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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.65941 

Migração e refúgio: desafios educativos entre desigualdades e diferenças

ACOLHIMENTO DE ESTUDANTES REFUGIADOS NO ENSINO SUPERIOR POR MEIO DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: uma aprendizagem das “co-moções”.

WELCOMING REFUGEE STUDENTS IN HIGHER EDUCATION THROUGH THERAPEUTIC ACCOMPANIMENT: learning about “co-motions”.

ACOGIDA DE ESTUDIANTES REFUGIADOS EN EDUCACIÓN SUPERIOR A TRAVÉS DEL ACOMPAÑAMIENTO TERAPÉUTICO: aprendiendo sobre “co-mociones”.

Suellen Ferreira Luz1 
http://orcid.org/0000-0002-1725-1346; lattes: 5259544134460129

Rodrigo Lages e Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-6948-2824; lattes: 2813551873384105

1Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

2Professor na Faculdade de Educação da UFRGS e PPG em Educação da UFRGS


Resumo

Apresentamos resultados de uma pesquisa que foi realizada a partir do acolhimento educacional de estudantes em situação de refúgio no ensino superior em uma Instituição Federal de Ensino durante o período pandêmico. Para tanto, foi realizada uma aproximação entre os temas de saúde mental e educação, tendo em vista que saúde e aprendizagem se tornaram indissociáveis nos processos de acolhimento. A metodologia se caracterizou como pesquisa-intervenção e teve como dispositivo o do Acompanhamento Terapêutico (AT), por meio do qual foi constituída uma prática clínica porosa, composta pela polifonia de vozes que emergiu no encontro com os estudantes. Centramos nosso debate no conceito de “co-moções” como pista ética por meio da qual se buscou transversalizar saúde mental e educação na direção de um bemestar pensado como responsabilização pela vida comum. Na discussão de resultados destacamos a percepção contra-etnográfica do encontro com estudantes refugiados e a noção polifonia que emergiu dessa experiência.

Palavras-chave: acolhimento de refugiados; acompanhamento terapêutico; ensino superior.

Abstract

We present the results of a research that aimed the educational reception of students in a situation of refuge at undergraduate level in a Federal Institution of Education during the pandemic period. Therefore, we made bridges between mental health and education, bearing in mind that health and learning have become inseparable in the reception processes. The methodology was characterized as research-intervention and had as a tool the Therapeutic Accompaniment (TA), through which a porous clinical practice was constituted, composed by the polyphony of voices that emerged in the encounter with the students. We focus our debate on the concept of "co-motions" as an ethical principle in order to transversalize mental health and education in the direction of a well-being thought of as responsibility for common life. In the discussion of results we highlight the counter-ethnographic perception of the encounter with refugee students and the polyphonic notion that emerged from that experience.

Keywords: refugee reception; therapeutic accompaniment; higher education.

Resumen

Presentamos los resultados de una investigación que se realizó a partir de la acogida educativa de estudiantes en situación de refugio en la educación superior en una Institución Federal de Enseñanza durante el período de pandemia. Por lo tanto, se hizo una aproximación entre los temas de salud mental y educación, considerando que la salud y el aprendizaje se han vuelto inseparables en los procesos de recepción. La metodología se caracterizó como investigación-intervención y contó con el dispositivo de Acompañamiento Terapéutico (AT), a través del cual se constituyó una práctica clínica porosa, compuesta por la polifonía de voces que emergieron en el encuentro con los estudiantes. Enfocamos nuestro debate en el concepto de “co-mociones” como un camino ético a través del cual buscamos transversalizar la salud mental y la educación hacia un bienestar pensado como responsabilidad por la vida común. En la discusión de los resultados, destacamos la percepción contraetnográfica del encuentro con los estudiantes refugiados y la noción de polifonía que surgió de esta experiencia.

Palabras clave acogida de refugiados; acompañamiento terapéutico; educación superior.

APRESENTAÇÃO

Em consonância com sua política de ações afirmativas, a partir de 2017 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicou um edital especial de ingresso para pessoas em situação de refúgio ou portadoras de visto humanitário. A pesquisa que gerou os resultados compartilhados nesse artigo teve como objetivo implantar e analisar práticas de acolhimento educacional a estes estudantes, compondo um movimento institucional mais amplo de elaboração de uma política de acolhimento que busque diminuir as violências institucionais, produzir mediações interculturais que facilitem a integração destes estudantes e diminuir sua evasão.

Inicialmente estava planejada a realização de encontros de grupo com estes estudantes, porém, a chegada da pandemia induziu uma reformulação das práticas que estávamos desenvolvendo. Não foi possível levar adiante a ideia do grupo, tendo em vista os protocolos sanitários e a proteção de todas as pessoas envolvidas nesse processo de aprendizagem. Por isso, foi modificada a dimensão de intervenção na pesquisa, a partir de uma demanda apresentada pelo grupo de estudantes que estava organizado em torno de um projeto de extensão intitulado: Bará - Programa de Acolhimento de Estudantes Refugiados e Portadores de visto humanitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Tabela 1 Número de estudantes por edital 

Ano do Edital Estudantes matriculados
2018/1 6
2019/1 20
2020 Edital suspenso em função da pandemia

Fonte: Dados produzidos pelo Programa Cátedra Sérgio Vieira de Mello UFRGS-ACNUR

Uma das primeiras ações do Bará foi a elaboração de questionários, não para fins de pesquisa, mas para orientar ações de extensão. Esse protejo de extensão é constituído de estudantes de diferentes cursos, abrangendo graduandos (as), mestrandos (as) e dotourandos (as), brasileiros e estrangeiros. Compõe o grupo bolsistas de extensão e também professores da universidade. No questionário referido, a saúde mental foi levantada pelos estudantes como uma das principais causas de prejuízos em relação às suas aprendizagens e a sua permanência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Quatro dentre dezessete estudantes referiram à saúde mental como uma das suas maiores dificuldades 11 responderam que gostariam de suporte psicológico gratuito oferecido pela universidade.

Também foram relatados à equipe do Bará episódios de racismo e xenofobia sofridos pelos estudantes refugiados dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sendo esses episódios, dentre outras razões, sinalizados como elementos agravantes de sofrimento psíquico.A aproximação com o campo nos fez pensar na indissociabilidade entre educação e saúde. Aprender abrange uma multiplicidade de elementos que transitam entre saúde, educação e experiência. Ao visualizar essas dimensões na pesquisa, planejamos uma ação como dispositivo clínico-político que pudesse intervir e aquecer esse debate promovendo movimento e acolhimento aos estudantes.

Na impossibilidade de realizar o grupo neste momento, propusemos a incorporação na etapa pesquisa-intervenção da estratégia de Acompanhamento Terapêutico que é uma modalidade de atuação mista entre a intervenção clínica e o apoio transitório (ROCHA; PALOMBINI, 2017). No Acompanhamento Terapêutico, a(o) psicóloga(o) acompanha o sujeito em sofrimento psíquico em alguns trânsitos ordinários (ida a consultas, retirada de documentos, passeios etc.) na cidade ao mesmo tempo em que busca auxiliá-lo a se integrar em uma rede de cuidados e de suporte comunitário, identificando pessoas e serviços que promovem saúde e buscando consolidar laços entre o sujeito em sofrimento e as estratégias vigentes na comunidade.

O AT foi realizado por uma psicóloga que tem experiência com a prática porosa do AT.

Suellen Ferrera Luz estava como mestranda no programa de pós-graduação em Educação. O Acompanhamento contou com a orientação do professor Rodrigo Lages e Silva também psicólogo de formação. Em função do agravamento da crise sanitária, o AT precisou se readaptado. Inicialmente, durante a vigência da bandeira amarela3, que indicava baixo risco de contágio, foram realizados presenciais. Mas com a passagem para a bandeira vermelha e, posteriormente, preta, indicando alto risco, os encontros foram deslocados para modalidade on-line, sendo realizados por videochamadas com a duração de mais ou menos 1h cada encontro. Mesmo alterando a modalidade de contato, buscou-se não perder de vista o as características de abertura espacial do Acompanhamento Terapêutico. As múltiplas camadas de espacialidade possíveis no AT on-line foram uma das análises que a pesquisa possibilitou e está diretamente relacionada ao conceito de co-moção proposto pela pesquisa e apresentado nesse artigo.

Participaram do Acompanhamento Terapêutico, 5 estudantes, sendo eles de diferentes nacionalidades, à saber: Congo, Costa do Marfim, Guiné Bissau e Haiti. Destes 5 estudantes, 3 permaneceram em acompanhamento ao longo do ano de 2021 e 2 participaram apenas de uns poucos encontros. Mantemos em sigilo outros detalhes de identificação, tais como idade e curso de graduação, destes estudantes, por solicitação deles, que dá condição de refúgio entenderam ser necessário preservar mais dados que apenas o nomes. Todas as ações dessa pesquisa contaram com o aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, uma vez que a pesquisa foi também aprovada no Comitê de Ética da UFRGS sob o número 36756220.9.0000.5347. Nesse artigo as falas desses(as) estudantes estão em itálico e com pseudônimo. Os nomes citados nessa pesquisa foram sugeridos pelos participantes do Acompanhamento Terapêutico. A escolha dos nomes foi debatida com eles, numa tentativa de encontrar uma estratégia que oferecesse a proteção do anonimato, mas também viabilizasse o reconhecimento de uma singularidade.

Acolher e “co-mover”

A noção de “co-moções” emergiu durante a pesquisa como um conceito que visa situar uma direção ética e ontológica para um acolhimento que foi simultaneamente educacional e em saúde mental. As co-moções, configuram-se, portanto, como práticas relacionais que envolvem um redimensionamento da emoção pensada como reação aguda a um estresse ambiental (e de onde se origina a palavra comoção - sem hífen), em direção a um campo de afecções entendido como dimensão mais sutil e mais perene de percepção das diferenças. Nesse sentido, uma percepção que é pré-sensorial e que se remete ao conceito de “signos” tal como proposto por (DELEUZE, 2003).

Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. […]Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém (DELEUZE, 2003, p. 21).

O conceito de “signo” tal como pensado por Deleuze (2003), portanto, indica aquilo que tem agência num processo de co-moções, isto é, não se trata das intencionalidades de sujeitos, mas da agência de um campo de diferenciações mínimas que depende de uma disponibilidade dos corpos para que se deixem afetar por elas.

Outra concepção importante para se pensar as co-moções, nesse sentido, é a de corpo.

[...] os corpos estão sempre em algum sentido fora de si mesmos, explorando ou navegando pelo seu ambiente, estendidos e por vezes até mesmo privados por meio de seus sentidos. Se podemos nos perder um no outro, ou se nossas capacidades táteis, motoras, hápticas, visuais, olfativas ou auditivas nos conduzem para além de nós mesmos, é porque o corpo não permanece no seu próprio lugar (BUTLER, 2018, p. 209).

Butler (2018) traz a ideia de que a noção de corpo é uma dimensão estendida, esparsa em um tempo e espaço onde há simultaneidade e diferença entre objetos, matéria, sensações. A ideia de um corpo expandido é também referida por Carlos Cardoso (2016) em um debate sobre a experiência de imanência que é vivida no cotidiano urbano. Abordando a ideia de um corpo constituído por elementos esparsos, ele aponta que a relação que se estabelece entre consciência e memória na cidade amplia a noção de inconsciente que corrobora com a perspectiva de uma subjetividade distribuída.

Aprendi a andar de bicicleta! Fiquei entusiasmada e com medo ao mesmo tempo. Tem olhares pesados nas ruas, há muitos carros e pessoas que constrangem. Fui descobrindo horários e pontos da cidade que jamais tinha visto. Encontrei um tempo mais calmo, ganhei segurança no pedalar e hoje faço trajetos de dia e não mais a noite. É estranho. Eu já tinha tentado andar de bicicleta no Congo, e não conseguia. E aqui tem muitas bicicletas acessíveis e partes da cidade específicas para quem quer andar de bicicleta. Saí do Congo desejando aprender a andar de bicicleta e aqui tive coragem de tentar pedalar e me equilibrar entre as rodas. Agora eu literalmente voo as tranças pela cidade (Narrativa Elikia4).

As cenas cotidianas se repetem em certa dimensão, em outras, há diferenças interferindo nos pensamentos e ações do dia a dia. Estar atento a essas variações ressignifica o modo como ocupamos os espaços. As conexões afetivas nos envolvem num campo de sensações que acessa um imaginário capaz de criar, reeditar e trazer múltiplos sentidos para uma determinada representação.

Sou uma mulher autônoma, independente. Sempre busquei minha independência! Em Porto Alegre, eu tive mais oportunidades de trabalho e de fazer o que gosto. Sou trancista e trabalho no cuidado e aceitação do cabelo negro, fortalecendo a nossa cultura. Aprendo com essa experiência e auxílio às mulheres negras brasileiras a gostar dos cabelos delas. Trabalho essa questão cultural aqui no Brasil. Em Guiné Bissau, o povo conhece e utiliza tranças desde criança. Quero poder compartilhar essa história com o Brasil e fortalecer mulheres negras que aqui vivem (Narrativa Fayola).

O acolhimento sob a perspectiva das “co-moções” envolve uma dimensão de estranhamento; pressupõe que as surpresas de um cotidiano importam na produção dos sentidos e transformam a realidade. Dessa forma, o conceito de co-moções foi um operador ético e ontológico fundamental para pensarmos o significado do acolhimento de pessoas em mobilidade.

O Acompanhamento Terapêutico como dispositivo de acolhimento

O Acompanhamento Terapêutico configura-se em uma estratégia clínico-política que entende o cuidado em saúde mental envolvido no espaço aberto. Atua como dispositivo de interpenetração, misturando e contagiando disciplinas psicológicas no espaço e tempo da cidade. Consolida uma rede de interlocuções no âmbito da reforma psiquiátrica, mantendo aceso o necessário debate entre clínica e política, entre universidade e redes de serviços de atenção em saúde, entre dimensão pública e dimensão privada da clínica como setting terapêutico fixado apenas num cenário (PALOMBINI, 2007).

Iniciamos o Acompanhamento Terapêutico de forma presencial, porém o agravamento da crise sanitária fez com que repensássemos a disponibilidade presencial no território geográfico.

Demoramos até entendermos esse território remoto como modulação das experiências existenciais.

No início, a necessidade de acessar um computador para encontrar era frustrante. O dispositivo que permitia comunicação era um objeto tecnológico que num primeiro momento fazia oposição com o conceito de corpo objetivado pela pesquisa. O computador parecia fazer uma aproximação contraditória, as imagens apareciam quadriculadas e inconsistentes. A presença parecia estar em outro lugar. Era desconfortável.

Uma pista para superação desse desconforto foi observar a importância da comunicação mediada pelo celular ou pelo computador, maiormente o celular, para as(os) participantes da pesquisa. Courageuse tem experiência em firmar a presença mesmo com a distância geográfica. Desde que chegou ao Brasil, vem sustentando encontros com seus familiares por meio de diálogos pelo Whatsapp ou por vídeochamada. Esse modo de relação é importante para Courageuse, para Elikia e também para Christophe. Mesmo quando a internet não ajuda, tem algo da presença que insiste em comunicar. Afetos perpassam essa insistência, fortalecendo algo vital no processo de migração.

Falo com minha família todos os dias. No Haiti, tenho minha mãe, meu pai e um irmão. Às vezes conversamos por mensagem e quando a internet está boa lá, nós conversamos por vídeochamada. É assim que conseguimos matar um pouco da saudade que sentimos uns dos outros. É assim que conseguimos interagir e saber o que acontece (Narrativa Courageuse).

Mesmo nesse campo remoto, as dimensões do campo geográfico também estavam colocadas para o AT. Courgeuse é curiosa e, ao longo de diálogos, ela conta a história de suas experiências em Porto Príncipe, capital do Haiti. Nos momentos em que ela narra vivências em seus país, ela questiona “como é aqui no Brasil”? A diversidade cultural faz questões em qualquer modalidade de encontro se tratando da estrangeiridade. Desde os primeiros contatos, as interrogações sobre a diferença estiveram colocadas. “No Haiti, o povo negro garantiu sua libertação antes da independencia do pais, aqui no Brasil foi diferente, o pais proclamou sua independencia mesmo tendo mais de 4 milhoes de pessoas negros sendo escravisados” (Narrativa Christophe). As histórias do mundo nos compõem e nos atravessam de modo singular.

A narrativa de Christophe se torna também uma problematização sobre a estrutura racista que percorre a história do mundo, sobretudo a história do Brasil. As questões sobre a estrutura racista, sobre xenofobia e apropriação da língua, aparecem como um vetor que provoca constrangimento e violências, contribuindo com as dificuldades de integração e pertencimento.

Quando Courageuse fala de sua cultura, ela faz referência ao seu país de origem (Haiti). Quando ela questiona a cultura Brasileira, ela faz uma localização de onde estamos. Entendemos que questionar “o Brasil” tem a ver com um desejo de abertura e pertencimento nesse Brasil do qual eles habitam na região metropolitana e nos espaços educacionais.

Falo com minha mãe e meus familiares em Krèole haitiano. Falo também francês, que é uma outra língua falada no Haiti. O francês é uma língua intelectual e elitizada. Só fala francês quem conseguiu estudar. Há poucos livros escritos em kreòle, a maioria são escritos em francês. Os poucos livros em kreòle são apresentados para os alunos apenas no ensino básico, no ensino médio e superior são apresentados livros apenas no francês. Francês é a língua do colonizador. É a língua oficial do país com o kreòle. Existem alguns lugares e eventos que vão apenas intelectuais e só se fala em francês e isso muitas vezes é motivo de exclusão e preconceito com quem não frequentou a escola por não ter tido a oportunidade ou porque não quis. Aqui no Brasil todos falam português, quem estuda e quem não estuda. Independentemente do que cada um escolhe, todos falam a mesma língua, ainda que a forma de falar seja diferente em cada região (Narrativa Courageuse).

Courageuse fala bem o português, sente-se inserida em espaços nos quais consegue ser compreendida e entende a língua portuguesa, todavia, ela ressalta que mesmo as pessoas que não conseguem ser inseridas na língua oficial do país precisam ser acolhidas. Courageuse vem desenvolvendo com a universidade um trabalho de mediadora cultural. Foi a partir de sua experiência com a língua em um processo de integração que ela encontrou essa potência em relação à interculturalidade.

As questões que eles vêm formulando no percurso de vida em Porto Alegre e também junto à universidade têm provocado indagações que alteram perspectivas e os modos de relação no que diz respeito aos migrantes e pessoas em situação de refúgio. A presença dela nos espaços provoca rupturas e tensionam a anestesia do saber cristalizado. Courageuse seguidamente firma o tônus da voz e tensiona as posições que trazem constrangimento para os estudantes em situação de refúgio. Se um trabalho é em grupo, então, o trabalho é coletivo, não é cada um fazer a sua parte sozinho e depois juntar. Não, é um trabalho pensado junto (Narrativa, Courageuse).

Certa vez ela disse que, ao transitar por Porto Alegre, recém-chegada, percebia que as pessoas não tinham tanta disponibilidade para perguntas. Não gostavam de ser interpeladas na rua. Aqui as pessoas passam e não te cumprimentam, não olham nos olhos, e quando enxergam às vezes é constrangedor (Narrativa Courageuse). Não estamos falando apenas de um campo de relações privado, mas de convivência social. A partir dos encontros com os acompanhantes terapêuticos, emergiram problemáticas que extrapolam vidas individuais e se remetem à uma concepção de política, isto é, de ética da vida comum. Pensar acolhimento, saúde mental e educação não é possível, portanto, sem habitar esse campo problemático.

A jornada de estudos e trabalho dos estudantes em situação de refúgio apresenta questões que envolvem a intesecccionalidade das marcas do racismo, xenofobia, gênero e classe social. Essas problemáticas estão também nas instituições e nos modos de subjetivação que habitam o mundo. Para pensar a possibilidade de permanência e diminuição da evazão, foi imprescindível constituir uma prática porosa, onde os estudantes em situação de refúgio ocuparam espaço como ativo, conseguindo narrar, por meio dos grupo de extensão, em debates e no AT, o anseio por espaços de legitimação.

Em muitos encontros os estudantes falaram que o cansaço os acompanha e dificilmente dá trégua. Esse cansaço não diz respeito apenas às horas de trabalho e de estudos, mas também aponta para efeitos da violência institucional e individual que marcam a inserção universitária destes estudantes. Vimos que a xenofobia e o racismo estruturalmente incorporados em espaços universitários formais, como as instâncias burocráticas e a sala de aula, e informais, como a casa do estudante, ratificam as violações de direitos e reiteram aos estudantes uma experiência de fronteira.

O estudante em situação de refúgio precisa não apenas adentrar em uma nacionalidade diferente, como também se adaptar às marcas dos diferentes traços de violência que estruturam a nossa sociedade para, então, seguir o rumo dos estudos. Depois deste percurso de reconhecimento, Fayola consegue comprovar seu desejo de cursar uma universidade e autentica suas condições frente à instituição. Na secretaria, ela segura os papéis com as mãos trêmulas. Sua sensação é a de que “alguma coisa nesses papéis não será aceita” (NARRATIVA FAYOLA). Seu projeto de vida está em suas mãos que, trêmulas, entregam seu destino à instituição. Essas sensações, e tantas outras que não estão nomeadas nesse texto, compõem e modulam as aprendizagens que não são iguais. “A educação emerge como uma questão ética, pois está implicada à dinâmica inevitável de tessitura de experiências com o outro” (RUFINO, 2017, p. 105).

Courageuse disse que era preciso “esperançar”. E que cuidar do cansaço é diferente de estar indisposta. A indisposição impede as ações e o cansaço diz de um corpo ativo agente das ações. Esse corpo, encontrando rede e revezamento, consegue ampliar os momentos de descanso e agir no tempo das oportunidades operando cisão.

Os achados metodológicos dessa pesquisa indicaram que o AT, nesse contexto virtual, apresenta uma espacialidade que não está dada de antemão mas que ganha força no decorrer dos encontros. O AT foi se consolidando na sua adaptação à modalidade on-line à medida que também foram se organizando diferentes trânsitos acadêmicos nestes espaços: encontros de extensão, grupos de trabalho, organização de eventos, os próprios eventos, tudo foi se tornando on-line.

Outra perspectiva que ganhou força com o AT foi a concepção da pequisa como dispositivo de inclusão e coautoria. Os textos não eram produzidos de maneira exclusivamente individual. Ainda que a escrita dos textos, sim. A concepção, a avaliação da precisão dos textos eram compartilhadas. Mesmo quando os(as) participantes não tiveram acesso à produção do texto, participavam da ideia e elaboração das formas de dizer. Esse é também um gesto de acolhimento. Foi se construindo uma prática de polifonia com os(as) estudantes participantes da pesquisa no sentido de problematizar o que significa acolher e quais os maiores desafios nesse sentido.

As contribuições nesse processo de pesquisa foram explicitadas e partiram de um consenso com eles(as). O que eles não gostariam de expor, não apareceu nesta pesquisa. E essa é uma direção ética que também se tornou operativa no que diz respeito ao tema de saúde mental, aprendizagem e integração. Ao incluí-los(as) no processo que dizia respeito a eles(as) mesmos estávamos ao mesmo tempo promovendo avanços tanto no seu bem-estar emocional, como na sua sensação de pertença à universidade.

Tateando um bem viver: a experiência do AT e seus desdobramentos

Durante o acompanhamento, fomos percebendo que a demanda relacionada ao adoecimento mental estava mais atrelada ao espaço de reconhecimento e legitimação de uma narrativa. Algo comum na escuta dos estudantes em situação de refúgio era a busca pela inserção educacional e cultural. Há um desejo de reviver suas histórias, de sustentar as diferenças e contribuir com a possibilidade de existir sem tantas restrições, sem precisar apenas incorporar uma nacionalidade sem se sentir pertencente a ela, não por uma impossibilidade de adaptação, mas pela negação da diferença que percorre os espaços sociais.

A partir da experiência, surgiram modos de estar em um espaço de convivência. Essa noção de convivência se aproxima dos significados da palavra ANFÒM, palavra do criolo haitiano trazida pelos estudantes em situação de refúgio, e que num sentido muito resumido significa bem-viver, mas um bem-viver que não caracteriza uma solução total, uma instrumentalização do que é viver bem, nem cartilha moral.

Não sabemos como é viver bem para todas as pessoas e também não relativizamos as condições de um bem-viver. Este termo foi apresentado por estudantes implicadas com a manutenção de condições psíquicas em meio à precariedade das condições estruturais que geralmente encontram no Brasil, somada com as violências racistas e xenofóbicas, também estruturais e tudo isso agravado por uma pandemia que fez as diferenças sociais ainda mais vulnerabilizantes. Entendemos que esse bem-estar, que é ao mesmo tempo subjetivo e físico, individual e coletivo, deve ser um dos critérios a pautar o acolhimento no ensino superior, mais além do mero desempenho acadêmico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das coisas que aprendemos com a proposta de acolhimento pela via do AT é que abrir espaço de produção de sentidos compartilhados envolve uma espécie de contra-etnografia dos estudantes em situação de refúgio, caracterizada por constituir no encontro etnográfico as condições para que o participante organize e sistematize suas hipóteses e interpretações acerca do universo de referência do pesquisador. Mais do que oferecer respostas trata-se de escutar muitas das perguntas que eles(as) fazem sobre o nosso modo de vida. Acolher é também nos defrontarmos com as análises que eles formulam sobre nós como brasileiros e como agentes institucionais do acolhimento. Em especial, suas problematizações sobre o significado do refúgio, sobre o ambiente universitário no Brasil, sobre nossa forma de racialização, e sobre nossas concepções de saúde e bem-estar.

Outra aprendizagem importante foi a da pesquisa como uma construção coletiva. A metodologia de autoria compartilhada compôs isso que chamamos polifonia e que tem a ver como o campo das co-moções como corporeidade expandia e como atenção e abertura às diferenças. Construímos possibilidades de dizer e afirmar aprendizagens no campo da Educação e também na Saúde, reconhecendo a experiência de refúgio numa dimensão singular que não necessariamente é exclusiva, mas se remete ao deslocamento e a mobilidade tanto entre fronteiras, como na dimensão experiencial, existencial e, nesse sentido, concerne não apenas aos sujeitos com esse statuto legal, mas a todos.

3 Conforme protocolo sanitário instituído pelo Decreto Estadual nº 55.115, de 12 de março de 2020 (RS).

4 Os nomes são pseudônimos escolhidos pelos participantes.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. [ Links ]

CARDOSO, Carlos Antônio. A subjetividade, o Fora e a cidade: repensando o sujeito, o espaço e a materialidade. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 242-251, ago. 2016. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. [ Links ]

PALOMBINI, Analice. Lima. Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica da reforma psiquiátrica. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. [ Links ]

ROCHA, Lorenna. Pinheiro.; PALOMBINI, Analice. Lima. A clínica do Acompanhamento Terapêutico como pesquisa psicanalítica: Uma escrita compartilhada entre vários. Ágora (PPGTP/UFRJ), v. 20, 2017. p. 732-742. https://doi.org/10.1590/1809-44142017003012. [ Links ]

RUFINO, Luis Rodrigues. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. 2017. 233 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. [ Links ]

Recebido: 1 de Março de 2022; Aceito: 1 de Maio de 2022

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Pesquisadora com financiamento CNPq número 135592/2019-4

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Pesquisador com financiamento CAPES Código de Financiamento 001

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