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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.68 Rio de Janeiro ene./mar 2022  Epub 13-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.60952 

Artigos de Demanda Contínua

ENSINO REMOTO NA PANDEMIA DE COVID-19: alfabetização em risco na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre1

REMOTE TEACHING IN THE COVID-19 PANDEMIC: literacy at risk in the Municipal School System of Porto Alegre

ENSEÑANZA REMOTA EN LA PANDEMIA DEL COVID-19: alfabetización en riesgo en la Red Municipal de Educación de Porto Alegre

Patrícia Camini1 
http://orcid.org/0000-0002-0902-7707; lattes: 4629186562885419

Alice Teixeira de Freitas2 
http://orcid.org/0000-0002-2733-8795; lattes: 0899354947548979

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul E-mail: patrícia.camini@ufrgs.br

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul E-mail: alicetfreitas@gmail.com


Resumo

O artigo apresenta resultados de pesquisa que visou a investigar efeitos do ensino remoto na alfabetização, em 2020, a partir do olhar de professoras alfabetizadoras da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME-POA). A metodologia foi composta por survey e análise de conteúdo, tendo como material empírico respostas de 40 professoras alfabetizadoras. Os resultados indicaram como tendência a desconexão entre alfabetizadoras e a maioria dos estudantes das turmas, o que inviabilizou a continuidade da alfabetização. A partir de contribuições de autores como Byung-Chul Han, Axel Rivas e Luiz Carlos de Freitas, concluiu-se que a RME-POA deve avançar na implementação de estratégias para minimizar os efeitos do ensino remoto e seguir buscando atingir a meta 5 do PNE (2014-2024), a partir da responsabilização bilateral pela alfabetização e não às custas da autoexploração do trabalho docente.

Palavras-chave: alfabetização; ensino remoto; trabalho docente

Abstract

The article presents results of a research that aimed to investigate the effects of remote teaching on literacy in 2020 from the perspective of literacy teachers from the Municipal School System of Porto Alegre (RME-POA). The methodology consisted of a survey and content analysis, having as empirical material responses from 40 literacy teachers. The results indicated as a trend the disconnection between literacy teachers and the majority of students in the classes, which made the continuity of literacy unfeasible. In light of contributions from authors such as Byung-Chul Han, Axel Rivas and Luiz Carlos de Freitas, we concluded that the RME-POA should advance in the implementation of strategies in order to minimize the effects of remote learning and to keep aiming to reach the goal 5 of the PNE (2014-2024) from a bilateral accountability for literacy and not at the expense of the self-exploitation of educational work.

Keywords: literacy; remote learning; educational work

Resumen

El artículo presenta resultados de una investigación que tuvo como objetivo investigar los efectos de la enseñanza remota en la alfabetización, en 2020, desde la perspectiva de las alfabetizadoras de la Red Municipal de Educación de Porto Alegre (RME-POA). La metodología consistió en un survey y análisis de contenido, teniendo como material empírico las respuestas de 40 alfabetizadoras. Los resultados indicaron como tendencia la desconexión entre las alfabetizadoras y la mayoría de los estudiantes en las clases, lo que hizo inviable la continuidad de la alfabetización. Con base en aportes de autores como Byung-Chul Han, Axel Rivas y Luiz Carlos de Freitas, se concluyó que la RME-POA debe avanzar en la implementación de estrategias para minimizar los efectos de la enseñanza remota y seguir buscando alcanzar la meta 5 del PNE (2014-2024), desde la rendición de cuentas bilateral por la alfabetización y no a expensas de la autoexplotación del trabajo docente.

Palabras clave: alfabetización; enseñanza remota; trabajo docente

INTRODUÇÃO

A pandemia de covid-19 mudou a forma de fazer escola no Brasil a partir de março de 2020. Professores e professoras precisaram revisar seus métodos de trabalho para adaptá-los a outros tempos e outros espaços, que não exigissem a presencialidade da sala de aula convencionalmente reconhecida. O zelo pelas condições sanitárias necessárias para garantir o direito à vida tornaram as salas de aula pontos-chave de preocupação acerca da disseminação do vírus Sars-CoV-2. Docentes e estudantes, nas condições desiguais de sobrevivência que caracterizam nosso país, precisaram descobrir outras formas de ensinar e aprender fora da escola de um dia para o outro.

Em 2021, o cenário de incertezas em relação ao controle da pandemia e à possibilidade de retorno seguro às aulas presenciais seguiu vigente no Brasil, o que ampliou a preocupação com o agravamento das desigualdades educacionais entre estudantes. Analisando respostas de quase 15 mil professoras da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental a um survey, o primeiro relatório parcial da pesquisa interinstitucional do coletivo Alfabetização em Rede2 indicou que 57% das respondentes consideraram como o maior desafio do trabalho remoto "conseguir que os alunos realizem as atividades propostas" (ALFABETIZAÇÃO..., 2020, p. 191). Na mesma direção, a pesquisa "Perda de aprendizado no Brasil durante a pandemia do covid-19 e o avanço da desigualdade educacional" (FGV, 2020), desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas, também corrobora essa preocupação com os efeitos da pandemia ao estimar que a perda de proficiência em língua portuguesa pode atingir o equivalente ao índice obtido há 4 anos para os Anos Finais do Ensino Fundamental3. Além disso, em revisão bibliográfica de pesquisas internacionais que acompanharam eventos de interrupção de aulas por longos períodos em diversos países, os resultados encontrados pelos autores (id.; ibid.) indicam que estudantes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e com maior vulnerabilidade econômica são os mais prejudicados.

A partir desse horizonte, este artigo apresenta resultados de uma pesquisa em andamento4. No recorte apresentado, a pesquisa objetivou investigar efeitos do ensino remoto na alfabetização, em 2020, a partir do olhar de professoras alfabetizadoras da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME-POA). Metodologicamente, utilizamos survey para geração dos dados e análise de conteúdo como ferramenta analítica.

Além desta introdução, o artigo apresenta, na seção seguinte, a fundamentação teórica de base da pesquisa. Na sequência, apresenta seções que têm como foco, respectivamente, o desenho metodológico da pesquisa, a apresentação dos resultados e a discussão. Nas considerações finais, retoma o tema de estudo e os principais aspectos da discussão empreendida.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A necessidade de isolamento físico desafiou a gramática escolar habitual. De acordo com Rivas (2020), a escola como a conhecemos antes da pandemia de covid-19 estava assentada sobre (i) presencialidade, (ii) rotinas controladas, (iii) currículo previamente estruturado, (iv) motivação baseada no dever externo e, por fim, (v) falso equilíbrio das coisas, decorrente da previsibilidade das rotinas. Levados a ensinar diretamente de suas casas, distantes de seus alunos, a pandemia de covid-19 produziu uma "pedagogia da exceção" (RIVAS, 2020).

Em concordância a Rivas (2020), já nos primeiros meses de pandemia, Mariano Narodowski (2020, documento não paginado) argumentou não haver receitas para o que, de fato, se apresentava como novo para as escolas: "No contra-isolamento, há tudo o que pensar e o que fazer". E o que se assistiu tanto na Argentina, país de origem dos dois autores, como no Brasil, foi a exigência de virtualização forçada do fazer docente e em tempo recorde, o que cobrou um alto custo pessoal e financeiro dos professores nesse movimento de adaptação para seguir trabalhando.

Em La desaparición de los rituales, Byung-Chul Han (2020) argumenta que precisamos de signos reconhecíveis para atribuirmos estabilidade às coisas. No entanto, as sociedades em todo o mundo vêm vivenciando um estado de aceleração permanente provocado, entre outras razões, pela pressão social, cultural e econômica para produzir, para estar em movimento e acumular experiências. Com celular e internet, aumentou-se a comunicação, mas sem que isso tenha produzido comunidade, pois o que há é um volume de conexões que, nem sempre, se traduzem em relacionamentos de fato (HAN, 2020). Nesse sentido, a experiência é produzida como objetivação e não como subjetivação, a qual envolveria a necessidade de repetição para provocar a intensidade dos elos sociais estáveis.

O que ocorre com o advento da pandemia nos processos educacionais é a aceleração desse esfacelamento dos rituais que davam sentido à escola como ela era reconhecida. Sem essa ritualística escolar e vivenciando uma alternância de propósitos do espaço da casa, o trabalho docente deparou-se com a necessidade de recriar signos que pudessem ser compartilhados e tornados familiares nesses diferentes espaços e tempos dos alunos, na tentativa de construir o comum, aquilo que adquire ressonância para todos. Os rituais, portanto, nos protegem como uma casa (HAN, 2020); o problema é que há um conflito entre os espaços e tempos de rituais que são próprios da casa e dos que são próprios da escola.

Os novos conflitos enfrentados no exercício da docência em decorrência da pandemia têm lugar em um momento histórico em que as relações de trabalho, em escala global, sofrem transformações movidas pelo imperativo do desempenho (HAN, 2017). A sociedade do desempenho é também a sociedade do cansaço, conforme teoriza Han (ibid.), uma vez que os sujeitos se autoexploram indefinidamente ao não mais cumprirem metas pontuais, com tempo e espaço bem demarcados; em vez disso, sujeitos buscam aprimorar habilidades ao longo da vida, movidos por pressão por desempenho, o que torna a linha de chegada inalcançável. A autoexploração, nesse sentido, é mais produtiva e eficiente do que a exploração pelo outro (id., ibid.).

Ao perderem as referências de espaço e tempo que definiam as rotinas escolares, docentes experimentaram o agravamento dessa autoexploração do trabalho ao longo da pandemia ao precisarem, sem sair de suas casas, buscar por crianças que se tornaram invisíveis ao sistema escolar. Essa busca envolveu multiplicar formas de acessar as crianças, estar disponível para contato quando as famílias podem atender e transformar a privacidade de seu telefone pessoal em ferramenta de trabalho. Saraiva, Traversini e Lockmann (2020, p. 13) relatam esse fenômeno ao analisarem discursos reproduzidos em sites de sindicatos de professores gaúchos e de um jornal de grande circulação no Rio Grande do Sul:

O trabalho vai além da carga horária contratada e o professor encontra-se disponível nos três turnos para responder às perguntas e tirar dúvidas por WhatsApp. Além disso, há a necessidade de planejar as atividades, enviar, seja em formato digital ou físico, e, ainda, ter tempo para receber e corrigir as atividades realizadas pelos alunos.

Convém mencionar que a autoexploração do trabalho docente é processo historicamente conhecido. Faria Filho e Vidal (2000) relatam o uso corriqueiro de espaços das casas dos professores como "escolas de improviso" no Brasil, durante o governo imperial, no século XIX. Ceder espaço próprio da sua casa para desempenhar atividades profissionais retorna à cena histórica do trabalho docente, motivado pela pandemia e possibilitado por novas tecnologias que permitem enviar e receber conteúdos dos estudantes sem sair de casa. Vigorando o imperativo da autoexploração na sociedade do desempenho e do cansaço, docentes suprem carências materiais e imateriais das redes públicas de ensino para dar andamento ao ensino remoto desde seus domicílios. Esse pode ser um prenúncio de agravamento dos movimentos de responsabilização unilateral da escola por seus resultados.

Freitas (2007) observa que há décadas a educação brasileira enfrenta, dentro de uma lógica liberal, a forte tendência a um processo de responsabilização unilateral pela qualidade do seu ensino. Dentro dessa lógica, os atores escolares são vistos como os únicos responsáveis pelos baixos índices de desempenho dos alunos dentro das escolas públicas. A partir dos resultados gerados por instrumentos de avaliação aplicados em escala nacional, como é o caso do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), há um fomento da dimensão da competitividade entre as escolas. Seus resultados são utilizados para ranquear as redes de ensino, ilustrando o contraste dos índices demonstrados pelas escolas públicas e privadas do país, tomando como base, somente o desempenho dos alunos como variável implicada na dimensão da qualidade do ensino. Dessa forma, esse movimento desconsidera a responsabilidade do sistema nacional de educação em assegurar as condições financeiras e de trabalho docente necessárias para que as escolas possam realizar seu trabalho de forma adequada. Expor à sociedade os resultados obtidos pelas escolas, seria suficiente para melhorar a qualidade do ensino, o que faz com que essas avaliações se tornem instrumentos de pressão e não de monitoramento de tendências.

Freitas (2007, p. 975) indica que a relação entre escolas e sistema precisa ser baseada na qualidade negociada, que envolve compromisso com resultados ao mesmo tempo em que são oferecidas condições para que esses sejam atingidos:

Há de se reconhecer as falhas nas escolas, mas há de se reconhecer, igualmente, que há falhas nas políticas públicas, no sistema socioeconômico etc. Portanto, esta é uma situação que, à espera de soluções mais abrangentes e profundas, só pode ser resolvida por negociação e responsabilização bilateral: escola e sistema.

Espera-se o mesmo da relação entre escolas e sistema público de ensino durante a pandemia para que haja compromisso em alfabetizar as crianças, não deixando que se agravem as condições de exclusão escolar. Mesmo persistindo a condição pandêmica que vivemos hoje, o sistema deve se organizar para seguir implementando as estratégias previstas para dar condições de cumprirmos a meta 5 do PNE, alfabetizando todas as crianças até o final do 3º ano do Ensino Fundamental5. Nesse sentido, deve haver o compromisso público com a qualidade do que é oferecido às crianças em ensino remoto, baseada na responsabilização bilateral e não às custas da autoexploração do trabalho docente.

DESENHO METODOLÓGICO

Na atual etapa deste estudo, de caráter exploratório, utilizamos como estratégia para levantamento de dados a aplicação de um questionário online (survey) de abordagem qualitativa, cuja construção foi feita na plataforma Google Forms.

De acordo com Neves, Augusto e Terra (2020), a escolha pela aplicação de questionários online apresenta a possibilidade de coleta de dados de maneira direta e rápida, a comparabilidade das respostas, a padronização de sua aplicação, assim como permite reunir uma grande quantidade de informações, sejam elas factuais ou subjetivas. Ao mesmo tempo, essa modalidade de questionário oferece aos participantes maior flexibilidade e conveniência, pois podem eleger o horário mais adequado, dentro de suas rotinas, para acessar o formulário e respondê-lo. Outro aspecto bastante importante é a não dependência da localização geográfica dos participantes para garantir a coleta das respostas. Essa característica torna essa estratégia de coleta de dados adequada para o período de emergência sanitária, que requer distanciamento físico, imposto pela pandemia mundial da covid-19.

O formulário apresentou o termo de consentimento livre e esclarecido e 26 questões, ao longo das quais buscamos gerar dados que caracterizam a docência na RME-POA, na área da alfabetização, no período compreendido entre os anos 2017 e 2020. Esse período foi escolhido tendo em vista que a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) teve sua série histórica interrompida em 2016, o que deixou um vácuo de informações que fornecessem um panorama da progressão da RME-POA em direção à meta 5 do PNE (2014-2024)6. Além disso, consideramos que os acontecimentos atípicos do ano de 2020, com a suspensão do ensino presencial, também deveriam constar no formulário da pesquisa exploratória, pois as condições de desenvolvimento do ensino remoto emergencial na RME-POA certamente afetarão a progressão da alfabetização em direção ao alcance da meta 5.

Os sujeitos da pesquisa foram as professoras alfabetizadoras atuantes no 1º ciclo7 do Ensino Fundamental, concursadas na RME-POA. Para garantir a confiabilidade dos dados, foram coletados os endereços de e-mail das participantes. Como forma de divulgação, realizamos postagens em redes sociais, enviamos e-mails para todas as escolas e diretamente para professoras que participam com frequência de ações de extensão do LÁPIS – Laboratório de Alfabetização da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em seis semanas8, recebemos 40 formulários de respostas de professoras alfabetizadoras atuantes em 33 das 48 escolas pertencentes a essa rede de ensino.

Para analisar as respostas coletadas, utilizamos a metodologia análise de conteúdo, que é definida da seguinte forma por Laurence Bardin (1977, p. 42):

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção [...] destas mensagens.

Para desenvolvimento dessa metodologia na pesquisa, utilizamos como técnica a análise temática. De acordo com Minayo (2007), a análise temática ocorre em três etapas: pré-análise; exploração do material ou codificação; e tratamento dos resultados.

A pré-análise consiste na organização do material coletado. São sistematizadas as ideias iniciais que surgiram após uma "leitura flutuante" das respostas recebidas, assim como também são reformulados os objetivos iniciais. Organizar essa "[...] leitura flutuante requer do pesquisador o contato direto e intenso com o material de campo, em que pode surgir a relação entre as hipóteses ou pressupostos iniciais, as hipóteses emergentes e as teorias relacionadas ao tema" (CAVALCANTE, CALIXTO, PINHEIRO, 2014, p. 16). Nessa etapa, reunimos todas as respostas obtidas, através do formulário, em um único documento. Dessa forma, pudemos realizar a leitura de maneira organizada, podendo visualizar as respostas dadas a cada questão. Além disso, essa etapa permitiu a reanálise das hipóteses de pesquisa e a indicação de possíveis categorias de análise.

Na segunda etapa, exploração do material, é realizada uma operação classificatória. Iniciase uma busca por categorias que representem os principais conteúdos dos textos em análise. Para isso, as unidades de registro delimitadas são organizadas visando “[...] alcançar o núcleo de compreensão do texto” (MINAYO, 2007, p. 317). Também são definidas como essas informações serão enumeradas e agregadas. No caso desta pesquisa, consideramos as palavras e os nexos que apareceram com maior frequência ao longo dos textos produzidos pelas participantes nas questões dissertativas. Eles foram agrupados considerando qual aspecto, relativo ao trabalho docente, estavam caracterizando. Ainda, procedemos à contagem de respostas que se referiram às categorias preliminares, que se destacaram durante a leitura flutuante. Esse procedimento permitiu definir as categorias que, de fato, seriam analisadas na etapa seguinte.

Por fim, a terceira etapa consiste no tratamento dos resultados. Nela, são realizadas inferências e interpretações, possibilitadas por um aprofundamento na análise das categorias. Esse passo leva o analista a seguir com o quadro teórico desenhado antes da análise ou a confirmar ou não as suas novas hipóteses. Nessa etapa, foi possível visualizar quais foram os aspectos e fatos mais levantados pelas participantes ao longo de suas respostas, os quais serão apresentados na seção a seguir.

RESULTADOS

Nesta seção do artigo, apresentamos os resultados parciais da pesquisa. As respostas das professoras foram classificadas em quatro categorias: 1) expectativas de apoio ao trabalho docente por parte da mantenedora; 2) estratégias das escolas para manter contato com os alunos; 3) problemas identificados para alfabetizar; e 4) estratégias que funcionaram para alfabetizar. A seguir, destacamos as análises que vêm sendo realizadas em cada uma dessas categorias.

Em relação às expectativas de apoio ao trabalho docente por parte da mantenedora, as professoras centralizaram muitas respostas na abordagem da falta de contato com as famílias por meio do acesso à internet. Levando em consideração que as escolas da RME-POA, de modo geral, são localizadas nas periferias da cidade e atendem à população social e economicamente mais vulnerável, as professoras esperavam ações da mantenedora para oferecer internet e equipamentos às famílias, de forma que fosse possível dar continuidade ao trabalho escolar de forma síncrona. Após o fechamento das escolas, em março de 2020, uma resposta da mantenedora ocorreu em junho9, com o anúncio da implementação da plataforma virtual Córtex10 para centralizar os contatos entre família-escola. Os excertos a seguir ilustram enunciados recorrentes nas respostas obtidas, os quais fazem alusão ao desamparo docente frente às necessidades encontradas.

Fechamos as escolas na segunda semana de março de 2020 e a mantenedora foi enviar alguma orientação para atendimento aos alunos somente em junho de 2020!!!! Total descaso com a educação! (Professora n. 23)11

Dificuldade de acesso à informação, desânimo, desamparo e falta de notebooks, Wi-Fi, cursos, etc para embasar o professor, bem como envolver os setores da escola. Não fomos ouvidos, nem considerados relevantes pelas administrações nacional, estaduais e municipais. (Professora n. 35)

No entanto, a plataforma demorou para iniciar seu funcionamento e, ao iniciar, as professoras relataram pouco acesso dos estudantes, mesmo após o oferecimento de gratuidade do uso de dados móveis para acesso à plataforma pelos alunos, a partir de setembro. Foi necessário seguir com outras estratégias de contato desenvolvidas pelas escolas e não por iniciativa da mantenedora, como expresso pelas professoras n. 22 e 24:

O ano de 2020 foi um caos total! A rede não ofereceu uma plataforma de ensino eficaz que pudéssemos utilizar com os alunos, não disponibilizou às famílias carentes acesso a internet, todo o trabalho foi por conta da própria escola, com os recursos que tínhamos, criamos grupos de whatsapp com as turmas, disponibilizamos as atividades pelo facebook da escola… (Professora n. 22)

Houve famílias que se adaptaram ao uso do Córtex, outras que pediam as atividades pelo whatsapp, e outras famílias não tinham como acessar nem a plataforma, nem facebook, nem whatsapp... Essas famílias pegavam material impresso na escola. (Professora n. 24)

Esses excertos também oferecem pistas acerca do que consideramos como categoria 2 em nossas análises, que se refere às estratégias das escolas para manter contato com alunos, nesse caso, fora da plataforma oferecida pela mantenedora. Nos relatos das professoras, são citadas com mais frequência as estratégias de organização de grupos para cada turma no aplicativo Whatsapp, ligação telefônica, distribuição de atividades impressas na escola e postagem de atividades no Google Drive ou na rede social Facebook. Em muitas escolas, essas estratégias já funcionavam antes da implementação da plataforma Córtex e foram mantidas de forma paralela após essa implementação, visto que a plataforma não conseguiu bons resultados na inclusão digital dos alunos, pois seguiram os problemas das famílias para ter aparelhos compatíveis e disponíveis para as necessidades de todos os seus membros, para ter internet e para compreender o uso da plataforma, como evidenciam os comentários a seguir:

Utilizaram o sistema córtex que é uma plataforma disponibilizada pelo governo para que as crianças fizessem, mas teve baixa adesão. (Professora n. 06)

Tentamos enviar atividades pela plataforma córtex, que teve baixíssimo acesso e atividades por drive no google. (Professora n. 27)

O recurso da plataforma da prefeitura, Córtex, atingiu em uma turma apenas 4 alunos. Ao final do ano disponibilizamos material impresso, aí sim, atingimos a maior parte dos alunos. (Professora n. 32)

Quando questionadas a responder a respeito de quais foram os problemas para alfabetizar durante o ensino remoto (categoria 3), as professoras centraram respostas nas dificuldades para manter contato com as crianças (categoria 2), principalmente via internet, por vezes também indicando a responsabilidade da mantenedora em prover os meios para que isso pudesse ocorrer de forma efetiva (categoria 1):

Primeiro o silêncio da mantenedora e da própria equipe diretiva. Falta de uma estratégia "de escola". Fazíamos cada um o que era possível. Foi por inquietação das professoras que criamos os grupos de whats e começamos os trabalhos com as crianças. As famílias que não tinham acesso. As famílias que tinham acesso, mas não participaram. O uso da plataforma Córtex, que afastou até os que participavam via whats. (Professora n. 03)

Falta de conectividade, o público atendido pela prefeitura não tem acesso às tecnologias, internet adequada e impressões de atividades. Então, foi um grande desafio manter contato com as famílias e o vínculo com as atividades propostas. (Professora n. 29)

Falta de recursos por parte dos familiares dos alunos, pois não tinham internet e nem condições de pagar a impressão das atividades para serem realizadas. (Professora n. 28)

Para as professoras, a disponibilização da plataforma Córtex foi insuficiente para ampliar a relação à distância entre escola e famílias, visto que o acesso à plataforma esbarrou na precariedade ou inexistência de recursos das famílias. Para boa parte das famílias nas periferias da cidade, a luta pela sobrevivência e pela manutenção da renda inviabilizou a possibilidade de assumir a demanda de acompanhamento das atividades escolares em casa, ainda mais em condições adversas para acessar conteúdos e oferecer suporte às aprendizagens, como explicitam as professoras:

O principal problema foi o pouco engajamento das famílias ao ensino remoto, por falta de condições financeiras...houve um abandono em massa da escola. Cerca de 50% dos alunos (desapareceram) não acompanharam o estudo remoto. (Professora n. 23)

A dificuldade de acesso da maioria das famílias no uso da informatização. A dificuldade de ter alguém que pudesse acompanhar a criança durante as tarefas escolares. A dificuldade na interação professor/aluno para intervenções. (Professora n. 24)

Muitos problemas, passando pela fome, falta de estrutura para o auxílio das crianças em casa, falta de acesso. Foram pouquíssimos acessos. A plataforma era de difícil manuseio e não proporcionava quase ou nenhuma interação com famílias e alunos. (Professora n. 25)

A irregularidade no contato entre professoras e crianças e a demora na organização de uma solução efetiva, portanto, são apontadas como fatores que podem ter incidido no enfraquecimento das relações entre famílias e escolas. Considerando que muitas famílias não conseguiam oferecer às crianças o suporte adequado para a realização das atividades, as professoras logo perceberam a necessidade de selecioná-las tendo como critério a facilidade de compreensão e execução sem mediação docente. A professora n. 06, por exemplo, menciona ter sido necessário elaborar "atividades simples para que a família possa ajudar a criança", assim como a professora n. 40, que menciona ter sido necessário "aliviar a intensidade de conteúdos e objetivos".

Essa limitação das famílias, associada à falta de acesso à internet e à consequente desconexão com a mediação docente, pode estar relacionada ao fato de a estratégia mais citada pelas professoras como efetiva na alfabetização (categoria 4) durante o ano de 2020 ter sido a entrega de atividades impressas (12 de 40 professoras). Com 11 ocorrências entre 40 professoras, outra estratégia bastante citada como tendo resultado positivamente na alfabetização foi a utilização do aplicativo Whatsapp para interação e envio de materiais para cada turma ou de forma individual.

No entanto, cabe destacar que, ao serem questionadas sobre as estratégias que resultaram positivamente na alfabetização das crianças nas condições de isolamento físico, 13 das 40 professoras fizeram referência apenas a não ter ocorrido avanços na alfabetização, apresentando justificativas que remetem às respostas já indicadas na questão referente aos problemas enfrentados para alfabetizar durante o ano de 2020 (categoria 3). Apenas 1 professora mencionou a plataforma Córtex como resposta a essa questão, ainda explicitando que o uso foi reduzido na sua prática.

Na seção seguinte, realizamos a discussão dos resultados apresentados nesta seção.

DISCUSSÃO: A ALFABETIZAÇÃO EM RISCO

Relacionando as análises das respostas das 40 professoras alfabetizadoras nas quatro categorias indicadas na seção anterior, inferimos que o principal problema enfrentado para alfabetizar crianças dos três primeiros anos do Ensino Fundamental na RME-POA, durante o fechamento das escolas provocado pela covid-19, decorreu da falta de uma estratégia coletiva eficiente da mantenedora para conectar famílias e escolas. Enquanto escolas acionaram muitos recursos privados de docentes, como celulares, notebooks e dados móveis de internet para manter contato com as famílias, a mantenedora implementou apenas uma plataforma virtual para postagem de atividades e controle de frequência de estudantes, a qual foi amplamente avaliada de forma negativa na amostra analisada.

Para Rivas (2020), uma pedagogia da exceção, produzida longe da presencialidade que é própria da instituição escolar, apresenta como primeiro desafio a necessidade fundamental de reconhecer as ausências para buscar os meios de conectar e "recuperar os rostos" que se esvaíram pela distância. Nas escolas privadas, assistimos pelas diferentes mídias a rápidas reações para recuperar esses rostos e estabelecer uma nova rotina em ensino remoto para crianças cujas famílias, com condições de custear mensalidades escolares, geralmente apresentaram menos adversidades do que famílias de escolas públicas para viabilizar acesso à internet. Já em escolas públicas, como as da RME-POA, o que se viu foi o agravamento da negação ao direito à educação previsto no artigo 206 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que determina que o ensino ministrado em todo o país deve ter como um de seus princípios a "igualdade de condições para acesso e permanência na escola"12 (BRASIL, 1988).

Sem condições de saúde pública para acesso seguro às escolas, a mantenedora da RME-POA poderia ter investido em soluções mais rápidas e mais acessíveis às camadas mais pobres da população, como o uso do rádio para transmissão de programas educativos que mantivessem alguma rotina de contato entre os universos das famílias e das escolas13. Em agosto de 2020, o Núcleo de Estudos de Rádio da UFRGS lançou o e-book de acesso gratuito "Dez passos para o ensino emergencial no rádio em tempos de covid-19", em que os autores Ferrareto e Morgado (2020, p. 06) defenderam o uso do rádio para inclusão social de estudantes sem acesso ou acesso reduzido à internet, "[...] como a forma mais acessível, barata e natural de conexão entre os seres humanos". Nos primeiros meses de 2021, por exemplo, a secretaria de educação do município de Bagé, no Rio Grande do Sul, entregou pen drives com aulas gravadas por docentes às crianças do Ensino Fundamental, a partir do diagnóstico de que a maioria das famílias tinha acesso a caixas de som portáteis. Entre não oferecer alternativas acessíveis à maior parte da população que habita as periferias de Porto Alegre e oferecer programas educacionais radiofônicos, que poderiam ser integrados com outras formas de comunicação para interação com estudantes, resta evidente que essa alternativa deveria ter sido considerada ao persistir a situação de desconexão nesse evento pandêmico contemporâneo.

Outro questionamento que deve ser realizado é por que a mantenedora não disponibilizou uma coletânea de material impresso para estudantes de todas as etapas do Ensino Fundamental, elaborado como referência para a priorização curricular nas escolas da rede, como ocorreu em outras capitais brasileiras, como Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo14. Oferecer videoaulas no YouTube, como fez a prefeitura municipal de Curitiba a partir de abril de 2020 no canal "TV Escola Curitiba", também poderia ter auxiliado a garantir alguma cobertura educacional para que estudantes das classes menos favorecidas não tivessem seu direito de seguir aprendendo durante a pandemia tão seriamente negligenciado.

Ao mesmo tempo, também deve ser considerado que, assim como outras redes de ensino, a RME-POA não pode contar com o apoio do MEC para viabilizar o ensino remoto. O MEC eximiu-se dessa responsabilidade com as redes públicas do país, visto que o governo federal assumiu uma postura de negacionismo da gravidade da pandemia ao conduzir as políticas públicas entre 2020 e 2021. O balanço anual de execução orçamentária do MEC, referente ao exercício de 2020, revelou que os recursos destinados à Educação Básica atingiram a menor marca da última década (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2021). No momento mais crítico da educacional pública nacional, R$ 1,1 bilhão em recursos que iriam para a Educação Básica foram destinados a outros ministérios (id., ibid.). Um plano de conectividade para todos os estudantes das redes públicas, por exemplo, deveria ter sido uma das prioridades do MEC na pandemia. No entanto, a promulgação da lei 14.172/2021, que determina o repasse de R$ 3,5 bilhões para garantir o acesso à internet para a educação básica pública, só foi publicada no Diário Oficial da União no início de junho de 2021, após o Congresso Nacional derrubar o veto integral da Presidência da República ao projeto original, de 2020.

A sensação de desamparo no exercício da docência percebida nas respostas das alfabetizadoras na pesquisa manifesta-se como efeito do peso de carregar de forma unilateral a responsabilidade de oferecer alternativas educacionais para estudantes que, majoritariamente, não têm internet para cursar o ensino remoto. Somado a esse contexto, deve ser considerado que, assim como toda a população mundial, as professoras também sofreram com isolamento social, mudança brusca de rotina e alerta constante do medo de expor-se ao vírus. Em uma perspectiva psicanalítica, Joel Birman (2021) argumenta que, em países que reagiram de forma unificada à pandemia, o terror de morte seria apaziguado pelas ações institucionais concretas, reguladas pela ciência e pela medicina. No entanto, no contexto brasileiro, em que o desafio à morte e a atrofia das instâncias de proteção sanitária foram bastante evidentes, ocorreu que, sem saber com quem contar para lhes proteger da ameaça invisível, os sujeitos se sentiram entregues “[...] ao acaso e ao indeterminado, assim como ao que é arbitrário na existência, em que tudo de pior pode lhe acontecer, afetando, então, os diferentes registros do real e do psiquismo” (BIRMAN, 2021, p. 136).

Em meio a esse cenário desolador, uma alternativa educacional efetiva para o contexto pandêmico deveria ser abrangente e demonstrar responsabilidade compartilhada entre o município e as escolas para garantir acesso, permanência e aprendizagem no ensino remoto. Nesse sentido, a precarização das condições de trabalho docente durante a pandemia foi vivenciada de maneiras distintas, conforme o grau de responsabilização demonstrada pelas mantenedoras em oferecer essas alternativas abrangentes e que de fato funcionassem. No caso da RME-POA, como discutimos na análise apresentada, essa responsabilização da mantenedora foi percebida como precária pelas alfabetizadoras, o que agravou o sofrimento docente. Isso significa que, em relação ao ensino remoto, persistiu a lógica de legar aos governos "o que é possível fazer" e às escolas o rigor da cobrança por resultados a partir do esforço individual docente, como já diagnosticava Freitas (2007) em relação aos impactos das políticas de avaliação implementadas pelo MEC.

A descontinuidade do processo de alfabetização de crianças e a precarização da saúde mental das alfabetizadoras na RME-POA, além das sequelas imprevistas de quem foi acometido pela covid-19, servem de alerta para o agravamento do risco de não atingir a meta 5 do Plano Nacional de Educação 2014/2024 (PNE) e do Plano Municipal de Educação 2015/2025 (PMEPOA): alfabetizar todas as crianças até, no máximo, o 3º ano do Ensino Fundamental.

Em 2016, os últimos dados disponíveis da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) indicaram que 68% das crianças matriculadas na RME-POA, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental, foram avaliadas nos níveis 1 e 2 de leitura, considerados insuficientes. Como a avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2019, para o 2º ano do Ensino Fundamental, foi amostral e, por essa razão, não teve divulgação por rede de ensino, utilizamos como referência mais recente de avaliação em larga escala da avaliação de habilidades de Língua Portuguesa os resultados do 5º ano do Ensino Fundamental na Prova Brasil desse mesmo ano. Esses resultados apontaram que 54% dos estudantes têm aprendizagem insuficiente em Língua Portuguesa15, o que indica que não desenvolveram adequadamente o processo de alfabetização.

Como esse panorama dos dados recentes das avaliações em larga escala acerca da alfabetização já indicava a não garantia desse direito à aprendizagem na idade adequada para boa parte das crianças antes da pandemia, as iniciativas mais imediatas do poder público para mitigar a evasão no ensino remoto, enquanto durar a pandemia, serão definidoras do maior ou menor distanciamento da RME-POA da meta 5 do PNE e do PME-POA. Nesse processo, cumpre notar a importância de estabelecer indicadores mínimos e instrumentos específicos de avaliação, que gerem dados sobre a alfabetização da RME-POA com vistas a orientar as ações da gestão pública na direção de tornar a alfabetização objetivo educacional prioritário.

Em 2021, a mantenedora da RME-POA foi assumida por uma nova gestão, a partir da não reeleição do ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB). As alternativas apresentadas para o ensino remoto pela nova gestão estão sendo analisadas em nossa pesquisa e posteriormente também serão publicizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa indicaram como tendência a desconexão entre alfabetizadoras e a maioria dos estudantes das turmas da RME-POA no ano de 2020, o que inviabilizou a continuidade da alfabetização, na percepção docente, mesmo com esforços ativos das trabalhadoras e de suas escolas. Foram apontados desafios pedagógicos, sociais e tecnológicos para que a alfabetização pudesse se efetivar em contexto de ensino remoto; frente à complexidade desses desafios, não exclusivos à RME-POA, os governos retomaram o ensino presencial, negando a gravidade da pandemia e o potencial de disseminação do vírus nos ambientes escolares. Os investimentos necessários na educação em uma situação de tamanha excepcionalidade, como uma pandemia mundial, não ocorreram nem no âmbito federal, nem no âmbito municipal, agravando o acometimento do trabalho docente e da alfabetização pelos efeitos da austeridade econômica vigente no Brasil nos últimos anos.

Discutimos o desamparo docente frente a uma forte responsabilização individual e fraca responsabilização bilateral, entre a mantenedora e as escolas, para dar conta de estratégias viáveis para alfabetizar no ensino remoto. Indicamos, na mesma direção proposta por Freitas (2007) em relação às políticas de avaliação em larga escala, que haja a busca por uma qualidade negociada, que reúna iniciativas articuladas entre o poder público federal, municipal e escolas para minimizar os efeitos do ensino remoto e seguir buscando atingir a meta 5 do PNE (2014-2024).

Uma rede de ensino que amarga resultados nas avaliações em larga escala muito aquém de garantir condições cidadãs de apropriação da leitura e da escrita não poderia contentar-se em perder um ano de escolarização para manter a austeridade econômica. O ano de 2020 cobrará um preço significativo de crianças que, mesmo antes da covid-19, já se encontravam em condições de extrema vulnerabilidade social e que, com a alfabetização comprometida, tendem a ter a sua continuidade na escola afetada. Escolhas de gestão foram realizadas e responsabilidades devem ser atribuídas pelas iniciativas que não foram viabilizadas para a alfabetização pela mantenedora da RME-POA.

Para Saraiva, Traversini e Lockmann (2020, p. 17), o exercício da docência na pandemia é baseado na exaustão, na ansiedade e na preocupação: "Como todos, os professores estão imersos em uma névoa e seguem através dela, buscando fazer o melhor, mas sem garantias". Nesse sentido, a experiência pandêmica por si só já é repleta de incertezas e angústias quando se flerta de perto com a morte diariamente; no entanto, essa experiência pode se tornar um pesadelo ainda maior quando ocorre o que neste artigo denominamos como desamparo docente, com o objetivo de significar o que detectamos nas falas das alfabetizadoras, que se viram responsabilizadas unilateralmente pelo enfrentamento das condições adversas para alfabetizar no ensino remoto ao mesmo tempo em que foram cobradas pela opinião pública, expressas em jornais de grande circulação e em redes sociais, como se estivessem "de braços cruzados em casa". Ao serem cobradas por desempenho, para aliviar a pressão, docentes recorreram à autoexploração do trabalho, mobilizando seus recursos privados, como argumentamos neste artigo.

No movimento de autoexploração para performar desempenho, Han (2017) aponta que os sujeitos buscam otimizar-se para a morte, na medida em que, na euforia de render no trabalho, se está demasiado morto para viver e demasiado vivo para morrer. Em meio a uma pandemia, em que as mortes diárias são acachapantes, otimizar-se para a morte ganha contornos duplamente perversos. Como ensina Han (2017), é preciso profanar o trabalho, no sentido de atribuir às coisas outros usos e significados, de forma que seja possível viver a boa vida e não apenas a mera vida, como Aristóteles defendia.

Na continuidade da pesquisa, as análises das discussões realizadas no grupo focal com professoras alfabetizadoras permitirão ampliar a investigação a respeito de qual alfabetização foi possível desenvolver na RME-POA em 2020, a partir de um olhar para situações e tópicos específicos.

1Versão preliminar e reduzida dos resultados de pesquisa deste artigo foi apresentada no V Congresso Brasileiro de Alfabetização, realizado entre 18 e 20 de agosto de 2021, na UDESC, em modalidade virtual.

2A pesquisa "Alfabetização em rede: uma investigação sobre o ensino remoto da alfabetização na pandemia covid-19 e a recepção da PNA pelos docentes da Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental" é desenvolvida por mais de 100 pesquisadoras ligadas a 29 universidades públicas brasileiras, sob coordenação geral da Profa. Dra. Maria do Socorro Alencar Nunes Macedo (UFSJ).

3A pesquisa realiza essa estimativa considerando um cenário pessimista, em que os alunos não aprenderiam durante o ensino remoto.

4Este artigo é resultado de uma das etapas da pesquisa "Alfabetização de crianças até o final do 3º ano do Ensino Fundamental: análise e acompanhamento da meta 5 do Plano Nacional de Educação (2014-2024) na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre". A etapa atual, que investiga implicações do ensino remoto na garantia da meta 5, está articulada à pesquisa interinstitucional desenvolvida pelo coletivo Alfabetização em Rede. Além dos dados do survey apresentados neste artigo, a etapa atual da pesquisa também se dedica à análise de grupos focais realizados com professoras alfabetizadoras da RME-POA.

5Referimo-nos aqui à concepção de alfabetização que vigora no PNE (2014-2024), alinhada às perspectivas do PNAIC, que compreende que, ao final do 3º ano, a criança deve ler e escrever com fluência diferentes gêneros textuais, participando com autonomia de práticas de letramento na sua comunidade. A apropriação do sistema de escrita alfabética faz parte, obviamente, dessa concepção, e deve ser garantida ainda no 1º ano para que as crianças tenham condições de consolidar e ampliar as diferentes habilidades que conferem autonomia ao sujeito alfabetizado até o 3º ano.

6Em 2019, foi realizada a primeira edição do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) no 2º ano do Ensino Fundamental, avaliando habilidades relacionadas à alfabetização. No entanto, o SAEB realiza avaliação amostral, diferente da metodologia da ANA, o que não permite comparar os resultados das duas avaliações.

7Na RME-POA, o 1º ciclo é composto pelos três primeiros anos do Ensino Fundamental.

8O formulário online seguirá aberto até a pesquisa contar com a participação de ao menos uma professora alfabetizadora atuante em cada escola da RME-POA durante o período pesquisado.

9Informação relatada pela maioria das professoras respondentes ao questionário da pesquisa.

10A Prefeitura de Porto Alegre apresentou a plataforma em 02 de junho de 2020. A primeira etapa de implementação atingiu alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Entre os meses de agosto e setembro, ocorreu a inclusão dos alunos dos Anos Iniciais na plataforma. As funcionalidades da Córtex são as seguintes: lista de presença; envio de conteúdo; recebimento de atividades; avaliações; envio de mensagens; registro de atividades. Em notícia em seu site, a Prefeitura esclarece em relação à contratação da Córtex pelo município: "O uso da ferramenta não terá custos para o Município. O valor será custeado por doação dos empresários Jorge Gerdau Johannpeter e Klaus Gerdau Johannpeter, do Grupo Gerdau. O investimento é de R$1,23 ao mês por aluno. A prefeitura irá pagar pelo pacote de dados de internet utilizado pelos alunos." Disponível em https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/prefeitura-comeca-implantacao-da-plataforma-cortex-na-rede-municipal Acesso em 12 maio 2021.

11Cada professora participante da pesquisa é identificada por um número, conforme a ordem de chegada das respostas ao formulário.

12O art. 206 da Constituição de 1988 também é referido no art. 3 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996.

13O rádio foi uma das iniciativas implementadas ainda em 2020, por exemplo, pelos governos dos estados do Acre, Goiás, Maranhão, Roraima e Sergipe, conforme dados do monitoramento realizado pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED). Dados disponíveis em https://consed.info/ensinoremoto/ Acesso em 11 jun. 2021.

14Os materiais impressos que chegaram aos estudantes da RME-POA foram providenciados por iniciativa de cada escola, muitas vezes com frequência irregular na entrega devido ao custo adicional acarretado no orçamento.

1549% dos estudantes foram classificados no nível básico de aprendizagem e 5% foram classificados no nível insuficiente. Estudantes que foram bem avaliados somaram 33% em nível proficiente e 13% em nível avançado. Essa classificação da escala do Saeb é proposta pela plataforma de dados educacionais QEdu. Dados disponíveis em https://www.qedu.org.br/cidade/384-porto-alegre/proficiencia. Acesso em 11 jun. 2021.

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Recebido: Julho de 2021; Aceito: Setembro de 2021

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Versão preliminar e reduzida dos resultados de pesquisa deste artigo foi apresentada no V Congresso Brasileiro de Alfabetização, realizado entre 18 e 20 de agosto de 2021, na UDESC, em modalidade virtual.

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