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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.68 Rio de Janeiro jan./mar 2022  Epub 13-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.60893 

Artigos de Demanda Contínua

A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA POLÍTICA E EPISTEMOLÓGICA: as lutas por outras pedagogias

RURAL EDUCATION AS A SPACE OF POLITICAL AND EPISTEMO-LOGICAL RESISTANCE: the struggles for other pedagogies

LA EDUCACIÓN DEL CAMPO COMO ESPACIO DE RESISTENCIA POLÍTICA Y EPISTEMOLÓGICA: las luchas por otras pedagogías

1Afiliação institucional: Programa de Pós-graduação em Educação - Universidade Federal do Piauí. E-mail: elmolima@gamil.com


Resumo

Este trabalho discute sobre o movimento de constituição da Educação do Campo, destacando suas vinculações com as lutas sociais e com os esforços empreendidos pelo Movimento de Educação do Campo na construção de um projeto de educação contenha os avanços do agronegócio e difundam as sementes de outro projeto de sociabilidade forjado nas redes de solidariedade tecidas a partir da agricultura camponesa. Este movimento pedagógico tem instituído novos espaços e tempos educativos voltados ao reconhecimento dos conhecimentos presentes nas práticas sociais camponeses, com a implementação de estratégias pedagógicas que ampliem os diálogos entre os saberes dos camponeses com os conhecimentos universais que compõem o patrimônio histórico da humanidade. O estudo foi desenvolvido a partir das contribuições teóricas da abordagem dialética, utilizando-se da pesquisa bibliográfica e da análise dos documentos produzidos pelo Movimento de Educação do Campo. Acreditamos que as experiências de Educação do Campo instituídas pelos movimentos sociais trazem importantes contribuições políticas, pedagógicas e epistemológicas para se pensar numa pedagogia crítica e libertadora, ancorada nos pressupostos políticos e filosóficos das teorias críticas da educação.

Palavras-chave: educação do campo; movimentos sociais; pedagogia da resistência

Abstract

This paper discusses the movement for the constitution of Rural Education, highlighting its links with social struggles and the efforts undertaken by the Rural Education Movement in the construction of an education project that can combat the advances of agribusiness and spread as seeds of another sociability project forged in community experiences and solidarity networks woven from projects cultivated in the context of rural agriculture. This pedagogical movement has established new educational spaces and times aimed at recognizing the knowledges present in the social practices of rural people, with the implementation of pedagogical strategies that broaden the dialogues between the knowledge of the countryside population with the universal knowledge that make up the historical heritage of humanity. The study was developed from the theoretical contributions of the dialectical approach, using bibliographical research and the analysis of the documents produced by the Movement of Rural Education. For this reason, we believe that the experiences of Rural Education instituted by social movements bring important political, pedagogical and epistemological contributions to thinking about a critical and liberating pedagogy, anchored in the political and philosophical assumptions of critical theories of education.

Keywords: rural education; social movements; resistance pedagogy

Resumen

Este trabajo discute el movimiento por la constitución de la Educación Rural, destacando sus vínculos con las luchas sociales y con los esfuerzos emprendidos por el Movimiento de Educación Rural en la construcción de un proyecto educativo que pueda combatir los avances de la agroindustria y sembrar las semillas de otro proyecto de sociabilidad basado en experiencias comunitarias y redes de solidaridad tejidas a partir de proyectos cultivados en el contexto de la agricultura campesina. Este movimiento pedagógico ha establecido nuevos espacios y tiempos educativos encaminados a reconocer los conocimientos y saberes presentes en las prácticas sociales de los pueblos rurales, con la implementación de estrategias pedagógicas que amplíen los diálogos entre los saberes campesinos con los saberes universales que conforman el patrimonio histórico de la humanidad. El estudio se desarrolló a partir de los aportes teóricos del enfoque dialéctico, utilizando la investigación bibliográfica y el análisis de documentos producidos por el Movimiento por la Educación Rural. Creemos que las experiencias de Educación Rural instituidas por los movimientos sociales aportan importantes contribuciones políticas, pedagógicas y epistemológicas al pensamiento de una pedagogía crítica y libertadora, anclada en los supuestos políticos y filosóficos de las teorías críticas de la educación.

Palabras clave: educación rural; movimientos sociales; pedagogía de resistencia

INTRODUÇÃO

A partir da década de 1990, os movimentos sociais do campo assumiram a educação como uma pauta estratégica em suas lutas pela transformação social do território camponês, por reconhecer a importância da formação política e cultural no processo de organização do/as trabalhadores/as, bem como, no desvelamento das condições de exclusão social, política e econômica as quais foram historicamente submetidos os povos do campo.

Neste contexto, a Educação do Campo surge em meio as lutas dos movimentos sociais contra o processo perverso de exclusão social e negação de direitos, principalmente o direito a educação, e contra o modelo de educação oferecido aos/as camponeses/as, atrelado aos interesses do agronegócio. Portanto, se constitui como uma trincheira de resistências políticas, pedagógicas e epistemológicas. Uma educação que assume o desafio de contrapor-se ao projeto de sociabilidade vigente e ao modelo de escola rural concebido a partir da lógica capitalista, que nega aos sujeitos o direito ao conhecimento e as condições materiais para construção de uma vida digna.

Em meio a este cenário de luta, o projeto de Educação do Campo nasce enquanto movimento de resistência política e epistemológica e assume o desafio de constitui-se como uma alternativa teórica e pedagógica ao modelo de educação rural atrelada ao projeto de formação cultural concebido a partir dos princípios e valores que dão sustentação ao processo de dominação capitalista. Por conta disto, atua no sentido de subverter as lógicas políticas e ideológicas que dão sustentação aos modos de educar e conceber o campo e as relações sociais, num contexto marcado pela expansão do capitalismo por meio do agronegócio.

Desse modo, este texto tem o propósito de refletir sobre o movimento de constituição da Educação do Campo, destacando suas vinculações com as lutas sociais e com os esforços empreendidos pelo Movimento de Educação do Campo na construção de um projeto de educação que contribua, por um lado, para conter os avanços do agronegócio, por outro, para difundir as sementes de outro projeto de desenvolvimento associado ao modelo de sociabilidade forjado nas experiências comunitárias e nas redes de solidariedade tecidas pelos povos do campo a partir dos projetos coletivos cultivados no contexto da agricultura camponesa.

O trabalho foi desenvolvido a partir das contribuições teóricas da abordagem dialética (GAMBOA, 2012), utilizando-se da pesquisa bibliográfica e da análise dos documentos produzidos pelo Movimento de Educação do Campo (MOLINA; JESUS, 2004; ARROYO; FERNANDES, 1999; entre outros). As reflexões partilhadas no texto são oriundas também das experiências formativas e investigativas desenvolvidas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí – UFPI, sob a coordenação do autor.

OS ESFORÇOS EMPREENDIDOS PELOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM TORNO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

O território rural brasileiro foi marcado por intensos processos de lutas e resistências travadas historicamente pelos diferentes grupos sociais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, campesinos, dentre outros) que habitam neste território e buscam construir um projeto de vida sustentável e solidário, constituído por uma relação de respeito à terra e ao meio ambiente.

Os povos indígenas foram os pioneiros neste processo de resistência na defesa deste território contra da invasão portuguesa e a instituição de um projeto de desenvolvimento capitalista pautado na exploração da natureza, degradação do meio ambiente e na opressão dos diferentes grupos sociais que vivem no campo. Movida pela ambição e pelo desejo de exploração das riquezas naturais, a colonização europeia provocou inúmeras transformações sociais, política e econômica nesta região com a implementação de um modelo de sociabilidade caracterizado pela concentração de riqueza, a exclusão social e a violência física, cultural e epistêmica principalmente contra os povos indígenas e africanos.

A partir da lógica de dominação política e cultural, foi estruturado todo um modelo perverso de exploração do território rural brasileiro, marcado pela violência física, simbólica e cultural. A\s estratégias de dominação instituídas pelos colonizadores e reproduzidas pela elite política local, sob a direção dos barões e coronéis, foram estruturadas a partir de três dimensões: a) a dimensão econômica, caracterizada pelo modelo de desenvolvimento baseado na concentração da terra e na acumulação de riquezas, através de um processo perverso de exploração da natureza e da escravização dos seres humanos; b) a dominação política, associada ao modelo de gestão da vida pública, instituída a partir do aparato jurídico do Estado, que foi consolidado pelos dispositivos de violência física e simbólica; b) a dominação cultural, marcada pela negação dos valores e conhecimentos produzidos pelos povos indígenas e africanos e o silenciamento e a invisibilização de suas práticas culturais, instituídos a partir da repressão física e simbólica.

No entanto, este processo de dominação foi constituído dentro de um contexto de disputas políticas, econômicas e culturais, marcadas por violentos conflitos entre os povos indígenas, africanos e europeus, nos quais milhares de indígenas, camponeses e quilombolas foram e continuam sendo sacrificados.

Em meio as transformações políticas e econômicas, as disputas entre estes grupos sociais ganharam diferentes configurações com o surgimento dos movimentos sociais constituídos a partir da organização dos camponeses sem terra, explorados nos canaviais, nas fazendas de café e de criação extensiva de gado espalhadas pelos vários estados brasileiros. Apoiados por setores progressistas da igreja católica, as organizações sociais dos trabalhadores, a exemplo das Ligas Camponeses no Nordeste, tornaram-se uma referência na luta no campo.

A partir do trabalho de educação popular1, desenvolvido a partir da década de 1950, ampliaram-se as experiências de formação política dos camponeses associadas ao desenvolvimento da consciência crítica e à organização social dos trabalhadores para se contraporem ao modelo de exploração e exclusão social que se perpetuou desde o período da colonização.

Sob a influência dos ideais marxistas e pela pedagogia freireana, as experiências de educação popular se expandiram entre diversos movimentos e organizações sociais, contribuindo na formação crítica dos camponeses, evidenciando seu papel político enquanto sujeito histórico, bem como, no fortalecimento dos movimentos sociais tendo em vista a dimensão política, pedagógica e metodológica desta proposta de educação, que possibilita que o “[...] educador e o povo se conscientizam através do movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação anterior e a subsequente no processo de luta” (FREIRE, 1980, p. 110).

Diante desse contexto, os movimentos sociais do campo desenvolveram, a partir da década 1980, um conjunto de ações na área da educação popular, tendo a formação política e a mobilização social como antídotos para se opor ao processo de dominação política, econômica e cultural impostas principalmente no Nordeste brasileiro.

Com a criação do Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em 1884, as lutas sociais pelo direito a terra e as condições de vida no campo foram intensificadas, colocando o debate sobre a reforma agrária na pauta política do país. Para o MST, a democratização da terra por meio da reforma agrária constitui-se numa política estratégica de desenvolvimento do país e de garantia das condições básica para a superação da pobreza e da miséria no campo. Foi a partir da luta pela reforma agrária, através da ocupação de terra e a constituição dos acampamentos e assentamentos rurais, que emergiu com força a luta pelo direito à educação.

O processo de organização social e política empreendido pelo MST, pelo direito a terra, foi fundamental na constituição do projeto de Educação do Campo, pois foi a partir da luta pela escola nos acampamentos e assentamento rurais, que o Movimento compreendeu a centralidade da educação na luta política dos trabalhadores e assumiu a bandeira da educação como parte da luta pela transformação social do campo. (CALDART, 2012).

A partir dos projetos de educação popular, os movimentos sociais passaram questionar o modelo de “educação rural”, concebido a partir do contexto urbano e oferecido de modo precário aos camponeses, desconsiderando as especificidades sociais, culturais e política deste território. Na visão dos movimentos, são propostas educativas que negam os saberes e as experiências construídas pelos camponeses, na sua relação com o mundo do trabalho e da cultura, e produz um tipo de conhecimento deslocado do contexto sociocultural e das experiências coletivas, que traz poucas contribuições para o desenvolvimento de outro projeto de sociabilidade justo e sustentável.

A educação rural foi concebida com o propósito difundir os princípios do capitalismo agrário, reforçando o processo de dominação política e ideológica das oligarquias agrárias no território rural brasileiro. Ou seja, “[...] a Educação Rural vem sendo construída por diferentes instituições a partir dos princípios do paradigma do capitalismo agrário, em que os camponeses não são protagonistas do processo, mas subalternos aos interesses do capital” (FERNANDES, 2006, p. 37).

Nessa perspectiva, o modelo de “educação rural” contribuiu para que se perpetuassem as desigualdades sociais e as relações de dependências no campo na medida em que ofereceu um saber precarizado, atrelado ao desenvolvimento de competências básicas necessárias à inserção dos trabalhadores nas atividades produtivas que emergiam com a modernização das grandes propriedades rurais. Além disso, “[...] reforçou a imagem negativa dos camponeses e de seu estilo de vida, estimulando-os a abandonar o campo buscando ascensão social nos centros urbanos”. (FREITAS, 2011, p. 37).

Contrapondo-se ao modelo de “educação rural”, os movimentos sociais promoveram vários debates nos estados e municípios com o propósito de construir outro projeto de educação para as escolas do campo. Dessa forma, a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, realizada em 1998, em Luiziânia - Goiás, tornou-se um marco histórico na construção dos referenciais políticos e pedagógicos da Educação do Campo no Brasil. Com a primeira Conferência, a “Articulação Nacional Por uma Educação do Campo”2 assumiu a tarefa de sistematizar as Diretrizes políticas e pedagógicas do projeto de educação do campo, que tenham a realidade e a cultura dos sujeitos como ponto de partida e de chegada dos processos educativos.

Neste contexto, o projeto de Educação do Campo, forjado nas lutas políticas dos movimentos sociais, afirma-se como uma pedagogia da resistência que se contrapõe aos projetos políticos e ideológicos neoliberais que influenciam as políticas educacionais excludentes e, acima de tudo, assume um papel estratégico na defesa de outro projeto de sociedade, em contraposição à sociabilidade capitalista marcada pela concentração de renda e das riquezas naturais, assim como, pela exploração da classe trabalhadora e a consolidação de um projeto de dominação marcado pela exclusão social.

Na visão de Arroyo e Fernandes (1999), a reafirmação do direito a educação do campo constitui-se numa luta fundamental, primeiro, na garantia das condições da produção de uma vida digna do campo, segundo, no fortalecimento dos movimentos sociais como alternativa de luta na defesa dos direitos dos camponeses e na construção das alternativas de vida sustentável. Neste contexto, os autores destacam:

Quando dizemos Educação básica do campo estamos afirmando a necessidade de duas lutas combinadas: pela ampliação do direito à educação e à escolarização no campo; e pela construção de uma escola que não apenas esteja no campo mas que, sendo do campo, seja uma escola política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura e às causas sociais e humanas dos sujeitos sociais do movimento do campo (ARROYO; FERNANDES, 1999, p. 59).

Camacho (2017, p. 654) ressalta que a Educação do Campo é fruto das lutas sociais e do processo de resistência dos povos do campo a situação de miséria e desigualdade marcada pelo avanço do capital, portanto, precisa ser compreendida como uma estratégia de luta dos movimentos sociais, visando à emancipação da classe trabalhadora, frente ao processo desumanização imposta pelo capitalismo. Neste contexto, a Educação do Campo é uma aliada estratégica no processo de formação e mobilização social dos camponeses, visando aglutinar esforços para frear o avanço do agronegócio e suas estratégias de destruição no campo.

Num campo marcado pelas disputas entre dois projetos de sociedade antagônicos, representados pelo agronegócio e a agricultura camponesa, a Educação do Campo se apresenta como uma alternativa política de resistência e, acima de tudo, uma pedagogia capaz transgredir as formas de organização política e pedagógica da escola rural, instituindo práticas educativas que fomentem a produção de conhecimentos que estejam a serviço da emancipação da classe trabalhadora e da superação deste modelo de desenvolvimento excludente, injusto e desigual propagando no campo pelas forças políticas e ideológica do agronegócio.

Em virtude disso, as disputas travadas em torno destes projetos antagônicos de desenvolvimento, refletem-se nos embates teóricos e pedagógicos que permeiam os projetos educativos em desenvolvimento nas escolas do campo. Algo que exige dos educadores e movimentos sociais uma vigilância política e epistemológica no sentido de evidenciar como os princípios e valores propagados pelo agronegócio estão implícitos nas propostas pedagógicas e curriculares das escolas e nas narrativas difundidas nos materiais didáticos e nos discursos dos/as educadores/as. Nesta perspectiva,

[...] a escola se configura também como um espaço em disputa, um território a ser conquistado e em constante mobilização, para que as contradições geradas pelo modelo que produz a desigualdade possam ser problematizadas e interpretadas de maneira que se amplie o terreno da consciência e do direito, sendo que, mais que o acesso, a ocupação da escola se faça também em termos de concepções e práticas, ou seja, em sua forma e conteúdo. (HAMMEL; ONÇAY, 2015, p. 27).

Em meio a este cenário político, a Educação do Campo assume uma posição estratégica na propagação dos princípios e valores implícitos no modelo de sociabilidade difundido pelos movimentos sociais, através das práticas comunitárias da produção agroecológica3 e na organização social e política dos/as camponeses/as, bem como, na difusão de conhecimentos que possam conter os avanços do agronegócio e suas lógicas de exploração que põem em risco, não somente a vida humana, mas o próprio ecossistema e as possibilidades de vida no planeta.

DA RESISTÊNCIA POLÍTICA À REINVENÇÃO DA TRADIÇÃO PEDAGÓGICA NAS ESCOLAS DO CAMPO

Neste esforço de colocar-se como uma alternativa de resistência ao modelo de educação rural e ao projeto de desenvolvimento capitalista, a Educação do Campo buscou fundamentar-se nos referenciais políticos e filosóficos das teorias críticas da educação (FREIRE, 2005) e da pedagogia socialista (PISTRAK, 2003), bem como, nas contribuições teóricas da pedagogia do movimento (CALDART, 2012) com o intuito de extrair destes campos teóricos as diretrizes políticas capazes de favorecer, por um lado, uma releitura crítica do mundo para além da visão hegemônica disseminada pela mídia e pela própria educação conservadora; por outro, a superação da tradição política da denúncia das mazelas do capitalismo, buscando apontar os caminhos para a transformação social tanto da escola quanto da sociedade.

Neste contexto, a Educação do Campo atua no sentido de fomentar uma reflexão crítica sobre as condições de exploração e injustiças instituídas no campo, na perspectiva de denúncia das mazelas do capitalismo; assim como, fomenta estudos e reflexões acerca da situação de opressão dos camponeses com o intuito de promover uma releitura da realidade, evidenciando as possibilidades de transformação social, por meio da organização social e política da classe trabalhadora. Com este processo de problematização e denúncia das injustiças sociais, estes projetos educativos buscam evidenciar as “situações limites” que nega a condição humana dos sujeitos, reduzindo sua capacidade ontológica de “ser mais” através do processo de coisificação da vida e das relações sociais. (FREIRE, 2005).

A partir do processo de imersão crítica do mundo, a Educação do Campo trabalha com o intuito de criar as condições de libertação dos sujeitos das tramas políticas e ideológicas da dominação cultural e econômica pela elite agrária, resgatando sua condição de “ser mais”, sua capacidade de esperançar e lutar por outro mundo possível. Este processo de libertação dos sujeitos da situação de opressão e da negação da sua condição de “ser mais” passa pela denúncia e o combate ao projeto de desenvolvimento instituído pelo agronegócio, baseado na concentração das riquezas naturais, na destruição do meio ambiente e na expropriação da força de trabalho dos camponeses, dentro de uma lógica de negação de direitos e das possibilidades de vida no campo.

Nessa perspectiva, a Educação do Campo deve pautar-se no binômio dialético de denúncia/anúncio do mundo. Este processo de denúncia das mazelas da sociedade capitalista implica numa leitura aprofundada da estrutura de opressão e desumanização que permeiam as práticas sociais no campo (FREIRE, 2005). No entanto, os projetos educativos não podem ficar restritos à denúncia, precisam assumir o desafio de anunciar os caminhos e as possibilidades de transformação social, dentro de um movimento pedagógico de construção de sonhos coletivos, que se traduzem na visualização do “inédito viável”, que nutre a utopia e impulsiona a construção do projeto popular de desenvolvimento.

Desse modo, ao denunciar as mazelas e as contradições implícitas no modelo desenvolvimento pautado no agronegócio, os projetos de Educação do Campo assumem também a tarefa de anunciar as possibilidades de transformação social, com a difusão de conhecimentos e práticas políticas e sociais que evidenciam as contribuições da agricultura camponesa na construção de outro projeto de sociedade, construído coletivamente, no qual os/as trabalhadores/as exerçam um papel estratégico na produção da vida no campo, pautado no respeito ao meio ambiente, na preservação das identidades culturais dos camponeses e consolidação de relações sociais justas.

Diante deste contexto, a Educação do Campo se consolida no cenário educacional brasileiro como uma pedagogia contra hegemônica que trabalha na perspectiva forjar sujeitos históricos capazes de indignar-se com todo tipo de injustiças e, principalmente, com o processo de exclusão instituído historicamente no campo. Enquanto pedagogia rebelde e transgressora, assume o compromisso político de fomentar a organização social dos trabalhadores, instigando-os a lutarem pelos seus direitos, usurpados por uma elite rural conservadora e escravocrata.

Concebida a partir de uma pedagogia crítica comprometida com a transformação social e a emancipação dos camponeses, a Educação do Campo precisa assumir o compromisso de superar os modelos pedagógicos instituídos a partir da pedagogia tradicional e romper com os pressupostos políticos e epistemológicos que dão sustentação aos projetos de educação rural, vinculados à racionalidade técnica4, que ignora as práticas sociais e os conhecimentos dos sujeitos do campo, uma vez que, está pautado num modelo de formação elementar, atrelado a reprodução de conhecimentos e valores que respalda a sociabilidade capitalista.

DA RESISTÊNCIA POLÍTICAS AOS QUESTIONAMENTOS PEDAGÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS

Os estudos sobre a educação rural (BEZERRA NETO, 1999; LEITE, 1999) demonstram que os projetos educativos desenvolvidos no campo são construídos a partir de bases teóricas e pedagógicas que respaldam os projetos de desenvolvimento difundido pelo agronegócio, atrelados aos interesses do capital. Além disso, os dispositivos políticos e metodológicos utilizados nestes projetos de educação atuam no sentido de naturalizar o processo de exclusão dos povos do campo, com a implementação de rituais pedagógicos voltados à adaptação das crianças e jovens ao modelo de sociabilidade vigente, caracterizado pela submissão e passividade.

Em meio a este cenário, a construção de um projeto de educação do campo comprometido com a emancipação social e a transformação das condições históricas de exclusão e opressão no campo exige a incorporação de novos princípios políticos e pedagógicos, vinculados a uma pedagogia crítica e revolucionária, e a superação dos pressupostos epistemológicos atrelados à filosofia positivista e aos princípios da racionalidade técnica, com a incorporação de uma racionalidade crítica e dialética que permita à construção coletiva do conhecimento e a articulação/diálogo entre os diferentes conhecimentos e saberes construídos pelos sujeitos do campo a partir da sua inserção crítica na prática social.

Na visão de Santos (2010), a resistência política empreendida pelos movimentos sociais contra o processo de dominação e opressão imposto pelo projeto de desenvolvimento capitalista deve estar articulada, concomitantemente, com um movimento de resistência epistemológica, já que na visão do autor, “[...] não existe justiça social global sem justiça cognitiva global”. Neste caso, as lutas políticas de resistência ao capitalismo neoliberal devem estar associadas ao processo de resistência epistemológica no sentido garantir que os saberes e conhecimentos produzidos pelos grupos subalternos e pelos movimentos sociais também sejam reconhecidos e valorizados, tanto no projeto de desenvolvimento social quanto nos projetos educativos, uma vez que, os conhecimentos e saberes produzidos pelos grupos subalternizados sempre foram ignorados e silenciados pelo modelo de ciência moderna e pela tradição pedagógica hegemônica.

Nessa perspectiva, o Movimento de Educação do Campo e seus intelectuais orgânicos atuam no sentido de questionar a racionalidade hegemônica no meio científico e educacional, denunciando suas vinculações com os interesses do capital e com os princípios e valores que fundamentam o modelo de sociabilidade capitalista. Além disso, trabalham para evidenciar as contradições implícitas nos discursos e nas práticas educativas desenvolvidas nas instituições de ensino, que se apresentam como experiências educativas democráticas e comprometidas com a formação cidadã, no entanto, reproduzem conhecimentos, princípios e valores que naturalizam os processos de exclusão e as injustiças sociais vivenciadas pelos povos do campo.

Diante disso, os movimentos sociais atuam não somente no sentido de garantir o acesso dos jovens do campo as escolas e universidades, mas também buscam problematizar os princípios políticos e epistemológicos que dão sustentação aos projetos educativos, com o intuito de romper com as propostas curriculares atrelados à racionalidade técnica e suas lógicas de produção do conhecimento que silenciam, negam e invisibilizam os saberes oriundos das práticas sociais e das experiências de resistências dos sujeitos do campo. Como também ignoram e menosprezam os conhecimentos construídos coletivamente pelos camponeses na elaboração dos projetos alternativos de desenvolvimento pautados na sustentabilidade, na economia solidária e no modo de produção agroecológico.

Nesta caminhada de construção do projeto de Educação do Campo, os movimentos sociais atuam com a consciência e a clareza do seu papel político dentro das instituições de ensino, pois compreendem a escola como campo de disputa política e ideológica, portanto, um território que precisa ser ocupado dentro de uma estratégia política mais ampla, que possibilite a apropriação e/ou construção de conhecimentos que, por um lado, favoreça o desvelamento das tramas de dominação política, ideológica e cultural da sociedade capitalista e, por outro, fomente a produção de novos conhecimentos que apontem caminhos e possibilidades de construção de outro projeto de sociabilidade mais justo, fraterno e solidário.

Nesta perspectiva, a luta pelo direito a Educação do Campo é vista como parte importante da estratégia de fortalecimento das lutas pela transformação da sociedade. Com base nisto, os movimentos sociais sabem que os embates travados em torno dos referenciais políticos e epistemológicos que dão sustentação aos modos de compreender o ensino, a pesquisa e a produção do conhecimento refletem diretamente no modo como concebem o mundo e o modelo de mundo e de sujeitos que se pretende formar.

Dessa forma, as experiências de Educação do Campo precisam ser desenvolvidas a partir de princípios políticos e epistemológicos que permitam uma ampla reflexão do contexto sócio-histórico e cultural dos jovens, com o intuito de evidenciar as relações de poder instituídas na sociedade brasileira e internacional, que resultou nas condições de injustiças e opressão, marcado por um modelo de sociedade injusto e desigual que se constitui como natural dentro da realidade social brasileira. Por essa razão, o contexto dos/as educandos/as não pode ser utilizado neste processo como mera ilustração pedagógica, mas como ponto de partida, como condição essencial para a produção de conhecimentos comprometidos com a transformação social e a emancipação dos/as educandos/as.

Somente a partir de uma reflexão crítica consistente da realidade, construída a partir do confronto de conhecimentos e posições políticas divergentes, podemos ampliar o modo como concebemos esta realidade, evidenciando as “situações limites” que restringem as condições dos sujeitos de se desenvolverem e realizarem-se enquanto “ser mais”. Este processo de apreensão crítica da realidade é condição essencial para se pensar na construção de outras alternativas de sociabilidade a partir da visualização do “inédito viável”, enquanto dimensão utópica da luta coletiva dos oprimidos diante das condições perversas de negação de sua própria existência e das possiblidades de construção de uma vida digna (FREIRE, 2005).

Com base nos pressupostos políticos e epistemológicos da educação popular, a concepção de Educação do Campo fomenta uma atitude epistemológica dialética e interdisciplinar capaz de superar o modelo fragmentado e descontextualizado de produção do conhecimento instituídos nas escolas, propondo projetos educativos que ampliem as possibilidades de compreensão e leitura crítica do mundo, por meio da articulação entre os diferentes conhecimentos e saberes (populares, artísticos, científicos e tecnológicos).

Nessa perspectiva, os projetos de Educação do Campo trabalham no sentido de colocar em prática uma concepção de ciência potencializada pelo diálogo com o conhecimento popular, colocando as instituições de ensino “a serviço da produção de conhecimento emancipatório, compreendendo a realidade e os problemas das classes populares como conteúdo e objeto de suas investigações, estudos, análises e intervenções”. (CORREIA, 2016, p. 212).

Desse modo, os projetos de formação são concebidos a partir de bases teóricas e epistemológicas que promovem uma articulação permanente entre os conhecimentos científicos e as experiências sociopolíticas dos/as camponeses/as, entre a teoria e a prática, tendo-os como os protagonistas do processo de construção do conhecimento. A partir desta relação dialógica, os sujeitos conseguem articular suas experiências sociais com os conceitos científicos básicos das diferentes áreas do conhecimento, permitindo a ampliação do modo como concebem, tanto a realidade social, quanto os conceitos teóricos utilizados pelos/as educadores/as no processo de interpretação crítica do mundo.

Na medida em que tem as práticas sociais dos/as camponeses/as como ponto de partida para a produção do conhecimento, a Educação do Campo assume uma opção política e epistemológica associada a racionalidade crítico-dialética, que compreende a produção do conhecimento na escola vinculado às experiências sociais dos/as educandos/as, possibilitando uma leitura crítica da realidade, dentro de um movimento histórico e dialético capaz de evidenciar as contradições implícitas no projeto social vigente e apontar as possibilidades e as alternativas de transformação social. Neste caso, diferentemente da proposta de educação bancária, o conhecimento produzido no contexto das práticas educativas traz em si uma dimensão política emancipatória e transformadora das condições de opressão e desigualdades vividas no campo.

Ao assumir esse posicionamento político, a proposta de Educação do Campo parte do princípio que todo conhecimento emerge das práticas sociais, são contextuais e estão vinculados às experiências do sujeito no mundo e do seu processo de transformação do mundo, dentro deste movimento dialético de descobrir-se enquanto sujeito no/com o mundo. Nessa perspectiva,

Não há, pois, conhecimento sem práticas e actores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias. (SANTOS; MENESES, 2009, p. 09).

Diante deste contexto, as alternativas teóricas e epistemológicas construídas a partir dos projetos de Educação do Campo trazem para as escolas e as universidade um conjunto de desafios associados ao desenvolvimento de estratégias políticas que ajudem a superar a tradição pedagógica e científica consolidada nos espaços acadêmicos centrada: 1) na reprodução fragmentada e descontextualizada dos conhecimentos científicos, destituída de uma reflexão crítica aprofundada acerca dos pressupostos políticos e ideológicos implícitos naquela perspectiva de compreensão do mundo; 2) na hierarquização dos conhecimentos e saberes associada à supervalorização dos conhecimentos acadêmicos, em detrimento da negação e/ou silenciamento dos conhecimentos oriundos das práticas sociais e políticas dos grupos subalternizados e dos movimentos sociais; e 3) na instituição de um conjunto de princípios epistemológicos e critérios de validação científica, que concentra na mão de pequenos grupos acadêmicos o poder de determinar o tipo de conhecimento aceitável no meio científico e, consequente, nos demais processos educativos formais.

Por essa razão, o Movimento de Educação do Campo atua na perspectiva de estabelecer uma ruptura com estes princípios que fundamentam o pensamento científico moderno, fundada na racionalidade técnica, buscando criar possibilidades de produção de conhecimento a partir das trocas de experiências, da confrontação de diferentes saberes, da problematização da práxis social e dos diálogos entre os sujeitos e seus processos de lutas na construção das alternativas de transformação social.

Em virtude disso, os projetos educativos buscam estabelecer uma relação diferente com o conhecimento e a realidade, de forma que o mundo escolar não se dissocie do mundo dos fatos, da vida, das lutas cotidianas. Além disso, são projetos que incorporam as linguagens artísticas e os referenciais da cultura e da memória dos povos do campo, fomentando o uso da imaginação, da criação e de meios motivadores para a reconstrução de identidades, reafirmando suas relações de pertencimento e inserção social no contexto do campo. (SILVA, 2006).

Neste caso, a Educação do Campo busca forjar outros caminhos políticos e epistemológicas, dentro de um contexto de transgressões pedagógicas que oportunizem aos/as educadores/as e educados/as o desenvolvimento de novos espaços e tempos de formação e de produção de conhecimentos, permeados pelas trocas de experiências, pelos diálogos coletivos e pelas problematizações acerca de suas práticas sociais, buscando estabelecer uma articulação crítica entre as experiências dos diferentes grupos sociais com os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade.

DA RESISTÊNCIA PEDAGÓGICA À CONSTRUÇÃO DE OUTRAS ALTERNATIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Os projetos educativos desenvolvidos na perspectiva da Educação do Campo são construídos a partir de alternativas teóricas e metodológicas que buscam promover uma articulação entre os diferentes tempos/espaços de aprendizagens, através de atividades que fomentem o diálogo entre os sujeitos, suas práticas e saberes, considerando as diferenças como princípios de complementaridade. Assim, os/as educadores/as buscam “[...] despir-se das tradições, dos modelos exclusivistas e seletivos de conceber a educação e o conhecimento, e colocar-se numa atitude de abertura epistemológica”. (CORREIA, 2016, p. 22).

Em virtude disso, os/as educadores/as têm empreendido esforços na construção de alternativas pedagógicas que possibilitem um diálogo permanente entre as práticas educativas, vivenciadas nas escolas, com as práticas sociais dos sujeitos do campo e as experiências dos movimentos sociais. Neste processo, são construídas estratégias políticas que promovam uma articulação entre os diferentes saberes, conhecimentos e tecnologias produzidos, tanto pelos agricultores, por meio de suas experiências históricas com os movimentos sociais, quanto pelo meio científico e acadêmico.

Nesta perspectiva, são experiências que se constituem em espaços coletivos e dialógicos, permeados por intensos processos de trocas conhecimentos, valores e princípios ético-políticos que se traduzem em sonhos e utopias que alimentam as lutas pela construção de outro mundo possível. Nestes diferentes espaços/tempos educativos são utilizadas estratégias pedagógicas que fomentem a participação dos/as educandos/as e instigue-os a assumirem-se enquanto sujeitos históricos e políticos capazes de contribuir na construção dos projetos educativos e nos processos de reinvenção da vida no campo.

Sob a influência dos referenciais teóricos e metodológicos da educação popular (FREIRE, 2005) e da pedagogia socialista (PISTRAK, 2003), os projetos de Educação do Campo são desenvolvidos a partir dos “temas geradores” e “complexos temáticos”, voltados à investigação crítica da realidade, favorecendo uma inserção crítica dos/as educandos/as no contexto sócio-histórico, político, econômico e cultural do campo. Neste caso, as atividades educativas são realizadas por meio de processos investigativos que fomentem o diálogo entre os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade com os saberes construídos a partir das práticas sociais dos povos do campo.

Neste contexto, os estudos realizados nas comunidades são concebidos na perspectiva da investigação-ação e da pesquisa-participante, nos quais os/as educandos/as são instigados a desenvolverem uma atitude investigativa que permita questionar os princípios e valores que fundamentam as práticas políticas e culturais que fundamentam a sociabilidade no campo pautada nos ideais capitalistas. A partir da apropriação crítica dos conhecimentos escolares, os jovens têm a oportunidade de ampliar a compreensão crítica dos problemas e das demandas sociais e políticas vivenciadas pelos camponeses. São experiências educativas que se configuram como tempos/espaços de vivências, experiências, estudo e pesquisa associado à integração de saberes e a construção coletiva de conhecimentos voltados a transformação social.

De acordo com Santos (2012), essa articulação entre os diferentes tempos/espaços educativos possibilita uma integração importante entre os conceitos científicos abordados nas diferentes áreas de conhecimento com os estudos da realidade, favorecendo uma leitura interdisciplinar da realidade e dos seus problemas, bem como, as trocas de experiência entre os sujeitos que compõem o território da educação do campo. Além disso, as atividades desenvolvidas nestes diferentes espaços/tempos formativos favorecem a intercomunicação permanente entre as experiências educativas vivenciadas no contexto da escola com as práticas sociais e as experiências políticas dos movimentos sociais.

A partir das reflexões teórico-práticos construídas no tempo-escola, os/as educandos/as retornam às suas comunidades com um conjunto de questões e problemas que aguçam sua “curiosidade epistemológica”, auxiliando-os no processo de investigação e releitura crítica da realidade. Neste trabalho, os jovens terão a oportunidade de ampliar a compreensão dos problemas comunitários, a partir de uma articulação teórico-prática e do movimento dialético de distanciamento e aproximação da realidade construído a partir da investigação-ação.

Este trabalho traz mudanças importantes nos processos educativos desenvolvidos nas instituições de ensino, abrindo possibilidades para se pensar a educação e a produção do conhecimento, com a incorporação de metodologias participativas que se contrapõem aos modelos pedagógicos convencionais, colocando os sujeitos sociais como protagonistas dos processos educativos e científicos.

O uso de metodologias participativas e dialógicas traz novas possibilidades de articulações entre os diferentes conhecimentos construídos, tanto no ambiente acadêmico, quanto no contexto das experiências dos movimentos sociais, permitindo que se estabeleça uma formação teórico-prática que, ao articular os diferentes contextos de produção do conhecimento, amplie as formas de compreensão do mundo, bem como, de análise e interpretação dos fenômenos e fatos sociais. Nesse caso,

[…] o diálogo entre os conhecimentos camponês e acadêmico e a aplicação das ferramentas para compreensão e intervenção na realidade representam um aspecto pedagógico e epistemológico que se traduz em uma via de mão dupla. Isso porque a relação entre a teoria e prática […] possibilita que, enquanto sujeitos do campo, os estudantes aprimorem seu protagonismo a partir dos conhecimentos científicos elaborados na universidade e agucem o olhar sobre sua realidade pela via da reflexão teórica. O mundo acadêmico subsidia identificar problemas, construir e executar projetos que venham a repercutir positivamente na sua solução. (CORREIA, 2016, p. 208-209).

Nesta perspectiva, estes projetos de educação do campo possibilitam uma sólida formação teórico-prática ao promoverem uma articulação entre teoria e prática e entre as práticas educativas vivenciadas na escola com as aprendizagens construídas a partir das práticas sociais. Além disso, atuam no sentido de criar espaços nos quais os/as jovens experimentem e vivenciem outras formas de organização social e política através das práticas da auto-organização e autogestão, com o intuito de fomentar novas aprendizagens associadas ao trabalho coletivo e cooperativo, que desenvolva uma cultura ético-política pautada nos princípios da sustentabilidade e da justiça social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões construídas ao longo deste texto demonstram que a Educação do Campo é um projeto político-pedagógico que se alimenta nas lutas dos movimentos sociais; no entanto, ao fomentar uma releitura crítica do mundo por meio das problematizações acerca dos modos de vida no campo, retroalimenta os processos de resistências dos movimentos sociais ao produzir conhecimentos que apontam os caminhos a serem trilhados na construção de outros projetos de vida no campo, pautado na sustentabilidade e na justiça social.

Neste caso, a educação do campo que nasce das entranhas das lutas e resistências dos movimentos sociais e atua no sentido de manter viva a história de luta dos camponeses, quando assume o desafio de formar as novas gerações que irão dar continuidade a construção histórica de outro projeto de desenvolvimento do campo, com um projeto educativo tecido a partir dos sonhos e das utopias da classe trabalhadora. Em virtude disso, atua para formar uma geração de trabalhadores/as com a consciência histórica do papel político que deve assumir visando a construção deste projeto de sociabilidade justo, democrático e fraterno.

Com base nos pressupostos políticos e epistemológicos da educação popular, a política de educação do campo fomenta uma atitude epistemológica dialética e interdisciplinar capaz de superar o modelo fragmentado e descontextualizado de produção do conhecimento, instituídos nas escolas do campo, propondo projetos educativos que ampliem as possibilidades de compreensão e leitura crítica do mundo, dentro de uma estratégia teórico-metodológica de articulações entre os diferentes conhecimentos e saberes (populares, artísticos, científicos e tecnológicos).

Subvertendo os rigores teóricos da pedagogia moderna, a Educação do Campo busca forjar novos espaços e tempos de formação que possibilitem aos/as educadores/as e educandos/as, primeiro, o reconhecimento da riqueza de conhecimentos e saberes presentes nas práticas sociais e culturais dos povos do campo, desprezados e/ou silenciados pelos projetos curriculares das escolas; segundo, a implementação de estratégias pedagógicas que ampliem o diálogo entre os saberes dos camponeses com os conhecimentos universais das áreas da arte, ciência e tecnologia, que compõem o patrimônio histórico da humanidade; terceiro, o fortalecimento das lutas dos movimentos sociais associadas à construção de outro projeto de sociabilidade, pautado na cooperação, solidariedade e justiça social, que se contrapunha ao capitalismo neoliberal .

Nessa perspectiva, as reflexões construídas sobre os projetos de educação do campo apontam que as práticas educativas instituídas nas escolas do campo, numa interface com as experiências políticas e organizativas dos movimentos sociais, têm oportunizado a sistematização e a construção de um arcabouço teórico e metodológico que abre novas possibilidades para se pensar em outras pedagogias, numa perspectiva da transgressão e da subversão dos paradigmas epistemológicos que dão sustentação aos projetos educativos hegemônicos. Por essa razão, acreditamos que as experiências de educação do campo instituídas pelos movimentos sociais trazem importantes contribuições políticas e pedagógicas para se pensar numa pedagogia contra hegemônica, ancorada nos pressupostos políticos e filosóficos de uma pedagogia libertadora.

1A educação popular surgiu, no Brasil, a partir das ideias de Paulo Freire e está associada aos princípios político-pedagógicos e metodológicos utilizados pelas organizações sociais, nas suas dinâmicas de formação e mobilização social, com o intuito de possibilitar a construção coletiva de conhecimentos e saberes que desenvolvam nas pessoas a capacidade de análise crítica sobre a realidade, bem como propiciem o aprimoramento das estratégias de luta que favoreçam a construção de novos processos de emancipação e transformação social.

2A “Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo” é uma rede que congrega diversos movimentos e organizações sociais, instituições e universidades comprometidas com as lutas em defesa da educação do campo. Foi criada na primeira Conferência Nacional por Uma Educação Básica do Campo realizada em julho de 1988, em Luziânia, Goiás.

3A agroecologia constitui-se num modo de produção sustentável aliada à preservação dos recursos naturais e ao manejo sustentável com a valorização de sistemas orgânicos de cultivo e do conhecimento tradicional dos camponeses. (CAPORAL; COSTABEBER, 2004).

4Conforme Giroux (1986, p. 225), racionalidade significa “um conjunto específico de pressupostos e práticas sociais que medeiam como o indivíduo ou grupo se relaciona com a sociedade maior. Subjacente a qualquer modo de racionalidade está um conjunto de interesses que definem e limita como a pessoa reflete sobre o mundo”. Neste caso, a racionalidade técnica está associada ao modo de conceber os processos educativos e sociais dentro de uma perspectiva instrumental controlada pela aplicação rigorosa de teorias e/ou modelos científicos regidos pelo pensamento lógico matemático.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Dezembro de 2021

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