SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 númeroESPECIALTIEMPOS DE LA EDUCACIÓN CATÓLICA EN RIO DE JANEIRO: (1854-1934)EL MOMENTO DE LA CURACIÓN: ¡lo que importa es saber lo que importa! índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.22 no.especial Rio de Janeiro oct./dic 2021  Epub 18-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2021.59634 

Debate

ESCOLAS CÍVICOS MILITARES: conservadorismo e retrocesso na educação brasileira

MILITARY CIVIC SCHOOLS: conservatism and setback in Brazilian education

ESCUELAS CÍVICAS MILITARES: conservadurismo y retroceso en la educación brasileña

Zenilda Rodrigues Dias1 
http://orcid.org/0000-0001-7856-033X; lattes: 9640634844672151

Adalberto Carvalho Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-5039-7179; lattes: 9093782969901989

1Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) E-mail: jaty.rdias@gmail.com

2Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) E-mail: adalb.cr@gmail.com


Resumo

O artigo tem como objetivo analisar os fenômenos que levaram a transferência das escolas civis públicas para as mãos dos militares, considerando, ainda, as consequências da militarização dentro do ambiente escolar. A militarização de escolas públicas no Brasil, nos moldes atuais, é um fenômeno empírico surgido com mais ênfase no ano de 2013 no estado de Goiás, onde os ideais conservadoristas sustentam a defesa desse velho modelo pedagógico, agora em um novo desenho institucional. A abordagem metodológica é qualitativa, tendo sido a pesquisa documental por meio da análise de conteúdo o principal esteio da trilha investigativa, com destaque para a verificação do Manual das Escolas Cívico-militares publicado recentemente pelo governo federal. Questões de partida: 1) por que as escolas militarizadas surgem com boa aceitação na sociedade brasileira? 2) quais benefícios a proposta pode trazer para a educação brasileira? 3) como política pública, qual o escopo da proposta do Ministério da Educação? Os resultados apontam que a onda de conservadorismo que assola a sociedade brasileira e a ideia do “apagão educacional” impulsionaram o clamor social de pais e comunidade escolar por um “novo” modelo de escola, priorizando-se, dessa forma, a disciplina e a obediência, além da segurança no ambiente escolar em vez da aprendizagem e democracia.

Palavras-chave: escolas civis públicas; escolas cívico-militares; conservadorismo; apagão educacional

Abstract

The article analyzes the phenomena that led to the transfer of civil public schools to the military management, considering its consequences within the school environment. The today's militarization of public schools in Brazil is an empirical phenomenon that emerged with more emphasis in 2013 in the state of Goiás, where conservative ideals support this old pedagogical model, now in a new institutional design. The methodological approach is qualitative, with documental research through content analysis being the mainstay of the investigative path, with emphasis on the verification of the Manual of Civic-military Schools recently published by the federal government. Starting questions: 1) why do militarized schools emerge with good acceptance in Brazilian society? 2) what benefits can the proposal bring to Brazilian education? 3) what is the scope of the Ministry of Education's proposal as a public policy? The results show that the wave of conservatism that plagues Brazilian society and the idea of the “educational blackout” boosted the social outcry of parents and school community for a “new” school model, thus prioritizing discipline and obedience, as well as security in the school environment instead of learning and democracy.

Keywords: public civil; schools; civic-military schools; conservatism; educational blackout

Resumen

El artículo tiene como objetivo analizar los fenómenos que llevaron al traslado de las escuelas públicas civiles a manos de los militares, considerando también las consecuencias de la militarización en el ámbito escolar. La militarización de las escuelas públicas en Brasil, en el molde actual, es un fenómeno empírico que surgió con más énfasis en el año 2013 en el estado de Goiás, donde ideales conservadores apoyan la defensa de este viejo modelo pedagógico, ahora en un nuevo diseño institucional. El enfoque metodológico es cualitativo, siendo la investigación documental a través del análisis de contenido el eje de la trayectoria investigativa, con énfasis en la verificación del Manual de Escuelas Cívico-Militares recientemente publicado por el gobierno federal. Preguntas de inicio: 1) ¿Por qué surgen escuelas militarizadas con buena aceptación en la sociedad brasileña? 2) ¿Qué beneficios puede traer la propuesta a la educación brasileña? 3) como política pública, ¿cuál es el alcance de la propuesta del Ministerio de Educación? Los resultados muestran que la ola de conservadurismo que azota a la sociedad brasileña y la idea del “apagón educativo” impulsaron el clamor social de los padres y la comunidad escolar por un “nuevo” modelo escolar, priorizando así la disciplina y la obediencia, así como la seguridad en el entorno escolar en lugar de aprendizaje y democracia.

Palabras clave: escuelas públicas civiles; escuelas cívico-militares; conservatismo; apagón educativo

Introdução

Este artigo analisa o processo de implementação e institucionalização, em escolas públicas civis, de princípios e regras militares denominados inicialmente de escolas militarizadas ou escolas de gestão compartilhada. Hoje, as denominações anteriores ganham o pomposo nome de escolas cívico-militares, desta feita, sob o protagonismo do governo federal que pretende regulamentar o que nós estamos chamando de novo desenho institucional para escolas públicas no Brasil. Trata-se da transferência da gestão civil de unidades escolares nos seus aspectos decisórios institucionais, pedagógicos e, sobretudo, de tentativa de se realizar o controle comportamental de alunos, púberes e juvenis, em conformidade com a filosofia existente nas corporações militares. Face ao fenômeno, em todo o Brasil, Polícia Militar (PM) e Bombeiros Militares (BM) vêm deixando suas funções constitucionais de lado para serem desviados à condição de gestores de escolas públicas civis.

Analisando o fenômeno, pretendemos inferir sobre quais fatores vêm influenciando a aceitação das escolas cívico-militares (ECIMs), compreendido por nós como modelo de gestão híbrida1. Analisaremos, também, aspectos que fazem parte da proposta pedagógica do governo federal que, em 2020, publicou e divulgou o Manual das Escolas Cívico-militares em complemento ao Programa Nacional das Escolas Cívico-militares (PECIM). No Manual estão descritas todas as exigências do “novo”2 modelo, destacando-se, entre outras características, o perfil do aluno, as regras de condutas a serem obedecidas, o padrão de comportamento, a disciplina e a hierarquia, enfim, regras às quais devem ser rigorosamente observadas no ambiente escolar das ECIMs, em especial pelo corpo discente. Essas características e regras fazem parte, obviamente, da proposta pedagógica das ECIMs.

A inquietação deste artigo, portanto, está relacionada a três pontos norteadores: 1) o primeiro se refere às razões para o surgimento das escolas cívico-militares. Nossa hipótese é as preocupações dos pais e da sociedade com a insegurança pública, com a suposta violência intraescolar, com a controversa indisciplina juvenil, com as notícias de drogadição em ambientes escolares, com a temeridade dos pais quanto às condutas comportamentais de seus filhos adolescentes3, estes aspectos, vêm influenciando para a boa aceitação, por parte dos pais, que escolas públicas civis sejam comandadas por militares. Não obstante, conforme a percepção, sobretudo atual, do senso comum coletivo, os problemas de aprendizagens de jovens púberes e adolescentes se resolveriam por meio da disciplina imposta, por medidas coercitivas. Parece ser este o sentimento de muitos pais diante de outros fenômenos que atingem o público jovem, como por exemplo as novas mídias sociais; 2) a anunciada crise da educação e seu “apagão”, divulgado pela imprensa a cada ranking, advindos das avaliações nacionais, ajudam na formação do senso comum, no qual a escola pública teria falido; 3) por fim, em decorrência dos dois primeiros, propostas políticas proselitistas se aproveitam dos efeitos da falta de investimento educacional para inaugurar modelos que, inclusive, atentam contra princípios constitucionais, contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e contra a farta legislação educacional específica. O Manual das ECIMs, vamos mostrar, é uma afronta flagrante ao princípio da gestão democrática.

Nessa direção, as perguntas que norteiam este trabalho são:

  1. Quais motivações podem explicar a aceitação das escolas cívico-militares pela sociedade civil?

  2. As ECIMs teriam por base qual filosofia de educação? Em qual teoria pedagógica a proposta pode se filiar?

  3. Com a implantação das ECIMs, quais efeitos decorrem desta política pública e qual perfil de aluno melhor se enquadra na proposta?

A metodologia deste trabalho se baseia em abordagem qualitativa, do tipo bibliográfica, operando com pesquisa documental por meio de análise de conteúdo. Fizemos estudos em fontes secundárias a partir de livros, de artigos e revistas científicas. Na literatura, investigamos a teoria positivista, assim como ideais conservadoristas, a fim de entender a fundamentação do anunciado inovador modelo educacional, mas também investigamos sites jornalísticos divulgadores do debate social confrontando as opiniões entre educadores, militares, intelectuais, pais de alunos e governantes. De modo especial, analisamos o documento Manual das ECIMs publicado recentemente pelo governo federal. Nos debruçamos sobre o que ele dispõe procurando verificar os aspectos operacionais, sem perder de vista as orientações que afetam a proposta pedagógica para uma ECIMs funcionar. Ou seja, no Manual das Escolas Cívico-militares é possível encontrar e localizar princípios de qual filosofia de educação estar sendo praticada nessas unidades escolares civis.

O fenômeno aqui estudado iniciou de modo institucionalizado no estado de Goiás, no ano de 2013 (MENDONÇA, 2019). Foi lá que as adesões de escolas públicas civis primeiramente se deram e a experiência foi ganhando corpo pelo país.

Em 2019, o governo federal lançou o Programa para Escolas Cívico-militares (PECIM), no qual cada ente federativo pode aderir e fazer parte da “inovadora” política pública educacional do governo federal. No estado do Amapá, por exemplo, recentemente duas escolas estaduais aderiram ao programa, totalizando, assim, seis escolas que estão sob a gestão de militares: a) quatro de gestão compartilhada4 porque sob a competência exclusiva do governo estadual e b) duas como ECIMs, incluídas no PECIM.

Este artigo está dividido em seis seções. Na seção 2 faremos breve abordagem da trajetória e surgimento das escolas públicas civis sob gestão de militares5. Na seção 3 inferimos sobre a aceitação do modelo que foi impulsionado pela onda conservadora que se espalha pela sociedade brasileira. Na seção seguinte revelamos pontos importantes da proposta apresentada pelo Ministério da Educação (MEC) analisando pontos do Manual das ECIMs, destacando aspectos pedagógicos, administrativos, regras comportamentais de rotina que se transformam em dispositivos dos estatutos dessas unidades escolares. Ainda vamos considerar a filosofia educacional adotada pelas escolas cívico-militares bem como revelar seus vínculos com os ideais positivistas e conservadoristas. Na seção 5, inferimos sobre o debate social em relação ao tema e afirmamos o retrocesso da proposta enquanto política pública educacional. A guisa de conclusão, retomamos as questões norteadoras procurando, em síntese, responder aos propósitos da pesquisa.

O paradoxo da militarização das escolas públicas civis

Esclarecemos, primeiramente, que a implementação das ECIMs faz surgir dois modelos institucionais de escolas militares: 1) os já conhecidos e clássicos Colégios Militares, ou seja, escolas das corporações profissionais vinculadas ao Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros. Essas escolas públicas de educação básica gerenciadas exclusivamente por militares que desenvolvem atividades tanto diretivas, administrativas, pedagógicas, como também de natureza docente. Colégios militares não estão vinculados às Secretarias de Educação dos Estados e sim às corporações, o que é previsto na legislação, de acordo com a Lei n° 9394/1996, em seu artigo 83 (CARNEIRO, 2015); 2) as escolas civis militarizadas, por sua vez, começaram a ter destaque em 2013 no Estado de Goiás (MENDONÇA, 2019) e em 2017 com o nome “gestão compartilhada” no estado de Amapá, por exemplo, (RODRIGUES; LOPES, 2019). Trata-se, portanto, de uma novidade institucional, porque o modelo é híbrido: Secretarias Estaduais de Educação e Secretarias Estaduais Segurança Pública, juntas repartindo competências. A partir de 2019 o governo federal “comprou” a ideia e resolveu implementar o modelo como política pública educacional federal sob a denominação de escolas cívico-militares, buscando homogeneizar as ações em todo o Brasil.

Nesse sentido, as ECIMs propõem ofertar o Ensino Fundamental (2º ciclo) e Ensino Médio para, preferencialmente, alunos que moram em comunidade vulneráveis socialmente, nas periferias sob o argumento de atender aos estratos mais pobres da população.

Preliminarmente, é bom dizer o que está em andamento: a proposta pedagógica apresentada no PECIM não acrescenta nada de novo, pois o modelo é baseado na conhecida Pedagogia Tradicional (RIBEIRO; RUBINI, 2019), agora com elementos específicos das corporações militares.

Quanto ao aspecto jurídico, princípios legais da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes da Educação Nacional são completamente infringidos.

As escolas militares organizam-se com base em rígida hierarquia, férrea disciplina, obediência incontestável aos superiores, proibição de determinados comportamentos [...] O ensino escolar civil, por sua vez, tem seus princípios insculpidos no Artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que inclui, dentre outros, igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, liberdade de divulgar o pensamento, pluralismo de ideias e, especialmente, gestão democrática (MENDONÇA, 2019, p. 596).

A citação acima mostra um importante paradoxo: escolas públicas civis são sustentadas juridicamente pelos princípios da gestão democrática e pelo pluralismo de ideias, princípios que não se coadunam com o controle militar. Nos modelos militares tem-se o rigor excessivo, a disciplina como instrumento de controle de condutas e comportamentos e até da linguagem corporal dos alunos, em uma clara tentativa de domesticar as pessoas, princípios inspirados na teoria positivista e nos ideais conservadoristas.

O debate em torno da militarização das escolas civis públicas ganhou destaque, com prós e contras entre os atores sociais, principalmente, a partir da iniciativa que se deu no estado de Goiás (MENDONÇA, 2019), onde se firmou convênio entre a Secretaria de Estado da Educação e a Secretaria de Estado e Segurança Pública para a militarização de escolas civis públicas daquela unidade federada.

Alguns pesquisadores, como Alves et all (2019), veem a militarização como uma forma de retrocesso à liberdade de pensamento e expressão dentro das instituições de ensino. Por outro lado, atores da sociedade civil como pais de alunos, professores (Correio Braziliense, 2019), percebem o advento das ECIMs como uma saída louvável para a grave crise educacional que paira sobre o Brasil. Todavia, sobre isso, Guimarães (2017, p. 04) assevera

As escolas públicas cresceram sem ter um correspondente investimento, o que atingiu a banalização da educação, dando espaço para um grande apagão educacional, e abrindo portas para o crescimento da violência escolar, e que como resposta a este comportamento houve a necessidade da proposta de militarização de cunho pedagógico, onde se propõe a priorização dos princípios e práticas de uma educação formal moderna e atual, baseadas em seus tradicionais valores.

Do excerto acima, importante é destacar a expansão das escolas públicas nas últimas décadas no Brasil com a explosão de matrículas e a flagrante falta de investimentos públicos correspondentes. Por exemplo, a Lei 12.796/13 (BRASIL, 2013) dispôs sobre a obrigatoriedade do ensino público e gratuito para todos determinando, a partir daquele momento, que os sistemas de ensino receberiam todos os alunos, sem distinção. Dessa maneira, as salas de aula deveriam estar acessíveis (e ficaram acessíveis) a todos sem discriminação de classe social, religião, raça, gênero ou deficiência. Com a expansão obrigatória, os impactos sentidos foram vários desde quanto aos custos financeiros até a grande diversidade de pessoas recebidas pelas escolas, contingentes que estavam excluídos dos sistemas educacionais. Para atender às novas demandas, os entes federativos reorganizaram sua rede de atendimento, enfrentando, desse modo, diversas dificuldades em razão da ampla complexidade. Algebaile (2009), sofisticando a linha de argumentação e trazendo os interesses que permeiam a problemática da oferta em educação pública, destaca que a

[...] ampliação não foi construída numa visão de uma educação de qualidade, mas como um fator minimizador das tensões sociais com o objetivo de atenuar a pobreza. Neste contexto, o próprio conceito de qualidade passou a ser ressignificado. Foi neste contexto que frações da classe dominante, organizados no movimento Todos Pela Educação, passaram a anunciar o apagão educacional no país (ALGEBAILE, 2009, p.72).

Com a justificativa de “apagão na educação”, abriu-se o caminho para outros modelos de gestão a serem implantados nas escolas, momento em que sobrevém a oportunidade de transferir a gestão da educação pública, gratuita, laica e civil para setores externos. Nessas circunstâncias surge o movimento de entradas de militares – Polícia Militar e Bombeiro Militares – nas redes públicas de ensino estaduais, abertura que vem ocorrendo em diferentes unidades da federação.

No estado do Amapá (na periferia do país) desde 2017, por meio das parcerias entre as Secretaria de Educação e Secretaria de Segurança Pública, implantou-se o denominado “modelo de escolas de gestão compartilhada” com uma primeira unidade escolar. Há, de fato, no Brasil crescimento numérico dessas unidades escolares híbridas, e com boa aceitação pelos pais dos alunos ou de seus responsáveis.

Para Mendonça (2019), a aceitação ocorre devido à suposta credibilidade e eficácia do modelo ofertado, pois com o rigoroso controle disciplinar, o respeito à hierarquia, valorização do civismo, isso, seriam razões suficientes para que a gestão da escola pública melhorasse os indicadores de desempenho escolar dos alunos. Todavia, na realidade, não é bem assim. A aceitação pelas famílias decorre da imagem e propaganda que governos vem fazendo das escolas militarizadas formando na percepção das pessoas que seria um tipo de escola mais eficiente e eficaz porque mais cobradora dos deveres dos alunos.

Apesar das preocupações dos pais com os estudos dos filhos, eles (em sua maioria) pouco compreendem de propostas pedagógicas escolares, até porque não são estudiosos desse campo. Talvez por isso, venha se formando no senso comum que ideias pedagógicas baseadas no diálogo mais atrapalham do que ajudam porque deixariam os jovens mais desobedientes, ainda mais na fase biológica em que se encontram.

A ideia de que as gerações mais jovens devem obediência às mais velhas não é de hoje. A definição de Durkheim (2011) diz que a educação é a ação exercida pelas gerações de adultos sobre as gerações mais jovens e que tem por objetivo suscitar e desenvolver no indivíduo certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados pelo meio social, ao qual a criança particularmente se destine. Com os novos fenômenos que vem afetando os jovens de modo geral e preocupando seus pais, a definição durkheimiana tem tudo para agradar àqueles adeptos da disciplina, da hierarquia e do respeito entre as gerações. Este é um fundamento teórico importante, pois sustenta o surgimento e a boa receptividade que as ECIMs, enquanto política pública de educação, vêm tendo.

Ribeiro e Rubini (2019) alertaram para a preferência durkheimiana por uma sociedade conservadora, fundada primordialmente nas instituições Família e Pátria, revelando, assim, a preocupação de Durkheim com elementos que poderiam causar distúrbios funcionais na coesão social. Para eles, há evidências na associação da filosofia pedagógica durkheimiana com as ideias que sustentam o modelo de gestão das ECIMs.

Ribeiro e Rubini (2019) ainda apontam outro fator possível da aceitação pelos pais (com perfil conservador) para a militarização das escolas civis: o descontentamento com alguns conteúdos abordados em sala de aula - temas relacionados à religião, política e a sexualidade, por exemplo, tem sido motivo de críticas por parte de algumas famílias preocupadas que estão com uma suposta doutrinação nas salas de aula.

Por outro lado, diante das circunstâncias atuais, com tantas notícias desencontradas e falsas (fake news), as famílias se mostram (empiricamente é possível afirmar) desorientadas frente as inegáveis mudanças pelas quais passou a sociedade no último quartel do século XXI: por exemplo, novos códigos de conduta, gostos e comportamento da chamada geração milleniall. Parece que as próprias famílias têm se sentido muito inseguras quanto à sua responsabilidade no processo educacional dos filhos, sobretudo, quando se trata de como lidar com esses novos fenômenos. Vejamos: o paradoxo entre a privacidade que o filho púbere ou adolescente tem por direito e o medo de influências negativas que esse indivíduo, ainda supostamente imaturo, pode receber por meio das novas mídias sociais e aplicativos em redes on line.

A esse respeito, para Vasconcelos (1995, p. 63),

A relação entre a escola e a família têm se modificado nas últimas décadas, a maioria dos pais está transferindo à escola a obrigação de educar seus filhos, ensiná-los valores, regras e limites. Eximindo-se de seus compromissos na educação dos filhos.

Ainda para Ribeiro e Rubini (2019) é possível que, hoje, os pais se sintam, portanto, impotentes diante das “liberalidades” do mundo moderno das redes sociais e, sem a autoridade (ou o autoritarismo permitido de outrora) de antes, clamam por uma escola do passado, onde predominava a ordem, o respeito, a moral que impunha regras para os mais jovens. Essa é, inclusive, a experiência que boa parte dos pais tiveram com a escola: o contato com a educação bancária que muitos julgam ser melhor que a educação de hoje.

A militarização das escolas no Brasil: a curva para o conservadorismo

Conservadorismo é um sistema de ideias que defende a herança do passado e a solidez das instituições sociais tradicionais (como, por exemplo, Família e Religião) nos moldes como elas foram herdadas, portanto, sem aderir a grandes saltos mutacionais: costumes, tradições e convenções morais são apegos típicos em comunidades conservadoras. A origem do pensamento conservador pode ser atribuída, dialeticamente, à segunda metade do século XVIII (em pleno momento em que nascia as ideias modernas), tendo como referência Edmund Burke (1982). Autores como Scruton (2015), nos tempos mais recentes, advogam o que seria a “beleza” do Conservadorismo. Oakeshott (2012) busca caracterizar o que é ser conservador. Bonald (1988) e Maistre (1979) também são conhecidos autores defensores dos ideais conservadoristas.

Burke (1982) temia que o “espírito” da renovação total e radical, a destruição dos direitos já consagrados tradicionalmente, o confisco da propriedade, a destruição da Igreja, da nobreza, da Família, dos costumes, da Nação, da herança ancestral, tudo isso, fosse varrido pelo movimento progressista burguês que ocorria na França. Aqui estão, sem dúvidas, os ideais primeiros do Conservadorismo.

No século XX, Scruton (2015) se destaca por ser considerado por muitos um dos maiores pensadores e teóricos do pensamento conservador. Segundo ele, é insuficiente definir o conservadorismo como o mero desejo de conservar, pois, embora haja em todos os homens e em todas as mulheres algum impulso para conservar aquilo que lhes é seguro e familiar, é a natureza dessa familiaridade que precisa ser analisada. O conservadorismo prioriza a harmonia das instituições se contrapondo a mudanças e a movimentos “perturbadores” advindos de políticas públicas progressistas ou igualitaristas.

Escolas, igrejas, bibliotecas; coros, orquestras, bandas, grupos teatrais; [...] Essas associações são uma fonte não só de divertimento mas também de orgulho: criam hierarquias, ocupações e regras às quais as pessoas se submetem voluntariamente porque podem constatar a sua relevância (SCRUTON, 2015, p.136).

Bonald (1988), por outro lado, entende não poder existir nem liberdade, nem igualdade sociais, sem que o cidadão esteja sujeito às vontades particulares, pois os cidadãos não estão igualmente sujeitos às mesmas vontades. Ele teme ao que os conservadores chamam de “tirania da maioria”. Aqui, qualquer sensação de crítica feita por Bonald às instituições que pretendem defender a democracia não é mera coincidência.

Maistre (1979), um fiel defensor da monarquia hereditária e que foi, portanto, opositor ao movimento revolucionário francês, entendeu que a Revolução Francesa seria a responsável pela anarquia política, pelo colapso social e econômico em que a França se mergulhou a partir de 1789.

Oakeshott (2012, pp. 04/05), outro influente autor conservador do século XX, diz

Assim, ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica. As relações e lealdades familiares serão preferíveis ao fascínio de vínculos mais proveitosos; comprar e expandir será menos importante que conservar, cultivar e desfrutar; a dor da perda será maior que a excitação da novidade ou da promessa.

Ribeiro (2020) mostrou que o Conservadorismo é uma reação às teorias progressistas (modernas) que se distanciavam da visão tradicional sobre o Homem. Apegados aos costumes tradicionais, dissonantes que o indivíduo age racionalmente, firmes de que a Religião deve ser um ponto central, os conservadores viram seus ideais ganharem espaços importantes no ultimo quartel do século XX, com repercussões mais contundentes neste início de século XXI.

Para os autores citados acima, que defendem o Conservadorismo, as mudanças (progressistas, dizem eles) no meio social podem não são ser completamente benéficas para a sociedade, pois instituições de poder são responsáveis pela ordem e pela harmonia social e não podem ceder às pressões que ponham em cheque a herança e a solidez das instituições construídas secularmente.

A ideia de um passado herdado, que mudou abruptamente, parece atingir pais e professores atualmente (saudosos que estariam de uma Escola fundada no respeito entre as gerações), simpáticos aos ideais conservadoristas porque lembram da suposta qualidade do ensino de suas épocas, da disciplina e do respeito entre alunos, professores, pais, e de quando e como cantavam o hino nacional. Contudo, sabemos que no fundo fazem apologia a um modelo pedagógico em que o aluno não passava de um mero receptor de conhecimento enquanto o professor (muitas vezes autoritário) era o dono do saber.

Não obstante, no campo político eleitoral, desde o início da segunda década do século XXI, no Brasil, partidos conservadores foram ganhando maior expressão. Para alguns políticos, nesse sentido, com seus fellings por votos e com suas racionalidades eleitorais, militarizar escolas públicas civis passou a ser uma das alternativas para combater a suposta violência e controversa indisciplina no ambiente escolar, especialmente nas zonas periféricas e vulneráveis socialmente. O uso da farda, a imposição de regras, o ensino através da obediência, soluções tradicionais, seriam formas atualmente desejáveis para as escolas de periferia.

Com a violência em alta nos últimos anos, elevada em seu status por programas televisivos diários com altos índices de audiência (especialmente assistidos pelas camadas mais baixas da sociedade), esses discursos produziram importante efeito, especialmente entre os pais de alunos, que preocupados com os acontecimentos cotidianos, aderiram de modo muito prático à ideia de militarização de escolas públicas civis. Entretanto, para Goergen (2007), nessa acepção, obedecer às normas, mesmo por conforto ou temor, pode ser condição suficiente para ser correto (em conformidade com as normas), mas não para ser um sujeito intelectualmente autônomo.

Por isso, para compreender o fenômeno aqui analisado, problematizamos que a gestão híbrida, civil-militar, fere princípios da educação democrática, fere o processo formativo plural escolar e afeta a relação democrática necessária para os alunos interagirem na diversidade, oportunidade que eles têm de manifestar as suas variadas formas de linguagem, seja a oral, corporal, sexual e todas aquelas admitidas nas relações cidadãs. As escolas militarizadas ou de gestão compartilhada ou cívico-militares, quaisquer dessas denominações, atuam, portanto, ferindo princípios da Carta Constitucional brasileira.

Com efeito, o papel da Escola brasileira, conforme a Constituição Federal de 1988, é promover educação formal e não de resolver problemas de segurança pública. Para que haja uma educação de qualidade é importante haver investimentos públicos dos mais variados; isso acontece, por exemplo, com implantação de políticas públicas educacionais comprometidas com os diversos estratos sociais, respeitando-se, todavia, a participação de todos os atores envolvidos no processo escolar, mas também com importantes investimentos financeiros, e políticas estruturais de combate à desigualdade social.

Nas ECIMS, uma das características mais marcantes é o apelo ao civismo, mas diretamente vinculado à ideia de patriotismo. Segundo Abreu (2008), o civismo foi utilizado, durante os governos militares no Brasil, como instrumento de formação do indivíduo por meio da educação com foco na idolatria, tendo como pilares a Educação, Trabalho e Pátria dentro da lógica da segurança nacional, desenvolvimento econômico, ordem e progresso. Claramente a ideia de uma sociedade coesa, mas por medidas ideologicamente coercitivas. “Brasil: ame ou deixe-o” e “Brasil, acima de tudo” não são meros clichês, marcas de governos. Há uma poderosa mensagem ideológica nesses jargões governamentais.

Nas ECIMS a padronização de comportamentos, inibição aos questionamentos, desvalorização de aspectos da identidade individual das pessoas, estímulo ao cidadão passivo, são marcas desse modelo educacional. Nessas escolas, sendo o militar autoridade inquestionável, o aluno deve obediência, respeito e principalmente submissão às regras que são impostas para se manter o “comportamento adequado” e esperado dele por meio de um coercitivo controle de condutas que passa a constar no estatuto escolar. Dentro dessas unidades escolares, as punições são permitidas conforme o grau das infrações cometidas, desde leves até severas, variando de uma simples advertência à expulsão do aluno. Sem dúvidas, valores conservadores e Pedagogia Tradicional aliados aos procedimentos militares se impõem nas relações interpessoais. Até vestimentas e códigos estéticos devem ser observados pelos alunos. Por exemplo, diz o Manual das ECIMs

Para alunos do sexo feminino, será permitido o uso de cabelos curtos (“cujo comprimento se mantém acima da gola do uniforme”) ou longos, desde que presos com penteados em trança simples ou rabo de cavalo. Quando uniformizadas, as alunas poderão usar apenas adereços (relógio, pulseira, brincos) “discretos”. Parte do uniforme feminino, as saias deverão ter comprimento na altura dos joelhos Para alunos do sexo masculino, só será permitido o uso de cabelos curtos, cortados “de modo a manter nítidos os contornos junto às orelhas e o pescoço”, na tonalidade natural e sem adereços. O aluno ainda deverá se apresentar bem barbeado (BRASIL, 2020, p. 319, grifos nossos).

A proposta de militarização, nos termos acima descritos, agrada uma parte da sociedade brasileira que acredita haver, atualmente, “inversão de valores”; parcela da sociedade insegura quanto ao futuro dos filhos, preocupados com a violência social (propagada rotineiramente em programas televisivos – de jornalismo duvidoso – em cadeia nacional) e com o processo educacional deles; famílias perplexas com as mudanças provocadas com as novas mídias sociais decorrente dos mais diversos aplicativos.

O medo do impacto de mudanças, cujos resultados são incertos, faz com que algumas pessoas prefiram o lugar da certeza e a conservação de estruturas anteriores. O retorno ao passado seguro torna-se um apelo importante para uma parcela considerável da sociedade. Os pais simpáticos à militarização das escolas civis públicas parecem pertencer a esse grupo.

Manual das Escolas Cívico-militares: a ideia do MEC e sua operacionalização

O governo federal, por meio do Decreto nº 10.004/2019 de 05 de setembro de 2019, instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares – PECIM (BRASIL, 2019), criado com “a finalidade de promover a melhoria na qualidade da educação” e desenvolvido pelo Ministério da Educação com o apoio do Ministério da Defesa em parceria executiva com os Estados, Municípios e Distrito Federal.

Em 2020, como consequência do PECIM, o MEC elaborou o Manual das ECIMs composto por 324 páginas e constituído de onze (11) partes com títulos, capítulos e seções norteadoras com ações que devem ser cumpridas pelas unidades escolares que aderirem ao PECIM. No manual constam as informações para a implantação e funcionamento das escolas cívico-militares a serem implantadas (BRASIL, 2020).

O Manual das ECIMs é um documento normatizador elaborado pelo MEC e construído de “forma democrática”, segundo seu próprio texto. De fato, contou com a participação de representantes dos estados e municípios, pois foi apresentado e discutido em dezembro de 2019 durante a 1ª Capacitação dos Profissionais Participantes do Programa, cada ente federativo encaminhou representantes para o encontro, mas isso não significa que foi construído de forma democrática.

Observa-se, porém, no Capítulo IV – Do Projeto Político Pedagógico – que o Manual se preocupa claramente com o controle comportamental dos estudantes, com a hierarquia e disciplina. A educação cívico-militar proposta pelo governo federal está baseada no uso de instrumentos pedagógicos próprios, destacando os símbolos, os regulamentos, além da linguagem e de uma rotina domesticadora fortemente presente:

Os uniformes terão um distintivo para diferenciar o ano escolar a que o aluno pertence. O aluno deve se apresentar bem barbeado, com cabelos e sobrancelhas na tonalidade natural e sem adereços, quando uniformizados. São considerados médios e longos os cabelos cujo comprimento ultrapassa a parte superior da gola dos uniformes. [...] Quando uniformizadas, as alunas poderão usar apenas adereços (relógio, pulseiras, brincos) discretos (BRASIL, 2020, p. 319, grifos nossos).

Assim é porque o Decreto Federal 10.004/19 previu ainda para as ECIMS, em seu parágrafo segundo do art.5º, a utilização dos padrões de ensino dos colégios militares vinculados ao comando do Exército, às regras das corporações de polícias militares e dos corpos de bombeiros militares, portanto, a militarização das unidades escolares civis públicas na mais direta e objetiva acepção da palavra.

Com efeito, temos sem dúvidas, fortemente, a presença de uma pedagogia tradicional ou como é mencionado no próprio Manual – de uma pedagogia militar – cujos fundamentos vêm do Positivismo e dos princípios do Conservadorismo, valorizando-se, dessa forma, a harmonia social, o civismo, patriotismo, valores morais, à defesa da Família, da Pátria, dos bons costumes.

Diz o Manual,

Entende-se que respeito e disciplina são condições de sucesso na vida do cidadão. Quando se lê, na Bandeira Nacional, os termos ordem e progresso, compreendese, em seu sentido mais amplo, a existência de leis que organizam a vida do cidadão brasileiro, sob a forma de respeito e disciplina geral, que todos devem observar (BRASIL, 2020, p.277).

Fica evidente, ao se analisar esse documento, que a função da escola, nessa pedagogia militar é de construir uma formação com bastante ênfase na dimensão moral, moldando o aluno para a uma relação pacífica com as contradições sociais, com pouco contributo ou espaço para a formação crítica e questionadora, afinal, um dos adágios militares é “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

O Manual das ECIMs, está constituído de 11 partes:

  1. Regulamento das ECIMs;

  2. Projeto Político-pedagógico;

  3. Projeto Valores;

  4. Normas de Apoio Pedagógico;

  5. Normas de Avaliação Educacional;

  6. Normas de Psicopedagogia Escolar;

  7. Normas de Supervisão Escolar;

  8. Normas de Gestão Administrativa;

  9. Normas de Conduta e Atitudes;

  10. Normas de Uso de Uniformes e de Apresentação Pessoal dos Alunos;

  11. Cartilha para os Responsáveis (BRASIL, 2020, p. 2).

Cotejando o documento com manuais específicos das corporações militares verificamos que se trata de uma cópia fiel dos utilizados pelos colégios militares (BRASIL, 2016; 2018; 2018; 2019). Todavia, o Manual das ECIMs se volta para o Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) e o Ensino Médio (1º ao 3º ano) nos turnos matutino e vespertino, deixando, portanto, de lado o turno da noite e a Educação de Jovens e Adultos (EJA), o que poderia ensejar questionamentos sobre sua opção elitista (uma vez que um dos argumentos é atender os setores vulneráveis da sociedade). Nos termos desse documento todo e qualquer aluno que não se encaixe no modelo proposto não será admitido nas ECIMs, ou seja, alunos com distorção de idade-série ou atraso escolar não são/serão aceitos (BRASIL, 2020).

A questão acima apenas reforça que o advento das ECIMs fere princípios básicos do direito à educação. Uma vez implantadas, elas não atendem alunos mais velhos para àquela respectiva série ou ano, alunos trabalhadores que precisam estudar no turno da noite, e, não atendem o aluno que, por alguma razão, não consegue se enquadrar nas rígidas normas do estatuto escolar militarizado. Alunos trabalhadores, alunos “desobedientes” terão que procurar outra unidade escolar caso queiram estudar, ainda que seja distante geograficamente de suas residências.

Nos termos do Manual das ECIMs, em seu artigo 6º, elas funcionariam se pautando nos princípios da igualdade de condições, do acesso e permanência na escola, bem como da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, respeitando, ainda, as diferenças individuais. Todavia, há evidente contradição, uma afronta à Constituição Federal e a LDB brasileira, quando se faz o cotejamento, por exemplo, com o artigo abaixo

Art. 191. A Ecim poderá congregar os alunos em grêmios, clubes, núcleos e grupos que reflitam interesses comuns de seus integrantes, desde que estejam autorizados pelo Diretor, alinhados às orientações didático-pedagógicas das Ecim e sob a supervisão de um orientador civil ou militar (BRASIL, 2020, p.67, grifos nossos).

Ora, sabemos! Disciplina por meio coercitivo, sem diálogo, não vai estimular alunos a serem críticos e participativos. Além do mais, a educação tem a função de construção social, não de mero controle social (ainda que várias formas sutis de controle estejam presentes). Nessa direção, as ECIMs impõem à professores e alunos valores e normas pautados sob o ponto de vista de uma instituição militar o que compromete o processo formativo plural. Dessa maneira, vale lembrar

No militarismo existe um dogma que, como na religião, não deve ser contestado, sob pena de colapsar o sistema. Com isso, a cultura militar é eivada de valores próprios, pautados na hierarquia e disciplina, que trazem consigo características como obediência, submissão, belicismo, dominação, força etc. que visam à manutenção e reprodução do militarismo como um sistema. Essas características inibem o desenvolvimento intelectual, a proatividade, a autonomia, a reflexão crítica, porque isso impacta a reprodução sistêmica (VEIGA, 2016, p.11, grifos nossos).

Ainda no documento em análise, dedicamos especial atenção ao projeto pedagógico (PP), um dos mais importantes, àquele norteador das ações e projetos que a escola desenvolve. No contexto das ECIMs, o PP é composto de 78 páginas e divido em três marcos importantes: 1) marco desejado; 2) marco atual e 3) marco estratégico, cada um com sua finalidade. O marco desejado representa o programa, a identidade de cada escola cívico-militar, serve de direção geral para cada ECIM e expressa os fundamentos teórico-metodológicos para as escolas.

No marco atual aponta-se e avalia-se o estado atual da escola, mostrando os seus problemas, necessidades e potencialidades presentes na sua realidade escolar. Por sua vez, o marco estratégico apresenta as propostas e planos de ação, enfrentamentos e organização da escola para a aproximação da situação atual em que a escola se encontra, do ideal delineado pelo marco desejado.

No contexto dos “marcos” acima, a conduta do aluno é algo que merece destaque. Se ele não se enquadrar nas regras estatutárias será convidado a se retirar e procurar outra escola (a porta da rua é a serventia da casa). Há, dessa maneira, flagrante seleção para que a escola militarizada trabalhe com os alunos desejados. Uma evidente contradição à justificativa de que a escola é para todos. O seguinte excerto é esclarecedor

A Transferência Compulsória é a mudança do aluno para outro estabelecimento de ensino que se encaixe em seu perfil estudantil [...] Constituem causas de Transferência Compulsória do aluno:

  • a) Cometimento de falta gravíssima; e

  • b) Ingresso do aluno no mau comportamento.

A Transferência Compulsória será precedida de um processo administrativo, sendo ouvido, obrigatoriamente, o Conselho Escolar, a quem cabe encaminhar, por meio do Diretor Escolar, o parecer do processo à Secretaria de Educação, para decisão final.

A Transferência Compulsória tem como objetivo possibilitar ao aluno uma nova oportunidade de integração escolar em uma outra unidade de ensino que promova uma melhor adaptação do discente (BRASIL, 2020. p.182, grifos nossos).

A seletividade do modelo das ECIMs se dá para além do nível destacado no excerto acima. Ainda que superássemos a reflexão sobre o retrocesso educacional que as ECIMS promovem, não se pode esquecer que a justificativa da política pública foi exatamente se implantar em comunidades vulneráveis socialmente, local onde costuma registrar mais dificuldades para se estudar. São nas periferias vulneráveis que jovens estão mais suscetíveis ao assédio do ambiente violento desses bairros. Quando as ECIMs se deparam com um aluno cujas características são as dificuldades, ela o convida a se retirar para outra escola que possa promover uma “melhor adaptação”. Isso é de uma flagrante contradição e negação ao direito do cidadão, direito insculpido na Constituição da República.

Regras quanto ao uso de uniformes impecáveis, quanto à padronização estética, não combinam com as condições financeiras da grande maioria das famílias e jovens moradores de periferia. As orientações referentes ao uso do uniforme pretendem criar uma identidade visual, de grupo de iguais e, ao mesmo tempo, estimular a sensação de pertencimento a um grupo exclusivo em que nem todos podem fazer parte. Por outro lado, os custos dos diversos tipos de uniformes não são nada módicos e muitas dessas famílias já esbarram nessa difícil condição. O retrocesso se apresenta em várias dimensões. Vejamos abaixo o organograma das ECIMs segundo o Manual.

Fonte: Manual da Escolas Cívica-Militares (BRASIL, 2020)

Figura 1 Organograma das ECIMs 

O organograma das ECIMs está mal legendado na figura acima. Ele contém, conforme se verifica, quatro partes: 1) Gestão de Direção; 2) Gestão Educacional; 3) Gestão Didático Pedagógica e 4) Gestão Administrativa. A primeira constituída por diretor, oficial de gestão escolar, secretário escolar e vice-diretor (todos militares), onde se encontram o comando da ECIM e o lugar de onde saem as decisões a serem cumpridas. A segunda constituída pelo corpo de monitores (militares) e alunos (civis), uma parte administrativa claramente operacional. A terceira, formada pela divisão de ensino, biblioteca, laboratórios, coordenadores pedagógicos, corpo docente, psicopedagogia, supervisão escolar, avaliação educacional e apoio pedagógico (civis): seriam o apoio técnico pedagógico das escolas e, por fim, gestão administrativa com divisão administrativa, constituída por militar responsável pela seção de pessoas, seção de serviços gerais e materiais patrimônios e finanças. Eis a ideia de organização administrativa institucional de uma ECIM.

Verifica-se claramente que a distribuição das funções dentro da escola fica, em sua totalidade, sob a responsabilidade dos militares. Os servidores civis da educação estão subordinados às ordens dos mesmos e pode-se inferir que as funções de comando não são ocupadas por professores, cabendo a estes, o papel de auxiliar na promoção da educação. Portanto, há divergência entre o discurso democrático apresentado no Manual das ECIMs com a realidade praticada: o que temos é a prática de doutrinas baseadas em obediência, disciplina e hierarquia.

A proposta das ECIMs: retrocesso na educação brasileira

Como política pública educacional, a proposta do MEC pode ser analisada e criticada em diferentes aspectos que revelam seu caráter excludente e ilegal: 1) do ponto de vista democrático e constitucional é uma violação aos direitos de acesso e permanência do aluno na escola; 2) é uma violação à gestão democrática das unidades escolares; 3) viola também o pluralismo de ideias; 4) do ponto de vista do direito administrativo, fere a Constituição Federal de 1988, uma vez que não há previsão de que militares possam administrar escolas púbicas civis (XIMENES; STUCHI; MORREIRA, 2019).

Porém, dado o aceite social por parte da população em relação à política, poder-se-ia perguntar se o modelo teria pontos positivos. Considerando a visão imediatista (e reducionista) é possível localizar argumentos favoráveis nos defensores do modelo.

Primeiro. Maior investimento financeiro para as ECIMs seria um avanço, porque contribui de forma significativa para a melhoria da infraestrutura da escola com salas de aulas climatizadas, quadras poliesportivas, piscinas, equipamentos, laboratórios, bibliotecas, enfim, itens muito necessários para a boa aprendizagem do aluno - em 2020, o MEC destinou R$ 54 milhões6 “para levar a gestão de excelência cívico-militar” para 54 escolas, sendo R$ 1 milhão por instituição de ensino. Conforme Bossa (2002), uma escola em condições precárias contribui para induzir o fracasso escolar de muitos alunos, muito das vezes aumentando a taxa de abandono e de evasão.

Segundo. Indiscutivelmente, nem poderia ser de outra forma, os índices de violência no entorno imediato das ECIMs tendem a diminuir ou, pelo menos diminuir a sensação de insegurança. Possibilidades de algum tipo de violência dentro da escola (como furtos ou assaltos), certamente, se reduzem a zero. Dado o controle de conduta e comportamentos, mais o código de ética do regimento escolar, a presença de drogas no recinto e formas de violência intraescolar passam a ser fortemente combatidas. Por outro lado, o uso da farda militar escolar tem, de fato, um efeito psicológico no indivíduo que a veste. Contudo, no contraponto dessa questão tem-se,

Não se pode instituir a escola como local de reparação da desordem e da violência que reina na sociedade. É preciso considerar que a polícia que é chamada para impedir a violência na escola é a mesma que não consegue entregar resultados à sociedade em relação às políticas públicas de segurança para as quais ela efetivamente foi criada (MENDONÇA, 2019, p. 607).

Terceiro. Para as famílias, ter os policiais dentro da escola seria garantia não só do ensino de valores morais como da segurança pessoal de cada aluno que estuda naquela unidade.

Quarto. Aporte de pessoal: as unidades escolares recebem um importante quantitativo de profissionais, ainda que militares, o que desafogaria a falta de recursos humanos.

A se considerar os quatros argumentos acima, podemos dizer que os governos tendem a olhar para as unidades escolares militarizadas com afagos institucionais diferenciados provendo-as com melhores condições estruturais, sobretudo físicas. Isso, por si só, também “enchem os olhos” de uma parte da sociedade.

Do retrocesso da proposta

Indiscutivelmente, o que mais chama nossa atenção nessa política pública educacional é o seu flagrante retrocesso para com a educação brasileira, em especial em sua filosofia de educação. A priori, há tentativa de esvaziamento de uma escola crítica e participativa. Não podemos esquecer, que as ECIMs são organizadas de forma a buscar impedir que o aluno acesse ao conhecimento crítico e que sua individualidade seja respeitada, dada a padronização militar implementada. Vale destacar que as normas rígidas, a disciplina ao extremo e a obediência incontestável à instituição são elementos para formas de socializações pacíficas. Dessa maneira, a diversidade coletiva passa a ser desconsiderada devido à padronização institucional. No dossiê sobre militarização das escolas publicado em 2019, temos

O ensino escolar civil, por sua vez, tem seus princípios insculpidos no Artigo 206 da Constituição Federal de 1988, que inclui, dentre outros, igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, liberdade de divulgar o pensamento, pluralismo de ideias e, especialmente, gestão democrática (MENDONÇA,2019, p. 596).

Por esse modelo, o controle sistemático de condutas, de comportamentos, de vestimentas, da participação dos professores em processos decisórios, tende a transformar os docentes em meros transmissores de conhecimento e o aluno apenas em receptores passivos.

Ribeiro e Rubini (2019), já advertiam que do ponto de vista da filosofia da educação, a pedagogia militar não traz nenhuma novidade. Trata-se da velha e conhecida pedagogia bancária, positivista, que Paulo Freire tão bem revelou e contestou, uma pedagogia tradicional que retira do aluno o protagonismo adquirido no processo ensino-aprendizagem. Segundo eles, estamos diante de uma curva que acirra/estimula o conservadorismo em andamento no Brasil. Temos, então, uma filosofia de educação baseada na pedagogia tradicional com requintes de regras advindas de estatutos militares.

O Manual das ECIMs claramente revela-se contrário a direitos adquiridos e conquistados ao longo dos anos, conquistas fundamentadas em sérias pesquisas e debates entre educadores e a sociedade civil. Durante todo o período de universalização do ensino básico, processos de exclusão foram duramente combatidos e a escola passou a receber todos os extratos sociais, incluindo crianças e jovens com deficiências diversas e abraçando a diversidade brasileira em todos os seus sentidos. As escolas cívico-militares é a negação dessas conquistas.

Silva (2016, p. 66) deixa claro

No que concerne à questão legal, a Escola Militar fere vários princípios previstos na Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira e no Plano Nacional de Educação. Dentre esses princípios estão: a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; gestão democrática do ensino público; promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.

Portanto, as ECIMs, dada a sua natureza institucional militar, não permite a presença da diversidade social em seu interior porque se trata de proposta homogeneizadora. Quando qualquer aluno não se enquadrar no regulamento dessas unidades escolares, o portão da escola será a serventia da casa.

O Brasil, por ser um país democrático e plural com uma grande diversidade ideológica, religiosa, sexual e cultural pode (e deve) respeitar e valorizar o aluno na sua individualidade de diferentes formas, desde na sua forma de vestir, de se comportar ou de expor o seu pensamento baseado em sua ideologia, no seu credo, até nos seus gostos musicais, estéticos, etc. Nessa perspectiva, a escola tem o dever de respeitar, por força do princípio da diversidade e individualidade, os diversos pontos de vistas ou opiniões dos envolvidos no processo educacional. Está assegurado na Constituição Federal. As escolas civis, em especial às públicas, não têm o mesmo escopo jurídico dos colégios militares.

Em uma escola militar – mesmo sendo uma unidade civil transformada em militar – aquilo que for interpretado como estigmas, anormalidades, condutas fora do padrão esperado, tende a ser silenciado dada a postura autoritária do modelo. O que a escola militarizada tem produzido, na prática, ao contrário de sua retórica de inclusão, é a exclusão de crianças e jovens carentes de meios populares por meio de vários processos excludentes, inclusive processos subjetivos.

Por outro lado, na perspectiva de Ximenes; Stuchi; Moreira (2019), a cobrança de mensalidade ou de taxas de serviços (o que tem ocorrido em vários casos nacionais) ferem a própria legislação educacional que dispõe que a escola pública e gratuita é um bem público, portanto, cobranças monetárias, mesmo que de uma taxa de serviços, configura uma afronta aos princípios democráticos da Constituição Federal brasileira.

Especificamente, sobre os custos para manter o/a adolescente ou jovem como aluno de uma ECIM eles não são desprezíveis para famílias de classes populares. Não raro, por esse motivo, crianças e jovens tem procurado matrículas noutras escolas. Os custos com a farda podem não ser viáveis. É investimento para famílias de classes média como se verifica abaixo.

Tipos de uniformes

Os uniformes das Ecim são:

Uniforme de aula.

Uniforme de educação física. Abrigo Esportivo. Composição na versão masculina

Boina (cor a definir). Camisa (cor a definir) meia-manga, com ombreiras, tarjeta de identificação em tecido, divisas de braço com identificação do ano escolar e distintivo de bolso (brasão da Ecim). Camiseta meia-manga (opcional). Calça comprida masculina (cor a definir) com dupla barretina (cor a definir). Cinto (cor a definir) com fivela (cor a definir) lisa. Meia social na cor preta. Sapato social preto, com cadarços. Jaqueta (opcional para ambientes frios).

Composição na versão masculina educação física

Camiseta sem mangas. Calção com ou sem listras laterais. Tênis preto. Meias brancas. Calção de banho para atividades em piscina. Sandália de borracha, para utilização com o calção de banho. Touca de natação (opcional), para atividades em piscina (BRASIL, 2020, p. 312).

Não bastasse os pontos negativos listados acima, decerto um dos maiores, senão o maior retrocesso que se verifica, diz respeito à gestão democrática. O organograma já disponibilizado acima corrobora que a gestão das ECIMs é exclusivamente militar. O núcleo decisório fica sob total controle do diretor da unidade escolar que é um militar, e seus assessores também militares. Pela natureza de uma instituição militar e de um profissional militar, o gestor dessa unidade não consegue implementar assuntos relacionados à democracia, à construção de identidades coletivas, o respeito às singularidades individuais, processos típicos de construções coletivas. O militar não foi talhado para esses processos.

O entendimento do conceito de gestão [democrática] já pressupõe, em si, a ideia de participação, isto é, do trabalho associado de pessoas analisando situações, decidindo sobre seu encaminhamento e agindo sobre elas em conjunto. Isso porque o êxito de uma organização depende da ação construtiva conjunta de seus componentes, pelo trabalho associado, mediante reciprocidade que cria um todo orientado por uma vontade coletiva (LUCK,1996, p. 37).

A gestão escolar, portanto, caracterizada pelos princípios da gestão democrática, não prevê uma separação de tarefas em estanques e independentes. Ao contrário, os processos administrativos, disciplinares e pedagógicos deveriam funcionar como dimensões de uma mesma realidade, eles apenas se expressam por meio de atividades diferenciadas, mas sempre em busca de objetivos comuns, de tal maneira que cabe ao dirigente escolar ser aquele que coordena todas as atividades em conjunto com a coletividade.

Considerações finais

A qualidade da educação escolar e o processo de ensino-aprendizagem sempre geraram muitas preocupações e discussões entre educadores, legisladores, pesquisadores e cientistas da educação. Nos últimos anos, setores conservadores iniciaram muitos ataques ao modelo de educação baseado no diálogo e escolheram personificar em Paulo Freire os males que a educação brasileira tem atravessado desde sempre.

A conjuntura política com a guinada de líderes de direita facilitou essa narrativa e o resultado tem sido um ataque, como nunca visto antes, à escola pública, gratuita, universal, laica e gratuita. O surgimento de um modelo, até então inexistente, como das ECIMs, é apenas mais uma forma de revelar o desapreço que setores da sociedade brasileira tem pela educação pública e pela democracia.

Mostramos neste trabalho, que a boa aceitação de parte da sociedade brasileira ao modelo das ECIMs se escora em percepção de senso comum quando, influenciada pela mídia não especializada, famílias atribuem à educação pública e à sua crise, resultados educacionais pouco expressivos. As evidências encontradas mostraram, que sendo as áreas sociais periféricas o pretexto para implantação das ECIMS, são os alunos moradores dessas mesmas áreas os mais sacrificados.

O sucesso do fenômeno, propagado pelos governos, estar vinculado principalmente às famílias preocupadas com as drásticas e diversas mudanças ocorridas nas últimas décadas, mudanças estas ocorridas no interior da Escola, mas também no âmbito da Família: temas que passam pela formação de valores morais, drogadição juvenil, sexualidade, mídias sociais, disciplina, desempenho escolar, violência, segurança pública, condutas e comportamentos, parecem fazer parte das expectativas dos pais quanto ao papel das ECIMs.

Este trabalho revelou que a proposta do governo federal, enquanto política pública educacional, em suas dimensões administrativa e pedagógica, fere aspectos jurídicos e sociais porque é política governamental excludente. Em relação às fontes teóricas e ideológicas a política analisada se fundamenta no Positivismo e nos ideais conservadoristas. Durkheim, Burke e Scruton, entre outros, ajudaram na compreensão do fenômeno estudado.

Ficou evidente, pela análise do Manual das ECIMS, um flagrante retrocesso em andamento na educação brasileira. Estamos diante de um retorno à Pedagogia Tradicional com requintes de estatuto militar: proibição de comportamentos, determinação de vestimentas padronizadas com fardas militares, controle de condutas e até de linguagem corporal, além de gostos estéticos.

No âmbito da gestão administrativa os militares comandam a unidade escolar com pouco espaço, ou nenhum, para o quadro docente e coordenação pedagógica. Especificamente no tocante a gestão pedagógica as regras estatutárias militares se impõem sobre qualquer possibilidade de prática de uma pedagogia transformadora. A gestão democrática, nessa perspectiva, inexiste.

Na perspectiva do direito à educação, há flagrante violação dos princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento livre, como também da arte e do saber pluralista, de concepções pedagógicas, da gestão democrática e do ensino público insculpidos na Constituição Federal de 1988.

Resta claro, diante dos achados neste trabalho, que as ECIMs com sua hierarquia, regras com imposição da obediência e da disciplina, entram em conflito com o modelo de educação estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O Manual das escolas cívico-militares impõe política escolar excludente à medida em que seleciona, de forma sutil ou escancarada, o tipo de aluno que pretende receber. Somente alunos com disposição a atender preceitos homogeneizadores podem acessar e permanecer por muito tempo em unidades com a filosofia das ECIMS.

1Estamos chamando de gestão híbrida porque unidades escolares civis passaram a ser geridas por militares, mas estão vinculadas aos sistemas de ensino público estaduais tendo como pasta gestora mantenedoras as Secretarias de Estado de Educação e/ou o Ministério da Educação.

2“Novo” entre aspas, porque não se trata de nenhuma proposta pedagógica inovadora. Pedagogicamente falando, estamos diante da filosofia de educação positivista, da conhecida Pedagogia Tradicional.

3Sabemos que a mídia não especializada noticia casos, isolados, de violência escolar dando-lhe dimensão desproporcional e realizando interpretações equivocadas de fenômenos que ocorrem no interior de ambientes escolares. Ajudam a formar, assim, percepção equivocada sobre o cotidiano das escolas públicas, em especial daquelas situadas nas periferias das grandes cidades.

4No Amapá, o governo do estado denomina essas escolas como de “gestão compartilhada”; entretanto, Ribeiro e Rubini (2019) destacam que não se trata de compartilhamento de gestão escolar. As decisões estratégicas são tomadas exclusivamente pelos militares, não havendo participação democrática.

5É preciso ficar claro que não estamos tratando dos conhecidos Colégios Militares. Estamos falando de um modelo híbrido cujo arranjo institucional é realmente novo no Brasil, ainda que sua proposta pedagógica seja velha conhecida das Ciências da Educação.

6Não sendo o escopo deste trabalho, não sabemos se os recursos foram repassados.

REFERÊNCIAS

ABREU, Vanessa Kern de. A educação moral e cívica: disciplina escolar e doutrina disciplinar – Minas Gerais (1969-1993). 2008. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia/UFU, Uberlândia/MG, 2008. [ Links ]

ALGEBAILE, Eveline. Escola Pública e Pobreza no Brasil: A Ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj, 2009. [ Links ]

ALVES, Miriam Fábia, TOSCHI, Mirza Seabra, A militarização das escolas públicas: uma análise a partir das pesquisas da área de educação no Brasil, RBPAE – v. 35, n. 3, p. 633 - 647, set./dez. 2019 [ Links ]

BOSSA, Nádia A. Fracasso Escolar, um olhar psicopedagógico. Porto Alegre: ARTMED EDITORA S.A, 2002. [ Links ]

BONALD, Louis De. 1988b. Teoria del poder político y religioso. Madrid: Tecnos. [ Links ]

BURKE, Edmundo, 1729-1797, Reflexões sobre a Revolução na França/Tradução, apresentação e notas Miguel Nanni Soares – São Paulo: Edipro, 1982. [ Links ]

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. [ Links ]

BRASIL. Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013: altera a Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. Brasília: Planalto Central, 2013. [ Links ]

BRASIL. Decreto nº 10.004, de 5 de setembro de 2019. Institui o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10004.htm>. Acesso em: 05 março 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Defesa. Projeto Pedagógico do Sistema Colégio Militar do Brasil. Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), 2016. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Defesa. Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA). Normas para a Avaliação Escolar no Âmbito do Sistema do Colégio Militar do Brasil (NAESCMB). Exército Brasileiro – DECEx, 4ª edição, 2018. [ Links ]

BRASIL. Exército Brasileiro. Manual do Aluno do Colégio Militar de Porto Alegre - CMPA. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil: Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial - DEPA, 2018. Disponível em: <http://www.cmpa.eb.mil.br/>. Acesso em: 10 mar. 2020. [ Links ]

BRASIL. Normas Reguladoras do Regime Disciplinar. Anexo E ao Regimento Interno dos Colégios Militares - RI/CM. Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), 2019. Disponível em: <http://www.depa.eb.mil.br/legislacao>. Acesso em: 25 fev. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação, Manual das Escolas Cívico – Militares, 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação Disponível em: bhttp://escolacivicomilitar.mec.gov.br/noticias-lista/72-saiba-quais-sao-as-54-escolas-que-receberao-o-modelo-civico-militar-do-mec. Acesso em: 05 março 2020. [ Links ]

CANEN, Ana. Universos culturais e representações docentes: subsídios para a formação de professores para a diversidade cultural. Revista Educação & Sociedade, ano XXII, nº 77, dez. 2001. [ Links ]

CARNEIRO, Moaci Alves. LDB Fácil: leitura critico-compreensiva. 23.ed. rev. Petrópolis: Vozes, 2015. [ Links ]

CORREIO BRAZILIENSE, 22 de jan de 2020. Qual o resultado das escolas militarizadas do DF? Balanço depois de um ano. Disponível em: https://www.Correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_educacaobasica/2020/01/22/interna-educacaobasica-2019,821952/resultado-das-escolas-militarizadas-do-distrito-federal-apos-um-ano.shtml. Acesso em 30 de jun de 2020 [ Links ]

DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Vozes. Petrópolis. RJ. 2011. [ Links ]

GOERGEN, Pedro. Educação moral hoje: cenários, perspectivas e perplexidades. Educação e Sociedade, v. 28, n. 100, p. 737-762, 2007. [ Links ]

GUIMARÃES, Paula C. Pereira. Os novos modelos de gestão militarizada das escolas estaduais de goiás. XXIX Simpósio Nacional de História. Anais. Brasília, 2017. [ Links ]

LIMA, Carolina Barreiros, NETO, Natalia Barboza, SOUZA Janaina Moreira, Gestão democrática e militarização do ensino: reflexões a partir de um estudo de caso, RBPAE - v. 35, n. 3, p. 828 – 843, set./dez. 2019. [ Links ]

LUCK, Heloisa. Gestão educacional: estratégia, ação global e coletiva no ensino. In. FINGER, A. et.al. Educação: caminho e perspectiva. Curitiba: Champagnat, 1996. [ Links ]

MAISTRE, Joseph De. 1979. Oeuvres complètes. Tome I. Genève: Slatkine Reprints. [ Links ]

MENDONÇA, Erasto Fortes, Dossiê: Militarização das escolas públicas no Brasil Militarização de escolas públicas no DF: a gestão democrática sob ameaça, RBPAE - v. 35, n. 3, p. 594 - 611, set./dez. 2019. [ Links ]

OAKESHOTT, Micahel. Ser conservador. Traduzido por Rafael Borges. Lisboa. Editora: Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha, 2012. Disponível em: <https://portalconservador.com/livros/Michael-Oakeshott-Ser-Conservador.pdf.> Acesso em: 12 de jun. 2021. [ Links ]

RODRIGUES, Efigênia das Neves Barbosa; LOPES, Josiane da Silva. Militarização das escolas da rede pública no município de Macapá: reflexões sobre a gestão militar compartilhada. In: Política e Gestão da Educação Básica I – Série Anais do XXIX Simpósio Brasileiro de Política e Administração da Educação, Organização: João Ferreira de Oliveira, e Daniela da Costa Britto Pereira Lima [Livro Eletrônico]. – Brasília: ANPAE, 2019. [ Links ]

RIBEIRO, Adalberto Carvalho, RUBINI Patrícia Silva, Do Oiapoque ao Chuí – As escolas civis militarizadas: a experiência no extremo norte do Brasil e o neoconservadorismo da sociedade brasileira, RBPAE – v. 35, n. 3, p. 745 – 765, set./dez. 2019. [ Links ]

RIBEIRO, Adalberto Carvalho. Moderna defesa do passado, criativa defesa da tradição. In: VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Educação Domiciliar no Brasil: mo (vi) mento em debate. Curitiba, CRV, 2021. [ Links ]

SILVA, Alexsander Batista e. A geografia do espaço escolar: jovem-aluno, práticas espaciais e aprendizagem geográfica. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016. [ Links ]

SCRUTON, Roger. Como ser um conservador [recurso eletrônico] / Roger Scruton; tradução Bruno Garschagen; Márcia Xavier de Brito. - 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2015. [ Links ]

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Disciplina: Construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula. São Paulo Libertad Editora, 1995. (Cadernos Pedagógicos, v.4). [ Links ]

VEIGA, Célia Cristina P. S. Reforma administrativa do Estado, segurança pública e formação de soldados da PMERJ. 2016. 360 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, RJ, 2016. [ Links ]

XIMENES, Salomão Barros, STUCHI, Carolina Gabas, MOREIRA, Márcio Alan Menezes, A militarização das escolas públicas sob os enfoques de três direitos: constitucional, educacional e administrativo, RBPAE – v. 35, n. 3, p. 612 – 632, set./dez. 2019 [ Links ]

Recebido: 00 de Maio de 2021; Aceito: 00 de Julho de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.