CRIANÇAS IMIGRANTES1 E EDUCAÇÃO INFANTIL NAS PESQUISAS: DADOS QUANTITATIVOS
A vinda de imigrantes para o Brasil é algo marcante na história do nosso país. De forma forçada ou voluntária, desde o século XVII compõem a nossa população, principalmente africanos, europeus, asiáticos e mais recentemente latino-americanos, em especial bolivianos e haitianos (PATARRA, 2012).
De acordo com Nascimento e Morais (2020) a imigração é o deslocamento de pessoas no espaço físico, social, econômico, político e cultural, motivado por questões de ordem econômica, social e também por demandas políticas e religiosas. Muitas vezes apenas uma pessoa da família se desloca de um lugar para outro em busca de melhores condições de sobrevivência, em outras situações a família inteira, incluindo crianças e adolescentes e, assim, tornam-se imigrantes.
Existem diferenças nos motivos e formas de imigração, que podem ser voluntárias ou forçadas. De acordo com a Organização Internacional para Migração (OIM), migrantes são pessoas que se deslocam do seu local de residência para outro país temporária ou permanentemente por diferentes razões. Já os imigrantes são pessoas que se movem do seu país de origem para outro e este se torna sua nova residência. Os refugiados, por sua vez, saem de seu país por temerem perseguições e não queiram ou não possam ficar no seu país de nacionalidade.
As crianças, ainda que invisibilizadas, muito comumente se deslocam de um país para outro junto com suas famílias e, em algumas situações elas migram sozinhas. Apesar disso, elas pouco comparecem nas discussões e pesquisas sobre imigração, sobretudo no Brasil. Segundo Demartini (2021) as crianças sempre foram muitas nos processos migratórios brasileiros ao longo da história, mas elas não vêm sendo consideradas nos estudos que possuem a imigração por temática.
No campo educacional o número2 de pesquisas em relação às crianças imigrantes apesar de não ser muito expressivo vem aumentando, e o tema tem ganhado espaço nos principais fóruns educacionais. Na Educação Infantil, especificamente, a quantidade de pesquisas com essa temática é ainda mais reduzida, mas está passando por um processo de expansão, isso ficará explícito por meio dos dados que serão apresentados a seguir.
Importante destacar que, para além das pesquisas, existem trabalhos e ações concretas sendo realizadas com populações imigrantes em diferentes regiões do país, incluindo atividades de extensão desenvolvidas pelas universidades. Estas ações podem levar à realização de pesquisas acadêmicas.
Desta maneira, este artigo tem por objetivo apresentar uma síntese e considerações analíticas acerca das pesquisas realizadas no campo educacional que tem por tema as crianças imigrantes e a Educação Infantil. Como metodologia foi realizada busca sistemática de literatura acadêmica no catálogo de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e na Biblioteca Digital brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), durante o mês de Fevereiro de 20223. Após a busca realizada, por meio de descritores como “crianças imigrantes”, “educação infantil”, “imigração”, “migração” e “infância”, destacamos sete teses e dissertações que serão expostas e problematizadas no presente texto.
Na tabela 1 a seguir estão expostos os títulos das teses e dissertações, seus autores (as), ano e local de publicação.
Título da pesquisa | Autor (a) | Local e ano |
---|---|---|
Crianças, infâncias e migrações: a vez e a voz das crianças migrantes. (Tese). |
Rosali Rauta Siller | Santa Maria de Jetibá (ES), 2011. |
¡No hablamos español! Crianças bolivianas na Educação Infantil paulistana. (Dissertação). |
Ana Paula Silva | São Paulo (SP), 2014. |
Narrativas silenciosas: identidade e imigração na Educação Infantil. (Tese). |
Priscila da Silva Santos | São Paulo (SP), 2018. |
A presença das crianças migrantes haitianas nas escolas de Sinop /MT: o que elas visibilizam da escola? (Tese). | Ivone Jesus Alexandre | Sinop (MT), 2019 |
Um encontro intercultural em contexto migratório: a inserção de crianças haitianas na Educação Infantil de Balneário Camboriú (SC/Brasil). (Dissertação). |
Rosana da Silva Machado | Balneário Camboriú (SC), 2020. |
“Somos todos iguais”: narrativas de profissionais de Educação Infantil de Florianópolis face à presença de crianças haitianas. (Dissertação) |
Gisele Romildes Maçaneiro |
Florianópolis (SC), 2021. |
Crianças haitianas na Educação Infantil em Sorocaba-SP (20112019). (Dissertação) |
Renata de Moura Santos Lorzing | Sorocaba (SP), 2021 |
Fonte: elaborada pelas autoras
AS TESES E DISSERTAÇÕES EM ANÁLISE
Esta seção pretende apresentar e discutir as sete pesquisas selecionadas e dispostas na natureza de tese e dissertação. Serão realizadas descrições principalmente dos objetivos da pesquisa, do seu principal referencial teórico, da metodologia e dos resultados; em concomitância com as considerações analíticas a respeito desses estudos.
Diversidade e diferença X homogeneização e racismo
O estudo mais antigo encontrado é a tese de doutorado de Siller (2011). Com objetivo de investigar como as crianças em contextos de migração em geral e de imigração pomerana4, reproduzem, difundem e produzem as práticas sociais dos seus e de outros grupos étnicos e culturais, a autora realizou por meio da etnografia e da história oral uma pesquisa em dois centros de Educação Infantil no município de Santa Maria de Jetibá, Espírito Santo.
Tendo as crianças como centro da pesquisa, Siller (2011) observou duas instituições de Educação Infantil que possuíam crianças pomeranas matriculadas e realizou conversas com professores e familiares das crianças pesquisadas. A autora encontrou realidades distintas em cada uma das instituições: em uma delas a maioria das crianças era a quarta geração de descendentes de imigrantes pomeranos, e vivenciava práticas culturais e conhecimentos das experiências dos seus antepassados. Apesar de utilizarem a língua portuguesa, o pomerano sobressaia nas relações comunicativas. Na outra instituição, por sua vez, as crianças de descendência pomerana demonstravam vergonha de vincular-se a sua origem e vivenciavam processo de desterritorialização. Em ambos os lugares, contudo,
As práticas dos profissionais docentes desses CMEIs são marcadas pela abordagem monocultural e monolíngue o que talvez de forma não intencional, contribuem para apagar as diferenças em nome da assimilação da cultura das crianças pomeranas e das culturas das crianças recém-chegadas a um padrão homogeneizador de cultura nacional, definido pela língua portuguesa, pela religião católica, pelo trabalho e valores urbano-industriais. (SILLER, 2011, p.199).
A autora constata que apesar de quase todas as crianças serem bilíngues, a língua pomerana não era utilizada nas escolas e as particularidades das crianças eram desconsideradas no contexto escolar, o que acarreta na perda das suas raízes e identidades étnicas e culturais. A pesquisadora defende a efetivação de uma Educação Infantil intercultural e bilíngue que valorize a identidade e a cultura do povo pomerano e “que reconheça a histórica existência dos diferentes grupos étnicos e culturais e dos povos e comunidades tradicionais, espalhados pelas áreas urbanas e rurais do Brasil” (ARAÚJO, SILLER, 2019, p.16).
Cabe enfatizar que a tentativa de homogeneizar a cultura do nosso país não é algo recente. De acordo com Demartini (2021) o imigrante europeu no início do século XX era visto como um perigo nacional sob o ponto de vista político, e o investimento na escola e na educação foi a maneira encontrada de barrar este perigo e instaurar o nacionalismo brasileiro. Já na segunda metade do século XX o Brasil praticamente fechou as portas para a imigração, e somente a partir da década de 1980 pessoas do mundo inteiro passaram a residir em território brasileiro, com destaque para imigrantes de países em desenvolvimento, muitos da América Latina. (PATARRA, 2012).
Assim como com as crianças da cultura pomerana, outros grupos migratórios residentes no Brasil sofrem tentativa de homogeneização das crianças nos contextos educativos, como mostram algumas das pesquisas, como as de Santos (2018); Alexandre (2019) e Maçaneiro (2021). Marcadas pela xenofobia, pelo preconceito e pelo racismo, as crianças imigrantes são pressionadas pela imposição da cultura dominante e consequentemente sofrem com o “apagamento” da sua cultura.
Tendo por base a tríade conceitual narrativa/infância/identidade, Santos (2018) analisou em sua pesquisa de doutorado os processos de hibridização identitária5 de crianças imigrantes em contextos de Educação Infantil. Por meio de narrativas a autora descreveu as interações de uma criança de origem boliviana com seus pares, sua professora e pesquisadora em uma instituição de Educação Infantil pública da cidade de São Paulo.
Ao narrar a linguagem oral, corporal e o silêncio de uma6 criança boliviana por meio da observação do cotidiano institucional, Santos (2018) constatou que ela participava das propostas oferecidas pela professora, mas nem sempre compreendia o que estava acontecendo. Em relação às práticas de letramento, as dificuldades de interação eram maiores durante o uso da linguagem mais formal, como no momento da leitura de poesias, por exemplo. Desta maneira, a autora ao considerar as crianças imigrantes em processo de hibridização identitária, afirma que é preciso inserir a questão da imigração nas práticas de letramento na Educação Infantil.
Outro aspecto observado e analisado na pesquisa é o estabelecimento da cultura de pares7 entre crianças brasileiras e bolivianas. Fazendo um contraponto ao conceito cunhado por Willian Corsaro (2011), a autora afirma que as crianças imigrantes bolivianas estabelecem a “cultura de ímpares” no interior da cultura de pares, pois elas brincam entre si e são excluídas das relações e brincadeiras com crianças brasileiras. A pesquisa de Alexandre (2019) apresentada neste artigo também constata a falta de interação entre crianças brasileiras e imigrantes e o preconceito sofrido pelas últimas. Enquanto as investigações de Silva (2014), Lorzing (2021) e Machado (2021) não identificaram discriminação das crianças brasileiras em relação às crianças imigrantes.
Em seus resultados Santos (2018) conclui que o processo de hibridização identitária das crianças em contexto de imigração acontece por meio de três categorias de diferenciação: horizontal, hierárquica e diaspórica. A primeira se relaciona às interações entre pares; a segunda diz respeito ao modo como é conferido status às crianças imigrantes a depender do imaginário do país de origem; a última, por fim, é a travessia feita, pode ser vivida por todos que convivem com crianças em contexto de imigração.
É importante pensar que diante dos processos de hibridização identitária das crianças em contexto de imigração na Educação Infantil é possível encontrar narrativas silenciadas pela diferenciação hierárquica que reafirma o traço “ser imigrante” como critério de marginalização; mas também é possível encontrar narrativas silenciosas que se constroem sobre o pressuposto de que apesar de diferentes, somos todos iguais, desse modo, muitas vezes posturas preconceituosas são camufladas. Contudo, ainda se faz necessário que as narrativas dessas crianças sejam gritadas, faladas, escritas, cantadas, fotografadas, pintadas, politizadas, enfim, sejam construídas tendo a diáspora como pressuposto. (p. 173).
Santos (2018) afirma, ainda, que as práticas de Educação Infantil apresentam o discurso da diversidade de modo a esvaziar a diferença, prevalecendo a lógica da adaptação de quem chega, sem considerar a possibilidade de crianças brasileiras terem acesso a outra cultura por meio da interação com pares de outras nacionalidades. Além disso, as crianças imigrantes não reconhecem seu patrimônio cultural no espaço escolar e brinquedos e materiais não contemplam o critério da representatividade, sendo necessário, portanto, romper com a homogeneização e a verticalização na organização do trabalho pedagógico e nas práticas educativas.
Os conceitos de diversidade e diferença vêm sendo debatido por autores do campo educacional nos últimos anos e ganham espaço nas pesquisas da área, como percebemos no estudo de Silva (2014); Santos (2018); Alexandre (2019); Maçaneiro (2021) e Machado (2021).
Para Gomes (2007, p.17) a diversidade envolve elementos do desenvolvimento cultural e biológico da humanidade e seu conceito é mais amplo do que o simples conjunto das diferenças, segundo ela a “diversidade pode ser entendida como a construção histórica, cultural e social das diferenças”, o que significa dizer que o ser humano não pode ser compreendido fora do contexto da diversidade cultural. A partir desta premissa, a autora problematiza a necessidade de incluir a diversidade nos currículos e nas práticas pedagógicas das escolas, articulando os saberes produzidos pela ciência e os saberes produzidos pela comunidade e pelos movimentos sociais, de modo a combater as diferentes formas de discriminação, dominação e exclusão.
Nessa mesma direção, Candau (2012) afirma que é necessário trabalhar as questões relativas ao reconhecimento e valorização das diferentes culturas nos contextos escolares de modo a potencializar os processos de aprendizagem e garantir a todos (as) o direito à educação, incorporando, desse modo, a perspectiva intercultural nos contextos escolares. Para Candau (2012, p. 244) trabalhar na perspectiva da interculturalidade crítica significa “[...] questionar as diferenças e desigualdades construídas ao longo da História entre diferentes grupos socioculturais, étnicoraciais, de gênero, orientação sexual, entre outros”, e assim construir sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e possam construir relações igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais.
Rosemberg (2014) salienta a importância de nos atentarmos à contextualização do debate sobre a diversidade no campo político, refletindo sobre o tema no confronto de sua tensão com a desigualdade, que é uma construção social resultado de escolhas políticas feitas em cada sociedade ao longo da história (SCALON, 2011).
As questões da diversidade e da diferença possuem destaque na tese de doutorado de Alexandre (2019) com foco na imigração do Haiti entre 2015 e 2016 em Sinop/ Mato Grosso. Seus objetivos foram saber o impacto da presença das crianças migrantes haitianas na escola, averiguar o que o estrangeiro mostra da escola e investigar como a presença das crianças migrantes negras visibilizam o processo de racialização presente na instituição.
A base teórica foi a sociologia da infância e a empiria se valeu da etnografia. Além das observações foram realizadas entrevistas e conversas informais com os profissionais das escolas (uma de Educação Infantil e três de Ensino Fundamental) e com as crianças haitianas que participaram do grupo focal.
Alexandre (2019) percebeu que os (as) professores (as) viam as crianças haitianas como diferentes, suas qualidades eram baseadas em estereótipos e sua diferenciação era vinculada à ideia de inferioridade. Muitos profissionais possuíam expectativa negativa em relação à criança negra e imigrante, suspeitavam da sua capacidade cognitiva e no seu trabalho pedagógico não levavam em consideração a origem da criança e sua história de vida.
Nesse sentido, em relação aos migrantes negros, as diferenças são percebidas e exaltadas a partir desse racismo e xenofobia, que se escondem sob novos rótulos, novas formas de expressão e adquirem novos contornos na sociedade. Essa nova forma de racismo foi perceptível nas práticas pedagógicas, pois os professores não oportunizavam às crianças haitianas da mesma forma que faziam com as brancas. (ALEXANDRE, 2019, p.101).
Apesar de constar nos discursos dos (as) professores (as) pesquisados que não há racismo nas instituições em que trabalham, suas falam eram repletas de preconceitos e controversas. Evidenciavam que as desigualdades socioeconômicas acontecem por conta da raça e do indivíduo, e não em função da exploração que a população negra foi submetida historicamente. O preconceito por parte dos profissionais da educação também pode ser observado nas pesquisas de Maçaneiro (2021) e Silva (2014). Suas falas e/ou ações, ainda que de forma inconsciente, demonstraram que consideram as crianças negras imigrantes inferiores.
Na relação com crianças brasileiras e brancas, as imigrantes haitianas eram tratadas de forma preconceituosa, evitando o contato físico, da mesma forma como ocorreu na pesquisa de Santos (2018). Ainda assim elas afirmavam gostar da escola e possuíam postura altiva e de resistência por conta da sua história familiar e do seu país, de acordo com Alexandre (2019).
Em seus resultados Alexandre (2019) afirma também que a escola racializa as crianças haitianas, é preconceituosa e não oferece a elas o mesmo tratamento dado às crianças brancas, fazendo com que sejam percebidas como subalternizadas e inferiores, estabelecendo, assim, uma hierarquia racial.
De modo geral as crianças imigrantes haitianas eram percebidas por adultos e crianças como diferentes, e ao invés da diversidade ser tomada como algo positivo é vista como fora do comum e motivo para estranhar. “Isso ocorre porque, as escolas que deveriam ser um local de promoção da diversidade e da diferença, insistem em manter uma organização que valoriza a homogeneidade, além de construir e solidificar modelos universais e únicos de ser humano” (ALEXANDRE, 2019, p.187). A valorização da homogeneidade cultural também pode ser vista nas pesquisas de Siller (2011), Santos (2018), Maçaneiro (2021) e Machado (2021).
Por fim, a autora questiona as práticas disciplinadoras e eurocêntricas das escolas que vão de encontro aos avanços de políticas e práticas das diferenças. Sinaliza a necessidade de contemplação de conteúdos nos currículos escolares que insiram e socializem as crianças migrantes; que repensem a acolhida dos alunos imigrantes e consolidem uma educação antirracista.
Outra pesquisa encontrada, que utiliza o duo crianças imigrantes e Educação Infantil e destaca os temas da diversidade e da diferença é a dissertação de mestrado de Maçaneiro (2021). Por meio de pesquisa qualitativa e do uso de questionário via Google formulário enviado como instrumento de coleta de dados, a autora buscou identificar como profissionais da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis percebem as relações étnico-raciais face à invisibilização ou visibilização de crianças haitianas e/ou filhos(as) de imigrantes haitianos.
Assim como na pesquisa de Alexandre (2019), os professores (as) e auxiliares de sala participantes afirmaram que não percebiam discriminação em relação às crianças haitianas, o silenciamento do diferente não é compreendido por eles como discriminação racial. Além disso, os profissionais mostraram: uma idealização negativa de imigrantes negros; relações estereotipadas de uma diversidade desconhecida; que não reconhecem a cultura das crianças e pouco sabem da cultura haitiana. Os participantes da pesquisa desconsideram o diferente de modo a reproduzir a exclusão de grupos étnicos e culturais, como também destacam as pesquisas de Santos (2018) e Alexandre (2019).
Em suas considerações finais Maçaneiro (2021) sinaliza a urgência da sensibilização para o reconhecimento da diversidade cultural e racial existente nas instituições de educação, a ampliação do tema da diversidade na formação continuada de professores (as) e a necessidade de ampliação da discussão por meio de outras pesquisas. Como podemos perceber, as duas últimas pesquisas apresentadas (MAÇANEIRO, 2021 e ALEXANDRE, 2019), além das questões da diversidade e da diferença, destacam como pontos nevrálgicos a desigualdade racial e o mito da democracia racial. A discussão desses temas vem crescendo nos últimos anos no campo educacional, e cada vez mais diferentes autores sinalizam a necessidade do trabalho a partir das relações étnico-raciais nas instituições de ensino.
De acordo com Munanga (2003) o racismo é uma tendência que considera que as características intelectuais e morais de um grupo são consequências de suas características físicas e biológicas. De acordo com esse pressuposto pessoas negras são intelectual e moralmente inferiores em relação às pessoas brancas. No Brasil criou-se o mito de que o racismo não existe no nosso país, o que gera um discurso de igualdade racial inexistente e potencializa a hierarquização entre os indivíduos. Para romper com os processos de dominação instaurados pelas culturas dominantes, é preciso que a diversidade esteja presente em todas as etapas da Educação Básica, incluindo a Educação Infantil.
Santiago (2015) afirma que um dos elementos mediadores das relações estabelecidas entre as crianças e entre elas e os adultos é a racialização. Por meio dela são construídas hierarquizações sociais e perda dos pertencimentos étnico-raciais, como podemos perceber nos resultados das pesquisas expostas anteriormente.
Acolhimento e diversidade
As três pesquisas seguintes focalizam em seus objetivos questões ligadas ao acolhimento das crianças imigrantes nas instituições educativas.
Com objetivo de compreender como a comunidade escolar, especialmente as professoras atuam nos períodos de acolhimento e no favorecimento de um ambiente que facilite a socialização de crianças imigrantes de segunda geração8, Silva (2014) realizou estudo bibliográfico e etnográfico em três instituições púbicas paulistanas com crianças bolivianas matriculadas.
Como Lorzing (2021) e Machado (2021), Silva (2014) percebeu que crianças imigrantes e brasileiras interagiam bem e não observou a estigmatização das primeiras pelas segundas, contudo a autora considera que a aceitação nos grupos tem maior relação com a infância do que com a nacionalidade. Os adultos, por outro lado, demonstram em suas falas e ações, preconceito e discriminação em relação às crianças imigrantes, ainda que de forma inconsciente. Os principais alvos de estigmatização são a língua, as vestimentas e a higiene. Em seus discursos os (as) professores (as) afirmam que a língua é um dos maiores empecilhos para o bom acolhimento das crianças bolivianas, além disso, elas são a todo tempo lembradas da sua condição de estrangeiras e que precisam se adaptar à realidade que estão inseridas. Na maioria das turmas pesquisadas as crianças sofrem rejeição por parte dos adultos e passam por situações de constrangimento, sendo delegado o papel de “outra” ou de outsider9 à criança boliviana, assim como acontece com as crianças haitianas participantes da pesquisa de Alexandre (2019) e Maçaneiro (2021).
As famílias das crianças pesquisadas afirmam já terem sofrido alguma forma de discriminação por parte dos profissionais que atendem seus filhos (as), principalmente em relação à intolerância ao uso da língua espanhola para a comunicação. Ainda assim elas valorizam muito a escola e acreditam que é por meio dela que suas crianças terão uma vida melhor. A valorização do espaço escolar por parte das famílias imigrantes, ainda que sofram algum tipo de preconceito, também pode ser percebida na pesquisa de Machado (2021).
Silva (2014) destaca, ainda, as lacunas existentes na formação de professores (as) em relação aos imigrantes e chama atenção para suas precárias condições de trabalho, nas entrevistas eles (as) sinalizam que se sentem desamparados em relação ao trabalho com as crianças imigrantes.
Finalmente, a autora afirma que as situações encontradas na pesquisa são em parte reflexo da política nacionalista de caráter unicultural existente no Brasil. Siller (2011) corrobora com essa afirmação quando problematiza a não valorização da cultura pomerana nas escolas brasileiras com crianças ligadas a essa cultura matriculadas em suas instituições. Silva (2014) salienta, ainda, a importância do respeito à diversidade e às diferentes identidades, como tensionam Alexandre (2019), Santos (2018) e Maçaneiro (2021). De acordo com a pesquisadora “[...]fica o desafio de fazer da educação infantil um espaço onde pretos, pardos, indígenas, imigrantes e brancos possam viver sua infância e construir suas identidades e alteridades com respeito à diferença e igualdade de direitos”. (SILVA, 2014, p.122).
O conhecimento, a compreensão e análise dos processos de acolhimento das crianças haitianas nas instituições públicas de Educação Infantil na cidade de Sorocaba (SP), assim como o papel da brincadeira no acolhimento são os principais objetivos da pesquisa de mestrado de Lorzing (2021). A metodologia envolveu entrevistas feitas com professores (as), tendo por principais eixos de discussão: interações e brincadeiras: formas de comunicação e cultura; relações étnico-raciais e a presença das crianças haitianas nas escolas de Educação Infantil da cidade de Sorocaba; políticas públicas para a migração e formação docente. Nas entrevistas os professores (as) relataram que umas das maiores dificuldades no processo de acolhimento das crianças imigrantes é a comunicação com crianças e famílias por conta da diferença da língua. Apesar disso e da falta de apoio do poder público muitos deles encontraram soluções alternativas para transpor essa barreira, como uso de aplicativos de celular, tradução de bilhetes e documentos para a língua crioulo, além da linguagem da brincadeira.
No que se referem às questões raciais, os (as) professores (as) afirmam não terem presenciado situações de racismo sofrido pelas crianças imigrantes por parte das crianças brancas, dado também constatado nas pesquisas de Alexandre (2019) e Machado (2021). Da mesma forma que as outras pesquisas sinalizam, Lorzing (2021, p.121) tensiona a veracidade dessa afirmação: “[...] as relações raciais perpassam a infância nas escolas de Educação Infantil e se as crianças negras brasileiras sofrem todo tipo de preconceito e discriminação, as haitianas sofrem de maneira dura e cruel por ter a pele preta e ainda não falar a língua local”.
Em suas análises Lorzing (2021) afirma que os esforços para acolher as crianças imigrantes estão centrados na figura do professor (a). Mesmo sem a existência de políticas públicas de acolhimento e permanência das crianças imigrantes nas escolas públicas do município, eles (as) buscam estratégias para superar os obstáculos e desafios. A pesquisadora destaca a necessidade de tratar do assunto na formação continuada e da urgência do seu debate no campo educacional, considerando que os direitos assegurados às crianças imigrantes nem sempre são garantidos. Por fim, salienta a importância dos eixos interação e brincadeira para o acolhimento das crianças imigrantes na Educação Infantil.
Em relação aos direitos das crianças imigrantes, Norões (2021) afirma que elas sofrem restrições de direitos. Ainda que estejam assegurados nas legislações nacionais e internacionais, eles nem sempre fazem parte da realidade delas. Muitas crianças que migram para o Brasil recebem tratamentos hostis, não são bem acolhidas e tem acesso restrito à educação, possuindo uma migração marcada por vulnerabilidades.
A última pesquisa tratada aqui teve por lócus duas instituições de Educação Infantil de Balneário Camboriú/ Santa Catarina, a fim de compreender o processo de inserção e socialização das crianças haitianas na Educação Infantil.
Tendo por sujeitos as crianças haitianas, não haitianas, famílias haitianas e professores (as) das instituições onde essas crianças estão matriculadas, Machado (2021) realizou pesquisa qualitativa, de cunho interpretativo com uso de instrumentos da etnografia: observação participante, diário de campo, conversa com crianças e adultos, registros fotográficos e produções gráficas das crianças (desenhos).
Na análise dos dados foi realizada triangulação das observações participantes, dos desenhos feitos pelas crianças e das conversas realizadas com adultos e crianças. Da mesma maneira que aconteceu nas pesquisas discutidas anteriormente, as falas de professores (as) são marcadas pelo preconceito e discriminação em relação às crianças imigrantes e suas famílias. Colocam-se em um patamar hierárquico mais elevado em relação ao “outro”, não existe reflexão sobre o discurso preconceituoso já naturalizado no nosso país.
Por parte das crianças, contudo, Machado (2021) não percebeu discriminações baseadas nas diferenças físicas e raciais entre crianças brasileiras e haitianas. Pelo contrário, as últimas se destacam por seu protagonismo e liderança. O dado explicitado aqui difere dos dados coletados nas pesquisas de Alexandre (2019) e Santos (2018), o que não significa que as crianças imigrantes nunca tenham passado por situações de racismo na instituição.
Mais uma vez a questão da comunicação aparece como fator importante nas dificuldades de inserção das crianças imigrantes nas instituições de Educação Infantil. Algumas ações foram relatadas pelos profissionais da instituição, como busca de intérpretes logo na chegada das crianças, tradução de bilhetes e outras iniciativas pontuais; não havia um projeto permanente ou ações sistemáticas que visassem o acolhimento de famílias e crianças. Esse fato causou estranheza à pesquisadora, pois essas questões não estão incorporadas no currículo da instituição tampouco nas práticas dos professores (as), apesar da secretaria municipal de educação de Balneário Camboriú possuir dois projetos em relação à diversidade e às culturas locais.
A pesquisa também mostrou que as famílias das crianças haitianas por vezes se sentiam inseguras em deixar seus filhos (as) na instituição, apesar disso valorizavam e respeitavam os profissionais do local, assim como foi observado no trabalho de Silva (2014). Alegaram terem sido bem recebidas por todos.
Machado (2021) não observou ações por parte da instituição que valorizassem a cultura haitiana e constatou que as questões étnico-raciais são trabalhadas desassociadas da cultura, o que dificulta a inserção da comunidade haitiana na instituição. A autora defende a necessidade do fomento de discussões a respeito da interculturalidade na Educação Infantil, fundamental na construção de sociedades e sistemas educativos que se comprometem com democracia, equidade e reconhecimento das diferenças (CANDAU, 2012).
Um fator diferenciado da pesquisa de Machado (2021) é a descrição detalhada dos conceitos relacionados à imigração, com destaque para refúgio e refugiados, migração voluntária e forçada e a perspectiva da migração infantil na legislação. Lorzing (2021) e Maçaneiro (2021) também detalham os conceitos, mas não apresentam a perspectiva das crianças. Siller (2011) destaca apenas a migração forçada dos séculos XVII e XVIII no Brasil, enquanto Alexandre (2018) apresenta as diferentes motivações da migração sem utilizar o termo refúgio. Silva (2014), por sua vez, não aborda a questão das diferenças no processo migratório, o que nos leva à constatação de que as pesquisas realizadas nos últimos dois anos relacionadas à Educação Infantil se voltaram às diferenças entre migrações forçadas e voluntárias, tema essencial para os estudos que possuem as crianças imigrantes por temática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao voltarmos o olhar para os dados quantitativos apresentados neste artigo percebemos o aumento gradativo da presença da temática crianças imigrantes e Educação Infantil nas pesquisas acadêmicas, elas ainda se encontram em número reduzido, mas a ampliação da temática no campo educacional é visível. O estudo mais antigo foi publicado em 2011, e nos dois últimos anos (202021) foram três publicações. Em nossa compreensão, esse fato se deve ao aumento substancial de imigrantes residentes no Brasil e às demandas apresentadas pelas instituições de ensino relacionadas ao tema. Crianças de diferentes nacionalidades passaram a frequentar os espaços educacionais, o que impulsionou, a nosso ver, a ampliação de pesquisas que tematizam as crianças imigrantes e a educação, especialmente a Educação Infantil.
Já nas análises das pesquisas apresentadas neste texto percebemos que os temas da diversidade e da diferença tiveram destaque. Isso porque as instituições investigadas não valorizavam as diferentes culturas presentes no espaço escolar, especialmente a cultura dos imigrantes. De maneira contrária, comumente foram observadas pelas pesquisadoras situações de preconceito e desrespeito às singularidades de famílias e crianças.
O racismo também foi indicado como situação comum nas investigações. Crianças imigrantes e suas famílias passaram por situações de constrangimento e discriminação por conta da cor da pele em situações variadas, o que demonstra o quão presente estão as práticas racistas em nossas instituições de ensino, apesar do fato não ser assumido por muitos adultos participantes das pesquisas.
Em relação ao racismo entre as crianças, duas das pesquisas apresentadas destacaram que as crianças imigrantes não sofreram preconceito por parte das crianças brancas. Esse fato nos faz pensar que apesar das pesquisadoras não terem presenciado nenhuma situação especifica, é provável que as situações de racismo acontecessem, pois as crianças e suas culturas fazem parte da cultura adulta marcada pela discriminação.
Apesar das dificuldades, as pesquisas demonstraram tentativas de acolhimento das crianças imigrantes por parte das instituições de Educação Infantil. Ações como traduções de bilhetes e documentos, trocas de experiências a partir das diferentes culturas, busca de intérpretes, dentre outros, mostraram o interesse de algumas instituições em fazer valer a interculturalidade, contudo percebe-se que são ações muito pontuais, é que é necessário avançar nas iniciativas propostas em nível institucional e no campo das políticas públicas, considerando que não cabe apenas às instituições educacionais desenvolver ações em relação ao acolhimento e à integração de crianças e famílias imigrantes em seus espaços, é necessário que o Estado assuma o papel de favorecer e potencializar a implementação dessas práticas por meio de investimentos públicos.
Nas pesquisas que ouviram as famílias das crianças percebemos que elas também sofrem preconceito e racismo por parte dos profissionais, ainda assim valorizam o espaço escolar e veem a educação como forma de ascensão social dos seus filhos (as).
Por fim, as pesquisas destacam a urgência de continuidade de discussão sobre o assunto nas instituições educativas e na formação continuada, bem como a necessidade de realização de mais pesquisas acadêmicas que possuam por temática central as crianças imigrantes e a Educação Infantil.