, da pobreza, da infância-adolescência em risco, da subcidadania. [...] Os profissionais da educação básica têm direito aos saberes dessa história tão complexa quando são cobrados de garantir o direito à escolarização. Que lugar têm ocupado esses saberes nos currículos de pedagogia e de licenciatura?

Há, no trecho citado, uma importante reflexão acerca da formação inicial que nos parece caber aqui: é preciso compreender que não é apenas a formação ou a atuação do/a professor/a na educação básica que vai reverter todo o nosso quadro histórico de silenciamento e subalternização. Entretanto, é necessário, na visão do autor, que os cursos de formação inicial tenham a responsabilidade de discutir esses processos estruturantes de segregação. Quando observamos, a partir do Projeto Pedagógico do Curso, as disciplinas de literatura da matriz curricular do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas (Letras – LP/UFAM), o que observamos é um perfil que se centra em conceituação e periodização, conforme mostraremos adiante. Já no trabalho do grupo de estudos Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa, pareceu-nos, ao longo do acompanhamento que fizemos das reuniões, que se abre espaço para o fomento do pensamento crítico-reflexivo, a partir da preocupação de discutir exatamente os processos estruturantes que articulam a segregação, a subalternização, a violência e o silenciamento.

Partindo dessa compreensão e entendendo o currículo como espaço dialógico e polifônico, observemos, então, como se apresentam as disciplinas obrigatórias da área de estudos literários do Curso em questão. De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso (2010), são nove os semestres letivos (que passaremos a denominar, aqui, de períodos), sendo as disciplinas de literatura distribuídas da seguinte forma: a) 1º período: Teoria da Literatura I; b) 2º período: Teoria da Literatura II; c) 3º período: Teoria da Literatura III; d) 4º período: Literatura Brasileira I e Literatura Portuguesa I; e) 5º período: Literatura Brasileira II e Literatura Portuguesa II; f) 6º período: Literatura Brasileira III e Literatura Portuguesa III; g) 7º período: Literatura Latina e Literatura Brasileira IV; h) 8º período: Literatura Amazonense; i) 9º período: Prática Curricular VII – O Ensino de Literatura.

Falemos, primeiro, das Teorias da Literatura. A primeira delas é Teoria da Literatura I, cuja ementa é Introdução ao estudo da arte literária. No quadro de objetivos, lemos:

Ao final da disciplina o aluno deverá compreender o fenômeno literário. Analisar diferentes gêneros de formas literárias, identificando características específicas de cada um. Reconhecer os diferentes estilos de época em seu contexto histórico. Relacionar a literatura com as diversas correntes teóricas que lhe são afins. Aplicar os conhecimentos teóricos adquiridos na análise de textos (PPC, 2010, p. 38).

Se nos detivermos nos objetivos da disciplina, observaremos que a proposta se centra muito mais em trabalhar conceitos do que em fazer da literatura um espaço de reflexão e de ação. Enquanto a ementa é bem genérica, o que daria margem para abordagens diversas, os objetivos engessam as possibilidades. Se, ao final da disciplina, objetiva-se que o/a discente compreenda o fenômeno literário, espera-se que seja dado um caminho para tal e, quando observados os objetivos seguintes, o que se nota é a escolha da fórmula “estilos de época”, que finda por conduzir a um trabalho empobrecido do contexto histórico, que se dissocia do processo cultural e se resume, muitas vezes, a nomes e datas, ecoando, assim, as enunciações dos mecanismos de poder, uma vez que são eles que estabelecem a noção simplista de periodização para a literatura. Outro ponto fundamental a colocar é que, nesta listagem de objetivos, estão resumidos os conteúdos das três disciplinas de Teoria da Literatura: Teoria da Literatura II trabalha com os gêneros e formas literárias e Teoria da Literatura III trabalha com as correntes teóricas, conforme podemos notar a seguir:

Teoria da Literatura II – Ementa: Gêneros literários. Objetivos: Refletir sobre os gêneros literários; Compreender as peculiaridades de cada gênero literário e a inter-relação dos diferentes gêneros. [...] [...] Teoria da Literatura III – Ementa: Correntes da Crítica Literária. Objetivos: Estudar as modernas correntes da crítica literária; Discutir sobre a crítica literária no século XIX; Analisar as principais correntes da crítica do século XX; Aplicar as teorias críticas em textos literários diversos em versos e prosas (PPC, 2010, p. 45; 54).

Ora, se a Teoria da Literatura II e a Teoria da Literatura III já são destinadas ao trabalho com os gêneros literários e a crítica, não nos parece oportuno abordar isso na Teoria da Literatura I. Sendo a Teoria da Literatura I o primeiro contato, na formação, com o estudo da literatura e considerando que os/as discentes desta disciplina estão, em sua maioria, vivenciando a transição da educação básica para o ensino superior, por que não fazer da Teoria da Literatura I um espaço dialógico, que considera os múltiplos campos do discurso; um espaço de contato inicial com a literatura, orientado pela reflexão, pelo reconhecimento de si e do outro, numa perspectiva que pense o objeto literário no contexto sócio-histórico-cultural? Aqui, parece-nos caber a reflexão que Silva (2016) propõe sobre o currículo ser forjado “na” cultura hegemônica, o que finda por transformá-lo em mais um mecanismo de controle.

Quando seguimos para o quadro de disciplinas da Literatura Brasileira (I a IV) e da Literatura Portuguesa (I a III), o que encontramos é o modelo da periodização literária ordenando as ementas, conforme notamos a seguir:

Literatura Brasileira I – Ementa: Origens; Barroco; Arcadismo; Romantismo. [...] [...] Literatura Portuguesa I – Ementa: Trovadorismo; Humanismo; Classicismo; Barroco. [...] [...] Literatura Brasileira II – Ementa: Realismo/Naturalismo; Parnasianismo; Simbolismo; Impressionismo. [...] [...] Literatura Portuguesa II – Ementa: Arcadismo; Romantismo; Realismo. [...] [...] Literatura Brasileira III – Ementa: Pré-Modernismo; Modernismo (até a geração de 45) [...] [...] Literatura Portuguesa III – Ementa: Simbolismo; Modernismo; Atualidade [...] [...] Literatura Brasileira IV – Ementa: Processo de transformação artística por meio da literatura desde a geração de 45 até as manifestações atuais (PPC, 2010, p. 59; 61; 67; 69; 80).

Observamos que as disciplinas não são divididas, por exemplo, por agrupamento temático, o que, em nosso entendimento, viabilizaria, com mais propriedade, o debate em torno do objeto literário, olhando para este de uma perspectiva polifônica, compreendendo-o como fruto da cultura e das estruturas que operacionalizam essa cultura. Assim, seria possível trazer, para a sala de aula, por meio das obras de autores que não foram necessariamente contemporâneos temporais, temas do interesse cotidiano, que possibilitam o reconhecimento de si e do outro no processo social.

Em seguida, lançamos olhar para as disciplinas Literatura Latina e Literatura Amazonense, cujas ementas são, respectivamente, “Conceito, periodização. Obras representativas do ‘estilo clássico’ dos principais autores. Os gêneros e as espécies literárias latinas” (PPC DE LETRAS-LP/UFAM, 2010, p. 81) e “Estudo dos principais períodos da literatura que se realizou no Amazonas, das origens ao Clube da Madrugada” (PPC DE LETRAS-LP/UFAM, 2010, p. 89), nas quais, mais uma vez, vemos a periodização norteando o trabalho a ser desenvolvido. Se em Literatura Latina seria possível debater as questões fundantes da nossa compreensão de processo social, em Literatura Amazonense, seria possível discutir a questão amazônica e o objeto literário como força de expressão de nossa cultura, mas não é esse o caminho proposto.

Por fim, há a disciplina Prática Curricular VII – O Ensino de Literatura, cuja ementa é “O ensino das literaturas brasileira e portuguesa no ensino médio. Métodos e técnicas. Teorias linguísticas aplicadas ao ensino de literatura” (PPC DE LETRAS-LP/UFAM, 2010, p. 95). Aqui, há dois problemas bem claros. O primeiro é o fato de haver uma disciplina específica para discutir o ensino de literatura, o que, a nosso ver, em se tratando de uma formação inicial docente, deveria ser pontuado em todas as disciplinas de estudos literários, por meio de debates temáticos, que olhassem para o objeto literário fora da “caixinha” da periodização (há o trabalho com os conceitos, claro, mas a periodização finda por ser o grande norte de todas as disciplinas de estudos literários), relacionando-o com uma compreensão bem mais ampla e complexa do próprio existir em um lugar da cultura que é, acima de tudo, lugar de poder e de regulação e segregação. O segundo é a proposta de aplicar teorias linguísticas ao ensino de literatura, o que, em nosso entendimento, nada tem a somar num debate que deveria se centrar em discutir a abordagem do objeto literário no contexto da sala de aula. Vale destacar, no que se relaciona à aplicação das teorias linguísticas ao objeto literário, que o que findamos por observar, na prática das salas de aula da educação básica, é o texto literário tornar-se simples pano de fundo para as aulas de gramática, numa distorção de seu objetivo maior, que é formar para a reflexão-ação, uma vez que o ensino de literatura deve buscar exercitar seu viés humanizador.

Discutindo sobre pensamento e linguagem, Vygotsky (2001, p. 233) postula que olhar para o discurso sócio-histórico-culturalmente é o que possibilita tratar da relação que entre o pensamento e a linguagem se estabelece, uma vez que esta relação se constitui um processo vivo, em constante movimento. Para Vygotsky (2009 apudGONÇALVES, FURTADO, 2016, p. 35-36), portanto, é pela linguagem que ocorre a mediação do indivíduo com a realidade objetiva e social, ou seja, a linguagem é quem constitui a subjetividade e isto se dá dentro de um processo histórico-cultural. É neste processo, então, que o indivíduo, a partir de suas vivências, produz sentidos que constituem a sua singularidade.

Se tomarmos esses pressupostos de Vygotsky como ponto de partida, notaremos que o ensino de literatura está diretamente relacionado com a expressão da subjetividade. Nas palavras de Todorov (2009, p. 32-33):

O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um. O caminho tomado atualmente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte [...], arrisca-se a nos conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura.

Se assim o é, o que se deveria esperar da formação inicial era que esta viabilizasse um trabalho com a literatura que se constituísse espaço de expressão da subjetividade, lugar de vozeamento. Morin (2018, p. 15) postula que os nossos sistemas de ensino elaboram currículos que reduzem o complexo ao simples, decompõem ao invés de recomporem e eliminam tudo que causa “desordem” ou “contradição”. Aí, quando pensarmos em desordem e contradição, precisamos pensar no referente: o que se desordena e o que se contradiz quando se opta por um currículo que reduz o complexo ao simples? A ordem hegemônica, a cultura do poder vigente.

Assim, vale destacar as reflexões de Cosson (2006) acerca do ensino de literatura, que vão ao encontro do que apontamos neste texto: é preciso pensar num ensino de literatura para a emancipação, para a ressignificação de si, para a compreensão do ser/estar no processo sócio-histórico-cultural. A discussão do objeto literário numa perspectiva que compreende o jogo das relações de poder, gênero e violência se faz espaço, por meio do ensino de literatura, de vozeamento e transformação. É aquilo que se centra numa formação crítico-reflexiva que viabiliza a possibilidade de formarmos para o desvelamento. Nas palavras de Cosson (2006, p. 21; p. 26-29):

[...] se quisermos formar leitores capazes de experienciar toda a força humanizadora da Literatura, não basta apenas ler. Até porque [...] não existe tal coisa. Lemos da maneira como nos foi ensinado e a nossa capacidade de leitura depende, em grande parte, desse modo de ensinar, daquilo que nossa sociedade acredita ser objeto de leitura e assim por diante.

Ora, se a formação não viabilizar a discussão da literatura nessa perspectiva, como o ensino de literatura, lá na educação básica, o fará? Um projeto pedagógico de curso que norteia o trabalho com a literatura pela periodização e conceituação dificilmente contribui para que se alcance a experiência humanizadora da literatura, findando, desse modo, por cooperar para a manutenção do status quo, uma vez que forma dentro dos muros da cultura hegemônica. Sem uma formação inicial que articula o debate, o pensar sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, dificilmente haverá, no chão de escola, uma docência que conduza ao desvelamento e ao vozeamento dos sujeitos.

Silva (2016, p. 210) nos lembra que o currículo atua ideologicamente, mantendo as estruturas de poder vigentes em sua plena funcionalidade. “Através das relações sociais do currículo, as diferentes classes sociais aprendem quais são seus respectivos papéis nas relações sociais mais amplas”. O autor pontua, ainda, que o currículo é forjado dentro de um mapa do poder que operacionaliza os processos de dominação, centrando-os na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade (SILVA, 2010, p. 212), o que reforça a nossa reflexão acerca do modo como se apresentam as disciplinas obrigatórias da área de estudos literários do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa – da Universidade Federal do Amazonas (Letras – LP/UFAM).

O GRUPO DE ESTUDOS RELAÇÕES DE GÊNERO, PODER E VIOLÊNCIA EM LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: VOZEAMENTO E RESISTÊNCIA

Embora o discurso que se apresenta no Projeto Pedagógico do Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas nos pareça estar na direção da enunciação do poder vigente – silenciamento, portanto –, há que se olhar para ações, no Curso que, na contramão desse discurso, fazem-se fissura na estrutura. É sobre uma dessas ações – espaço de vozeamento – que falaremos agora. Encaminhamos nossa observação a partir do acompanhamento das reuniões, no primeiro semestre de 2021, em modalidade remota, do grupo de pesquisa Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa, o qual é certificado, desde 2016, pelo CNPq e atua sob liderança de uma docente do quadro efetivo do Curso. De acordo com a descrição das linhas de pesquisa do grupo no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, o grupo centra seus estudos nos seguintes temas: 1) Corpo, gênero e sexualidade; 2) Memória e testemunho; 3) Poder e violência. No que se refere à periodicidade dos debates, registra-se que o grupo realiza reuniões quinzenais, sendo o grupo de alunos/as que participa elencado a partir de duas categorias: os/as credenciados/as no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq como membros e aqueles/as que participam das reuniões como ouvintes. Vale destacar que tanto credenciados/as como ouvintes mantêm regularidade de apresentação de trabalhos em eventos a partir das temáticas debatidas do grupo. O fluxo de participação de ouvintes é intenso, uma vez que não se interpõe nenhum óbice para esse trânsito pelo grupo e, por conta disso, pudemos observar momentos em que o grupo contou com mais de trinta estudantes assistindo as reuniões.

É preciso registrar, de início, que a dinâmica do grupo é bastante desprendida da questão hierárquica, embora, é claro, e até pela formalidade, o grupo conte com a docente-líder. O que observamos é que há espaço e voz para que todos/as se pronunciem e mesmo quando a líder não pode estar nas reuniões elas acontecem, sob os cuidados dos/as próprios/as alunos/as, que organizam e encaminham o debate proposto para aquela quinzena. Nesses debates, discute-se a literatura de uma forma muito dinâmica, sempre inter-relacionando temas, teoria e cotidiano, o que dá à discussão, do ponto de vista teórico, uma fluidez maior. As bases teóricas estão postas nos estudos culturais, com ênfase, dentre outros, nos seguintes autores: Judith Butler, Giorgio Agamben, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Simone de Beauvoir, Joan Scott, Gayle Rubin, bell hooks, Constância Lima Duarte, Regina Dalcastagnè, Heleieth Saffioti, Mary Del Priore, Jaime Ginzburg, Abdias Nascimento, Djamila Ribeiro, Kabengele Munanga, Eurídice Figueiredo, Rose Marie Muraro.

Como o grupo vem se reunindo desde 2016, alguns alunos que acompanham as atividades desde a iniciação científica já tiveram oportunidade de levar a teoria discutida para o mestrado, o que tem rendido resultados muito interessantes, dos quais registramos as dissertações “Corpo-gênero, corpo-ditadura: uma leitura dos corpos em O pardal é um pássaro azul, de Heloneida Studart”, e “Enclausuramento: a (des)construção do sujeito em Rato, de Luís Capucho”. É preciso mencionar também os trabalhos de iniciação científica do grupo: 1) “Emancipação do feminino em Nélida Pinõn”; 2) “A condição feminina em Adília Lopes”; 3) “O que preocupava era a infelicidade dos pretos: a vivência de pessoas negras na literatura de Carolina Maria de Jesus e escritoras negras da Internet”; 4) “A Literatura Portuguesa como condutora de lutas e liberdade em contos de Lídia Jorge”; 5) “Da invisibilidade à resiliência no núcleo feminino de A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha”; 6) “Da realidade para a ficção: violências várias em Desesterro, de Sheyla Smanioto”;7) “Com armas sonolentas’, de Carola Saavedra: o romance de formação feminino como subversão; 8) “Alameda: estereótipos de feminilidade através das personagens plantas”; 9) “Erotismo e violência em Olhos d’água, de Conceição Evaristo; 10) O policiamento dos corpos e a liberdade sexual feminina nos contos ‘O cordeiro’, ‘A mulher do Zé Pitomba’ e ‘Petite mort’, de Priscila Lira”; 11) “Paradigmas da feminilidade em Menina e moça ou Saudades, de Bernardim Ribeiro”; 12) “Autoritarismo, violência e silenciamento: um retrato da Guerrilha do Araguaia no romance Palavras cruzadas, de Guiomar de Grammont”; 13) “As reflexões políticas e a resistência da comunidade homossexual: uma leitura de Stella Manhattan, de Silviano Santiago”; 14) “As formas de aprisionamento feminino nos contos ‘O retrato’, ‘A princesa espanhola’ e ‘Inocência perdida’, de Maria Teresa Horta”; 15) “A condição feminina em Nunca houve um Castelo: uma análise da construção das personagens”.

Observando as temáticas levantadas pelos trabalhos, vimos que o grupo faz um trânsito bastante produtivo entre as questões de gênero, violência e poder e a literatura, num movimento dialógico, que vai ao encontro da compreensão do objeto literário como produto do contexto sócio-histórico-cultural. A literatura, nas discussões dessa natureza, não se limita à periodização/conceituação/pano de fundo gramatical; é, antes, organismo vivo.

De nossa observação, é preciso registrar, ainda, que emerge dos debates uma compreensão acerca da literatura que está posta numa dimensão de poiesis, que coloca o objeto literário no campo da expressão de si e do mundo. Quando falamos de poiesis aqui, alinhamo-nos à perspectiva de Fernandes (2017):

[...] poiesis é a possibilidade de o homem despertar-se, na medida em que a obra [...] abre a ele uma “dimensão temporal autêntica”, seu espaço de pertencimento no mundo. Por isso, sua compreensão enquanto uma materialidade [...] pressupõe negar a perspectiva de colecionador, para compreender a poiesis como uma “presença”, presença que leva ao “des-velamento” (FERNANDES, 2017, p. 67-68).

A poiesis é, portanto, um caminhar para o desvelamento, é a obra literária, o objeto literário fazendo-se presença na existência, tomando a dimensão humanizadora que Candido (2011) nos propôs. A partir dessa compreensão, os debates do grupo tomam como ponto de partida para as proposituras temáticas, além dos textos literários, em si, uma série de coisas do cotidiano, como propagandas, manchetes/matérias jornalísticas, conversas familiares e/ou de redes sociais etc., enredando, desse modo, o objeto literário no próprio processo de ser/estar no mundo. Não há literatura fora da fruição e, assim sendo, não há que se discutir literatura de modo dissociado das questões que articulam o processo social. Nas discussões do grupo, portanto, o que observamos foi a teoria indo ao encontro do texto literário dentro do contexto político-social.

Enquanto a matriz curricular parece-nos reduzir a formação inicial do professor de literatura ao cartesianismo da periodização/conceituação, a atuação do grupo de estudos, conforme notamos em nossa observação, coloca a literatura num lugar muito mais dinâmico. Entender que um grupo de estudos literários pode e deve ser espaço de discussão das temáticas de poder, violência, corpo, gênero e sexualidade é enxergar na literatura espaço de poiesis, fazendo do seu ensino lugar de práxis. Viabilizar atividades dessa natureza na formação inicial do/a professor/a de literatura, sem dúvida, ajuda a tornar possível, no futuro docente dele/a, que o ensino de literatura seja lugar de vozeamento e resistência e cumpra, assim, sua função humanizadora.

REFLEXÕES FINAIS

O ensino de literatura que fala à subjetividade, que oportuniza o pensar sobre as estruturas de poder no corpo social é o ensino de literatura que humaniza, que vozeia, que resiste. É esse ensino de literatura – que se faz lugar de construção e reconstrução de sentidos e significados – que precisa chegar ao chão de escola, para que este possa se viabilizar como espaço de compreensão do processo social. Diante disso, evidencia-se, de nossa perspectiva, a necessidade de revisar as bases da formação inicial do/a professor/a de literatura no Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas, para que se possa, no caminho inverso ao da objetificação, romper com o cartesianismo sistemático da matriz curricular e caminhar, assim, para a construção de uma compreensão de currículo enquanto espaço de tensionamento e luta de poder.

Escrever é “escrevivência”, como bem coloca Conceição Evaristo (2009, p. 18); é trazer ao texto ficcional a voz da subjetividade. Olhar para o texto literário requer, portanto, compreender a literatura como ato político, diante do que formar o/a professor/a de literatura passa, necessariamente, pela experiência política no corpo social. Que possamos, então, refletir sobre os caminhos da formação inicial do professor de literatura no Curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas, tomando como guia o fôlego que nos trazem trabalhos como o do grupo de estudos Relações de gênero, poder e violência em literaturas de língua portuguesa, voz contrária às enunciações de poder que ecoam na formação inicial.

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Recebido: 00 de Agosto de 2021; Aceito: 00 de Dezembro de 2021

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