SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número69RENÉ DESCARTES: sua contribuição para a ciência moderna e o impacto das suas ideias na educaçãoCONVERSAS PROFISSIONAIS SÍNCRONAS E ASSÍNCRONAS COM RECURSOS TECNOLÓGICOS NA MENTORIA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.64482 

Artigos de Demanda Contínua

VIDAS NARRADAS: mulheres e natureza no pampa gaúcho1

NARRATED LIVES: women and nature in the gaucho pampa

VIDAS NARRADAS: las mujeres y la naturaleza en la pampa gaucha

Juliana Corrêa Pereira Schlee1 
http://orcid.org/0000-0002-3566-2181; lattes: 0268539146217826

Paula Corrêa Henning2 
http://orcid.org/0000-0003-3697-9030; lattes: 5709258385798459

Paula Regina Costa Ribeiro3 
http://orcid.org/0000-0001-7798-996X; lattes: 0516745823012125

1Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Rio Grande, RS, Brasil.

2Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Rio Grande, RS, Brasil.

3Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Rio Grande, RS, Brasil.


Resumo

Este artigo é fruto de um estudo realizado no interior de um grupo de pesquisa com a finalidade principal de problematizar como as mulheres ambientalistas do pampa gaúcho narram a sua relação com a natureza e com a educação ambiental. Trata-se de uma investigação que toma assento especialmente nas filosofias da diferença, tensionando o pensamento e os modos como nos relacionamos com a natureza. Como caminho metodológico realizamos uma investigação narrativa através de uma conversa com três mulheres ambientalistas do pampa do Rio Grande do Sul. Ao final desta investigação consideramos que as mulheres narram suas relações com a natureza, onde o cuidado e o amor pelo lugar tornam-se fundamentais para o sentimento de pertencimento, um sentimento que intitulamos como sentimento pampeano.

Palavras-chave: educação ambiental; mulheres; Pampa; natureza.

Abstract

This article is the result of a study conducted within a research group with the main purpose of problematizing how women environmentalists of the gaucho pampa narrate their relationship with nature and environmental education. It is an investigation that uses as a guide the philosophies of difference, making reflections, and how we relate to nature. As a methodological path we carried out a narrative investigation through a conversation with three women environmentalists from the pampa of Rio Grande do Sul. At the end of this investigation, we consider that women narrate their relationships with nature, in which care and love for the place become fundamental to the feeling of belonging, a feeling that we call a Pampean feeling.

Keywords: environmental education; women; Pampa; nature; narratives.

Resumen

Este artículo es el resultado de un estudio realizado dentro de un grupo de investigación con el objetivo principal de problematizar cómo las mujeres ambientalistas de la pampa gaucha narran su relación con la naturaleza y la educación ambiental. Es una investigación que tiene lugar especialmente en las filosofías de la diferencia, tensando el pensamiento y las formas con las que nos relacionamos con la naturaleza. Como camino metodológico, llevamos a cabo una investigación narrativa a través de una conversación con tres ambientalistas de la pampa de Río Grande del Sur. Al final de esta investigación consideramos que las mujeres narran sus relaciones con la naturaleza, donde el cuidado y el amor por el lugar se vuelven fundamentales para el sentimiento de pertenencia, un sentimiento que llamamos sentimiento pampeano.

Palabras clave educación ambiental; mujeres; Pampa; naturaleza; narrativas.

PRIMEIRAS PALAVRAS

"Está vendo aquele umbu, lá embaixo, À direita do coxilhão?"

No manantial

Eu vi nascer

Uma rosa

Baguala

"Vancê está vendo bem agora?"

(RAMIL, 1997) [grifo do autor].

Sempre dói na alma, mexer nestas lembranças.

E há quem não acredite!...

A cruz...onde já foi!...mas a roseira baguala, lá está! Roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios... Vancê está vendo bem, agora?

Pois é...coloreando sempre! Até parece que as raízes, lá no fundo do manantial, estão bebendo sangue vivo no coração da Maria Altina... (LOPES NETO, 2011, p. 71).

Você está vendo bem agora? Pergunta Blau Nunes - personagem de João Simões Lopes Neto ao patrício -“Pois é... coloreando sempre!” A rosa baguala, indomável, persistente em meio ao manantial. Lembranças de Blau, memória, história, cultura, posições marcadas. Maria Altina nos faz lembrar as mulheres do pampa, vidas singulares, vidas infames esquecidas pela história oficial, a rosa mostra-se na potência de re-existência, de re-viver, de re-invenções, assim como a milonga de Vitor Ramil mostra um convite potente para pensar, silenciar e ouvir... Ouvir novas vozes, outras tantas histórias possíveis no pampa gaúcho, redefinir e reinventar posições do feminino e do masculino, se relacionar com o pampa e com outros devires. Começamos a escrita deste artigo com o pensamento na rosa... “coloreando sempre!”

Este artigo é fruto de um estudo realizado no interior de um grupo de pesquisa com o intuito principal de problematizar como as mulheres ambientalistas do Pampa gaúcho narram sua relação com a natureza e a educação ambiental (2019). Para isso, aprimoramos a escuta das múltiplas vozes de mulheres-narradoras que vivem o cotidiano pampeano e nos dedicamos a olhar para as narrativas no que tange às posições que as mulheres assumem nas relações com a natureza, na construção do que chamaremos, nessa escrita, de sentimento pampeano.

O texto se divide em três momentos distintos: no primeiro, traçamos os caminhos metodológicos por intermédio da investigação narrativa; no segundo, realizamos a análise das narrativas, apresentando, mais fortemente, o tom teórico e problematizador desse artigo e, por fim, na última seção, buscamos tramar os fios que foram sendo tecidos nesse estudo.

CAMINHOS INVESTIGATIVOS: MULHERES-NARRADORAS

Traçando os caminhos possíveis desta investigação, provocamos e problematizamos o estudo a partir de uma reflexão filosófica daquilo que constitui fortemente uma das pesquisadoras: uma mulher ambientalista do Pampa gaúcho. As mulheres investigadas, nesse estudo, incluindo nós, que o escrevemos, são/somos atravessadas pela Educação Ambiental, constituídas de muitos discursos de verdades, tecidas e fabricadas como sujeitos desse universo. Com essa preocupação, realizamos as conversas com as mulheres-narradoras dessa pesquisa.

Ousamos estudar e conversar definindo isso como um instrumento para produção de dados na investigação narrativa. As conversas com as mulheres foram realizadas através da Charla do Pampa, que teve, como princípio, o hábito comum de tomar mate e conversar, um costume próprio do Pampa, o qual foi se estendendo para outras regiões. Desse modo, foi na roda de mate, de chimarrão com os familiares e amigos que compartilhamos pensamentos, contamos experiências vividas, relembramos acontecimentos e, também, escutamos os sujeitos do estudo. A Charla do Pampa ocorreu no ano de 2018.

As três mulheres ambientalistas que tornaram possível a Charla do Pampa entendem que fazem educação ambiental. Assim, elas compreendem que educam ambientalmente. Narraram suas experiências vinculadas a esse tipo de educação, suas relações com a natureza, com o Pampa, em um processo de construção de como se sentem, de suas experiências, das vividas pelos outros, bem como do contexto histórico e cultural em que estão inseridas. Vivem entre o espaço urbano e rural do Pampa gaúcho, nos municípios de Arroio Grande, de Herval e de Pelotas. São mulheres que têm muitos anos de vivência no interior do Estado do Rio Grande do Sul, com idades entre 35 e 70 anos.

A investigação narrativa é utilizada cada vez mais nos estudos educativos. Segundo Connelly e Clandinin (1995), a razão principal para o seu emprego é que os seres humanos são organismos contadores de história, os quais vivem vidas relatas, tendo, como foco principal, a experiência humana, “[...] la narrativa es uma forma de caracterizar los fenómenos de la experiência humana” (CONNELLY e CLANDININ, 1995, p. 12).

Nessa metodologia, valorizamos tanto o saber cotidiano, quanto o saber científico, sem hierarquizar os saberes. Dessa forma, atribuímos voz às singularidades das experiências vividas, aos modos de ser e de viver no Pampa gaúcho, aos modos de ser natureza, ser mulher e ser Pampa. A partir da investigação narrativa, buscamos problematizar as relações e as preocupações ambientais que se estabelecem entre as mulheres, a natureza e o Pampa.

El valor central de la investigación narrativa deriva de la cualidad de sus “temas”. La narrativa y la vida van juntas y, por tanto, el atractivo principal de la narrativa como métodod es su capacidade de reproducir las experiências de la vida, tanto personales como sociales, em formas relevantes y llenas de sentido (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 43).

Os fatos vividos e relatados pelos sujeitos de pesquisa reconstroem as trajetórias vividas, ressignificando-as, o que provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros. Um dos propósitos da investigação narrativa foi tornar a pessoa visível para ela mesma ao contar suas experiências, crenças, expectativas e, ao mesmo tempo, deixá-la anunciar novas possibilidades, intenções e projetos. Tratou-se de uma articulação entre experiência e narrativa, que fazem parte da vida de cada sujeito. Mas é importante lembrar que isso é um processo cultural, em uma mútua captura de quem narra e de quem ouve. As histórias narradas foram dirigidas pelas questões investigatórias, ocorrendo a interferência de quem ouviu os sujeitos do estudo, especialmente na reinterpretação de significados (CUNHA, 1997).

Para Larrosa (2002), a narrativa é uma prática discursiva na qual o sujeito se constitui para si mesmo, permeado de relações de poder. Essas relações, por sua vez, fazem os seres humanos contarem sobre suas vidas a partir de determinadas formas, em certos contextos e para determinadas finalidades. Por isso, “as práticas discursivas nas quais se produzem e se medeiam as histórias pessoais não são autônomas” (2002, p. 71). No interior de determinadas práticas sociais, as histórias são mediadas e produzidas com base no que contamos e nas histórias que ouvimos, dando sentido ao que somos e a quem são os outros. Desse modo, construímos e expressamos nossa subjetividade a partir de estruturas narrativas, como pontua Larrosa:

Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe preexistem e em função das quais constrói e organiza de um modo particular sua experiência, impõe-lhe um significado. Por isso, a narrativa não é o lugar de irrupção da subjetividade, da experiência de si, mas a modalidade discursiva que estabelece tanto a posição do sujeito que fala (o narrador) quanto as regras de sua própria inserção no interior de uma trama (o personagem) (LARROSA, 2002, p. 70).

Importante ressaltar que, com essa metodologia, optamos por de fazermos uma pesquisa em que tivemos a possibilidade de ouvir as histórias dos sujeitos a partir de suas vozes, experiências e trajetórias vinculadas ao campo de saber da Educação Ambiental. Durante o estudo, houve relações que se estabeleceram entre as pesquisadoras e as envolvidas, em que as estudiosas se tornaram parte da (re)construção das narrativas que foram compartilhadas, integrando-se ao processo.

No processo de investigação narrativa, é importante ressaltar a questão ética, de forma que, respeitando as características metodológicas e a pesquisa em educação, elaboramos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que as envolvidas autorizassem as entrevistas, assim como o uso dessas nesta pesquisa. No sentido de preservar a identidade das participantes, elas elegeram seus codinomes: Lala, Aradia e Dona Corunilha.

Ao analisar as narrativas, buscamos pesquisar as condições de emergência a fim de que o sentimento pampeano - sentimento nomeado por nós, pesquisadoras, após a análise inicial do estudo - fosse recorrente nas narrativas das mulheres ambientalistas do Pampa, tramadas pela história e pela cultura gaúchas, com marcas de uma estética e sensibilidade; pelo o amor e pelo cuidado com o lugar, com o Pampa nas relações entre as mulheres e a natureza; e por atravessamentos potentes na vida dessas mulheres de educação ambiental, com vestígios de um pertencimento ao lugar em que vivem.

Na segunda seção, denominada “Contem melhor esta história”: mulheres e natureza, dedicamonos a olhar para as narrativas no que se refere às posições que os sujeitos femininos assumem nas relações com a natureza, na construção do já referido sentimento pampeano.

CONTEM MELHOR ESTA HISTÓRIA: MULHERES E NATUREZA

Nesta parte da pesquisa, buscamos olhar para as narrativas no que tange às relações que se estabelecem entre as mulheres e a natureza no Pampa gaúcho, como uma das possibilidades para a emergência do que chamamos de sentimento pampeano, ao manifestarem uma sensibilidade estética, um modo de ver, de narrar e de sentir o espaço em que habitam. No entanto, não podemos deixar de considerar as condições que foram produzidas ao longo da nossa história e cultura para que esse sentimento surgisse. Afinal, a história e a cultura do Rio Grande do Sul são marcadas pelo enaltecimento do homem - gaúcho, viril, forte - na centralidade das relações com o Pampa.

Em suma, a história crítica do pensamento não é uma história das aquisições nem das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a história das “veridicções”, entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi paga, seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando certo tipo de objeto a certas modalidades do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível (FOUCAULT, 2006, p. 235) [grifos do autor].

Em um processo que não é linear ou finalizado, fomos nos constituindo, como mulheres e homens pampeanos, ao longo das nossas vidas, por meio de práticas sociais e culturais permeadas pelos jogos de verdade. Nessa perspectiva, para nos auxiliar nas análises das narrativas dessa seção, buscamos a compreensão do conceito de gênero, entendendo-o como uma construção social e o cultural a qual diferencia mulheres de homens. Essa concepção, por sua vez, produz seus corpos, distinguindo-os, nomeando-os como seres dotados de sexo, gênero e sexualidade, além de envolver o produto e os efeito das relações de poder. O conceito de gênero nos auxiliou a problematizar as representações, bem como os processos culturais e históricos que implicam a constituição dos sujeitos. Dessa forma, consideramos a importância dos estudos de Michel Foucault para nossa pesquisa, assim como considerou Ana Colling (2014) em seu trabalho sobre a construção histórica do corpo feminino:

Michel Foucault revolucionou a vida das mulheres, ou pelo menos a sua história. Ao mostrar em suas obras que os objetos históricos são meramente construções discursivas, Foucault libertou as mulheres da sua natureza, permitindo que pudessem tomar para si sua história. Mostrou-nos que tudo aquilo que invocamos do passado passa por um trincado jogo de relações de poder e saber que instituem verdades (COLLING, 2014, p. 34).

Tomar para si a história relaciona-se a olhar, a problematizar, a questionar as diferenças nas posições entre homens e mulheres da região pampeana, entendendo-as como sociais, culturais e discursivamente construídas e não biologicamente determinadas. Logo, assim como nas relações de poder, elas são produzidas, vividas e legitimadas. Essas conexões de poder podem ser entendidas como uma malha que, por meio de estratégias, de táticas e de técnicas, “são postas em funcionamento na medida em que se exercem sobre os menores espaços da vida individual e social” (FONSECA, 2003, p. 33).

Ao olharmos para as narrativas, percebemos essas posições marcadas, esses espaços legitimados, os quais reproduzem diferenças baseadas no gênero:

Eu me lembro quando a gente era pequena, lá nos meus avós... Mas me lembro assim...se eu falar de pampa extensão eu me lembro do homem que levantava todo mundo cedo e ia embora pro campo e voltava ao meio dia, e aí tava tudo pronto, é terreiro varrido e essas coisas... de dar leitinho para os cordeirinhos, a mulher ficava fazendo tudo isso, a mulher ficava em casa, eu não vejo a mulher um tanto assim, fazendo as mesmas lidas do homem do campo, lá em casa pelo menos era assim. Mas acho que a mulher, assim também, aquela que assume... vai sempre, só o marido e a mulher acho que ela vai também nas lides do campo (Lala, 2018).

A narrativa de Lala nos apresenta um espaço que, ao longo dos anos, no Pampa gaúcho, foi instituído, ou seja: o espaço privado para as mulheres e o público para os homens. “A dicotomia entre o privado e o público ocupa um lugar de destaque na história das mulheres” (COLLING, 2004, p. 21), sendo essa problematização potente com o intuito de pensarmos não somente nessa dicotomia ou separação, mas em como esses espaços são dotados de hierarquização na produção política, no espaço público e, no discurso dela, nas maneiras de se relacionar com o Pampa. Ao ler a narrativa acima, ela nos remete a muitos artefatos culturais, isto é, ao que é narrado ou visualizado na literatura, na fotografia, nas músicas, assim como em outros tipos de arte, tal como nas obras de Juan Manuel Blanes, artista uruguaio.

Blanes teve, entre seus trabalhos mais reconhecidos, diversas representações dos chamados “gauchitos”, nas quais prevalece a figura masculina e existe uma romantização do gaúcho em contato com a natureza. Conhecido como pintor da pátria uruguaia e fundamental na constituição da identidade nacional de seu país, Blanes apresenta, em suas pinturas, poucas mulheres dedicadas ao espaço rural, construindo o Pampa como espaço do trabalho masculino. Uma de suas obras, de 1881, intitulada “Os três chiripás” (Figura 1), é um dos poucos trabalhos que Blanes dedicou ao espaço pampeano no qual apresenta figuras femininas.

Fonte: O Gaúcho, 2018.

Figura 1 Juan Manuel Blanes, “Os três chiripas”, 1881, óleo sobre tela, 81 x 101 cm. 

Na tela “Os três chiripás” (Figura 1), Blanes representa um grupo de seis pessoas, três homens e três mulheres. O título faz referência às figuras masculinas que voltam a ser representadas em outras telas do mesmo artista, como na obra “O chiripá vermelho”. A composição acima apresenta uma cena de aparente descanso, na qual quatro das personagens, escoradas em uma espécie de cerca de madeira, observam a interação de um dos homens, que está à esquerda da tela, com um grupo de cachorros. Duas das mulheres aparecem cercadas nas laterais pelos outros dois homens, enquanto a terceira ocupa a porta da casa ao fundo. Ainda que as mulheres estejam presentes, no trabalho de Blanes dedicado aos gaúchos, elas são retratadas acompanhadas por homens e próximas ao ambiente da casa, ocorrendo o contato delas com a natureza por conta do próprio cenário e dos animais presentes. Em nenhum outro trabalho do mesmo artista, produzidos no século XIX, que ilustram os modos de ser e de viver o nosso contemporâneo, são representadas mulheres desacompanhadas ou distantes do ambiente doméstico. Vale lembrar o quanto as culturas do Rio Grande do Sul estão tramadas às culturas do Uruguai, pela proximidade geográfica desse estado e desse país, respectivamente. Além disso, o bioma Pampa é reconhecidamente um bioma tanto do Rio Grande do Sul quanto de toda extensão geográfica das terras uruguaias.

Desse modo, por meio da cultura, conseguimos analisar os modos de ser mulher no Pampa e as maneiras de se relacionarem com a natureza. Assim, passamos a pensar: como elas ocupam esse espaço pampeano, que é marcado pela masculinidade? De que maneira elas atuam na ocupação desse local como mulheres ambientalistas pampeanas? Como o modo de se relacionar com a natureza vai constituindo essas mulheres?

Eu acho que é interessante também ver como essa cultura é uma cultura viva, né. Porque isso que a Dona Lala fala, né, eu vou perguntar vinte vezes (risos). Isso que ela coloca isso é muito real assim... A mulher realmente não ocupava um lugar no campo, e nem era... não existia essa opção : “- Ah você vai trabalhar...” Não existia essa opção. Era mulher, ia trabalhar em casa, limpar em casa... (Dona Corunilha, 2018).

Porque era a cultura que se tinha, que se vivia naquele momento histórico, não só no pampa, mas no geral, né. Era essa a cultura que se vivia e com os anos isso foi tendo uma abertura, não só no pampa, mas uma coisa que vai acompanhando o processo geral, e hoje tu tem, a mulher tem a liberdade de fazer o que bem entender, enfim, assim como o homem também, tem também a liberdade de não sair pro campo e fazer as lidas da casa. Hoje eles têm essa liberdade!(...) (Dona Corunilha, 2018).

Apresentar as narrativas de Dona Corunilha se torna potente para pensar na construção histórica, social e cultural das mulheres, assim como para refletirmos acerca da pluralidade e conflitualidade dos processos que fabricam e distinguem corpos e sujeitos femininos e masculinos. Para pensarmos a respeito daquilo que nos fabrica, produz-nos e nos constitui se torna urgente refletir sobre os elementos históricos do Pampa gaúcho. Logo, a cultura e a tradição gaúchas são importantes aspectos na produção de feminilidades e masculinidades vividas e experienciadas na atualidade.

O modo mais eficiente para desconstruir algo que parece evidente, sempre dado, imutável, é demonstrar como esse algo se produziu, como foi construído. Ao se admitir o caráter de construção que a história possui, inclusive o papel de homens e mulheres na sociedade, é possível criar o que Michel Foucault chamou de “fraturas do presente” pois, se algo não foi sempre assim, nada determina que assim se conserve (COLLING, 2004, p. 14) [grifo da autora].

Assumimos a história como construída e legitimada através de jogos de poder. Importante lembrar que a “história das mulheres é uma história recente” (2004, p. 13), como pontua Ana Colling. O lugar da mulher dependeu das representações dos homens, os quais, até pouco tempo, eram os únicos a escreverem a história universal, sendo responsáveis pelas construções conceituais que hierarquizaram a história com os dois sexos assumindo valores diferentes, de modo a transformar o universalismo também em desigualdade (COLLING, 2004).

Trazer à tona essas evidências, através das narrativas das mulheres do Pampa, oriundas de suas experiências cotidianas, torna-se importante para as discussões acerca de gênero. Ao percorrer os relatos das mulheres que fazem parte desta pesquisa, observamos fragmentos de memórias, de recordações e de histórias sobre o viver pampeano, uma vez que elas, ao falarem, narram os acontecimentos ocorridos em suas vidas cotidianas. A partir disso, surgiu-nos a questão: qual o lugar da mulher no Pampa? Ela é, não raras vezes, posicionada como aquela que ocupa o espaço do cuidado com as plantas, com os animais e com os outros seres com os quais convive.

Na Charla do Pampa, levamos alguns artefatos para provocar o pensar e o falar sobre as relações entre mulheres e natureza, a exemplo de fotografias, imagens do Google a respeito do homem-natureza, mulher-natureza e também um trecho do Diário da Cecília de Assis Brasil (1983):

Segunda-feira, 25 de dezembro (de 1916) - [...] Papai disse que dará um dote à filha que souber ser uma cozinheira de verdade. Não quero o tal dote, quero mostrar que sirvo para alguma coisa. Serviço é que não falta! Todos deviam nascer com o firme propósito de embelezar e tornar perfeito o canto do mundo em que vivem; por menor que seja, o esforço sempre há de aparecer. Tenho verdadeira pena de quem nunca comeu sequer uma batata plantada pelas suas próprias mãos, bem como dos que não conhecem os encantos que há na criação de um guacho, que nunca souberam como é bom colher flores no jardim onde se tenha acompanhado o desenvolvimento da planta, desde o primeiro broto saído da terra negra até alcançar os raios do sol, até abrir das pétalas em flor (ASSIS BRASIL, 1983, p. 24).

Após esse momento, fizemos alguns questionamentos: que posições as mulheres assumem ou são colocadas nas relações delas com o Pampa? Que outras posições são possíveis para homens e para mulheres no Pampa? Com base nas narrativas, fomos delineando, em nosso movimento analítico, o que chamamos de sentimento pampeano, marcado também pelas posições que se legitimam, quer sejam: um amor e um cuidado pelo Pampa.

Eu vejo a mulher assim na sua relação com o pampa, eu tava dizendo que a mulher é parideira por si, parideira assim, não só de botar os filhos, mas ela tem essa sensibilidade de né...(Aradia, 2018).

Diferente eu acho (Lala, 2018).

Diferente. Então eu acho, não sei se desse cuidado, desse amor assim, eu sinto que esse olhar feminino tem um tanto diferente assim, do olhar do homem, assim, que talvez seja mais economicista, mais monetarista, e que talvez ainda. Não tô dizendo o homem, todos os homens, mas eu vejo a mulher assim, por ter essa questão mais... o acolher, isso por ela acolher mais e de trazer mais para seu regaço, para seu peito, ela também traz esse lugar... Achei muito lindo assim “de embelezar o canto do mundo em que vivem” então acho que esse canto do mundo em que vivem a mulher na sua natureza enfim, na sua origem, tem mais esse cuidado (Aradia, 2018).

Nas narrativas anteriores, as mulheres têm “esse olhar feminino”, “essa sensibilidade”, “é parideira”. Assim, elas são atravessadas pelo “cuidado”, pelo “amor”, agem para “acolher”, “para o seu regaço”. Nas falas em destaque, elas são posicionadas como as que têm mais cuidado em suas relações com o Pampa, que é o seu canto no mundo, diferente dos homens. Mais uma vez, a historiadora Ana Colling (2004, 2014) nos ajuda a compreender a construção histórica do feminino - natureza, emoção, amor, intuição; e do masculino - cultura, política, razão, justiça, poder. Por sua vez, “esta dicotomia constitui uma oposição desigual entre homens e mulheres, caracterizando a sujeição destas aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal e igualitária” (COLLING, 2004, p. 22).

Dessa maneira, estudiosas do gênero, como Joan Scott, auxiliam-nos a compreender que a relação entre os sexos não é um fato natural, porém uma relação social construída e constantemente remodelada. Logo, as relações que se estabelecem entre as mulheres pampeanas e a natureza são resultantes de diferentes contextos históricos, tanto passados quanto atuais. Segundo Joan Scott (1995), é preciso uma desconstrução histórica, fazendo-se necessário rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária.

Entendemos, em nosso estudo, a importância de desnaturalizar esse modo binário quando analisamos as relações humanas com o Pampa. Em nosso pensamento, há marcas históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas que vêm tradicionalmente posicionando o feminino e o masculino nesta trama.

Dessa forma, constatamos a potência dessa análise, configurando-se como um exercício filosófico de pensar como se estabelecem as relações mulheres e natureza no Pampa gaúcho. Igualmente, passamos a nos constituir, nesses interstícios, a partir de uma sensibilidade estética pampeana. Na sequência da conversa, foi questionado esse espaço quase que exclusivamente da mulher: o cuidado. Após analisarmos as narrativas, observamos algumas práticas que instituem e que reforçam questões relacionadas às posições de gênero.

Mas também essa cultura do cuidado de que a mulher é do serviço do cuidado. E muito isso. Eu acho interessante do que ela coloca, e de quando ela faz isso, porque “só ganha o dote a mulher que soubesse cozinhar”, a filha que souber cozinhar... que era isso. A mulher dentro de casa, nos serviços da casa, nos serviços do cuidado da casa. Só que a forma que ela se coloca no mundo, ela também não é uma forma que coloca ela como o homem, ou até com essa visão do homem, que é o reflexo dessa... “o meu serviço é o gado”, o meu guri é assim também, é cavalo, gado, cavalo, gado, cavalo, gado, uma ovelha quando ele tropeça numa ele ah tem uma ovelha aqui vou olhar, sabe...(Dona Corunilha, 2018).

Cordeirinho, eu criei aqui na cidade, terneiro, abichado num olho, que não comia, mamadeira, que aí um dia viram uma caixa tinha seis gatinhos, “ah pai vamos levar para a mãe” e eu criei os seis na mamadeira (Lala, 2018).

Então... a gente nunca disse para ele “o teu serviço é o gado”, não mas o vizinho tá dizendo tu é o homem da casa, tu tem que fazer tal coisa. E é óbvio que tu vai absorvendo. E aí ela se coloca dessa forma, que é isso assim. De sim se abrir, de sim não estar encerrada dentro de casa cozinhando, né, eu não aceito que eu vou ficar em casa cozinhando, enfia teu dote no seu...(Dona Corunilha, 2018).

Desse modo, é perceptível que somos frutos do momento em que vivemos, de nossa história e cultura. Essa última é extremamente machista, deixando marcas nos modos de vida das mulheres e dos homens. Contudo, torna-se importante entendermos que a cultura não é estritamente imposta. Assim, se não houvesse possibilidades de uma outra, não teríamos espaços para respiros possíveis. Dona Corunilha questiona posições marcadas pelo feminino como sendo a “cultura do cuidado”, e posições masculinas de serviço de doma e serviço campeiro. Essas diferentes funções são frutos de posicionamentos que foram assinalados, mas que ainda estão sendo questionados, até mesmo, por Cecília de Assis Brasil, no início de século XX.

Logo, não se trata de pensar as resistências como algo que viria a romper, superar ou libertar-se das relações de poder, mas como um combate interno, interior a determinado jogo e arranjo de forças. Tal entendimento passa pela concepção do poder como relação, como ação que se exerce sobre a ação dos outros (MARQUES; TEIXEIRA; DIAS, 2018, p. 218).

Somos construção dessas relações de forças, muitas vezes formas assimétricas do poder. Todavia, mesmo as lutas difíceis de serem travadas, de se conseguir brechas, não indicam que sejam deterministas. Portanto, a partir de pequenas revoltas diárias e em pequenos espaços, é possível resistir a essa cultura.

Por meio das vozes dos sujeitos de nossa pesquisa, escutamos uma nova história, que começa a ser contada, outras histórias possíveis para o Pampa. Talvez, a nossa resistência resida justamente nisto: em escutá-las, em trazê-las na intensidade, como colocar em movimento uma máquina de sons, conforme observa Ana Godoy (2008): no desejo de um devir menor. Não nos interessa inverter essa dicotomia nem colocar as mulheres em um patamar referente às suas relações com a natureza, mas mostrar, com base no cotidiano, o que nos faz ser e sentir pampeanas.

Mas vem cá, tinha o tempo que ficar em casa, tinha que fazer o pão, o queijo, se fazia tudo o doce, de noite tinha a mesa cheia...(Lala, 2018).

Mas não pela questão do tempo, mas de quem faz né, não se tinha a opção se era a mulher ou o homem, era a mulher que fazia e ponto, né. E era uma obrigação, e ai da filha que não soubesse, eu sou uma tragédia, não sei costurar, se eu tivesse em 1916 (risos), ia dar muito trabalho, iam me colocar no tronco... (risos). Porque né, porque era uma obrigação, não era uma função, os cuidados era obrigação, além dos cuidados que era obrigação, tu podia, fazer uma horta, uma outra coisa, para fugir, desses cuidados da obrigação, que era uma coisa... que ela fala do guacho, que é uma coisa da volta da casa, ela fala do jardim, que é da volta de casa, mas ela tem essa visão, e que eu acho que ... de embelezar seu canto no mundo, que pra mim é muito legal, que por mais que ela esteja falando daquele limite onde ela pode ir, ela tem essa visão muito ampla, que o Diário dela todo é muito bom, né. Mas ela tem isso, e tu vê isso como uma precursora de todas outras mulheres, nós, que podemos hoje andar a cavalo, por exemplo, e fazer o serviço de campo, sem ser represada, sem sofrer represália, então o que elas não fizeram, o que elas faziam, elas sofriam represália, então. Na minha volta ali, tem os Ferreiras, que é uma família muito antiga, e tem a L.F. que é uma amiga minha, mais velha que eu, mas que ela traz muito da memória da avó dela, e a avó dela andava só de bombacha e fazia o serviço de campo, sim, e aí ela descobriu umas fotos antigas, aí ela foi questionar: “para aí que vocês não estão nos contando, estão escondendo uma história”, aí acharam no casarão, nas coisas na casa da avó dela, uma bombacha feminina, com um corte maravilhoso, super confortável, nós ficamos assim, ahh. Aí ela mandou fazer, tirando o modelo, para a gente mandar fazer, porque era muito boa, né. E era a que a vó usava. E aí ela achou as tais fotos da vó dela de bombacha, mas para aí, “contem melhor esta história”... (Dona Corunilha, 2018).

Este último trecho da fala de Dona Corunilha (“Contem melhor esta história”) revela outras tantas possíveis representações nos interstícios pampeanos. Entretanto, são histórias de vidas consideradas infames, silenciadas e invisíveis para a história oficial. Essa, muitas vezes, foi tramada e escrita por homens, retratando e posicionando as mulheres do Pampa como a prenda delicada e cuidadosa, o regalo, a coadjuvante nas suas relações com esse território. Com frequência, a história oficial mostra-nos mulheres delimitadas e encerradas no ambiente doméstico, marcadas por uma cultura que ensina modos de falar, de se vestir. Enfim, que dita formas de ser mulher no Pampa.

Nas narrativas com as quais finalizamos esta seção, entendemos que há alguns deslocamentos possíveis, outros nem tanto. Constatamos que o cuidado com a terra e com os outros não mais é uma obrigação, mas torna-se uma essência2 e uma subjetividade feminina. Compreendemos que a relação de cuidado entre as mulheres e o Pampa acaba sendo uma condição de possibilidade para que o sentimento pampeano emerja nas vozes desses sujeitos femininos, já que, em suas falas, enfatizam muito o amor pelo lugar, narrado através de suas memórias e de suas experiências de vida, das recordações dos antepassados e também naquilo que elas relatam sobre músicas, literatura, arte.

O sentimento pampeano passa a ser entendido, por nós, como uma maneira de ver, de pensar, de narrar por meio de uma sensibilidade diante do Pampa, que nos faz ser mulheres pampeanas, sujeitos deste tempo. Ressonâncias de uma sensibilidade estética pampeana nos modos de ser e viver no Pampa gaúcho.

Tal sentimento emerge assiduamente nas falas dessas mulheres, o que é percebido pelo entrelaçamento entre três aspectos principais: a relação com a história e cultura do Pampa do Rio Grande do Sul constituindo um sujeito marcado pelas maneiras de se relacionar com a natureza; as associações que se tramam entre as mulheres e a natureza pampeana, destacando o cuidado e o amor pela terra; e as relações das narradoras com a Educação Ambiental, firmando um sentimento de pertencimento ao lugar.

Nas narrativas, o sentimento pampeano vai delineando as posições das mulheres em suas relações com o Pampa:

Mas eu, talvez até não tenha me expressado bem, eu não falo em mulher assim, ahh. Até a engenheira espacial, lá astronauta, não estou segmentando assim, a mulher e o homem, mas eu acredito firmemente que a nossa índole assim, pode ser a profissional mais brilhante. Sempre (Lala: sempre vai ter a mesma coisa...) sempre, tu vai ter algo, sentir que é essa cuidadora. Não tô dizendo que a mulher fique lá, nas lides domésticas e que por isso ela vai cuidar mais da terra, é porque a nossa essência feminina, (...) Mas assim, eu acredito que a mulher veja o mundo de uma forma diferente, veja o seu, como que é... “o canto do mundo que vivem” de uma forma diferente, eu sinto isso, assim (Aradia, 2018).

Eu não vejo o homem como um devastador, que ele vai ser, que ele vai derrubar tudo, que vai desmatar a mata, e que a mulher vai plantar, não, não é isso. É algo assim, muito subjetivo, e aí tu perguntou o homem e a mulher... É a subjetividade feminina que eu creio que nos faz este sentir o cuidado assim, claro que tem mulher que passa o trator e derruba tudo (Aradia, 2018).

Assim como tem homens supersensíveis (Dona Corunilha, 2018).

Acho que é uma coisa muito assim pensei... morre o Dono da casa e ninguém assume? Tem mulheres que assumem uma fazenda inteira, criação de cavalo, e assume mesmo, assume mesmo, é o homem da casa, no caso a mulher. Mas agora que outras posições o homem poderia assumir? (Lala, 2018).

Tensionamos o pensamento, o que gerou provocações ao escutarmos as narrativas anteriores e questionamos, mais uma vez: em que posição são colocadas as mulheres nas relações com o Pampa? Não seria mais uma posição coadjuvante? Ou uma posição - quase exclusivamente! - vinculada ao cuidado e à proteção? Nessa escrita, todavia, reforçamos que não há o certo nem o errado nas relações com o Pampa. No entanto, torna-se necessário desnaturalizar olhares, romper com a essência, mirar as verdades que se tornam legítimas nas relações históricas e culturais pampeanas, as quais determinam maneiras de ser e de viver.

Nosso estudo foi tecido a partir de inquietações potentes para pensar em como nos constituímos mulheres ambientalistas do Pampa, em que o cuidado e o amor pelo lugar tornam-se fundamentais para um sentimento de pertencimento, nesse texto, nomeado como o sentimento pampeano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, dedicamo-nos às análises das narrativas de três mulheres ambientalistas e pampeanas que relataram suas relações com o Pampa e com a natureza, atravessadas, mobilizadas pelos sentimentos de amor e de cuidado. Na pesquisa, investigamos o quanto a recorrência dessas narrativas torna-se condição de possibilidade para a constituição do que chamamos de sentimento pampeano.

Na frase “Contem melhor esta história” a narradora nos provocou a pensar o quanto as mulheres, muitas vezes, tornaram-se, e ainda se tornam, invisíveis na história, na cultura e nas relações com o Pampa. Isso foi observado por meio de suas vozes, em como as mulheres narraram, ao longo da Charla do Pampa, suas vidas, seus cotidianos e suas experiências como ambientalistas e pampeanas. Notamos que os sujeitos femininos são constantemente interpelados pelo discurso do amor e do cuidado, produzindo suas feminilidades perante as relações com a natureza, com o Pampa, subjetivadas por esse espaço considerado masculino.

Ao finalizarmos nosso estudo, desejamos potencializar nos/as leitores/as questionamentos a respeito de quem somos nós, mulheres, nesse presente. Talvez, seja necessário um olhar para os contornos históricos e políticos que nos produzem para criarmos, quiçá, outras potências no existir e conviver com a natureza, atribuindo novos contornos às relações femininas no cotidiano de suas vidas. Acreditamos que seja por intermédio da possibilidade de escuta junto a muitas mulheres ambientalistas que talvez emerja o incômodo com aquilo que já nos acostumamos a olhar. Provocar o estranhamento às nossas verdades, como “condição de vida”, pode gerar potência de criação, de modo a encontrarmos frestas de ar para arejar o mofo que cala as multiplicidades de ser mulher em nosso presente.

2Entendemos que não há uma essência feminina, e sim um a priori histórico, em que constituíram posições do feminino e do masculino por intermédio da história e da cultura.

REFERÊNCIAS

ASSIS BRASIL, Cecília. Diário de Cecília de Assis Brasil. REVERBEL, Carlos (org.). Porto Alegre, L&PM, 1983, 208p. [ Links ]

BLANES, Juan Manuel. Os três chiripás. 1881. Disponível em: http://miriasantanna.wixsite.com/gaucho/juan-manuelblanes?lightbox=dataItem-igtb09li6. Acesso em 24 jan. 2019. [ Links ]

COLLING, Ana. A Construção Histórica do Feminino e do Masculino. In: STREY, M.N.; CABEDA, S.T.L.; PREHN, D.R. (orgs.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.13-38. [ Links ]

COLLING, Ana. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história. Dourados/MS: Editora UFGD, 2014. [ Links ]

CONNELLY, Michael & CLANDININ, Jean. Relatos de experiencia e investigacion narrativa. In: LARROSA, Jorge. Déjame que te cuente. Barcelona: Editorial Laertes, 1995. [ Links ]

CUNHA, Maria Isabel da. “Conta-me agora! As narrativas como alternativa pedagógica na pesquisa e no ensino”. Revista Faculdade Educação. São Paulo, v.23, n.º 1-2, jan/dez, 1997. [ Links ]

FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: EDUC, 2003. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Ditos & Escritos V. 2º ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2006. [ Links ]

GODOY, Ana. A menor das ecologias. São Paulo: Editora da USP, 2008. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Tecnologias do Eu e Educação. In: TADEU DA SILVA, T. (org.). O Sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. [ Links ]

LOPES NETO, João Simões de. No manatial. In: SCHLEE, Aldyr G.(org.) Os Contos & Lendas de João Simões de Lopes Neto. Pelotas, RS: Viena Gráfica & Editora, 2011. [ Links ]

MARQUES, Isabel R.; TEIXEIRA, Juliana C.; DIAS, Raquel S. D. É possível resistir? Exprimentações com Michel Foucault e Félix Guattari. In: HENNING, Paula C.; MUTZ, Andressa; VIEIRA, Virgínia T. (orgs). Educações Ambientais Possíveis: ecos de Michel Foucault para pensar o presente. Curitiba/PR: Appris Editora, 2018, p.213-225. [ Links ]

RAMIL, Vítor. No Manatial. In: Ramilonga: a estética do frio. 1997. [ Links ]

SCHLEE, Juliana. Mulheres, Pampa e Natureza: um olhar para a educação ambiental. 153p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA). (Mestrado em Educação Ambiental), Instituto de Educação,Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2019. [ Links ]

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p.71-90, 1995. [ Links ]

Recebido: 1 de Janeiro de 2022; Aceito: 1 de Março de 2022

1

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.