INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva discutir as relações tensas que emergiram com a pandemia, especialmente entre negacionistas e cientificistas, tendo como plano de fundo o crescimento do extremismo religioso. Nesse sentido, cabe uma menção inicial ao termo tempos conservadores. Recuperamos esse conceito do intelectual equatoriano Agustín Cuevas (1989), mais especificamente da sua análise sobre o crescimento do pensamento antidemocrático nos anos 1980. A sua percepção ia ao encontro de outras teorias que observavam o crescimento de um discurso conservador escamoteado de progressista (Mészaros, 2004 e Harvey, 2004). Basicamente, a crítica se referia a propostas construídas a partir daquilo que se convencionou chamar de terceira via, em especial a obra de Anthony Giddens (1996). Nessa perspectiva, não chegamos agora numa onda conservadora, estamos vivendo tempos conservadores.
Neste trabalho, pensamos o conservadorismo como um processo que vem produzindo há muitos anos diferentes narrativas com efeitos impactantes na sociedade, em especial na sociedade ocidental. Não é nosso objetivo discutir o conceito de conservadorismo, mas sim deixar claro que o nosso entendimento do que está acontecendo hoje se relaciona a esse processo. O que vamos discutir é a fase mais contemporânea desse conservadorismo, tendo o contexto da pandemia como referência de análise.
Ressaltamos também a nossa preocupação com a laicidade do Estado frente ao avanço do fundamentalismo religioso extremista, uma das principais fontes das narrativas conservadoras. Sendo assim, nossa reflexão se centrará basicamente no debate com essas narrativas, sempre na defesa da ciência e da democracia.
FUNDAMENTALISMO OU EXTREMISMO
A segunda década do século XXI está sendo marcada por uma ascensão do discurso conservador fortemente endossado pelo que vem sendo chamado de fundamentalismo religioso. Contudo, é importante compreendermos o real significado, neste contexto, do termo fundamentalismo e também como essa expressão vem sendo empregada de forma a significar um sinônimo para conservadorismo.
Nesse sentido, é interessante sabermos que a palavra fundamentalismo vem do entendimento puritano anglo-americano, divulgado nos Estados Unidos, de que os crentes devem se ater aos fundamentos da fé cristã: a Bíblia e suas “narrativas fundamentais” (ALVES, 2010). Sua origem, portanto, remonta ao século XIX e à reafirmação de dogmas contra o chamado liberalismo cristão e o Iluminismo em geral. Entretanto, isso não implica, necessariamente, na rejeição total de crenças e comportamentos diferentes. O uso da expressão para fazer alusão a comportamentos extremistas, aliada à ação e ao posicionamento de alguns segmentos do campo religioso, contribuiu para a consolidação de um rótulo negativo aos fundamentalistas, colocando-os como os grandes e únicos responsáveis pelos retrocessos em curso na sociedade brasileira.
A atuação de uma parte dos chamados fundamentalistas nas disputas e embates que acarretam transformações no campo dos valores e da moral do país, de fato, deve obviamente ser considerada, mas sem deixar de evidenciar que nem todos os segmentos fundamentalistas rejeitam a diferença ou atuam para frear as mudanças sociais. Por isso, é relevante fazer a distinção proposta por Vital da Cunha, Lopes e Lui (2017) entre fundamentalismo e extremismo, na qual este último representa o uso de medidas radicais para alcançar objetivos políticos.
Há, portanto, religiosos extremistas em todas as denominações e o que os diferencia do fundamentalismo é o esforço para cessar transformações sociais e impor seu conjunto de valores. Na busca por concretizar essas práticas, agentes extremistas buscam se movimentar em diferentes campos, mas predominantemente no político. São reativos a percepções diferentes de modelo social e, por isso, observamos aqui no Brasil um movimento desses grupos no sentido de se instituírem enquanto maioria, de modo a conseguirem fazer predominar seus princípios morais.
Os movimentos ‘Escola sem Partido’ (MESP)1 e ‘Brasil Livre’ (MBL)2 são exemplos disso. Esses grupos ressuscitaram movimentos que estavam sobrevivendo por aparelhos há muitos anos, é o caso do Integralismo e de outros de extrema direita. Boa parte desses movimentos conservadores cresceu em oposição ao período dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), para eles, o mais corrupto da história. Para analisarmos esse período, também é importante resgatarmos como lideranças religiosas se comportaram diante dos governos petistas. Em 2010, setores evangélicos e suas principais figuras públicas se dividiram no apoio às candidaturas. No que concerne as pautas do aborto e da população LGBT, assuntos polêmicos para o segmento evangélico, essas não configuraram impedimento para que representantes públicos desse setor apoiassem a candidata petista. Segundo Vital da Cunha, Lopes e Lui (2017) a mídia atribuiu tal posicionamento à promessa de ocupação de cargos no futuro governo e de apoio financeiro nas eleições. Nesse sentido, destaca-se que na declaração do PT à justiça eleitoral daquele ano consta a remessa de R$ 4,7 milhões para o partido aliado. No entanto, em 2014 estava clara a diminuição do apoio evangélico ao PT e à reeleição de Dilma Rousseff.
Assim, em 2014, afirmando estarem insatisfeitos com o Governo Dilma Rousseff desde o princípio, setores evangélicos aderiram a uma candidatura própria. Nesse período, para muitos desses setores, houve a retomada de uma concepção que imperou em meados do século XX - a afirmativa de que crente vota em crente. A fala do senador Magno Malta denota tal percepção: “Não podemos ficar com ninguém que não seja o Everaldo. Evangélico ficar contra o pastor é cuspir na nossa bandeira” (VENCESLAU; TOMAZELA, 2014). Mas chama atenção o fato de que ao longo da campanha, Everaldo e seus apoiadores fizeram questão de reforçar a defesa do Estado laico:
Também é importante abordar o pleito eleitoral de 2016, no qual lideranças evangélicas buscaram usar as eleições municipais para consolidar sua força política no país. Pela primeira vez em disputas eleitorais houve uma organização de caráter nacional dando sustentação a candidaturas protestantes, pentecostais e neopentecostais. A Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil (CONCEPAB), instituição que desde 2009 reúne pastores de diferentes denominações, acompanhou de perto ao menos 100 candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador em todo o país.
Todavia, o problema central desses grupos não era somente o apoio do governo às pautas feministas e LGBTs, mas sim as vitórias progressistas da sociedade, que, de certa forma, colocava em xeque a profunda desigualdade social no Brasil. A própria eleição de Dilma Roussef era uma afronta: uma mulher ex-guerrilheira na luta contra a ditadura no Brasil (1964-1985). Além disso, o apoio aos governos do PT, apesar de permitir um crescimento político a esses grupos mais conservadores, impedia-os, em certa medida, a implementar seus projetos políticos por inteiro, dificultando, assim, a consolidação do exercício do poder por esses grupos.
Consideramos fundamental registrar que, na nossa concepção, os governos do PT não resolveram os problemas estruturais de desigualdade de classe, ou seja, não taxaram as grandes fortunas, não diminuíram o poder das instituições financeiras e, com isso, não propuseram uma organização social mais justa. No entanto, não podemos negar os ganhos referentes aos direitos das chamadas minorias políticas, em especial naquilo que se referia a direitos sexuais e reprodutivos, bem como no enfrentamento da discriminação de gênero. Contudo, mesmo nesses campos, os encaminhamentos realizados envolveram uma série de contradições. Esse cenário se deu em função da ambiguidade presente nas ações do Executivo Federal, composto por governos petistas, bem como por uma maioria de parlamentares vinculados à bancada cristã. O PT havia assumido compromissos de campanha que envolviam pautas das mulheres e da população LGBT+, mas sua composição enquanto governo, assim como a formação da sua base aliada, que lhe garantia governabilidade e incluía, necessariamente, setores conservadores e agentes religiosos, contribuíram para os paradoxos da gestão petista e os conflitos inerentes a eles.
A despeito da sinalização feita aos religiosos ainda nas campanhas, o PT manteve, por exemplo, sua resolução oficial favorável à legalização do aborto e à defesa das bandeiras do movimento LGBT, o que tornou dúbia a função desses parlamentares que apoiavam o governo em temas econômicos e de assistência social, mas divergiam abertamente em relação às temáticas como direitos sexuais e reprodutivos, ou políticas para população LGBT.
A atuação do governo petista foi, portanto, contraditória e conflituosa, mas não impediu a consolidação de um cenário, na esfera federal, de investimento, por meio de programas de governos e iniciativas, na discussão e no reconhecimento da importância do debate de gênero, especialmente no que concerne a políticas educacionais. Consideramos importante ressaltar que o investimento federal se deu a partir de um acúmulo histórico da luta de muitos movimentos e como resultado de uma intensa pressão.
Além disso, é fundamental resgatar os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e as cobranças vindas de diversas agências multilaterais em relação a esses programas e iniciativas. Ou seja, faz-se necessário destacar o quanto essas forças contribuíram, financeiro e politicamente, para o lançamento e a manutenção dessas iniciativas. Um exemplo significativo foi o Programa PróEquidade de Gênero e Raça. Iniciativa do Governo Federal de 2005, tinha dentre seus objetivos combater as dinâmicas de discriminação e desigualdade de gênero e raça praticadas no ambiente de trabalho. Era coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), em parceria com a SEPPIR, e fruto de convênio com a ONU Mulheres e a Organização Internacional do Trabalho - OIT.
Ainda sobre essas iniciativas do governo federal, é importante destacarmos que tais programas receberam críticas de movimentos e setores que discutiam a pauta, principalmente no que se referia à destinação de recursos e também ao recuo feito pelo governo em alguns pontos considerados estratégicos. Contudo, apesar das limitações e das críticas, os dados e até mesmo as análises produzidas sobre este período confirmam que foi o momento de maior crescimento e investimento na referida discussão. Nosso país nunca havia contado com tantas políticas governamentais que fomentassem os debates de gênero.
Tais ganhos se colocaram em choque direto com o extremismo religioso, que reagiu de forma violenta. Ressaltamos aqui que a maior parte das religiões de diferentes matrizes possui grupos extremistas, portanto, não estamos falando de uma religião específica, apesar de reconhecermos que, no caso brasileiro, o extremismo mais evidente é o de matriz cristã. O crescimento das igrejas neopentecostais, algumas delas apresentando a defesa de uma agenda extremamente conservadora, somado ao fundamentalismo católico e de outras religiões cristãs, acabaram direcionando a sua fúria para as instituições educacionais e científicas. Teorias sem base científica, como a ideologia de gênero, a terra plana, a doutrinação comunista (petista) e campanhas contra a vacinação, ganharam força impulsionadas por essas igrejas.
Alguns líderes religiosos ficaram conhecidos por questionar as teorias científicas, em especial a teoria da evolução das espécies, e, por conta disso, houve o crescimento do discurso criacionista, apresentando-se, por vezes, de forma mais sofisticada, como a tese do design inteligente. Tais ideias ganharam tanta força aqui no Brasil que conseguiram dar base discursiva para a eleição do presidente Jair Bolsonaro, representante do discurso conservador extremista religioso. Desde o início de seu mandato, o ataque às ciências foi uma marca de seu governo, além do seu total desprezo à educação pública, gratuita, laica e universal. Cabe ressaltar que tais ataques seguiram em curso, mesmo diante de um cenário trágico de pandemia.
A PANDEMIA
Estamos vivendo a primeira grande crise de saúde pública do século XXI. Todas as outras epidemias deste século tiveram alcance limitado; apesar de terem causado muitas vítimas fatais, não tinham o componente de ineditismo da atual crise, o qual não se aplica somente pelo fato de boa parte dxs especialistas concordar que se trata de um vírus novo, responsável por uma infecção sem precedentes, mas pela forma como esse vírus se apresenta - demandando mobilização das populações dos países desenvolvidos para se evitar uma catástrofe em termos de mortalidade. No que se refere à afirmação dos especialistas sobre o desconhecimento do vírus, consideramos esse posicionamento questionável, uma vez que ele causa uma doença respiratória aguda grave (SARS) já conhecida pelo mundo desde 2002 - o chamado SARS-COV1, ou seja, a doença já era conhecida e o mundo não se preparou para uma inevitável mutação que tivesse força para sair da Ásia.
Alguns países, como Brasil e EUA, apresentam indícios de que o mundo desenvolvido está em risco, em face do altíssimo índice de mortalidade provocado pela doença. Os números são assustadores e vêm sendo informados amplamente pela grande mídia. Portanto, o que se tem de novidade é o esforço de mobilização dos países centrais do capitalismo de salvar suas economias.
Não temos dúvidas de que essa pandemia está colocando na berlinda o neoliberalismo e, até mesmo, o próprio capitalismo. Na grande mídia, diversos economistas defenderam uma participação mais efetiva do Estado no combate à pandemia no Brasil, seguindo o exemplo de outros países como os EUA que anunciaram a injeção de 2,3 trilhões de dólares para salvar a economia - e, ao mesmo tempo, garantir os empregos da população. O momento é tão controverso que muitos desses economistas são, normalmente, conhecidos por serem defensores do mercado e pedirem uma menor participação do Estado na economia.
Essa mudança de discurso, apesar da afirmativa desse grupo de economistas sobre se tratar de uma questão emergencial, não esconde a perversidade de um sistema que exclui a maior parte da população mundial e concentra riqueza na mão de poucas pessoas, assim como despreza os mais pobres. Todavia, os ricos também morrem. E isso se tornou muito claro no Brasil, quando a maioria das mortes contabilizadas no início da pandemia eram oriundas de hospitais privados, ou seja, referiam-se a pessoas que possuíam recursos para pagarem planos de saúde. No atual momento, o vírus já atingiu os mais pobres, público-alvo do extremismo religioso, expondo as entranhas da desigualdade social brasileira.
A esse respeito pensamos ser relevante retomar a relação de classe com o extremismo religioso. Os debates envolvendo a questão religiosa e seu papel na organização social não são recentes. Diversos autores já buscaram compreender este complexo fenômeno que envolve a relação entre religiosidade e sociedade. Dentre eles, destaca-se a produção de Weber que em A ética protestante analisou o que denominou de espírito capitalista. Para o autor, o capitalismo precisaria de um espírito que justificasse e legitimasse sua atividade econômica. Compreendendo o capitalismo como acumulação ilimitada de capital, surge a questão de como tornar algo que tem fim em si mesmo, no caso, o capital, em um meio para satisfação dos desejos e necessidades dos indivíduos. Essa necessidade de tornar aceitável e legítima uma atividade irracional é que torna fundamental, segundo Weber, a existência do espírito capitalista.
O autor defende que o funcionamento do capitalismo de forma sistemática é garantido por esse elemento. Ele aparece como uma atividade econômica pura, independente de justificativa moral, quando, na verdade, depende diretamente dessa justificativa. Essa legitimação deve parecer natural, como parte integrante da economia e de seu funcionamento, visto que o capitalismo em seu princípio precisa de adesão e comprometimento dos indivíduos. Nesse sentido, Weber argumenta que o tipo específico de justificação social e moral que permitiu a consolidação simbólica deste sistema econômico, o capitalismo, foi a motivação religiosa. A ideia de trabalho como vocação aparece como um elemento central e ilustra bem o caminho da religião produzindo sentido e justificando a condução da vida prática.
Assim, para Weber (1990), o espírito do capitalismo foi algo possível mediante o ascetismo religioso instaurado pelo protestantismo. Isto é, se diante do domínio da igreja católica o lucro era tido enquanto algo abominável por Deus, com o surgimento do protestantismo, o trabalho árduo e o ganho se tornaram maneiras de adorar a Deus. Nesse sentido, esse ethos disseminando pela moral religiosa irá, segundo Weber (1990), instaurar um novo padrão de conduta onde o viver bem é denotado como vontade divina.
Claro que com o engajamento no sistema capitalista, uma vez disseminado, o capitalismo se desvinculou do espírito que o proporcionou. Contudo, pode-se dizer que a propagação dos ensinamentos da dita Teoria da Prosperidade disseminada pelos neopentecostais (PAULA, 2013, p.129) é um fenômeno semelhante ao espírito destacado por Weber. Nesse aspecto, pode-se alegar que esses ensinamentos atuam no sentido de adaptar seus fiéis ao sistema, disseminando ideais de que o bem-estar material, o viver bem financeiramente e o fato de não se ter problemas de ordens diversas, demonstram a fé e o agir de Deus na vida do crente.
Nessa onda de adaptação das práticas religiosas às dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos seus fiéis, a prosperidade passa a ser vendida como verdadeira mercadoria. Os dízimos e as ofertas funcionam como moeda de troca por aquilo que era chamado de graça ou ainda dádiva de Deus. Assim como Weber (1990) acreditava que o capitalismo só foi possível mediante um ethos perpassado pelo âmbito da moral, a disseminação do discurso religioso vinculado ao dia a dia do crente passa a ser um elemento eficaz. Uma vez vinculada à moral e à fé dos seus adeptos, a matriz religiosa em questão funciona como um elo que leva aqueles sem qualquer perspectiva de futuro a afirmarem sua fé mediante suas ofertas e, consequentemente, afirmarem uma estratégia de vida.
Nesse processo, à justificação moral do capitalismo passa a se articular a noção de bemestar com o progresso material. Ao percebemos a combinação desses fatores simbólicos e materiais, compreendemos a universalização da economia capitalista como principal instância reguladora e coordenadora das ações sociais do mundo de hoje. Nesse sentido, como consequência mais imediata em um mundo marcado pela violência, despojado de encantamento e valores éticos, há um número crescente de sujeitos a procurar as religiões, sobretudo entre as classes populares.
Cabe destacar que, nos dias de hoje, as camadas mais populares cumprem um papel de destaque no que se refere à questão da religiosidade e da ordem social. Em geral, esse segmento não tem suas necessidades básicas satisfeitas e, apesar disso, recebe o impacto e apelo do mercado para que consuma. Uma das alternativas encontrada acaba passando pelo consumo de bens de uso simbólico por práticas e ritos religiosos. Nessa perspectiva, as religiões transformam-se em mais um bem de consumo disponível dentre tantos outros.
Esse novo processo envolvendo a religiosidade e as camadas populares no Brasil está estritamente relacionado à disseminação das denominações evangélicas, em especial, as neopentecostais. Esse movimento tem sido responsável por construir o sentimento de pertencimento religioso. Para tanto, vem atuando nas subjetividades dos sujeitos de modo a conjugar suas ações com os anseios de mudança do segmento a qual tem predominância.
Nesse sentido, as denominações neopentecostais - originárias do pentecostalismo - ganham relevância, principalmente a partir da década de 1970, quando inauguraram um novo perfil religioso (PAULA, 2013). Essa nova modalidade, ramificação das denominações evangélicas tradicionais, vem apresentando um crescimento acentuado nos últimos anos. Em 1980, as igrejas pentecostais somavam 8 milhões; em 2000 esse número já havia saltado para 22 milhões, conforme constatado pelos censos mais recentes. O IBGE (2012) aponta que os católicos totalizavam, em 1970, 64,6% da população brasileira, enquanto em 2000 eram 91,8%. Esse crescimento vem amparado de condutas inovadoras - observa-se mudanças na forma de pregar, ou seja, no modo de se ‘comunicar’ com o fiel. Nesse sentido, utiliza-se uma oratória que dialoga com novos padrões de conduta, que se adapta ao contexto socioeconômico em vigor.
Cabe mencionar que a predominância das religiões de origem pentecostais se centra no segmento da população que aufere de 1 a 2 salários-mínimos (IBGE, 2012), com destaque para os adeptos, moradores de periferia e trabalhadores precarizados (PAULA, 2013) sem acesso a uma gama de serviços públicos. Assim, a religião atua no sentido de aliviar o sofrimento humano, tão reforçado pelos inúmeros fatores que permeiam a vida dos indivíduos, principalmente, daqueles lançados à própria sorte.
Além disso, essas denominações se destacam pela forma como alcançam e cativam seus interlocutores. Fazem uso de promessas com linguajares próximos ao de seus adeptos propondo possíveis soluções para seus problemas - familiares, afetivos e econômicos (PAULA, 2013). Proporcionando quase que uma fórmula mágica para sanar o sofrimento, essa matriz cristã se aproxima “[...]da realidade dos fiéis e facilita a construção de uma identidade religiosa comunitária” (PAULA, 2013, p.128). Em geral, tendem a mesclar em seus cultos, práticas advindas de diversas vertentes religiosas, como o candomblé, o espiritismo e o catolicismo (PAULA, 2013). Essa é uma estratégia para se atingir um número maior de adeptos. Atraem a partir do teor ‘mágico’ presente na espiritualidade e fazem uso desse componente como forma de quebrar toda maldição ou nó atado que têm levado seus fiéis a enfrentarem situações adversas em suas vidas.
Essas religiões também funcionam como uma fronteira moral condenando práticas ditas desviantes, como o alcoolismo, o adultério e o uso de drogas. Seus preceitos requerem a conservação da família nuclear rechaçando tudo o que foge a essa lógica como o aborto, o relacionamento homossexual, etc.
Diante dessa perspectiva, o neopentecostalismo baseado em aspectos morais tende a zelar pelo relacionamento familiar, pela integração e socialização entre as pessoas. Ancorado na conservação dos valores familiares e, ao mesmo tempo, flexibilizando práticas da vertente evangélica tradicional, o neopentecostalismo transmite a seus fiéis valores e modos ditos corretos, tais como a maneira de falar e se portar, ou seja, “[...]um conjunto normatizado de comportamentos que dão base de sustentação tanto social quanto econômica” (PAULA, 2013, p133).
Outro elemento de grande relevância acerca dessas novas denominações e seu crescimento expressivo é a participação feminina nessas religiões. No conjunto da população, de acordo com dados do IBGE (2012), de um total de 42.275.440 milhões de evangélicos, cerca de 23.492.609 milhões são mulheres. As denominações de origem pentecostais são as que representam a maior porcentagem no número de fiéis da vertente evangélica com um total de 25.370. 484, dos quais 14.097.289 são mulheres.
Essas igrejas, em geral, oferecem uma rede de apoio às mulheres, reforçam a sua autoestima e também trazem os homens para o mundo doméstico. A participação nesses cultos religiosos tem um efeito terapêutico para os adeptos, com palavras de conforto e estímulo. Nos espaços e cultos dessas denominações, as pessoas encontram respostas para seus problemas por meio dos chefes religiosos que atribuem sentido ao sofrimento dos adeptos, oferecendo princípios de explicação aos fiéis para as coisas que aparecem de forma desordenada em suas vidas.
Assim, o neopentecostalismo serve aos interesses práticos das mulheres. Elas passam, por exemplo, a não mais culpabilizar o seu companheiro e nem a si mesmas pelas condutas negativas. Na medida em que elas conseguem fazer com que seus companheiros se convertam à religião, eles largam vícios, canalizando o dinheiro que ganham para a família. O neopentecostalismo propõe um novo ethos familiar. Soma-se a isto a questão do reforço da fé do praticante, que é utilizada como uma importante estratégia de resistência à pobreza. Essas igrejas não estimulam a ação coletiva, mas promovem estratégias individuais de mobilidade ascendente por meio de uma nova conduta moral, bem afinada com o espírito capitalista de Weber, de competição individual e acumulação privada.
Ao se adaptar ao modo de produção em vigor, lança mão de mecanismos baseados em nichos de mercado que funcionam como uma mercadoria disponível a esse público. Com isso, essas denominações atuam na manutenção do status quo, levando seus fiéis estabelecidos na base da pirâmide a se inserirem de forma subordinada na estrutura de consumo. Em suma, pode-se destacar que a religião, e nesse aspecto, primordialmente, a denominação neopentecostal, tem ocupado, atualmente, um papel de destaque. Composta por uma maioria de adeptos advinda do meio evangélico e abrangendo em seu público majoritariamente as mulheres, ela tem atuado enquanto promotora de fiéis consumidores (FILHO, 2012).
Segundo dados recentes das últimas pesquisas domiciliares e censos, entre 2003 e 2011 houve queda da desigualdade na distribuição de renda no Brasil, observando-se um aumento de renda para os mais pobres em relação aos mais ricos. Mas em que condições e para que posição social estariam migrando essas pessoas?
Examinando os dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) de 2008/2009, este novo segmento, denominado por alguns autores de nova classe média, abarcaria sujeitos e famílias na faixa de R$1.200 e R$5.174, situando-os acima dos 50% mais pobres e abaixo dos 10% mais ricos. A pesquisa observou o perfil socioeconômico dos domicílios no interior desse estrato, combinando marcadores selecionados como distintivos da classe média. São eles: casa própria, acesso ao crédito, educação universitária e demanda privada por bens promovidos pelo Estado. Cabe destacar que estes marcadores devem ser entendidos considerando as análises de Bourdieu (2007) de que a classe média significa não exatamente um padrão de consumo, mas um estilo de vida, que envolve situações diferenciadas, distintas: morar bem, consumir serviços de qualidade, ter acesso a capitais.
Sendo assim, os dados também mostram que o perfil dessa nova classe média não exibe a maior parte dos critérios distintivos da classe média. Seus membros estão longe de corresponder à promoção social. A grande maioria possui moradia inadequada, escolaridade insuficiente, acesso limitado a crédito e faz uso incipiente de serviços sociais privados. Souza (2012), por exemplo, traz uma crítica incisiva ao que chamou de cegueira do economicismo. Para ele, as vantagens da classe média tradicional não se materializam apenas pela renda maior, mas pelo capital social e cultural que se detém. Capitais que, de acordo com o autor, este novo segmento social não possui.
Assim, Souza (2012) argumenta que este segmento formado por uma nova classe trabalhadora precarizada, a qual fora inserida no mercado via comércio, está desigualmente aparelhada para competir e enfrenta as barreiras ligadas ao habitus específico do jogo de privilégios que caracteriza as classes mais favorecidas do Brasil. Insegurança econômica e social ainda é a marca desse grupo. Além disso, este novo segmento possui uma estrutura familiar muito mais frágil, e, conforme já mencionado, uma explicação economicista não dá conta de entender as variáveis que integram as condições culturais, religiosas, sociais e econômicas deste público. Dentre essas, destaca-se o papel que o pertencimento religioso tem na construção das subjetividades dessas pessoas ou como a lógica dos segmentos neopentecostais se conjuga com os anseios de mudança desse segmento. Vale destacar que essas denominações religiosas estão, em geral, em lugares centrais, seja nos bairros da periferia ou em locais de grande visibilidade nos centros urbanos, sempre trazendo a resolução de problemas familiares, econômicos ou afetivos: “[..]pare de sofrer: nós temos a solução” ou “[..]pare de sofrer, você nasceu para vencer” e usando de práticas evangélicas de cunho mágico em uma junção que as aproxima da realidade dos fiéis.
Outro elemento importante em relação às denominações neopentecostais diz respeito aos nichos de mercado gerados com sua expansão. Nos meios de comunicação de massa, por exemplo, já somam 10% do mercado editorial brasileiro por meio de literatura religiosa. A música evangélica é responsável por 20% do mercado fonográfico, com shows por todo Brasil.
Esse crescimento dos neopentecostais demonstra que sua proposta teológica trabalha com a visão de seus fiéis inseridos na sociedade de consumo. Viver melhor implica, além de ter saúde, em viver materialmente melhor. Eles utilizam os ensinamentos da Teologia da Prosperidade - ter bens materiais, ser saudável e não ter problemas financeiros - como demonstração de fé. São incentivados a serem mais pragmáticos e imediatistas. E, para se alcançar essa dita prosperidade, é preciso haver a troca de coisas materiais, por isso, pagamento de dízimo e ofertas.
Cabe mencionar que os fiéis dessas igrejas quase sempre estão preocupados em construir um futuro para si que seja melhor que o deixado por seus pais. Sobre isso, essas denominações funcionam por meio de um elemento fundamental, um estímulo, o de que as pessoas merecem uma vida melhor, sobretudo economicamente, sendo a fé a mediadora para que isso possa ocorrer. Soma-se a isso o fato de que essas igrejas também funcionam como um espaço de sociabilidade e de transformação de sujeitos. Nesse sentido, convertem pessoas que não tinham nenhuma representação na comunidade, que antes possuíam uma vida moralmente repreensível, e transformam esses sujeitos em militantes da fé, em fiéis reconhecidos por seus testemunhos.
A religião também representa para essas camadas da população um bem disponível onde podem se relacionar sem represálias morais e estabelecer laços de confiança e fé. Nesse intuito, a mudança de vida e conduta proporcionada para aqueles que aceitam viver sob um padrão moral ancorado em preceitos religiosos, leva a quem os pratica a servirem como exemplo para aqueles que apresentam desvios de conduta para a sociedade.
Nesse aspecto, o neopentecostalismo, ao pregar sobre anseios e dificuldades familiares a esses fiéis, funciona como um motivador e uma saída da situação frustrante em que vive essa população. O sofrimento não é algo bem-vindo para Deus, logo, a solução está em Jesus. Com isso, reproduz-se mensagens de fé, apoio, quebra de maldição ou tudo o que possa estar se referindo aos entraves para a vida do crente deslanchar.
Ter uma vida abençoada é algo aprazível e até desejável por Deus, sendo assim, uma vida próspera é uma demonstração de fé e dedicação. Funcionando como uma panaceia, a religião vai relacionar o dia a dia do crente a fórmulas mágicas de alívio da dor e do sofrimento que perpassa a vida de todo ser humano. Sejam problemas conjugal, financeiro ou emocional, Deus pode curar dores e abrir as janelas do céu derramando bênçãos e riquezas.
De posse desse discurso, não é difícil atrair uma multidão que, cansada da desilusão e da dilapidação de laços afetivos entre outras redes esgarçadas, é então envolvida por essa prédica por apresentar justamente a resolução para seus anseios mais profundos. Logo, as mulheres, por absorverem a maior carga emocional e por estarem sobrerrepresentadas em ocupações informais e precárias, se apegam a essa mercadoria disponível (religião) como um motivador que as proporcionará uma vida terrena próspera, logo, um futuro melhor para si e seus familiares.
No entento, a relação dessas camadas da população com a religião é abalada quando o Estado passa a atuar na vida dessas pessoas, quando se estabelece qualquer tentativa de questionamento a ordem vigente. E, nesse contexto, as religiões estão se movendo com o intuito de manter seus fiéis. O problema dos extremistas é produzir um discurso que não fuja muito das suas características anticientíficas, anti-intelectualistas, para não perder sua narrativa de mundo.
O EXTREMISMO E A PANDEMIA: O PAPEL DA LAICIDADE
Dessa forma, diante da pandemia que vivemos hoje, a opção dessas religiões é a de minimizar a importância da doença. Em vídeos amplamente divulgados pelas redes sociais, dois líderes religiosos importantes, Edir Macedo e Silas Malafaia, disseram que não fechariam suas igrejas por causa de uma gripe e que a fé em Deus seria o suficiente para derrotar o vírus. Esse mesmo discurso foi reproduzido pelo presidente e pelo seu guru intelectual, Olavo de Carvalho. O presidente da República é um exemplo claro do dilema do extremismo religioso. E nesse aspecto cabe ressaltar que, em um contexto de pandemia, só a ciência é capaz de garantir vidas e a própria manutenção das relações sociais.
A evidente importância das ciências, fortemente defendida, neste momento, pelos meios de comunicação, colocou o chefe do executivo, representante desse extremismo, em uma situação de desgaste, pois nunca se falou tanto da necessidade da separação entre Estado e Igreja, ou seja, da laicidade do Estado. Entendemos que com o inevitável crescimento desta pandemia a laicidade vai cada vez mais se tornar importante. Como forma de secundarizar tal questão, o atual presidente passou a atacar indiretamente a ciência afirmando que o combate ao vírus vai destruir a economia, e, com isso, passou a atacar os procedimentos e protocolos médicos definidos cientificamente.
Ao mesmo tempo que secundariza a ciência, o presidente inclui as religiões como serviços essenciais, conforme disposto no Decreto nº 10.292/20, em contexto de pandemia, o que garante os interesses dos grupos mais extremistas. Esse tipo de postura nos dá indícios de que o presidente se mantém compromissado com a agenda conservadora e extremista religiosa, que age na contramão de um Estado laico.
É essencial dizer que compreendemos a laicidade como um processo, como uma construção histórica e não como uma linha contínua. Nesse sentido, falar em Estado laico implica em considerar que há contradições que ora são atenuadas e ora, acirradas; que há momentos de maior apartação do Estado em relação às questões afetas ao mundo religioso e outros de estreitamento desses. Ou seja, tal concepção de laicidade pressupõe conflito e disputa nesta relação.
É possível identificar que ao longo da formação histórica, social, cultural e política de nosso país tivemos momentos mais laicos e ocasiões de retrocesso nesse distanciamento entre Estado e religião (Cunha,2017). A esse respeito também é importante destacar que a presença religiosa no campo político e no aparelho estatal não foi inaugurada pelos evangélicos - afirmação recorrente no senso comum hoje - mas foi ampliada com a chamada descatolinização do país e pelo crescimento demográfico das denominações evangélicas, acompanhado de novas estratégias de atuação, dentre elas a conquista de mais espaço político. Cabe ressaltar que, nesse contexto, a apropriação da defesa da laicidade se dá não pelo viés de apartação entre Estado e religião, mas pela garantia da presença de todas as religiões nele.
Não obstante a resistência de muitas denominações evangélicas de ingresso no mundo político até a década de 1980, a acentuada expansão demográfica e o processo de descatolinização interferiram no recente ativismo político, no sucesso eleitoral e na notória disposição desses grupos em participar nos poderes públicos, tornando-os atores relevantes no jogo político local e nacional nas últimas duas décadas.
Ou seja, já não é mais possível compreender a vida política brasileira sem considerar a atuação dos evangélicos, não somente por seu peso demográfico e eleitoral, mas, sobretudo, pelo projeto que algumas denominações têm de busca de poder, recursos, privilégios, reconhecimento e legitimidade, em face de um mercado religioso competitivo.
Em contrapartida, os católicos vêm diminuindo em termos demográficos, o que tem alterado suas estratégias de ação e, consequentemente, a dinâmica do campo religioso. A despeito do decréscimo de fiéis, a ingerência da Igreja Católica sobre o Estado brasileiro e seu poder diante dos governos e no Congresso Nacional não arrefeceu. Com uma atuação distinta da dos evangélicos - marcada pela hegemonia da Instituição - seus agentes vêm monitorando projetos, atuando nos bastidores, realizando lobbys e pressionando figuras importantes da cena nacional. Pode-se dizer que sua estratégia, discreta e multifacetada, permite a entrada, por exemplo, em instituições não religiosas da sociedade, as quais disfarçam sua atuação política.
A atuação destes dois segmentos, católicos e evangélicos, não é homogênea, mas reflete toda a heterogeneidade do interior de cada um desses campos. Sabemos a complexidade de uma análise que envolve o campo religioso, bem como os inúmeros elementos que precisam ser considerados, mas destacamos que o fato de não haver uma uniformidade e de existir um conflito direto entre esses dois segmentos no mercado da fé, oportunizou a ambos o alcance de uma unidade em torno de algumas pautas, especialmente as que se relacionam com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os direitos da população LGBT e com a articulação do debate de gênero e orientação sexual nas escolas.
Assim, foi possível vivenciar em um período recente do país a interferência direta de ações combinadas entre católicos e evangélicos. Essas práticas comuns vêm congregando outros setores conservadores, com interesses diversos, e promovendo um avanço da pauta conservadora no país. E, para nós, uma forma importante de resistência a esse processo é a defesa da laicidade. Isso significa negar a ideia de neutralidade.
Por fim, é indispensável reforçar a ideia de democracia enquanto um projeto não terminado. Experimentamos uma maior ou menor proximidade com o ideal democrático de acordo com a presença de alguns elementos, tais como a garantia da pluralidade e de confrontação pública, ou seja, uma conformação de sistema político que permite oposição e competição. No Brasil, isso inclui considerar também os interregnos autoritários que marcaram nossa histórica recente, bem como a inconclusão e a instabilidade de nossas instituições.
Nossa hipótese é de que nosso grau de democracia está relacionado, dentre outros fatores, a laicidade do Estado. Quanto mais distantes de um modelo que aparta a ingerência religiosa nas políticas públicas e ações do Estado, mais nos aproximamos de regimes desiguais, que excluem, segregam e discriminam. Essa perspectiva se mostra cada dia mais real em nosso país, especialmente neste contexto de pandemia, em que as desigualdades já existentes em nossa sociedade foram potencializadas, assim como o fortalecimento do anticientificismo, do extremismo religioso e dos ataques a nossa democracia. Por isso, persistimos na defesa da laicidade do Estado como elemento central para a garantia da democracia.