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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.65893 

Migração e refúgio: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

MIGRAÇÕES E EDUCAÇÃO DE ADULTOS DESLOCADOS: uma reflexão sobre direitos educativos

MIGRATIONS AND EDUCATION OF DISPLACED ADULTS: a reflection on educational rights

MIGRACIONES Y EDUCACIÓN DE ADULTOS DESPLAZADOS: una reflexión sobre los derechos educativos

Rita de Cássia da Cruz Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-9795-4828; lattes: 1847748701514739

Maria Clara Di Pierro2 
http://orcid.org/0000-0002-8343-3578; lattes: 7292650813866195

1Doutoranda na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e Analista de Políticas Públicas e Gestão Governamental na Prefeitura de São Paulo.

2Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).


Resumo

Diante do grande volume de migrações internacionais - mesmo com uma pandemia que restringiu a mobilidade global -, faz-se necessário refletir sobre as garantias dos direitos de migrantes e refugiados, tais como os direitos educativos. As normativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos consolidaram o direito à educação para todas as pessoas, incluindo migrantes e refugiados nos territórios de acolhimento. O presente artigo - resultado de pesquisa teórica e análise de conteúdo - tem como objetivo apresentar e discutir alguns dos temas essenciais do debate acadêmico sobre a garantia de direitos educativos de migrantes e refugiados adultos. O texto está subdividido em duas partes: a primeira introduz a relação da migração com a educação, com especial atenção aos jovens e adultos; e a segunda se aprofunda sobre três temas decisivos para o campo de pesquisa: 1) Assimilação versus integração e multiculturalismo versus interculturalismo; 2) Gestão escolar, currículo, formação de professores e língua local como política de acolhimento; e 3) Reconhecimento de diplomas, habilidades e conhecimentos prévios. Esperamos, com isso, contribuir com o urgente debate sobre a efetivação dos direitos educativos dessa população, reduzindo as possibilidades de serem expostos a novos mecanismos de exclusão. Nas conclusões realçamos a necessidade de um Estado que aja e não apenas reaja; que formule políticas públicas adequadas para que migrantes e refugiados adultos consigam não apenas se matricular, mas ter uma educação que considere a diversidade e os reconheça como protagonistas de seu aprendizado.

Palavras-chave migrações internacionais; educação de adultos; direitos educativos.

Abstract

In the face of a large volume of international migrations - even with a pandemic that has restricted global mobility -, it is necessary to reflect about guarantees of the rights of migrants and refugees such as educational rights. The norms of International Human Rights Law have consolidated the right to education for all people, including migrants and refugees in the host territories. This article - the result of theoretical research and content analysis - aims to present and discuss some of the essential themes of the academic debate on guaranteeing the educational rights of adult’s migrants and refugees. The text is divided into two parts: the first introduces the relationship between migration and education, with special attention to young people and adults; and the second delves into three decisive themes for the field of research: 1) Assimilation versus integration and multiculturalism versus interculturalism; 2) School management, curriculum, teacher training and language as policy as reception; and 3) Recognition of previous qualifications, skills and knowledge. We hope, with this, to contribute to the urgent debate on the effectiveness of the educational rights of this population, reducing the possibilities of being exposed to new mechanisms of exclusion. In the conclusions we emphasize the need for a State to act and not just react; that formulates adequate public policies so that adult migrants and refugees can not only enroll but have an education that considers diversity and recognizes them as protagonists of their learning.

Keywords: international migrations; adult education; educational rights.

Resumen

Ante el gran volumen de migraciones internacionales -incluso con una pandemia que ha restringido la movilidad global-, es necesario reflexionar sobre las garantías de derechos de las personas migrantes y refugiadas, como el derecho a la educación. Las normas del Derecho Internacional de los Derechos Humanos han consolidado el derecho a la educación para todas las personas, incluidas las personas migrantes y refugiadas en los territorios de acogida. Este este artículo -resultado de una investigación teórica y un análisis de contenido- tiene como objetivo presentar y discutir algunos de los temas esenciales del debate académico sobre la garantía de los derechos educativos de las personas migrantes y refugiadas adultas. El texto se divide en dos partes: la primera presenta la relación entre migración y educación, con especial atención a jóvenes y adultos; y el segundo ahonda en tres temas decisivos para el campo de investigación: 1) Asimilación versus integración y multiculturalidad versus interculturalidad; 2) Gestión escolar, currículo, formación docente y lengua local como política de acogida; y 3) Reconocimiento de títulos, habilidades y conocimientos previos. Esperamos, con ello, contribuir al urgente debate -en el campo educativo- sobre la realización de los derechos educativos de esta población, reduciendo las posibilidades de verse expuestas a nuevos mecanismos de exclusión. En las conclusiones enfatizamos la necesidad de que un Estado actúe y no solo reaccione; que formule políticas públicas adecuadas para que las personas adultas migrantes y refugiadas no solo puedan matricularse, sino tener una educación cuyo paradigma considere la diversidad, los reconozca como protagonistas de sus aprendizajes.

Palabras clave migraciones internacionales; educación de adultos; derechos educativos.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, vivenciamos uma era em que a mobilidade humana alcançou grandes proporções. Novos fluxos migratórios se configuraram no mundo, motivados - sobretudo - por condições de vida adversas, crises ambientais e econômicas, novas dinâmicas sociais, pobreza e conflitos dos mais variados tipos.

O volume de migrações internacionais se mostrou tamanho a ponto de se falar em “crise humanitária” em alguns lugares do planeta. De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações - OIM (2020, p. 23), o número de migrantes internacionais tem aumentado mais rápido que o crescimento da população mundial. No entanto, o deslocamento humano sempre esteve na nossa história. Mesmo que em números absolutos o volume de pessoas que emigraram tenha aumentado consideravelmente - chegando a 281 milhões em 2021 -, a proporção relativa de migrantes na população mundial é apenas ligeiramente superior à das últimas décadas, equivalendo a 3,6%, em 2021, em comparação com os 2,8%, em 2000, e os 2,3%, em 1980 (OIM, 2020, p. 23). De acordo com Débora Mazza (2015, p. 238), a mobilidade humana “deve ser percebida como uma prática humana milenar” cuja visibilidade cresce atualmente por conta da “sofisticação das tecnologias da informação, da comunicação e dos transportes, da globalização dos processos de produção, da circulação e consumo de bens materiais e imateriais e da financeirização do capital”.

Como é sabido, aqueles que saem obrigados de seus territórios sob ameaça ou risco de morte - guerras ou perseguição relacionadas a sua raça, etnia, religião, opinião política e violação de direitos humanos - são chamados também de refugiados; os outros, que migram por fatores diversos, são denominados apenas de migrantes, ainda que estejam distribuídos em muitas e variadas categorias: econômicos, expatriados, trabalhadores transfronteiriços, trabalhadores sazonais, binacionais, estudantes etc.

Embora tanto os migrantes quanto os refugiados sejam sujeitos em posição de vulnerabilidade social, os últimos, quando reconhecidos legalmente, recebem garantia de proteção institucionalizada, porque já tiveram, em seus territórios de origem, constatada a violação de seus direitos humanos. Já para os migrantes - principalmente para os “econômicos” -, não há as mesmas garantias. Essa diferenciação entre uns e outros deflagra a tendência de o mundo globalizado hierarquizar e não reconhecer os direitos econômicos e sociais como verdadeiros direitos humanos, em sua indivisibilidade.

Independentemente da categoria em que estejam tipificados, são pessoas que compõem o que os teóricos Stephen Castles, Hein de Haas e Mark. J. Miller chamaram de “Era das Migrações”, termo cunhado para identificar a conjuntura migratória, na qual os deslocamentos humanos se tornaram o reflexo “natural” das sociedades de globalização econômica e de livre mercado.

E se no início de 2020 - quando a rápida disseminação da Covid-19 levou a Organização Mundial da Saúde - OMS a admitir a existência de uma pandemia com alcance e impactos globais - ainda havia dúvidas sobre a continuidade dos fluxos migratórios, hoje, dois anos depois, percebemos que o deslocamento humano é um processo incontornável. Mesmo com uma drástica ruptura global em função das medidas de isolamento, confinamento e quarentena, os números da migração internacional de 2021 revelam que, ainda assim, houve crescimento em comparação com os anos anteriores à pandemia - 272 milhões em 2019, por exemplo.

A novidade desses novos fluxos migratórios das últimas décadas - mantidos na pandemia - é, então, menos o aspecto quantitativo e mais a diversidade das categorias de migrantes. Muda também a maneira como os países receptores reagem e atuam em resposta a esses fluxos.

O fato é que, independentemente da razão do deslocamento, migrantes e refugiados possuem garantias - como os direitos educativos - que devem ser efetivadas em quaisquer lugares do globo terrestre.

As normativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos - DIDH consolidaram o direito à educação para todas as pessoas. Segundo Norberto Bobbio (2004, p. 36.), “[...] não existe atualmente nenhuma carta de direitos que não reconheça o direito à instrução”. Conforme o texto do Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, todo ser humano tem direito à educação, que deverá ser oferecida gratuitamente, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. O consagrado documento estabelece ainda que a educação será orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana.

Os preceitos sobre o direito à educação foram mais tarde reafirmados no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e numa lista de outros instrumentos internacionais, todos eles ratificados pelo Brasil. Magalhães (2012, p. 50) salienta que, no caso do continente americano, aplica-se ainda a legislação regional acordada no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Os migrantes são sujeitos dos direitos à educação e aprendizagem mencionados também nos acordos internacionais relativos à população adulta, sobretudo as Conferências Internacionais sobre Educação de Adultos (CONFINTEAs) promovidas pela UNESCO. No Marco de Ação de Belém, aprovado em 2009 na VI Conferência, os governos signatários se comprometem a “desenvolver respostas educacionais efetivas para migrantes e refugiados” e “apoiar financeiramente, com foco sistemático, grupos desfavorecidos (por exemplo povos indígenas, migrantes, pessoas com necessidades especiais e pessoas que vivem em áreas rurais), em todas as políticas e abordagens educacionais” (UNESCO, 2014, p. 270-271).

Dessa forma, sendo o Brasil signatário dos principais Tratados e Pactos Internacionais de Direitos Humanos, e passando a figurar como receptor de migrantes e refugiados de novos fluxos migratórios e das emergências humanitárias das últimas décadas -, nos propusemos a investigar sobre as iniciativas de garantia de direitos dessas populações, com especial atenção aos direitos educativos dos adultos.

Ainda que as crianças em contextos de deslocamento também sofram com condições adversas no acesso à educação - causadas, principalmente, pela distância entre as garantias de direito, as previsões normativas e a realidade dos territórios -, o foco das nossas pesquisas são os adultos que, em geral, já estão inseridos no mercado de trabalho, contribuindo ativamente para o remodelamento social, econômico e cultural dos territórios de acolhida.

Mesmo que não seja possível estabelecer uma teoria única para explicar as migrações internacionais da contemporaneidade, uma afirmação tem se mostrado consistente nas pesquisas sobre o tema: com exceção dos deslocamentos forçados, a migração está intimamente ligada ao trabalho. De acordo com Nolasco (2016, p. 23), em um quadro de acentuadas assimetrias entre centro e periferia, entre economias capitalistas desenvolvidas e países pobres subdesenvolvidos, o estudo das migrações internacionais passa também pelo entendimento de que os novos fluxos migratórios estão associados a dinâmicas estruturais desse sistema.

Para Sayad (1998, p. 55), não existe migrante se não existe trabalho, o que revela a versão utilitarista da migração. Nesse sentido, o autor afirma que “[...] foi o trabalho que fez ‘nascer’ o imigrante, que o fez existir; e é ele, quando termina, que faz ‘morrer’ o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser”.

Dessa forma, pensando que o migrante e o refugiado adulto que chega ao Brasil precisa se inserir no mercado de trabalho - e isso, na maior parte das vezes, acontece sem o reconhecimento de suas qualificações e aprendizagens prévias -, nos interessamos em investigar as ligações entre educação (sobretudo dos adultos) e migrações, e em políticas públicas que visam a efetivação dos direitos educativos dessa população.

O presente artigo - resultado de pesquisa teórica e análise de conteúdo - tem como objetivo apresentar e discutir alguns dos temas essenciais do debate acadêmico sobre a garantia de direitos educativos de migrantes e refugiados adultos. O texto está subdividido em duas partes: a primeira introduz a relação da migração com a educação, com especial atenção aos jovens e adultos; e a segunda se aprofunda sobre três temas decisivos para o campo de pesquisa: 1) Assimilação versus integração e multiculturalismo versus interculturalismo; 2) Gestão escolar, currículo, formação de professores e língua local como política de acolhimento; e 3) Reconhecimento de diplomas, habilidades e conhecimentos prévios. Esperamos, com isso, contribuir com o urgente debate - no campo educacional - sobre a efetivação dos direitos educativos dessa população, reduzindo as possibilidades de serem expostos a novos mecanismos de exclusão.

1. AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE MIGRAÇÃO E EDUCAÇÃO

Para além da relação entre “migração e trabalho”, é importante pensarmos também na relação entre “educação e migração”, sendo esta constituída por processos multifacetados que envolvem indivíduos, escolas, comunidades e países, e que se influenciam mutuamente. Isso quer dizer, por exemplo, que o nível de escolaridade de um indivíduo pode influenciar na sua decisão de migrar, da mesma forma que os fluxos migratórios contemporâneos têm impacto real nos sistemas educacionais de uma sociedade (OIM, 2018, p. 10).

Atualmente, por exemplo, sabemos que a escolaridade é um dos principais fatores atuantes na decisão de migrar. Diferentemente do que o senso comum preconiza - de serem os deslocados sempre miseráveis e/ou ignorantes -, os que migram internacionalmente, hoje, estão quase sempre entre os mais graduados de suas sociedades. Ao contrário de épocas anteriores, também caracterizadas pela migração em massa, nunca houve tantas pessoas qualificadas se juntando aos fluxos migratórios (SUAREZ-OROZCO et al., 2011, p. 318). Ainda que tenhamos pessoas com os mais variados níveis escolares nessa engrenagem e que os grupos de migrantes e refugiados sejam heterogêneos e demandem políticas públicas diversificadas, é preciso estabelecer parâmetros sobre o que significa garantir direitos educativos para essa população adulta, que, como sabemos, pode apresentar níveis de escolaridade que variam desde o analfabetismo na língua materna até ao título de doutorado. No entanto, a maioria é formada por pessoas com pelo menos o nível médio de instrução. De acordo com Minvielle (2018), nos EUA, há, entre os migrantes africanos, uma incidência de dois em cada cinco que possuem escolaridade de nível superior ou médio. Na França, já em 2012, 63% dos migrantes do país tinham ao menos formação de nível médio.

Segundo relatório da Unesco (2019, p. xvii), no nível do deslocamento nacional (dentro do país de origem), as pessoas com formação universitária têm duas vezes mais chances de migrar (do campo para as cidades, por exemplo); já no nível internacional, as chances são multiplicadas por cinco.

Isso porque pessoas com maior escolaridade estão mais propensas a coletar informações, a responder a oportunidades econômicas e a financiar seu processo de emigração. Docquier e Marfouk (apud UNESCO, 2019, p. 38), no começo do século XXI, frisaram que a taxa global de emigração foi de 5,4% entre as pessoas com Educação Superior, de 1,8% entre aquelas com Educação Média e 1,1% com Educação Fundamental. Outra importante relação entre migração e educação está posta em como os migrantes são recebidos nas sociedades de acolhimento: os nacionais com maior escolaridade têm atitudes mais positivas em relação à sua recepção. Segundo dados de uma pesquisa realizada em 2017 - anterior à pandemia, vale salientar - sobre a taxa de aceitação da migração em alguns países europeus, 53% das pessoas com Ensino Superior queriam que o nível de imigração permanecesse o mesmo ou aumentasse em seu país, em comparação com 46% que havia concluído o Nível Médio e 39% o Nível Fundamental (UNESCO, 2019, p. 82).

Existem ainda muitas relações entre educação e migração que merecem/devem ser investigadas, por exemplo: como os sistemas educacionais de países de origem/saída devem se adaptar às populações que migram sazonal ou circularmente; como devem se preparar para o despovoamento de áreas rurais; como os gestores não podem cessar o investimento na educação dos nacionais; e como precisam reverter a saída massiva de pessoas altamente qualificadas (a chamada “fuga de cérebros”). Já nas sociedades de acolhimento, os gestores precisam equiparar o nível de escolarização dos que chegam ao dos locais, para que haja igualdade de oportunidades; além de promover medidas de combate ao racismo, de contratação de professores capacitados e de promoção de programas e currículos específicos para ajudar os recém-chegados. Nesses territórios, há ainda o desafio de reconhecer e valorizar habilidades e conhecimentos prévios de migrantes e refugiados.

Dessa forma, analisando a literatura sobre o tema, percebemos a necessidade de compreender como agem esses fatores intrínsecos à relação entre migração e educação e se as oportunidades proporcionadas a essa população nos territórios podem ser consideradas como direitos educativos, sobretudo aquelas destinadas para a população adulta.

Giovanna Modé Magalhães (2010, p. 13) enfatiza que os desafios de providenciar a educação de pessoas “desenraizadas” em uma das instituições mais “territorializadas” da modernidade, que é a escola, são imensos. Afinal, é preciso garantir que migrantes e refugiados adultos - independentemente de sua condição migratória ou documental - possam estudar, retomar ou validar seus estudos prévios sem discriminação, e isso dentro de uma das instituições que mais tem reproduzido, historicamente, as relações de poder da sociedade.

No Brasil, a Educação de Jovens e Adultos - EJA já é um desafio para os governos mesmo entre os nacionais, pois sempre ocupou um papel subsidiário às demais modalidades de ensino, cumprindo função compensatória de escolaridade não realizada na idade considerada apropriada, ou de aceleração de estudos de pessoas com atraso escolar: “O desprestígio da educação de jovens e adultos repercutiu no escasso financiamento, na precariedade institucional e na posição desfavorável ocupada pelos seus órgãos de gestão na hierarquia governamental” (DI PIERRO, 2008, p. 397). Isto evidencia que estamos diante de um sistema já defasado no cumprimento de direitos educativos para os nacionais.

Além disso, Di Pierro e Haddad (2015, pp. 204-205) ressaltam a tendência de os formuladores de políticas públicas adotar uma perspectiva privatista e uma visão instrumental da EJA, subordinando-a às exigências do mercado de trabalho em detrimento de uma concepção de educação como direito humano. Guo adverte (2014, p. 484-485), igualmente, sobre a possibilidade de educação de adultos ser cooptada por um admirável mundo novo do capitalismo flexível e por economias de mercado, transformando-se em uma extensão do trabalho e tornando os indivíduos os únicos responsáveis por sua sobrevivência e bem-estar (inclusive, culpabilizando-os pelo insucesso de trajetórias muitas vezes fadadas ao fracasso desde o início), o que incorre na desresponsabilização dos governos no cumprimento de suas atribuições para com esses grupos.

Dessa forma, pensar a EJA, para os migrantes e refugiados - mas também para os nacionais - implica adotar um conceito ampliado de direitos educativos, uma vez que não basta garantir a matrícula em escolas, mas assegurar que a oferta de oportunidades educacionais aos migrantes e refugiados adultos represente a remoção de obstáculos que os impeçam de aceder uma educação aceitável, adaptável e relevante.

Mesmo sabendo que a maior parte dos migrantes e refugiados chega com níveis médio e alto de escolaridade, como encontram muitas dificuldades para validar os conhecimentos prévios ou apresentar equivalência entre os sistemas de ensino do Brasil e de outros países, a EJA acaba sendo a principal porta de entrada no processo de escolarização formal. Além disso, a EJA é a modalidade que melhor permite acomodar o status de “trabalhadores” dessa população, permitindo que tentem conciliar as aulas e as atividades geradoras de renda.

Um exemplo disso está no CIEJA Perus (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, da prefeitura de São Paulo, unidade de Perus), que, em 2020, possuía 800 alunos haitianos de um corpo discente total de 1.510 estudantes.

Vale destacar que, muitas vezes, migrantes e refugiados procuram a EJA para aperfeiçoar a aprendizagem da língua portuguesa e para conseguir certificados/diplomas (que já possuíam em seus territórios de origem) que dê a eles a possibilidade prosseguir seus estudos em níveis ainda mais elevados de escolarização.

Assim, repetimos, é preciso pensar a ampliação da EJA como modalidade de ensino que passa a receber também migrantes e refugiados em seu corolário. Para os adultos deslocados, a aprendizagem não é apenas, ou mesmo predominantemente, a aquisição de (novas/outras) habilidades e conhecimentos sistematizados, e sim um processo amplo e complexo que inclui a própria transformação de suas identidades. Uma EJA que, para esta população, reconheça a importância do domínio da língua local, a importância da educação não formal e informal, a consciência de que nos contextos migratórios e de deslocamento a aprendizagem não ocorre apenas em sala de aula, e o indispensável reconhecimento de suas qualificações, habilidades e aprendizagens prévias.

Apresentamos a seguir, na segunda parte deste artigo, as considerações de pesquisadores acerca de três dos temas considerados mais importantes para o campo de estudos de diretos educativos de migrantes e refugiados adultos.

2. TEMAS ESSENCIAIS PARA O ESTUDO DOS DIREITOS EDUCATIVOS DE MIGRANTES E REFUGIADOS

2.1. Assimilação versus integração / multiculturalismo versus interculturalismo

A escola é uma das portas mais importantes no processo de integração de migrantes e refugiados em uma sociedade. Permitir o acesso às instituições de ensino do novo país possibilita a integração do educando com a sociedade receptora a partir da aproximação e da convivência com os costumes locais, com a língua, com professores, funcionários e colegas da escola.

No entanto, alguns pesquisadores da educação de adultos têm se aprofundado ao que, de fato, está “em jogo” no conceito de integração. Morrice, Shan e Sprung (2017, pp. 129-130), por exemplo, consideram “integração” e “inclusão” conceitos utilizados para se referir ao processo de receber migrantes nas sociedades. No entanto, na área da educação, eles podem assumir características críticas, solicitando respostas a perguntas como: inclusão/integração a quê? Em geral, as estratégias de integração/inclusão assumem um modelo no qual são os migrantes que necessitam de intervenção e de mudança, enquanto as instituições e a sociedade de acolhimento permanecem praticamente inalteradas.

Atualmente, com os sistemas educativos das sociedades que recebem migrantes de diversas nacionalidades, o tratamento da diversidade cultural representa um grande desafio tanto para a pesquisa acadêmica quanto para a formulação de políticas públicas. Corrobora com esse entendimento Abdeljalil Akkari (2015, p. 160-161), que afirma serem as sociedades humanas culturalmente diversas, o que se reflete também dentro da escola; para o autor, se tal diversidade não for valorizada e tratada no sistema educacional de maneira adequada, pode resultar em tensões e ameaças à coesão social.

Nesse sentido, os pesquisadores que têm analisado o tema na atualidade consideram importante estabelecer uma diferenciação entre integração e assimilação. A primeira refere-se a um processo produzido pela sociedade em geral, um fenômeno suscitado do coletivo para com o indivíduo. A assimilação, no entanto, é um processo pelo qual um indivíduo adquire uma nova configuração social dentro de uma sociedade majoritária e implica, em geral, o apagamento das especificidades desse sujeito, a renúncia de sua cultura de origem e a sua atomização junto à sociedade que o absorve - muitas vezes, em nome de uma pretensa “igualdade”.

Para Candau (2008, p. 50), as políticas assimilacionistas, nas sociedades de acolhimento, favorecem que os migrantes sejam incorporados à cultura hegemônica do território. Isto é, “não se mexe na matriz da sociedade, procura-se assimilar os grupos marginalizados”, oferecendo a eles apenas os “conhecimentos socialmente valorizados pela cultura hegemônica”. Para ela, quando se trata da área educacional, promove-se ainda uma política de universalização da escolarização, onde todos são chamados a participar do sistema escolar local, mas sem que se questione o seu caráter monocultural. Para Candau (2008, p. 50), essa opção defende o projeto de estabelecer uma única cultura e, em nome dela, aceita-se possíveis deslegitimação de saberes, línguas, crenças e valores “diferentes”.

Segundo relatório da Unesco (2019, p. xvii), a política de assimilação era a norma na maioria dos países de alta renda que recebiam trabalhadores estrangeiros no pós-guerras. Os proponentes da assimilação argumentavam que, em vez de promover a diferença, as escolas deveriam garantir que todos os alunos dominassem a língua oficial do país e adotassem a cultura nacional. No entanto, a assimilação pode implicar uma erosão completa da diferença entre os migrantes e a sociedade que os acolhe, acentuando claramente o papel hegemônico da nação anfitriã (UNESCO, 2019, p. 82).

Shibao Guo (2014, p. 494) compreende que, nos contextos escolares, uma educação de adultos que se recusa a reconhecer migrantes e refugiados culturalmente diversos como cidadãos legítimos irá conduzi-los a uma maior alienação e subordinação, contribuindo para assimilá-los às normas sociais, culturais e educacionais dominantes da sociedade de acolhimento. A alternativa seria construir sistemas de educação que reconhecessem a diferença e a diversidade como ativos positivos.

No entanto, no contexto escolar, o termo diferença “é frequentemente associado a um problema a ser resolvido, à deficiência, ao déficit e à desigualdade” (Candau 2012, p. 239). Constantemente, nos depoimentos dos educadores, os diferentes são aqueles que apresentam baixo rendimento, que vêm de famílias vulneráveis, que possuem características identitárias consideradas “anormais” ou que apresentam um baixo capital cultural. Ou seja, a tendência - até mesmo dentro da escola - é a de que os diferentes sejam vistos como um problema a “enfrentar”, e, se possível, a “eliminar”.

Assim, é preciso compreender as distinções entre os conceitos de “cultural”, “intercultural” e “multicultural”. Morrice, Shan e Sprung (2017, p. 129-130) observam que tem havido uma crescente reação ao uso estrito do termo multiculturalismo em contextos de educação de migrantes e refugiados. Alguns críticos argumentam que o multiculturalismo não consegue resolver de forma duradoura as desigualdades entre os diferentes grupos dentro de uma sociedade, assumindo noções essencializadas de “cultura” - isto é, apenas o fato de reconhecer a diferença e a pluralidade cultural entre os alunos não propõe uma verdadeira integração de todos na comunidade. No contexto da educação de adultos, as autoras afirmam que a melhor resposta para essas críticas está em uma proposta de aprendizagem pautada na interculturalidade, e não mais na multiculturalidade.

Considerando que cultura é um conceito polissêmico e de difícil definição - mas que pode ser entendido como o modo de vida próprio de cada povo, compreendendo ideias, comportamentos e artefatos -, o conceito de “multiculturalismo” abrangeria, então, a existência de múltiplas culturas convivendo em um mesmo lugar, isto é, a consciência e a aceitação de uma diversidade cultural.

No entanto, apenas admitir múltiplas e diversas culturas em uma sociedade, mas sem agir para que elas se comuniquem e se fortaleçam, tem se tornado um incentivo para manter o status quo da cultura dominante. Embora a abordagem multicultural implique o reconhecimento da existência e a possibilidade de convivência de várias culturas, trabalhar a educação nos dias atuais somente dessa perspectiva pode contribuir para um processo de assimilação, e não de integração, uma vez que os próprios migrantes tenderão a “escolher” pertencer à cultura dominante e mais bem socialmente aceita e prestigiada, relegando traços de sua cultura de origem.

Nesse sentido, os pesquisadores da educação de adultos em contextos migratórios têm preferido trabalhar com o conceito de interculturalidade, isto é, reconhecer que existem múltiplas culturas, mas não apenas isso; estabelecer relações positivas de intercâmbio e enriquecimento mútuo entre os diversos componentes culturais de uma sociedade; colocar em diálogo várias culturas e novos conhecimentos, bem como construir novas culturas de síntese - incorporando e ampliando a boa herança do multiculturalismo, como as lutas por justiça social.

Hoje, contudo, não há consenso entre os formuladores de políticas públicas das sociedades de acolhimento quanto ao uso dos termos “multicultural” ou “intercultural”. Em verdade, raramente esses termos são distinguidos. No entanto, as diretrizes da Unesco sobre educação (2019, p. 84) preconizam que “[...] a educação multicultural recorre ao aprendizado de outras culturas para alcançar a aceitação”, enquanto a educação intercultural procura alcançar “[...] um modo de coexistência [...] em sociedades multiculturais, promovendo o estabelecimento de conhecimento mútuo, respeito e diálogo entre diferentes grupos culturais”.

Com foco na diretriz da interculturalidade, o respeito e a valorização das diferenças se tornarão parte de um projeto educacional mais amplo - o paradigma será considerar a diversidade como norma, e não como uma situação especial (UNESCO, 2019, p. 84). Assim, a integração não seria vista como uma tarefa apenas de migrantes ou de atores envolvidos com as migrações, mas de todos; e haveria a necessidade da oferta de uma educação intercultural para toda a sociedade, e não apenas para grupos específicos ou “minoritários”.

2.2. Gestão escolar, currículo, formação de professores e língua local como política de acolhimento

Há, entre os pesquisadores do campo, o questionamento do quão distante está a escola, como instituição, da realidade global de deslocamentos crescentes e incertos de pessoas. Para Magalhães (2010, p. 150), os sistemas educativos estão bastante desconectados desse mundo móvel, no qual milhares de trabalhadores, refugiados, crianças e adultos migram diariamente.

Já Suárez-Orozco (et al, 2011, p. 311) salienta que as escolas terão de enfrentar cada vez mais algo completamente novo: educar um grande e crescente número de migrantes, dando-lhes níveis de competência e habilidades em um momento de turbulência econômica e mal-estar entre as nações. E como a globalização impõe um novo conjunto de exigências em matéria de educação, as escolas precisarão ainda educar linguística, cultural e racialmente seus diversos estudantes, desde as crianças até os adultos (Suárez-Orozco; Suárez-Orozco; Sattin-Bajaj, 2010, p. 536-537).

Deve haver, então, um corpus institucional capaz de equipar esses sujeitos para a sobrevivência nas economias e sociedades globalmente interligadas, tornando-os cidadãos conscientes, capazes de enfrentar problemas cada vez mais complexos. No entanto, o que vemos são Estados cujas diretrizes não estão alinhadas com a realidade da migração global. Constantemente, gestores escolares se veem lutando para incluir e qualificar sujeitos que simplesmente não são considerados em pressupostos normativos ou em políticas públicas de Estado (SUÁREZ-OROZCO et alii, 2011, p. 322).

Embora a escola não seja o único lugar de integração, ela é um dos mais importantes, e a sua correta gestão faz enorme diferença na oferta e na efetivação de direitos educativos de deslocados. Para Magalhães (2010, p. 155), nos contextos com educandos migrantes, a gestão institucional precisa garantir uma educação permanentemente voltada à mudança: “[...] a negociação disso na prática cotidiana deve ser premissa de educandos, educadores e comunidade escolar”.

Dessa forma, outro desafio central às escolas diante das “novas” migrações é a garantia da oferta de conteúdo de fato relevante e pertinente para migrantes e refugiados adultos.

Há um consenso entre os pesquisadores de que o currículo escolar deve contribuir na superação do caráter monocultural e etnocêntrico das instituições educativas. O currículo deve ainda “desestabilizar a pretensa ‘universalidade’ dos conhecimentos, dos valores e das práticas que configuram as ações educativas” (CANDAU, 2008, p. 53).

É evidente que lidar com as dimensões global e local do currículo sempre será um desafio no cotidiano escolar, pois é preciso capacitação e disposição para articular os conteúdos mais gerais - definidos pelos sistemas educativos - com as questões da comunidade. Mas mesmo que a construção de um currículo considerado adequado varie de acordo com os territórios e os problemas que neles incidem, o debate sobre o tema em nível global é importante inclusive para melhorar as condições da prática docente. Isso porque, em geral, os educadores não têm recebido capacitação para trabalhar com migrantes. De acordo com Katerina Tomasevski (2001, p. 11), os atos internacionais de direitos humanos ou algumas poucas leis domésticas tendem a ser a única orientação disponível para esses profissionais.

Em geral, a formação docente - sobretudo no nível da graduação - não aborda a presença do estudante estrangeiro nas salas de aula; predomina a visão etnocentrista, na qual o migrante é recebido como alguém que tem de obrigatoriamente absorver a cultura local e esquecer a que ele traz consigo.

Ou seja, além de currículo escolar adequado, é preciso investir em formação e capacitação de professores, para que eles se sintam amparados no desafio que é educar ou dar continuidade ao processo educativo dessa população com suas especificidades.

Porém, é difícil esperar que os educadores tenham essas competências quando os ambientes escolares podem ser tão precários e desprovidos de materiais de aprendizagem. Ainda é preciso ressaltar que a inclusão de pessoas deslocadas nos sistemas educacionais sem apoio ao corpo docente pode trazer dificuldades de recrutamento e retenção de professores, fazendo proliferar os contratos de curto prazo, sem garantias trabalhistas e sem capacitação para cuidar de classes superlotadas, multilíngues, multi-idade e repletas de alunos com traumas associados ao deslocamento (UNESCO, 2019, p. 69).

Além disso, há outra importante questão relacionada ao corpo docente: a sua falta de diversidade - desde a étnico-racial até a de origem. É seguro que se entre os professores houvesse maior diversidade haveria também maior autoestima e sentimento de segurança por parte dos alunos migrantes.

Por fim, ao explicitar os desafios do ambiente escolar em contextos migratórios, ressaltamos outra questão central: a aprendizagem da língua local, que deve ser vista, sobretudo, como um processo de acolhimento nas sociedades receptoras, pois ela é fundamental no acesso a outros direitos considerados essenciais, como moradia, trabalho e saúde. Ter conhecimento da língua local estabelece múltiplas vantagens. No contexto escolar, é a primeira porta para quaisquer outros processos educativos que se seguirão em suas trajetórias. Não é exagero afirmar que a falta de conhecimento do código linguístico causa enormes dificuldades de inserção e permanência na escola. Para compreender os conteúdos propostos e realizar aprendizagens significativas, os alunos migrantes precisam de adaptações nas práticas pedagógicas e ações que promovam o ensino da língua local.

Pesquisas têm demonstrado que é preciso entre cinco e sete anos de instrução formal para que alunos estrangeiros desenvolvam plenas habilidades acadêmicas em uma segunda língua, no entanto, a natureza temporária de algumas migrações pode reduzir a motivação para aprender um novo idioma, ao passo que a expectativa de permanecer no país de acolhimento está intimamente ligada a uma maior probabilidade de aquisição da língua local (SUÁREZ-OROSCO; SUÁREZOROSCO; SATTIN-BAJAJ, 2011, p. 543).

No âmbito acadêmico, no entanto, há um debate sobre como encontrar formas de estimular o desenvolvimento de competências linguísticas na língua dominante dos países receptores sem, contudo, ocasionar a perda de suas referências linguísticas de origem (SUÁREZOROSCO; SUÁREZ-OROSCO; SATTIN-BAJAJ, 2011, p. 544).

No estudo publicado por Bartlett e Garcia (2011) sobre a inserção de jovens dominicanos no sistema escolar americano, a importância do conhecimento da língua local sem abdicar da língua materna pôde ser observada concretamente. Ao longo de quatro anos, esses jovens experimentaram práticas pedagógicas onde o espanhol e o inglês compartilharam igualdade de status. Gestores e professores se uniram para oferecer atividades nas quais a translinguagem substituiu o modelo tradicional de educação bilíngue. Ao invés de forçá-los a falar inglês rapidamente, eles valorizaram a utilização dos dois idiomas. O resultado foi um sentimento de otimismo nos alunos migrantes, traduzidos em 83,8% de aprovação ao final do ciclo escolar.

É consenso, então, a valorização das línguas faladas pelos migrantes, principalmente quando há intenção de promover um verdadeiro processo de integração apoiado nos valores da interculturalidade. Ao se deslocarem, os migrantes levam maior diversidade linguística para os territórios e isso desafia as ideologias modernas que ligam identidade e pertencimento a uma única língua nacional. Contudo, isso não deve assustar a comunidade escolar; ao contrário, deve servir de motivo para a adoção de novos e interessantes processos pedagógicos (Suárez-Orozco et al, 2011, p. 314).

2.3. Reconhecimento de diplomas, habilidades e conhecimentos prévios

A desvalorização da experiência prévia escolar e profissional dos migrantes e refugiados adultos é hoje uma das questões mais importantes a ser debatida no campo. Embora algumas formas de conhecimento - em áreas específicas - sejam aceitas, o aprendizado e a experiência profissional dessa população são tratados, em geral, com desconfiança e, principalmente, como inferiores. O motivo, segundo Guo (2015, p. 11-12), seria a tendência em confundir a “diferença” com a “deficiência”, além da crença de que o conhecimento de profissionais migrantes, particularmente daqueles vindos de países pobres ou em desenvolvimento, seria incompatível e inferior aos das sociedades receptoras.

Para Sayad (1998), ainda que o migrante tenha uma formação específica, ele sempre será considerado como um trabalhador desqualificado, pois na sociedade receptora ele só existe a partir do dia em que cruzou a fronteira deste país. Tudo o que antecede a esta existência é ignorado ou deslegitimado.

Mesmo países anfitriões que recebem migrantes altamente qualificados, apostando no recebimento de capital humano, apresentam dificuldades no processo de integração desse contingente devido à falta instrumentos para o reconhecimento de sua aprendizagem e experiência anteriores (GUO, 2014, p. 490).

Evocando o exemplo canadense, Guo adverte que muitos migrantes, que chegaram ao país com mestrado e doutorado, não logram encontrar empregos compatíveis com as suas qualificações. Dessa forma, acabam forçados a aceitar empregos temporários ou subempregos. O resultado é uma perda considerável de capital humano e a perturbação no estado emocional dos migrantes, com sentimentos constantes de decepção, tristeza, raiva e depressão (GUO, 2014, p. 490-491).

O reconhecimento de qualificações e aprendizagens prévias não só facilita a entrada no mercado de trabalho, mas permite que migrantes e refugiados continuem a desenvolver suas habilidades de forma progressiva. No entanto, atualmente, menos de um quarto dos migrantes do mundo está coberto por algum tipo de acordo que verse sobre reconhecimento de qualificações. Os mecanismos existentes são - muitas vezes - fragmentados ou complexos demais para responder às necessidades dos migrantes (UNESCO, 2019, p. xx). Apenas uma minoria de migrantes com alto nível educacional tenta solicitar o reconhecimento de seus diplomas, pois eles nem sempre podem investir os recursos necessários para o procedimento - inclusive no Brasil, onde o processo pode ser lento e custoso.

É importante notar, porém, que nem todas as credenciais estrangeiras são desvalorizadas nos países considerados desenvolvidos. De acordo Guo (2014, p. 490-491), credenciais de estrangeiros de países como Inglaterra ou Estados Unidos e daqueles provenientes da Europa Ocidental estão em ampla vantagem em relação às credenciais daqueles que vêm do Sul Global e da Ásia. Em certo sentido, é preciso desafiar as perspectivas eurocêntricas para que não se continue marginalizando valiosos conhecimentos e experiências humanas.

Por fim, Guo (2014, p. 490) afirma que os problemas relativos ao reconhecimento de qualificações prévias se dá, inclusive, pela noção equivocada acerca dos conhecimentos não formais e informais; não há, nem mesmo entre os profissionais da educação de adultos, a valorização dessas experiências, que podem ser adquiridas por meio de empregos, trabalho voluntário, educação comunitária, atividades recreativas e outras experiências de vida - o que pode dificultar também a participação dos indivíduos em grupos sociais e comprometer seu sucesso educacional.

CONCLUSÃO

Conforme analisado, o acesso à matrícula, por si só, não configura a efetivação dos direitos educativos de migrantes e refugiados adultos; afinal, estar oficialmente inscrito em uma escola não garante a permanência e o sucesso de uma nova trajetória escolar. O direito a estar em uma escola não é a mesma coisa que o direito a aprender em uma escola. Aspectos legais considerados isoladamente - sem alterações nos fatores estruturais e processuais, que são modificados por meio do entendimento da complexidade do fenômeno e de políticas públicas - podem não ser suficientes para garantir tais direitos educativos.

É fato que, no Brasil, a educação está disponível, no sentido de que há escolas e legislação que permitem a matrícula independentemente do status migratório do sujeito. Porém, a distância entre o que está garantido legalmente e o que se manifesta no cotidiano é um desafio em todos os campos dos Direitos Humanos, sobretudo no âmbito da educação (MAGALHÃES; SCHILLING, 2012, p. 60).

Giorgio Agamben (2007, p. 14; 18) compreende essa situação como característica de um estado de exceção que, diferentemente do conceito clássico, não se configura como anomia ou ausência completa do Direito, mas, ao contrário, distingue-se justamente pela edição de normas jurídicas e procedimentos que podem ser extremamente discriminatórios. Para ele, historicamente, o estado de exceção ao qual normalmente estão submetidos migrantes e refugiados não se impõe por meio de medidas excepcionais expressas contra estrangeiros, mas por uma “técnica de governo”, fundada na suspensão discreta - mas permanente - de direitos a uma parcela específica da população.

Dessa forma, é necessário, antes de tudo, que o Estado aja e não apena reaja (muitas vezes, tardiamente) em relações aos diretos de migrantes e refugiados, inclusive de adultos. Os gestores de políticas públicas devem compreender justamente que a educação de adultos migrantes, por possuir especificidades, deve receber atenção e tratamento adequado para que haja relevância na aprendizagem e efetivação de direitos educativos dessa população. Em contextos migratórios soma-se a isso a necessidade de uma educação que se aprofunde também em questões como assimilação, multiculturalismo e interculturalismo, que valorize as diferenças como parte de um projeto educacional mais amplo, cujo paradigma considera a diversidade como norma, e não como situação especial, que reflita sobre questões como adaptação curricular e apoio aos docentes, e que reconheça os migrantes e refugiados como protagonistas de seu aprendizado, legitimando os conhecimentos e capacidades que já trazem consigo - sejam escolarizados ou não.

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Recebido: 1 de Março de 2022; Aceito: 1 de Abril de 2022

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