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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.68 Rio de Janeiro Jan./Mar 2022  Epub Feb 13, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.57797 

Artigos de Demanda Contínua

ESTUDOS DA DEFICIÊNCIA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA

DISABILITY STUDIES IN PROFESSIONAL AND TECHNOLOGICAL EDUCATION

ESTUDIOS DE LA DISCAPACIDAD EN LA EDUCACIÓN PROFESIONAL Y TECNOLÓGICA

1Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: ana.boff2@gmail.com

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, IFSC - Campus Florianópolis. E-mail: patricia.rosa@ifsc.edu.br

3Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Química. E-mail: anelise.regiani@ufsc.br


Resumo

Este artigo é fragmento de uma pesquisa concluída em 2016 que investigou, a partir do modelo social da deficiência, como ocorre o processo educativo de estudantes com deficiência em uma instituição de Educação Profissional e Tecnológica. A pesquisa, de natureza qualitativa, teve como sujeitos cinco estudantes que foram convidados a participar de uma entrevista individual semiestruturada. A partir das regularidades presentes nos dados, duas categorias de análise foram elencadas com base na análise de conteúdo. Em relação à categoria Autoinstauração na constituição do indivíduo, o objetivo é possibilitar a valorização das singularidades dos estudantes com deficiência, assim como o seu acesso a direitos humanos básicos como formação educacional e profissional, representando assim a inclusão social desse público. Concernente à categoria Acessibilidade Arquitetônica e Metodológica, a estrutura física da instituição, bem como os procedimentos de ensino adotados pelos docentes, apresenta barreiras ao processo de aprendizagem dos estudantes entrevistados e não corresponde aos pressupostos do modelo social de deficiência. Pode-se inferir que o princípio do modelo médico de deficiência ainda está presente na instituição, contudo, existem iniciativas por parte dos docentes, técnico-administrativos e da equipe de gestão para a superação desse modelo. Como possibilidade, propõe-se a formação docente continuada de forma sistemática e fundamentada nos princípios do modelo social de deficiência.

Palavras-chave: educação profissional e tecnológica; modelo social de deficiência; processo educativo

Abstract

This article is a fragment of a complete research in 2016 that investigated, from the social disability model, how the educational process of disabled students occurs in a technological and professional education institution. The research, of qualitative nature, had as subjects five students who were invited to participate in a semi-structured individual interview. Considering the regularities present in the data, after the content analysis, two categories were listed. The category: Self-establishment at Individual Constitution, enables the appreciation of disabled students singularities, as well as their access to basic human rights such as educational and professional training, representing the social inclusion of this community. Concerning the Architectural and Methodological Accessibility category, the institution's physical structure and the teaching procedures adopted by the professors, are present barriers to the interviewed student's learning process and do not correspond to the assumptions of the social disability model. It can be inferred that the biomedical disability model is still present in the institution, however, there are initiatives by the professors, the technical-administrative staff, and the management team, to overcome this model. As a suggestion the complementary teacher training is proposed, in a systematic way, taking into consideration the principles of the social disability model.

Keywords: professional and technological education; social disability model; educational process

Resumen

Este artículo es un fragmento de una investigación completa en 2016 que investigó, desde el modelo social de la discapacidad, cómo se da el proceso educativo de los estudiantes con discapacidad en una institución de Educación Profesional y Tecnológica. La investigación, de carácter cualitativo, tuvo como sujetos a cinco estudiantes de la referida institución quienes fueron invitados a participar de una entrevista individual semiestructurada. A partir de las regularidades presentes en los datos, se enumeraron dos categorías de análisis basadas en el análisis de contenido. En cuanto a la categoría de Autoinstitución en la constitución del individuo, posibilitar la apreciación de las singularidades de los estudiantes con discapacidad, así como su acceso a derechos humanos básicos como la formación educativa y profesional, representa la inclusión social de este público. En cuanto a la categoría de accesibilidad arquitectónica y metodológica, la estructura física de la institución, de esta manera como los procedimientos de enseñanza adoptados por los profesores, presentan barreras al proceso de aprendizaje de los estudiantes entrevistados y no corresponden a los supuestos del modelo social de discapacidad. Se puede inferir que el principio del modelo médico de discapacidad aún está presente en la institución, sin embargo, existen iniciativas por parte de profesores, personal técnico-administrativo y gerencial para superar este modelo. Como posibilidad, se propone la formación continua del profesorado de forma sistemática y basada en los principios del modelo social de discapacidad.

Palabras clave: educación profesional y tecnológica; modelo social de discapacidad; proceso educativo

INTRODUÇÃO

As pessoas com deficiência sofreram historicamente processos de opressão e de exclusão social. Todavia, nas três últimas décadas, sobretudo a partir da luta e da militância dos movimentos políticos das pessoas com deficiência, foi possível observar o início da ruptura dessa visão hegemônica que segregava e invisibilizava pessoas cujos corpos não se enquadravam nos padrões normativos.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2009; 2015). Nesse sentido, as barreiras – arquitetônicas, atitudinais, comunicacionais, dentre outras (BRASIL, 2015) – funcionam como obstáculos na vida desses indivíduos, dificultando e/ou impedindo a sua participação no meio social.

A garantia de direitos humanos básicos, como a formação educacional e profissional, esteve (está) na pauta de luta de pessoas com deficiência, sendo que as conquistas mais importantes para esse público foram alcançadas no Brasil principalmente a partir da Constituição Federal de 1988 e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2007). Sob o lema Nada sobre nós, sem nós, a convenção apresenta um conjunto de medidas a serem cumpridas pela sociedade e pelos governos visando à justiça social. No contexto nacional, o tratado foi incorporado à legislação como marco constitucional, por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009 (MAIOR, 2017).

No âmbito educacional, foram esses movimentos políticos que impulsionaram o debate e a defesa de inclusão escolar de estudantes com deficiência na rede regular de ensino e trouxeram à tona a discussão acerca dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Para tanto, legislações como a Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000 e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (LBI), asseguraram o direito à educação, ao atendimento educacional especializado (AEE) e à inserção ao mundo do trabalho.

O acesso à educação e à qualificação profissional, sobretudo a garantia de um processo de escolarização que possibilite a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e a compreensão dos embasamentos científico-tecnológicos (BRASIL, 1996), são fundamentais para que a pessoa com deficiência possa se inserir no mundo do trabalho.

Tendo em vista o contexto da educação profissional, a partir de 2008, as políticas públicas nacionais vêm incentivando o fortalecimento dessa modalidade de ensino por meio da criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF). No Brasil, o termo Educação Profissional e Tecnológica (EPT) foi introduzido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Art. 39 da referida lei estabelece que “[...] a educação profissional, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento das aptidões para a vida produtiva” (BRASIL, 1996, n. p.).

Consoante à política de expansão da Educação Profissional e Tecnológica, a meta 11 do Plano Nacional de Educação – PNE (BRASIL, 2014) prevê: “[...]triplicar as matrículas da educação profissional de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público”. Em relação às pessoas com deficiência, a estratégia 11.10 estabelece que haja “[..]a oferta de educação profissional técnica de nível médio para as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” (BRASIL, 2014, n. p.).

Assim, este estudo teve como objetivo investigar, a partir do modelo social da deficiência, como ocorre o processo educativo de estudantes com deficiência em uma instituição de Educação Profissional e Tecnológica.

PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS DO MODELO SOCIAL DE DEFICIÊNCIA

Os Estudos da Deficiência surgiram em meados dos anos de 1960, a partir dos movimentos sociais de pessoas com deficiência na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (MAIOR, 2017). No Brasil, eles emergiram mais tardiamente, sendo que o texto intitulado Modelo Social da Deficiência: a crítica feminista, publicado em 2003, de autoria da antropóloga e professora Débora Diniz da Universidade de Brasília (UNB), foi um marco introdutório da difusão do modelo social da deficiência e a sua interface com questões feministas em nosso país (MELLO, NUERNBERG, BLOCK, 2014).

O debate político e acadêmico mobilizado pelos Estudos da Deficiência questionou o padrão de normalidade instituído pelo modelo médico e defendeu a necessidade de que pessoas com e sem deficiência possam se constituir como indivíduos de direitos e participar de forma autônoma na sociedade. Essa concepção foi chamada de modelo social de deficiência. À medida que se reconheceu que a deficiência não é dada exclusivamente pela limitação do corpo, mas sim pela interação desse corpo com o ambiente, a definição de deficiência se deslocou do modelo médico/biomédico ao social (MEDEIROS, DINIZ, BARBOSA, 2010b).

No modelo médico, a deficiência é considerada uma tragédia e/ou um desvio da natureza. Sob essa perspectiva, “[...] a deficiência é vista como um incidente isolado, uma condição anômala de origem orgânica e um fardo social que implica em gastos com reabilitação ou demanda ações com um viés caritativo-assistencialista” (MELLO, NUERNBERG, BLOCK, 2014, p. 92). Esse modelo está vinculado à integração social e à adaptação das pessoas com deficiência na sociedade, sendo adotado também em políticas públicas que estão habitualmente restritas à saúde, à assistência social e à educação especial em escolas segregadas (MAIOR, 2017).

A predominância do modelo médico e a sua influência ainda hegemônica (DINIZ, 2007) nas pesquisas acadêmicas, políticas públicas e ideário coletivo pode estar relacionada ao fato de que, no Brasil, o tema da deficiência ficou por muitos anos sendo estudado pela Medicina e, posteriormente, pela Educação e Psicologia. Apenas nos últimos anos, os estudos relacionados ao modelo social vêm apontando a existência de barreiras nos diversos âmbitos sociais e sinalizando a necessidade de que tais barreiras sejam eliminadas, a fim de que todas as formas de ser e estar no mundo possam ser respeitadas e valorizadas.

Desse modo, o modelo social de deficiência explicita que “[...]o corpo com impedimentos não é mais a medida solitária para a definição da deficiência, pois tão decisivo quanto os impedimentos corporais é o ambiente que impõe restrições e barreiras à plena participação” (BARBOSA, DINIZ, SANTOS, 2010b, p. 46). Nesse sentido, reconhece que as pessoas com deficiência podem apresentar limitações corporais e/ou intelectuais, mas afirma que as desvantagens advindas dessas limitações não são uma consequência natural, mas socialmente construídas. Em vista disso, ratifica-se que a deficiência não é uma tragédia individual, mas uma condição humana, situada no contexto geral da variação corporal e parte do ciclo de vida (DINIZ, 2007). Isto é, a deficiência deixa de ser apenas um assunto médico para ser uma questão econômica, social, cultural e de direitos humanos (MELLO, NUERNBERG, BLOCK, 2014).

Tomando como base os referenciais construídos culturalmente em torno das características desejáveis aos seres humanos, Rosa (2013) estabelece um contraponto entre a teoria clássica dos conceitos – que descreve conceitos que são universais e especifica características comuns a algo ou alguém – e a teoria da singularidade. A autora utiliza como instrumento teórico a Teoria dos Tropos (WILLIAMS, 1953; CAMPBELL, 1990) e fundamenta a elaboração conceitual a partir da Teoria dos Conceitos Prototípicos, de modo a criticar uma concepção de humano monorreferencial, única e estática, propondo em seu lugar uma percepção multirreferencial que apreenda o humano como condição e não como natureza. Na concepção monorreferencial, o tipo paradigmático do ser humano aceito e valorado socialmente é o que possui as seguintes características: macho, branco, plenamente hábil física e mentalmente e heterossexual (ROSA, 2013).

Somado a isso, essa descrição de humano é pressuposta como fundamento para a atribuição de direitos e deveres. Assim, o “[...] conceito universal humano se tornou uma possibilidade para a discriminação, para a dominação e a violência contra todos os que não correspondem à descrição paradigmática imposta de branco, heterossexual, macho, plenamente hábil física e mentalmente” (ROSA, 2013, p. 12). Nesse ínterim, por mais que a igualdade seja defendida, é com o fato da desigualdade, ou da singularidade, que estamos envolvidos (ROSA, 2013).

Entendendo os seres humanos a partir de uma construção singular, cultural e histórica, para os quais não cabe uma especificação monorreferencial e fixa, Rosa (2013) defende que as propriedades que dizem respeito a qualquer pessoa são singulares e referem-se somente a elas. Portanto, a autora defende que cada ser humano passa por um processo único de autoinstauração. Empregando esse conceito ao nosso estudo, buscamos entender como garantir direitos humanos básicos, como a formação educacional e profissional, a indivíduos que historicamente foram considerados menos humanos e/ou menos capazes.

Desse modo, fundamentando-se nos pesquisadores dos Estudos da Deficiência (DINIZ, 2007; MAIOR, 2017), depreendemos que a tentativa de ruptura em relação à concepção de desvio/déficit presente no modelo médico de deficiência possibilitou a transição, na década de 1990, da perspectiva da integração social para a de inclusão social. No paradigma da integração, a pessoa com deficiência tem de se adaptar à sociedade, já para a inclusão, é a sociedade que se adapta às pessoas com deficiência, promovendo-lhes os recursos necessários para a sua participação social (MANTON, 2006; MELLO, NUERNBERG, BLOCK, 2014).

Diante disso, entendemos que os Estudos da Deficiência buscam romper com a perspectiva binária de normalidade em oposição à anormalidade. No ambiente educacional, a transposição desses estudos pode contribuir com a construção de uma educação inclusiva que atenda às necessidades de todos os estudantes e promova a desconstrução/desnaturalização das maneiras socioculturais, institucionais e interpessoais pelas quais os estudantes e as suas famílias sofrem marginalização e exclusão nas escolas e demais instituições.

METODOLOGIA

A pesquisa ora apresentada se caracteriza como qualitativa (ESTEBAN, 2010), foi realizada em 2016 e contou com a participação de cinco estudantes que frequentavam os cursos de uma instituição de Educação Profissional, Científica e Tecnológica da região sul do Brasil. Para este artigo, os dados coletados anteriormente foram revisitados, possibilitando-nos estabelecer novas compreensões a partir dos Estudos da Deficiência.

Inicialmente, entramos em contato via e-mail com os coordenadores dos cursos da referida instituição, os quais consentiram a realização da pesquisa. O contato com os estudantes ocorreu entre os meses de julho e agosto de 2016. Os cinco sujeitos foram convidados a participar da entrevista, após o aceite, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Destes, dois frequentavam o curso técnico integrado; dois, o curso técnico subsequente e um, o curso superior em tecnologia. A fim de garantir o sigilo em relação à identidade dos estudantes, utilizamos nomes fictícios para identificá-los, a escolha pelos nomes foi realizada pelo próprio entrevistado ou pelas pesquisadoras, nos casos em que o participante preferiu não escolher.

Em conformidade com Rosa (2013), ponderamos que cada indivíduo se constitui por meio das interações sociais e que, portanto, as suas características e condições humanas são singulares. Entretanto, somos seres situados no mundo, então, as condições sociais, físicas, intelectuais, familiares e políticas sob as quais vivemos se apresentam como pano de fundo, a partir do qual temos a possibilidade de nos constituirmos como pessoas. Desse modo, apresentamos na Tabela 1, os dados de nome fictício, idade, curso frequentado e a deficiência dos participantes.

Tabela 1 Informações sobre os participantes da pesquisa 

Nome fictício Idade Curso Condição/diagnóstico
Marcelo 19 anos Técnico Integrado em Eletrotécnica Síndrome de Irlen
Souji Sagawa 20 anos Superior de Tecnologia em Sistemas Eletrônicos Síndrome de Asperger – Transtorno do espectro autista (TEA)
Zatch 21 anos Subsequente em Meteorologia Síndrome de Asperger – Transtorno do espectro autista (TEA)
Mário 24 anos Subsequente em Manutenção Automotiva Surdez
Lorena 18 anos Técnico Integrado em Saneamento Deficiência física

Fonte: Elaborada pelas autoras (2016).

Utilizamos a entrevista individual semiestruturada como instrumento de coleta de dados (LÜDKE, ANDRÉ, 1986), para tanto, as seguintes perguntas foram realizadas:

  • a) Por que escolheu o curso XX? Já trabalha ou pretende trabalhar nessa área?

  • b) Como você se sente estudando na instituição?

  • c) Quais as atividades/procedimentos de ensino utilizados pelos professores em sala de aula? Eles favoreceram/contribuíram para a sua aprendizagem? Por quê?

  • d) Como você avalia a formação que está recebendo na instituição? Suas expectativas estão sendo atingidas?

  • e) O que, em sua opinião, ainda precisa ser incorporado no processo de formação de estudantes com deficiência no curso XX?

  • f) Em sua opinião, a instituição possui estrutura adequada para o atendimento a todos os estudantes?

Cabe esclarecer que as respostas foram organizadas em tabelas, a fim de facilitar a visualização dos principais aspectos apontados pelos participantes. Nessa etapa, adotamos a análise de conteúdo (BARDIN, 1979) como tratamento analítico dos dados. A partir da sistematização das analogias (repetições, aproximações) presentes nas respostas, definimos duas categorias de análise, a saber: a) Autoinstauração na constituição do indivíduo; b) Acessibilidade Arquitetônica e Metodológica.

O PROCESSO EDUCATIVO DOS ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NA EPT

Nesta seção apresentamos os dados obtidos a partir das entrevistas com os participantes. Inicialmente, expomos a análise referente à categoria Autoinstauração na constituição do indivíduo, já na subseção seguinte, apresentamos a categoria relativa à Acessibilidade Arquitetônica e Metodológica.

Em relação à categoria Autoinstauração na constituição do indivíduo, analisamos as respostas dadas pelos estudantes na primeira e segunda perguntas da entrevista. Entendemos que os dados obtidos a partir dessas duas questões estão diretamente relacionados à constituição pessoal e social destes indivíduos e envolvem a sua autoinstauração.

A autoinstauração é um processo que ocorre por meio da relação entre os aspectos sociais e individuais. Rosa (2013) utiliza esse conceito e desenvolve os pressupostos em torno da teoria da singularidade. Entendemos que a autoinstauração ocorrerá de forma fragmentada se as pessoas fizerem parte de espaços segregados. Nesse sentido, reafirmamos a necessidade de todos, independentemente das características físicas e intelectuais, aprenderem e conviverem juntos por meio do direito à escolarização e à inserção no mundo do trabalho.

No que tange à inserção no mundo do trabalho, o Decreto nº 6.949/2009 estabelece o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Esse direito se estende à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente que seja aberto, inclusivo e acessível. Ainda de acordo com a LBI, Art. 35, “[...]é finalidade primordial das políticas públicas de trabalho e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa com deficiência no campo de trabalho” (BRASIL, 2015, n. p.). Similarmente, Nussbaum (2007, p. 89) explicita que o trabalho é uma das capacidades humanas básicas e, nesse sentido, todos precisam “[...] ter direito a buscar trabalho em um plano de igualdade com os demais [...]. No trabalho, poder trabalhar como um ser humano, exercer a razão prática e entrar em relações valiosas de reconhecimento mútuo com os demais trabalhadores”.

Perante o exposto, a EPT é uma possibilidade para jovens e adultos com deficiência que buscam formação profissional. Para tanto, essa modalidade de ensino precisa ser acessível e inclusiva para estudantes com múltiplas corporalidades, potencialidades e singularidades.

Dando início à apresentação dos dados, expomos na Tabela 2 as respostas referentes à primeira pergunta da entrevista.

Tabela 2 Pergunta 1 

Por que escolheu o curso XX? Já trabalha ou pretende trabalhar na área?
Souji Sagawa “Minha mãe ficou sabendo e me forçou fazer a prova. Não trabalho, ainda tô [sic] decidindo, um curso que veio a minha mente é Eventos [...].”
Marcelo “Eu escolhi meio que por influência da minha mãe, a minha mãe cursou eletrotécnica também e a minha irmã cursava. Faço alguns trabalhos em casa.”
Zatch “Eu escolhi esse curso desde os 9 anos de idade, porque a minha cabeça começou a mudar, a minha ideia assim sempre foi a meteorologia, eu escolhi esse curso. O meu sonho é construir uma estação meteorológica em Ibicaré.”
Mário “Porque quero aprender mexer com carro. Eu gosto de mexer, no futuro quero arrumar carros de competição.”
Lorena “Na verdade eu queria uma coisa mais perto da área de arquitetura assim que eu sempre gostei, só que não tinha de manhã Edificações e eu resolvi fazer saneamento, mas depois eu comecei a achar o curso mais legal, assim principalmente a parte biológica.”

Fonte: Elaborada pelas autoras (2016).

Observamos nas respostas que a influência e o incentivo familiar, especialmente da mãe, ainda são muito presentes nas escolhas desses indivíduos. Chama nossa atenção o fato de apenas um estudante querer trabalhar na área do curso o qual frequenta (Zatch). Nesse sentido, destacamos a fala de Zatch quando este cita que: “O meu sonho é construir uma estação meteorológica em Ibicaré”. Para o estudante, o acesso à educação profissional possibilitou se aproximar do conhecimento das mudanças climáticas, compreendê-las e almejar retornar à sua cidade natal, podendo contribuir socialmente com o que aprendeu no curso.

A realização do sonho apontado por ele não seria possível se a esse indivíduo fosse negado o acesso à educação formal ou esta fosse oferecida em espaços segregados, como comumente ocorreu no Brasil antes das políticas de inclusão em educação.

Na Tabela 3, expomos as respostas concernentes à segunda pergunta da entrevista.

Tabela 3 Pergunta 2 

Como você se sente estudando na instituição?
Souji Sagawa “Na primeira vez fiquei sem amigos, com o passar do tempo gostei, o pessoal me entende do jeito que sou.”
Marcelo “Eu me sinto bem em uma parte, mas em outra parte que quando eu passei, eu não queria entrar, eu só passei para provar tipo para a diretora da minha escola de ensino básico que eu passaria e daí com o incentivo da mãe por ter dislexia e tal e a gente tá descobrindo uns negócios a mãe preferiu, incentivou entrar porque [a instituição] seria mais preparado pra mim e daria mais oportunidades [...].[Nas escolas anteriores] Eu era um aluno tachado de vagabundo que não queria escrever, não queria ler.”
Zatch “Eu me sinto bem, os professores assim [sic] não tenho nem palavras para explicar, me sinto bem, os professores são ótimos, explicam muito bem, estou assim adorando tudo [...].”
Mário “No primeiro módulo eu senti muito, não tinha intérprete, demorou um tempo até vir o intérprete, era um homem, ele ficou um ano e saiu e fiquei 3 meses sem intérprete [...]”.
Lorena “Eu gosto bastante de estudar lá, às vezes eu acho um pouco cansativo, mas eu gosto bastante, tem bastante coisa que dá para melhorar com certeza, mas eu acho que a recepção deles comigo foi muito boa.”

Fonte: Elaborada pelas autoras (2016).

Os dizeres de Souji Sagawa: “[...] pessoal me entende do jeito que sou” expressam como a aceitação e o reconhecimento do grupo são necessários para a autoinstauração desse estudante. Coaduna-se com o explicitado pelo participante a teoria da singularidade proposta por Rosa (2013). Esta questiona os padrões construídos histórica e culturalmente e problematiza como a teoria clássica dos conceitos, mesmo que de forma indireta e velada, influencia a nossa vida, constitui e cristaliza categorias e tipos paradigmáticos. A teoria clássica faz com que pensemos os tipos humanos como definidos a priori, ou seja, que alguém com o transtorno do espectro autista (TEA) será de uma determinada maneira, sem a possibilidade de ter a sua singularidade respeitada e valorizada. Aceitá-la como ela é não significa aceitar alguém com TEA, mas aceitar essa pessoa específica que tem TEA e que não se resume ao seu diagnóstico médico.

Sob a perspectiva da teoria da singularidade e do modelo social de deficiência, o binômio normal/anormal passa a não fazer mais sentido, pois a normalidade não é vista como um conjunto de características que define quem terá mais ou menos direitos, pois todas as pessoas são reconhecidas por suas singularidades. Em ambas as abordagens, todas as pessoas podem ser entendidas e valorizadas do jeito que são, pois cada uma delas é historicamente constituída “[...]por meio das interações, das relações que são compostas ao longo da vida” (ROSA, 2013, p. 43).

Consonantemente, Nussbaum (2007) afirma que as pessoas com deficiência necessitam efetivamente de atenção e assistência, pois todos os sistemas escolares estão desenhados para pessoas sem deficiência. Ao analisarmos os dizeres de Marcelo, na Tabela 3, percebemos de modo latente o preconceito social ao qual a pessoa com deficiência foi (e/ou é) submetida quando suas singularidades não são respeitadas: “Eu era um aluno tachado de vagabundo que não queria escrever, não queria ler”.

Transpondo os conhecimentos dos autores que estudam o modelo social, a deficiência é uma produção cultural que não está inicialmente na pessoa, mas que se constrói à medida que não se possibilita que esta aprenda e desenvolva as capacidades individuais. Ou seja, o modelo social estabelece que a deficiência não está na pessoa, mas que a limitação de um corpo ou de uma função pode se manifestar quando as singularidades de um indivíduo ou de um grupo são ignoradas. De modo prático, a segregação social se inicia quando os espaços, serviços e materiais não são acessíveis. Essa situação foi vivenciada por Mário no início do curso, o estudante relata que ficou sem intérprete de Libras, o que prejudicou a sua aprendizagem, tendo em vista que a sua comunicação ocorre por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras). O uso da Libras como meio legal de comunicação e expressão foi oficializado pela Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, sendo incumbência da instituição educativa assegurar a disponibilização de tradutores e intérpretes de Libras ao estudante surdo (BRASIL, 2015).

Mediante o exposto, para que o modelo social de deficiência permeie as ações e encaminhamentos institucionais, é necessário repensar os padrões que estabelecem quais são as condições e características aceitas e valorizadas culturalmente, para que assim todos possam, de fato, desenvolver a sua singularidade da maneira mais integral possível.

Acessibilidade Arquitetônica e Metodológica

A acessibilidade diz respeito ao conjunto de condições e possibilidades de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de edificações públicas, privadas e particulares, seus espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, proporcionando o direito de ir e vir a todos (BRASIL, 2015). O Decreto nº 6.949/2009 prevê que os estados tomarão medidas para garantir acesso ao meio físico, ao transporte, à informação e comunicação, bem como a serviços e instalações abertos ao público ou de uso público (BRASIL, 2009). Com base nesse entendimento, prosseguimos com a apresentação dos dados e as respectivas análises da segunda categoria.

A terceira pergunta se referia aos procedimentos de ensino utilizados pelos docentes, as respostas referentes a esse questionamento encontram-se na Tabela 4.

Tabela 4 Pergunta 3 

Quais as atividades/ procedimentos de ensino utilizados pelos professores em sala de aula? Eles favoreceram/contribuíram para a sua aprendizagem?
Souji Sagawa “Faço provas no NAPNE1, os psicólogos pegam as provas com os professores e eu faço no canto do NAPNE, é bom para a minha concentração”.
Marcelo “Os professores da área de matemática, da parte das exatas não tem muito [sic], é muito automático, eles vão ali e passam matéria, cobram na prova e deu. Usam quadro branco e lista de exercícios. Alguns professores depois do trabalho com o NAPNE [...] usaram a folha A3, verde ampliada, com tamanho da letra maior, tudo isso para facilitar a minha aprendizagem, o meu rendimento em sala de aula [...]”.
Zatch “[...] O que eu senti falta no primeiro semestre, que a turma sentiu bastante falta, foram as experiências, assim, assim [sic] as experiências em grupo. Foi muito legal aquela vez com o professor pediu pra gente medir a nossa sombra num dia de sol e a gente teve que calcular, foi muito massa, nunca mais esqueci”.
Mário “Slides com muito texto e pouca imagem, difícil compreender conteúdo, professores falam rápido”.
Lorena “Os professores usam bastante os recursos audiovisuais e o quadro, então acho bem legal intercalar e no curso de saneamento a gente tem muitas práticas no laboratório, daí o [campus] mesmo comprou uma cadeira que ela tem a possibilidade de ficar em pé e eu consigo acompanhar as práticas [...]. Agora tem visita, mas não é em todos os lugares que eu vou conseguir chegar. Já deixei de fazer visitas técnicas não teve como eu ir porque o ônibus não tem as plataformas elevatórias para a cadeira”.

Fonte: Elaborada pelas autoras (2016).

O trabalho desenvolvido pelo NAPNE coaduna-se com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, pois esta “[...]tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas” (BRASIL, 2008, p. 11). Nesse sentido, observamos pelos dizeres do estudante Marcelo que as adaptações para atender às suas necessidades não são complexas: “[...]folha A3, verde ampliada, com tamanho da letra maior”. Ainda assim, segundo ele, as adequações nos materiais podem facilitar a sua aprendizagem.

Sobre a prática pedagógica adotada pelos professores, Mário expõe que são utilizados slides com muito texto, o que se torna uma barreira para ele, que é surdo. Alves, Ferreira e Damázio (2010) explicitam que para os estudantes com essa condição, é necessário que os docentes organizem e produzam materiais didáticos acessíveis para ilustrar as aulas. Tais materiais podem contribuir para a construção de diferentes conceitos, para estudantes com e sem deficiência, isso porque os recursos visuais dispostos em murais, livros, fotos sobre os conteúdos e procedimentos de ensino variados são necessários para a aprendizagem de todos.

Nessa perspectiva, salientamos que o trabalho de parceria entre docentes e demais profissionais que acompanham as especificidades de aprendizagem dos estudantes torna-se cada vez mais necessário. Nas Tabelas 5 e 6 apresentamos, respectivamente, as respostas referentes às perguntas 4 e 5.

Tabela 5 Pergunta 4 

Como você avalia a formação que está recebendo? Suas expectativas estão sendo atingidas?
Souji Sagawa “Os professores precisam ter mais paciência, algumas notas minhas estão baixas porque fico nervoso e passo mal”.
Marcelo “[...] Eu esperava do curso de eletrotécnica um pouco mais de aprofundamento, coisas que tinham, por exemplo, na época que a minha mãe estudou aqui matérias que tinham e hoje não tem mais.”
Zatch “Ah sim, devagarinho está sendo atingida, eu procuro muito a Coordenadoria [Pedagógica] [...]. Acho bom o atendimento”.
Mário “Mais ou menos, a metodologia é para ouvinte, eu perco conteúdo, professores passam muito rápido, não têm metodologia para surdo. Professores partem do princípio que todos os alunos aprendem igual”.
Lorena “Eu gosto de estudar lá como eu falei, mas ainda assim eu acho que a parte principalmente de humanas, das disciplinas de humanas poderiam ser mais trabalhadas assim [sic], eu sei que a formação é técnica e tudo mais, mas eu sinto falta, é uma área que eu gosto bastante, então eu sinto falta às vezes.

Fonte: Elaborada pelas autoras (2016).

Tabela 6 Pergunta 5 

O que em sua opinião, ainda precisa ser incorporado no processo de formação de estudantes com deficiência no curso XX?
Souji Sagawa “Um curso especial para pessoas autistas, com uma prova especial para testar o conhecimento com questões pequenas, duas questões.”
Marcelo “Já que no meu curso a gente não tem muitas pessoas com necessidades especiais [...], não foi uma coisa que eu vivi, mas talvez uma recapacitação dos professores pra tá [sic] tendo essa visão de tá acompanhando os alunos, que um aluno mesmo não tendo nenhum laudo, ele pode ter algum problema e pode ter uma questão de aprendizado ali e tá prejudicando o aprendizado dele e no meu ver é papel do professor tá analisando isso [...].”
Zatch “Eu encontrei uma pessoa assim com bastante dificuldade, eu acho que os professores podiam aqui no curso ter uma ajuda principalmente assim pra mim e ajuda de uma professora auxiliar que ajude a explicar ou que ajude a acompanhar o aluno né [...].”
Mário “Falta informação, imagens, professores explicam, mas não tem imagem. A intérprete também não tem essa informação. Precisa colocar mais imagens nas aulas”.
Lorena “[...] A minha turma teve que ficar no prédio que eles chamam de bloco central, porque no [bloco do meu curso] não tinha tanto acesso, então eles não tinham banheiro adequado, o elevador também as vezes, acontecia de estragar [...]. Então, eu sinto que tá melhorando bastante, cada vez mais, ainda tem coisas pra fazer, mas eu sinto que estão melhorando”.

Elaborada pelas autoras (2016).

Segundo Mário, os docentes se utilizam principalmente da aula expositiva, cuja abordagem é auditiva, essa situação é apontada também pelos estudantes Marcelo, Zatch e Lorena. Em relação à especificidade do estudante surdo, a Libras e as imagens (pedagogia visual) são aliadas às propostas educacionais e práticas sociais inclusivas (CAMPELLO, 2007).

Os dizeres de Marcelo, na Tabela 6, fazem menção à formação docente com vistas ao atendimento a todas as singularidades: “[...]talvez uma recapacitação dos professores pra tá [sic] tendo essa visão de tá [sic] acompanhando os alunos, que um aluno mesmo não tendo nenhum laudo, ele pode ter algum problema e pode ter uma questão de aprendizado”. Por conseguinte, Mantoan (2006, p. 54) aponta que “[...]ensinar, na perspectiva inclusiva, significa ressignificar o papel do professor, da escola, da educação e de práticas pedagógicas que são usuais no contexto excludente do nosso ensino, em todos os seus níveis”. Destacamos que a concepção pedagógica do professor reflete-se na sua prática cotidiana, portanto, a mudança da perspectiva do modelo médico para o social de deficiência, visando à acessibilidade metodológica e à aprendizagem de todos os estudantes, perpassa momentos sistemáticos e intencionais de formação docente.

Outro aspecto destacado por Lorena, na Tabela 5, diz respeito às unidades curriculares da área de humanas, para a estudante, estas “[..]poderiam ser mais trabalhadas assim, eu sei que a formação é técnica e tudo mais, mas eu sinto falta [sic]”. Corroboramos com Moura (2014) no sentido de que a EPT precisa constituir-se como uma educação que permita aos estudantes dominar os fundamentos científicos e tecnológicos por meio de uma formação integral e reflexiva.

A nosso ver, a intervenção educativa com vistas à formação integral e à participação plena de todos os estudantes é o atual desafio da EPT e das demais modalidades de ensino. Segundo Mantoan (2006), a escola, em todos os seus níveis e etapas, se abarrotou de formalismo e cindiu-se em modalidades e tipos de serviço, instituindo que conhecimentos serão compartilhados e a quem esses conhecimentos serão destinados. Tais aspectos estão diretamente relacionados à inclusão (ou não) dos estudantes, sendo assim, destacamos que a estruturação de um currículo em que não haja hierarquização de algumas áreas em detrimento de outras se torna necessária para que essa formação integral possa ocorrer. No tocante à formação integral, o trabalho pedagógico estruturado a partir do modelo social de deficiência pode aproximar os estudantes de um processo formativo equânime que valorize suas diferenças e singularidades.

Na Tabela 7, apresentamos as respostas relativas à estrutura institucional.

Tabela 7 Pergunta 6 

Em sua opinião, a instituição possui estrutura adequada para o atendimento a todos os estudantes?
Souji Sagawa “A estrutura física está mais ou menos. Os professores têm atendimento a tarde, eles ajudam [...]”.
Marcelo “Não, falta muita acessibilidade, alunos cadeirantes passam muita dificuldade. A gente não tem acessibilidade em todas as salas, a gente tem degrau, não tem rampas em todos os locais, tem uma porta que é pequena demais por ser um prédio antigo também, mas é questão que a gente tem que tá [sic] analisando porque muitos alunos olham só para si”.
Zatch “Sim, porque precisa de atendimento caso a gente passe mal, caso a gente se sinta mal. Gostei da parte do dentista, eles ajudam em tudo”.
Mário “Não, não tem. Para ouvinte sim, a estrutura está boa, mas para pessoas com deficiência não. Falta informação para o intérprete, para os professores, mais práticas, tem professor que vem perto de mim e explica”.
Lorena “Eu acho que pra todos não. Eu acho que ainda tem muita coisa pra melhorar, com certeza, tem muita coisa boa e tem muita gente disposta a melhorar. Até porque não tem como adivinhar como a pessoa vai reagir, cada pessoa é de um jeito, tem coisas que eu vou conseguir fazer que outras pessoas não vão conseguir, que outras pessoas vão conseguir e eu não. A questão do ônibus eu acho que é uma coisa a ser pensada, não somente pra quem é cadeirante, mas pra várias outras pessoas”.

Elaborada pelas autoras (2016).

Como observado na Tabela 7, Souji Sagawa, Marcelo e Lorena expõem que a estrutura física é um aspecto a ser melhorado na instituição investigada, indicando que a barreira arquitetônica ainda pode ser encontrada em alguns blocos do campus. Já Marcelo reitera em sua resposta o que ainda precisa ser qualificado em relação à atuação docente e à inclusão de estudantes surdos e ouvintes.

Lorena menciona que a falta de elevador hidráulico no ônibus institucional é um desafio para os usuários de cadeira de rodas, algo que já a impediu de fazer visitas técnicas com a turma. Entendemos ser esta uma barreira no transporte. Conforme estabelece a LBI, barreiras são “[...]qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa” (BRASIL, 2015, n. p.). As barreiras podem ser urbanísticas, arquitetônicas, de transporte, em comunicações e informação, atitudinais e/ou tecnológicas (BRASIL, 2015).

Os dados expostos pelos estudantes nos permitem inferir que o princípio do modelo médico de deficiência ainda é muito presente na referida instituição. Existem tentativas de superação desse modelo, tais como os apontados pela estudante Lorena: “Eu acho que o fato deles terem comprado a cadeira que fica em pé pra eu conseguir me locomover sozinha, o campus é grande, a integração com a turma é boa também, então os colegas são bem receptivos, a maioria dos professores também são bem receptivos”, são aspectos positivos e evidenciam as iniciativas institucionais para diminuir as barreiras arquitetônicas e atitudinais.

A partir do exposto, salientamos que a educação e a inserção no mundo do trabalho são áreas estratégicas e prioritárias para a promoção dos direitos humanos no Brasil (SANTOS, DINIZ, PEREIRA, 2010). Assim sendo, a instituição educacional precisa se constituir como espaço de aprendizagem para todos, independentemente das diferenças individuais que possam apresentar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi investigar, a partir do modelo social da deficiência, como ocorre o processo educativo de estudantes com deficiência em uma instituição de Educação Profissional e Tecnológica. Para tanto, com relação à categoria Autoinstauração na constituição do indivíduo, entendemos que a formação educacional e profissional é capaz de possibilitar a valorização das singularidades dos sujeitos participantes, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo e social desses estudantes.

Concernente à categoria Acessibilidade Arquitetônica e Metodológica, inferimos que o princípio do modelo médico de deficiência ainda está presente na instituição, contudo, existem iniciativas por parte dos docentes, dos técnico-administrativos e da equipe de gestão para a superação desse modelo. Ponderamos que para que o modelo social de deficiência permeie as ações e encaminhamentos institucionais, é necessário questionar o padrão de normalidade versus anormalidade, visando desnaturalizar os preconceitos que imperam na sociedade em relação ao público com deficiência. Do contrário, a comunidade acadêmica estará legitimando e sendo conivente com a reprodução de tais preconceitos.

Por fim, compreendemos que o modelo social de deficiência utilizado como ferramenta teórica e, mais do que isso, como posicionamento político em relação à deficiência, é capaz de promover a construção de uma sociedade inclusiva, cuja premissa seja a justiça social.

1Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE).

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Recebido: Fevereiro de 2021; Aceito: Novembro de 2021

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