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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.69 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 28-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.57637 

Em Pauta

O PNAIC E AS AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA: estudo sobre as repercussões no trabalho docente.

THE PNAIC AND LARGE-SCALE ASSESSMENTS: a study of the repercussions on the teachers’ work.

PNAIC Y EVALUACIONES A GRAN ESCALA: estudio de las repercusiones en el trabajo docente.

Caroline Foggiato Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0002-5051-235X; lattes: 9411199972437725

Andressa Aita Ivo2 
http://orcid.org/0000-0001-8413-6623; lattes: 5435147861393098

Álvaro Luiz Moreira Hypolito3 
http://orcid.org/0000-0003-1487-0413; lattes: 7674934224612535

1Doutoranda em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria.

2Professora Adjunta do Departamento de Administração Escolar do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria.

3Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas


Resumo

No Brasil a legitimação das avaliações em larga escala pode ser identificada por suas articulações com as políticas curriculares, de formação continuada de professoras/es e de gestão educacional. O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) desencadeou ações nestes três âmbitos ao operacionalizar a formação continuada de professoras alfabetizadoras visando alfabetizar as crianças brasileiras até os oito anos de idade. Considerando isto, o presente artigo objetiva analisar as articulações entre o PNAIC e as Avaliações em Larga Escala, e, especificamente, discutir seus efeitos sobre o trabalho docente das professoras alfabetizadoras no contexto de Santa Maria - RS, entre os anos de 2012 e 2016. Para isso, a pesquisa de cunho qualitativo teve como instrumentos de produção de dados a análise documental dos documentos oficiais e legislativos que orientaram o PNAIC, e entrevista semiestruturada com 13 professoras alfabetizadoras, 1 Orientador de Estudos, 1 Formadora e a Coordenadora Geral do Programa na UFSM. Na análise dos dados empregamos a análise de conteúdo. No contexto pesquisado, os resultados sinalizam que a articulação entre o PNAIC e as Avaliações em Larga Escala aconteceu hibridamente, pois as ações produzidas no âmbito do Programa valorizavam as práticas pedagógicas lúdicas e a experiência profissional, mas estabeleciam sua vinculação ao (in)sucesso estudantil em tais avaliações. Concluímos que os efeitos sobre o trabalho docente foram a responsabilização e a formação da identidade profissional das alfabetizadoras, mas também a produção de resistências, como recusas em aplicar simulados alinhados a tais avaliações.

Palavras-chave: PNAIC; avaliações em larga escala; trabalho docente.

Abstract

In Brazil, the legitimacy of large-scale assessments can be identified through its links with curriculum policies, continuing education for teachers and educational management. The National Pact for Literacy at the Right Age (PNAIC) triggered actions in these three areas by operationalizing the continuing education of literacy teachers aiming to literate Brazilian children up to the age of eight. Considering this, the present article aims to analyze the articulations between PNAIC and the Large Scale Assessments, and specifically, to discuss their effects on the teaching work of literacy teachers in the context of Santa Maria - RS, between the years 2012 and 2016. For this, the qualitative research had as instruments of data production the documentary analysis of the official and legislative documents that guided the PNAIC, and semi-structured interview with 13 literacy teachers, 1 Study Advisor, 1 Trainer and the General Program Coordinator at UFSM. For data analysis, we use content analysis. In the context researched, the results indicate that the articulation between the PNAIC and the Large Scale Assessments happened hybridly, since the actions produced within the scope of the Program valued playful pedagogical practices and professional experience, but established their link to (in) student success in such assessments. We concluded that the effects on the teaching work were the accountability and the training of the literacy teachers’ professional identity but also, the production of resistance as the refusals not to apply simulations based on such evaluations.

Keywords: PNAIC; large-scale assessments; teaching work.

Resumen

En Brasil, la legitimidad de las evaluaciones a gran escala se puede identificar a través de sus vínculos con las políticas curriculares, la formación continua para docentes y la gestión educativa. El Pacto Nacional por la Alfabetización en Edad Adecuada (PNAIC) desencadenó acciones en estas tres áreas al poner en práctica la formación continua de alfabetizadores con el objetivo de alfabetizar a niños brasileños hasta los ocho años. Teniendo esto en cuenta, el presente artículo tiene como objetivo analizar las articulaciones entre el PNAIC y las Evaluaciones de Gran Escala, y específicamente, discutir sus efectos en la labor docente de los alfabetizadores en el contexto de Santa María - RS, entre los años 2012 y 2016. Para ello, la investigación cualitativa tuvo como instrumentos de producción de datos el análisis documental de los documentos oficiales y legislativos que orientaron el PNAIC, y entrevista semiestructurada con 13 alfabetizadores, 1 Asesor de Estudios, 1 Formador y el Coordinador General del Programa en UFSM. Para el análisis de datos utilizamos análisis de contenido. En el contexto investigado, los resultados indican que la articulación entre el PNAIC y las Evaluaciones de Gran Escala ocurrió de manera híbrida, ya que las acciones producidas en el ámbito del Programa valoraron las prácticas pedagógicas lúdicas y la experiencia profesional, pero establecieron su vínculo con el (in) éxito estudiantil. en tales evaluaciones. Concluimos que los efectos en la labor docente fueron la rendición de cuentas y la reforma de la identidad profesional de los alfabetizadores, pero también la producción de resistencias, como negativas a aplicar simuladas en consonancia con dichas evaluaciones.

Palabras clave PNAIC; evaluaciones a gran escala; labor docente.

INTRODUÇÃO

A educação é reivindicada como direito universal, responsável pela garantia da formação completa da humanidade e do progresso social, cultural, tecnológico e econômico. Nessa direção, enunciados são produzidos e assumidos como verdades universais e incontestáveis. Dentre eles, está a centralidade da alfabetização como demanda do campo educacional por constituir a etapa da escolarização em que se aprende os conhecimentos básicos de leitura, escrita e matemática.

A partir da reabertura democrática do Brasil, sob a influência dos organismos internacionais e das agendas educacionais mundiais, a alfabetização tornou-se a prioridade das reformas educacionais brasileiras. Analisando tal cenário, Lima e Gandin (2017) advertem que o processo de dispersão do poder presente no gerencialismo constitui uma dimensão fundamental para se compreender a complexa continuidade das políticas educacionais brasileiras ao longo dos governos democrático-populares1. Para os autores, por meio da dispersão de poder, o Estado manteve-se no controle da elaboração, regulação e avaliação das políticas; no entanto, disseminou a responsabilidade e a autonomia na execução das propostas para outros atores sociais2.

Nesse contexto, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) foi instituído pela Portaria do Ministério da Educação nº 867, de 4 de julho de 2012, com objetivos que visavam a alfabetização das crianças até o 3º ano do Ensino Fundamental; a correção do fluxo idade-série na Educação Básica; o aumento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB); a oferta de formação continuada para professores alfabetizadores; e a construção de direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças nos três primeiros anos do Ensino Fundamental.

A Portaria nº 867 previa a execução do PNAIC por meio do regime de colaboração entre os órgãos educacionais federais, estaduais e municipais, entidades do campo educacional e as instituições de ensino superior. Para isso, as ações do Programa orientavam-se em quatro eixos: a) formação continuada dos professores alfabetizadores; b) materiais didáticos e pedagógicos; c) avaliações sistemáticas; d) gestão, mobilização e controle social.

No que se refere ao terceiro eixo, para além de almejar o aumento dos resultados do IDEB, por intermédio da melhoria nos índices de aprendizagem em Português e Matemática na Prova Brasil, as ações do Programa previam a aplicação anual da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) para os estudantes concluintes do Ciclo de Alfabetização. Os resultados da ANA eram divulgados em boletins individuais para cada escola e visavam o amplo acompanhamento dos impactos do PNAIC sobre os níveis de alfabetização, considerando as condições socioeconômicas dos contextos escolares e a formação dos professores alfabetizadores.

No Rio Grande do Sul, as ações de formação continuada do PNAIC foram organizadas pela Secretaria de Educação do estado, pelas Secretarias Municipais de Educação e por Instituições de Ensino Superior Federais. No contexto da rede municipal de Santa Maria, a gestão pedagógica das formações foi realizada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ao longo de toda a duração do Programa.

A partir de Ball, Maguire e Braun (2016) compreendemos que as políticas educacionais não adentram às escolas de modo desarticulado e independente, ao contrário, são recontextualizadas e articuladas pelos atores que lá estão. Por isso, à luz de tais escritos, no presente artigo pretendemos analisar as articulações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa com as Avaliações em Larga Escala, e de modo específico, discutir suas repercussões sobre o trabalho docente das professoras alfabetizadoras, no contexto das escolas municipais de Santa Maria - RS.

Para isso, a pesquisa de caráter qualitativo apresenta dados produzidos por meio da análise documental das legislações e dos documentos orientadores que regulamentaram o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa entre 2012 e 2016. Foram analisadas as Portarias, Resoluções, Leis e os Documentos Orientadores publicados nas páginas eletrônicas do Ministério da Educação e do Programa no âmbito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Além disto, os dados analisados também resultam de entrevistas semiestruturadas com 13 professoras alfabetizadoras3 da rede municipal de educação de Santa Maria - RS; 1 Orientador de Estudos (OE) da rede municipal de educação de Santa Maria - RS; 1 Professora Formadora da UFSM; e a Coordenadora Geral do PNAIC na UFSM. As entrevistas foram realizadas tendo como um roteiro pré-estabelecido, que não encerrava as possibilidades de novos questionamentos, mas estava organizado em três momentos: a organização das formações continuadas pela IES; a repercussão das ações do PNAIC sobre o trabalho docente; e as avaliações externas e internas no contexto do PNAIC.4

Os dados produzidos nos distintos momentos foram tratados com base na análise de conteúdo (BARDIN, 1977), organizando-os nas seguintes categorias: dinâmica e organização das formações continuadas do PNAIC; -o compartilhamento de práticas e experiências; elaboração de discursos sobre si e sobre as outras professoras; as articulações entre as formações e o trabalho docente; a atuação da política de progressão continuada; as articulações entre as avaliações de larga escala e o PNAIC; e as repercussões das avaliações em larga escala sobre o trabalho docente no contexto do PNAIC. No presente artigo a análise dos dados está organizada segundo as duas últimas categorias analíticas.5

O PNAIC NO CONTEXTO DE LEGITIMAÇÃO DAS AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA

No âmbito estatal e econômico as políticas e práticas neoliberais buscam, cada vez mais, privatizar as instituições públicas, expandir a abertura econômica ao mercado financeiro supranacional e alinham a gestão pública às orientações da gestão empresarial. Concomitantemente, o neoconservadorismo reestrutura sobremaneira o campo simbólico e subjetivo das relações sociais e dos sujeitos, por meio de imperativos à autonomia, performatividade, eficiência, eficácia e autoregulação.

A legitimação de políticas avaliativas nos domínios da gestão pública, expressa esse conjunto de ações economicamente liberais, mas socialmente conservadoras, e culmina na sofisticação dos mecanismos de controle e de regulação do Estado sobre a esfera educacional. Sob as lentes da perspectiva sociológica, compreende-se que tais avaliações são práticas políticas plurais e dependentes de regulamentações e pressupostos legais, que as condicionam à conjuntura política, social e econômica de determinado país, de modo a refletir, também, alinhamentos filosóficos, antropológicos e pedagógicos (AFONSO, 2009).

A partir dos anos de 1980 vimos a emergência do “acordo político do Pós-Estado da Providência” (BALL, 2004, p. 1106), que consiste, primeiramente, na passagem funcional do Estado provedor para o Estado regulador da gestão pública, por intermédio da concessão dos serviços públicos aos mercados internos e da criação mecanismos de prestação de contas e responsabilização dos sujeitos pela qualidade dos serviços oferecidos. Nesta perspectiva, mesmo em regiões onde as condições econômicas estavam estabelecidas, como no Reino Unido e nos Estados Unidos, durante os anos 80 e 90, os governos buscaram articular as políticas educacionais ao crescimento e desenvolvimento econômico, por meio da expansão e do fortalecimento das políticas de avaliação em larga escala (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; RAVICTH, 2011).

Seguindo a cruzada neoliberal pelo desenvolvimento econômico e social, os países na periferia da economia mundial avançaram na (re)formulação de políticas públicas sob o viés da Nova Gestão Pública. No caso brasileiro, a partir dos anos 1990 e ao longo dos governos democrático-populares, testemunhou-se a emergência nos discursos educacionais do que Biesta (2012 e 2018) e Amaro (2014) identificam como a “cultura da mensuração”. Isto é,

[...]o discurso oficial, sob as retóricas do direito à aprendizagem e da qualidade da educação, aponta a constituição de uma política de avaliação sistêmica sustentada, essencialmente, nas funções de regulação, controle da gestão e do trabalho docente e mensuração do desempenho dos alunos, utilizando testes objetivos padronizados aplicados a cada dois anos, no caso do ensino fundamental. Assim, confere-se aos exames confiabilidade, legitimidade e fidedignidade técnica para definir se o aluno aprendeu ou não, se a escola é de qualidade ou não, se o responsável é o professor ou não. (AMARO, 2014, p. 118).

Oliveira (2009; 2015) considera que as políticas educacionais brasileiras alinhadas ao gerencialismo foram mantidas em caráter híbrido. Afinal, ao passo que se investiu notoriamente na universalização e na qualificação da educação básica e superior, também houve a sensível ramificação dos sistemas de avaliação em larga escala no cerne das políticas educacionais brasileiras.

A respeito disto, Lima e Gandin (2017) analisam que a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) em 2007, representou a inserção da lógica gerencialista no contexto educacional brasileiro, ao alicerçar princípios da transparência, qualidade e eficiência. Todavia, neste mesmo estudo, a autora e o autor evidenciam que os resultados do IDEB, desde sua criação, tem orientado para o planejamento e ao acompanhamento das políticas educacionais do País que, por vezes, vão de encontro às práticas gerencialistas.

No caso das políticas voltadas para a alfabetização, percebemos que essas receberam especial atenção do Ministério da Educação, principalmente, por se tratar do começo do processo educativo e por constituírem-se como um forte indicador de desenvolvimento econômico e social aos olhos de Organismos Internacionais (POSSA e BRAGAMONTE, 2018). Para tanto, as ações de combate ao analfabetismo infantil buscaram qualificar o trabalho das professoras alfabetizadoras, considerando o protagonismo e a responsabilidade das mesmas em relação ao aprendizado das crianças.

Além disso, ao discutir a proposição de políticas para a área o ex-ministro da Educação6, Renato Janine Ribeiro, pondera que

A alfabetização na idade certa não depende só de dinheiro. O fator principal, como mostrou o Ceará7, é o acompanhamento. É preciso acompanhar, regularmente, o aluno, para saber o que aprendeu, e também o professor, para saber o que ensinou, em dado período. No capítulo sobre o Enem, vimos que no ensino médio era crucial um professor acompanhar cada classe; lá estávamos falando sobre o final da educação básica; aqui, quando falamos do início dela, da alfabetização, temos a mesma necessidade. (RIBEIRO, 2018, p. 301).

Neste contexto, a aprovação da Portaria nº 867, de 4 de julho de 2012, instituiu o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, com os objetivos de:

I-garantir que todos os estudantes dos sistemas públicos de ensino estejam alfabetizados, em Língua Portuguesa e em Matemática, até o final do 3º ano do ensino fundamental; II - reduzir a distorção idade-série na Educação Básica; III - melhorar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB); IV - contribuir para o aperfeiçoamento da formação dos professores alfabetizadores; V - construir propostas para a definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças nos três primeiros anos do ensino fundamental. (BRASIL, 2012).

Tanto a fala do ex-ministro, quanto os objetivos do Programa evidenciam que nos discursos a elaboração de um pacto em prol da alfabetização esteve articulada à legitimação das avaliações em larga escala desde o Ciclo de Alfabetização. Além disso, na mesma Portaria houve a criação da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), direcionada aos alunos concluintes do Ciclo de Alfabetização.

Assim como o IDEB, a ANA configurou-se como um mecanismo de produção de indicadores a respeito do processo de alfabetização nas escolas públicas. Contudo, para além de analisar o desempenho dos e das estudantes na aprendizagem de Língua Portuguesa e Matemática, tal avaliação propunha diagnosticar as condições de escolaridade a partir da produção de dados acerca dos Indicadores de Nível Socioeconômico dos alunos e de Formação Docente.

Dessa forma, entendia-se que o processo avaliativo envolvia três dimensões articuladas entre si, mas protagonizadas por diferentes sujeitos e instituições, sendo estas: a avaliação de aprendizagem dos estudantes, com ênfase no trabalho do professor; a avaliação da instituição, tendo em vista a coletividade na condução do processo de aprendizagem nas escolas; e, por fim, a avaliação do sistema escolar, sobre a qual a responsabilização é direcionada ao poder público (BRASIL, 2013a).

Por isso, a Avaliação Nacional de Alfabetização foi estruturada a partir de três dispositivos: os questionários respondidos pelas/os professoras/es condições da formação dos professores, da infraestrutura das escolas, da gestão da unidade escolar, organização do trabalho pedagógico, entre outras; os Testes de Desempenho aplicados às/aos estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental, contendo 17 questões objetivas de múltipla escolha e 3 dissertativas no caso da Língua Portuguesa e 20 questões objetivas de múltipla escolha sobre Matemática; e uma Produção escrita produzida pelas crianças, a fim de analisar elementos como ortografia, produção de texto e gramática.

Segundo o texto oficial (BRASIL, 2013a) que apresenta a matriz referencial da ANA, com a sua criação reconhecia-se as limitações das avaliações em larga escala em aferir a totalidade da aprendizagem da Língua Portuguesa e dos códigos matemáticos, principalmente, diante da dimensão do processo letramento e a alfabetização empregadas no PNAIC. Ademais, entendia-se que ao considerar os fatores contextuais e econômicos a ANA se distanciava da lógica de ranqueamento escolar e competição.

Contudo, entendia-se que os resultados obtidos nas avaliações poderiam “contribuir para um melhor entendimento sobre os processos de aprendizagem e orientar a formulação de ou reformulação de políticas voltadas para esta etapa de ensino” (BRASIL, 2013a, p. 11). Assim, os resultados da ANA eram divulgados por intermédio de boletins específicos de acordo com a Instituição de Ensino, o Município e a Unidade Federativa, além de um índice nacional.

Por fim, salientamos que em 7 de junho de 2013, a Portaria nº 482 (BRASIL, 2013b) instituiu a nova configuração do Sistema de Avaliação da Educação Básica, reformulando a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB) e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC - Prova Brasil) e ratificando a criação da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Deste modo, a ANA se estabelece, por um lado, como integrante do SAEB e, por outro, como parte do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, configurando mais um mecanismo de controle da aprendizagem e do trabalho docente (DICKEL, 2016). Portanto, faz-se necessário também analisar os efeitos das avaliações em larga escala sobre o trabalho docente das professoras alfabetizadoras no contexto do PNAIC.

AS AVALIAÇÕES EM LARGA ESCALA NO CONTEXTO DO PNAIC: OS EFEITOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE.

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa pode ser considerado, sob diferentes perspectivas, um marco histórico no conjunto das políticas educacionais elaboradas na última década no Brasil. Inicialmente, destacamos a extensão das ações articuladas, em regime de colaboração, entre os entes federados e as universidades públicas, que promoveram formações continuadas às professoras alfabetizadoras e a distribuição de materiais didáticos e livros infantis para as escolas públicas. Nessa primeira perspectiva, o PNAIC significou o avanço de esforços públicos para garantir a alfabetização das crianças até o 3º ano do ensino fundamental.

Sob a perspectiva crítica em relação às políticas educacionais de caráter neoliberal, destacamos que a atuação do PNAIC articulou políticas discursivas e materiais no contexto da prática, as quais foram interpretadas e traduzidas como mecanismos de controle sobre a organização das escolas, o trabalho e a identidade docente. Nesse viés, entendemos que a pretensão democrática de alfabetizar as crianças até os 8 anos, dissimulou a operacionalização dos “terrores da performatividade”, principalmente, sobre as professoras alfabetizadoras (BALL, 2005).

Conforme Ball (2005, p. 20) os terrores performativos derivam da necessidade dos sujeitos neoliberais “[...] de sair da fraqueza ou de um desempenho pobre e procurar melhorar constantemente”. No campo educacional, tais discursos inerentes ao contexto de influência das políticas são traduzidos no contexto da prática por meio da “esquizofrenia de valores” (idem, p. 21), na qual os esforços criativos e a experiência profissional são sacrificados ou instrumentalizados com a finalidade de garantir bons desempenhos e, assim, comprovar o profissionalismo docente baseado em resultados e metas.

Nessa lógica, a articulação das políticas de formação do PNAIC com a Avaliação Nacional da Alfabetização sinaliza para a possível responsabilização dos docentes acerca da própria qualificação e reestruturação das práticas pedagógicas a fim de alcançar os melhores desempenhos. A ANA configura uma tecnologia política performativa, na medida em que sua aplicação e divulgação anual8 de seus resultados, estimulavam as professoras a repensarem a própria identidade docente.

Ao assumir os discursos da primeira perspectiva e considerar as proposições expostas no conjunto de textos que orientavam o PNAIC, a presença da avaliação externa nos contextos discursivos e prático do Programa, foi vista com surpresa por Sabrina, que atuava como formadora no âmbito da UFSM.

Com relação à prova ANA, ela em alguma medida também surgiu como uma surpresa para a gente. [...] Quando chegou o Pacto a gente foi descobrindo, a gente foi conhecendo melhor o Programa na medida que tu vais fazendo parte dele porque uma coisa é a forma como ele foi pensado e se sabia, já se criticava a questão do próprio nome, então a gente fazia algumas críticas, mas entendia que tinha que estar, internamente. Ao mesmo tempo a gente sabia que esses índices são importantes para gerar uma leitura macro do sistema, mas que há um conjunto de variáveis que não são consideradas. [...] Mas pode ter sido um problema meu, porque a gente assume as coisas com n [expectativas], mas que depois eu pensei que idiota que tu és, pois é óbvio que viria o controle, é evidente que isso viria! (Sabrina, Formadora, UFSM).

Com base na fala da formadora, pode-se ver que, ao se inserirem nos contextos da prática, das estratégias e dos resultados, os atores sociais são postos em contato com a política traduzida de modo híbrido. Desse modo, para identificar e interpretar os textos e discursos que constituem tais políticas, vê-se que lançam mão das expectativas que suscitam sobre elas, das concepções teóricas que possuem a respeito dos temas, bem como das subjetividades que os constituem como sujeitos e profissionais.

No que tange às formações continuadas das professoras alfabetizadoras, não houve consenso a respeito das discussões acerca da ANA e seus possíveis impactos para o ciclo de alfabetização e o trabalho docente. Nesse sentido, constatamos que apenas a professora Tatiane relatou não ter participado de qualquer encontro formativo sobre o tema.

Mas na formação do PNAIC, eu acho que muito pouco, no meu grupo, foi discutido porque eu acredito que a própria falta de conhecimento e formação da nossa orientadora sobre o que eram as avaliações, como eram construídas, como deveriam ser implementadas, como nós professores poderíamos estar trabalhando com os alunos a questão da preparação, da conversa ao longo do ano. (Tatiane, EMEF 1).

Ao atrelar a ausência das discussões acerca das avaliações à falta de conhecimento da orientadora, a professora relata como as políticas inerentes ao PNAIC foram interpretadas e traduzidas de diversas formas, sob diversos olhares e percepções, até chegarem às professoras alfabetizadoras. De encontro à experiência da professora, mostramos a fala do orientador de estudos Roberto, que evidencia como a abordagem das avaliações externas era tangenciada nas formações que ministrava, por intermédio das discussões acerca das dificuldades inerentes ao processo de alfabetização.

Em função do IDEB, não tanto porque no Pacto nós sempre tivemos uma certa sequência de atividades a serem desenvolvidas. Sempre tivemos um direcionamento daquilo que precisava ser desenvolvido através dos cadernos, mas dentro desse desenvolvimento e pelas conversas que a gente tinha. (...) quando tu vês que a tua mesma dificuldade perpassa por outros lugares, então muitas vezes o planejamento não era direcionado em relação ao IDEB, mas em relação às dificuldades de aprendizagem e, ao sanar um pouco essas dificuldades, consequentemente, refletia nos índices. (Roberto, Orientador de Estudos, SMED).

Diante dessa lógica, entendemos que a fim de garantir o crescimento nos índices de alfabetização, as formações tornavam-se espaços de responsabilização das professoras que teriam “que ter os subsídios para que a aprendizagem acontecesse, para que os direitos de aprendizagem fossem assegurados” (Roberta, EMEF 2, grifos nossos). Nesse viés, outras professoras relatam que

Foi... foi tratado, era falado e ajudou bastante. No sentido de que as coisas que eram feitas com a orientação deles lá eram utilizados aqui para o rendimento deles melhorar. (Sônia, EMEF 6)

(...) os conteúdos que a gente estudava nos nossos materiais do PNAIC, ao meu ver, estavam em consonância com o que estava sendo exigido na provinha, bastante até. (Amanda, EMEF 7).

Eu acho que sim, naquela parte da alfabetização, mesmo a questão da produção da leitura, da escrita, tinha várias possibilidades de fazer com que o professor mudasse a sua prática para conseguir uma melhor produção na escola, eu acho que acho que sim. (Marcela, EMEF 10).

Na visão das professoras, a reorganização do processo de trabalho, proveniente das formações continuadas do PNAIC, convergia para uma “melhor produção” e para o aumento do rendimento da aprendizagem nas escolas. Assim, a qualidade do próprio trabalho “é reduzida à uma ‘tênue’ versão do profissionalismo assente na responsabilidade pelos resultados mensuráveis” (BALL, 2005, p. 22). Sob o mesmo discurso, destacamos as duas falas a seguir:

(...) que eu lembro as provinhas que a gente trabalhou no PNAIC, e que se não fosse o PNAIC, a gente não trabalhava em sala de aula por vários motivos. Mas eu achei que bastante a ver, e quem realmente aproveitou, que foi trabalhar no PNAIC, que trouxe de verdade para sua sala de aula, com certeza seus alunos tiveram uma noção um pouco melhor para fazer a prova, estavam melhor preparados, com certeza. (Amanda, EMEF 7).

Mas como eu te disse, varia muito da questão do professor se apropriar e fazer uso daquilo que viveu no Pacto. Muitos tiveram alunos que tiveram muito grande [desenvolvimento] em virtude disso. (...) A prova Brasil no quinto ano seguiu os mesmos moldes, mas como eu te disse se o professor fez todo o acompanhamento do Pacto, muitas vezes aquele aluno levava adiante o conhecimento que ele tinha, aquelas atividades que ele havia realizado. (Roberto, Orientador de Estudos, SMED).

Percebemos que tanto na concepção das professoras alfabetizadoras, quanto do orientador de estudos, as repercussões do PNAIC nos resultados da ANA ou, posteriormente nos do IDEB, seriam alcançadas conforme a aplicação das atividades orientadas pela formação. Nessa direção, intensifica-se a vontade de verdade sobre a adoção de boas práticas de alfabetização como paradigma para assegurar o resultado desejado, e para, além disso, comprovar o profissionalismo docente comprometido com a aprendizagem.

Desse modo, o PNAIC funciona como uma política de desprofissionalização e descaracterização do trabalho docente, pois a conformação dos profissionais à lógica da política de formação se insere na “visão técnica e instrumental da educação, o que requer profissionais flexíveis e adaptáveis, que abracem a causa e ‘vista a camisa’ da avaliação, sem a admissão de visões mais críticas/resistências” (SILVA; HYPOLITO, 2018, p. 20).

Identificamos que imbuídas da responsabilidade de garantir a alfabetização, as professoras passaram a alterar suas práticas, burlando os resultados das avaliações, conforme nos conta a formadora

O que vinha acontecendo e até a própria circunstância, eu lembro muito disso, que surgia em muitos momentos a ideia das pessoas estarem nas escolas, estarem fazendo trabalho para obter [um resultado], um trabalho que é mais focado para preparação para a prova. (...) Então essas coisas sempre foram problematizadas: para que me serve a ANA? Que tipo de avaliação? Como é que eu me relaciono com essas avaliações externas? Que também eu acho que não se trata da gente negar totalmente, mas de a gente conseguir analisar criticamente para isso e que eu não faça um trabalho de desmerecimento como ranqueamento entre as escolas ou que eu faça uma coisa doida de fazer treinamento das crianças porque daí é tu burlares o processo. (Sabrina, Formadora, UFSM).

Nas narrativas das alfabetizadoras, observamos a inserção dos simulados como práticas pedagógicas aceitáveis, seja para preparar psicologicamente as crianças ou para adaptá-las ao formato dessas avaliações, como diz a professora:

Porque assim, eu não estava preparando os alunos, mas desde o início do ano eu venho dizendo: “gente nós vamos fazer um trabalhinho” e fui trabalhando questões parecidas com eles. Simulados? Não sei se usa esse termo, mas fiz, fiz vários simulados, bastante porque eu acho que era um jeito deles se sentirem seguros no momento que a prova chegasse para eles e aquilo não fosse um bicho com 7 cabeças. (Tatiane, EMEF 1).

A gente até tentava, assim..., sempre no segundo semestre já fazer tipo alguns simulados algumas coisas assim, porque como eram provinhas de marcar, a gente não tinha o hábito de fazer prova de marcar com os alunos pequenos, os pequenos eram muito mais dissertativas. (Roberta, EMEF 2).

Para Amaro (2014), a aplicação de simulados e a adoção de metodologias ou práticas pedagógicas com base nas avaliações, são movimentos subversivos e fraudulentos que convertem as ações em sala de aula a um conjunto perverso, em que o trabalho docente é reduzido à preparação de alunos para responder eficientemente às provas, e o ato educativo é transformado na produção de números.

De encontro a isso, outras professoras parecem resistir à adoção de simulados ou às pressões impostas pela SMED, pois ao serem questionadas sobre o impacto das avaliações na prática pedagógica, afirmavam que

Eu, [nome da professora], não tô dizendo a escola..., tô dizendo que eu nunca me preocupei exatamente com essas provas, eu nunca parei para preparar meus alunos para a prova, eu trabalhava os conteúdos do meu plano de estudos, do meu plano de trabalho e que achava necessário, sempre só isso. Ainda bem que casava com o conteúdo da provinha, mas também se não casava não ficaria fixada naquela provinha. Alguns dias de preparo como se fosse o vestibular, para mim nunca foi objetivo. Não cheguei a preparar meus alunos para isso. (Amanda, EMEF 7).

Eu não ficava preocupada porque vai ter a prova ANA, eu trabalhava sem pensar nessas avaliações. Até porque eu tenho o terceiro ano aqui agora, então não me preocupava assim com “ah, lá na prova Ana vão cobrar isso”, agora claro, que a gente procura sanar as dificuldades das crianças, mas não pensando especificamente na prova ANA. Não via assim, porque eu já vi escolas bem preocupadas, “ah, a prova ANA, a gente tem que trabalhar essa questão, essa questão”, mas particularmente eu nunca fiz assim, essa análise da prova como sendo “Ah!” [motivo de pavor ou medo] sabe? (Marcela, EMEF 10).

Em contrapartida, diante da indagação acerca da repercussão do PNAIC nos resultados divulgados pelos sistemas de avaliação em larga escala, as professoras exaltam a melhoria dos índices.

Olha nossa escola que é uma das do município que tem o maior, o melhor índice do IDEB, eu acho que a prova ANA até é importante de ser feita, para fazer essa análise. Eu acho que de repente para outras escolas assim que estavam com um índice mais baixo de repente até ajudou. (Marcela, EMEF 10)

Quando eu participei da prova ANA com a minha turma, olha eu sou muito bem, foram excelentes os resultados que eu tive. Então eu só tenho a agradecer porque é um ganho a mais que professor tem com formação. (Claudia, EMEF 8).

A partir das narrativas das professoras alfabetizadoras é possível observar que o desempenho “[...] tem uma dimensão (status) emocional, assim como racionalidade e objetividade” (BALL, 2002, p. 11). Por isso, quando os resultados são inseridos nos espaços educacionais, promovem a legitimação de uma cultura performativa, suscitam sentimentos coletivos e individuais de orgulho, e fazem crer na qualidade dos serviços prestados.

Nesse viés, a professora Raquel orgulha-se dos resultados alcançados pela escola, mas tece críticas à responsabilização no contexto do Programa.

Os nossos resultados sempre foram bons da provinha Ana. A provinha Brasil é do 5º ano, sempre deu bom aqui. O nosso IDEB sempre deu bom, é muito bom, aqui. (...) Então não foi uma influência tão grande a formação do PNAIC em relação ao IDEB, para tu veres como o problema não era o professor, pois eles botaram sempre a culpa do problema na professora, que a gente tinha que se formar, a gente tinha que receber auxílio, mas não é. (Raquel, EMEF 3).

A responsabilização denunciada pela professora e a experiência de perda de poder e controle sobre as próprias práticas pedagógicas e avaliativas atravessam outras docentes causando sentimentos de apreensão, medo, autojulgamento e frustação diante da lógica das avaliações externas

Ah, a cobrança sempre há. Elas são necessárias, está dentro do trabalho, a gestão toda do teu fazer pedagógico é pautado em avaliações. Eu acho que não pode fugir muito disso. É claro que cobrança sempre tem, e não são poucas cobranças. (...) Claro que interferiam, a gente fica apreensiva, já que vai ter uma avaliação e tá em jogo todo teu trabalho, o tu fizeste ao longo do ano. Então, claro que o professor fica apreensivo com essas avaliações. (Claudia, EMEF 8).

Muitas vezes frustrada porque tu buscas fazer o melhor trabalho que tu podes, muitas vezes está planejando, está buscando outras alternativas e tudo mais, mas tu vês que aquele teu aluno precisava de algo mais, precisava de um acompanhamento médico, ele precisava de outros aparatos que não só o professor consegue dar, então assim muitas vezes era frustrante de ter essa cobrança sem oferecer os meios. (Sônia, EMEF 6).

Nesse contexto, entendemos que a atuação da SMED foi fundamental para a legitimação das práticas de responsabilização das professoras, uma vez que, nas palavras do orientador de estudos,

[...] nas formações do Pacto muitas vezes como as escolas se reuniam, nós não dizíamos que a escola A decaiu, que a escola B tava melhor, que a escola C...nós procurávamos fazer uma conversa em que cada um pudesse mais ou menos pensar e ver; não é o que aquele conhecimento está trazendo de ganho para a minha escola, poxa, porque ao mexer com isso tu fazias com que o professor procurasse se questionar e ver porque muitos deles não acompanhavam o seu IDEB, a escola não fala e ele também não vai atrás de saber. (Roberto, Orientador de Estudos, SMED).

Além da orientação durante as formações, outra prática adotada pela SMED foi a visita em escolas com resultados baixos no IDEB, como relata a professora Karoline:

Então eu penso que a SMED foi muito atuante e se engajou muito especialmente no início do programa. Havia muita aproximação da SMED, inclusive visitaram várias escolas no início e durante o programa até para ver se as ações estavam sendo implementadas, a minha escola foi uma que recebeu visitas constantes da SMED, até por ser um desafio, eu trabalhava numa escola que tinha um IDEB muito baixo, então eles iam visitar, queriam ver se estavam sendo construídos os espaços para leitura e para a escrita, que tipo de trabalho estava sendo desenvolvido. (Karoline, EMEF 2).

Como vimos, a inserção dos sistemas de avaliação em larga escala no contexto educacional brasileiro decorre do processo de empréstimo de ideias políticas, de países em que o neoliberalismo já está consolidado. No entanto, alguns estudos realizados nessas nações, já contestam os seus efeitos sobre o currículo, o trabalho docente e a gestão educacional, bem como questionam a necessidade ou a intencionalidade em que estão postas tais avaliações.

Um estudo central para repensarmos a atuação dessas políticas na realidade brasileira foi realizado por Diane Ravitch, ex-secretária de educação dos Estados Unidos e uma das responsáveis pela implementação da política Nenhuma Criança Fica para Trás (No Child Left Behind), que, ao reavaliar as repercussões dessa política no sistema educacional estadunidense, expressa que:

O problema com a responsabilização baseada em testes é que ela impõe sérias consequências para as crianças, educadores e escolas com base em escores que podem refletir um erro de mensuração, um erro estatístico, uma variação aleatória ou um conjunto de fatores ambientais ou atributos dos estudantes. Nenhum de nós iria querer ser avaliado - com a nossa reputação e meio de vida em jogo - somente com base em um instrumento que é propenso a erro e ambíguo. Os testes agora em uso não são adequados por si sós para a tarefa de avaliar a qualidade das escolas e professores. Eles foram projetados para propósitos específicos: mensurar se os estudantes são capazes de ler e realizar operações matemáticas, e mesmo nessas tarefas eles devem ser usados com ciência de suas limitações e variabilidade. Eles não foram projetados para capturar as dimensões mais importantes da educação, para as quais nós não temos testes. (RAVITCH, 2011, p. 189)

A crítica a respeito dos testes nos permite pensar acerca da necessidade de estabelecer, cada vez mais, questionamentos e contra-argumentos que, de fato, tencionem as perspectivas educacionais baseadas na lógica dos sistemas de avaliação e desempenho. No nosso contexto de pesquisa, encontramos críticas como as que seguem:

Isso é uma coisa que é muito cobrado da gente e é como se a gente tivesse o poder de resolver tudo sozinho e é uma coisa que não depende exclusivamente do professor. A gente vê o choque de realidades entre uma instituição e outra, a localização, o nível socioeconômico dos alunos. (Roberta, EMEF 2).

(...) a aplicação da prova naqueles dois primeiros anos, nós não podíamos nem ficar na sala. Aqui quem vinha aplicar dizia que nós não podíamos ficar na sala, tem escolas que diz que podiam ficar, mas não podia falar nada, não podia fazer nada, tinha que ficar ali parado, não podia manusear, não podia fazer nada. Então quem vinha aplicar dizia assim “se vocês quiserem sair, vocês podem sai r porque aqui não vão poder nem olhar, manusear”. (Jaqueline, EMEF 4).

A visão da Professora Jaqueline sobre a aplicação da ANA também reflete a crítica de outras professoras, que entendiam esse momento como um empecilho para docentes e discentes, pois ficavam ainda mais apreensivos, confusos e amedrontados na realização dos testes. Outrossim, as seguintes falas repercutem a falta de alinhamento das provas com as práticas elaboradas e incentivadas no Programa.

[...] meio sem contexto, porque o PNAIC pregava uma coisa; tem que trabalhar com o lúdico, tem que trabalhar com o que ela consegue, aquela coisa toda. E aí chega uma prova de onde a gente nem sabe e atiram lá para as crianças fazerem, eu acho meio que um vestibular, assim. (Raquel, EMEF 3).

Olha algumas coisas sempre achei meio injusto, meio descontextualizadas em relação a nós aqui. Por exemplo, aqueles textos enormes que não condiziam com o nosso processo, com a nossa metodologia de alfabetização, uma coisa mais leve, mais tranquila. Daí chega aqueles textos enormes então não era da realidade deles ainda, eles não conseguiam ainda aquilo dali. Então me preocupava isso porque se fosse uma coisa mais direcionada para o nosso trabalho mesmo em sala de aula, eles iriam um pouco melhor. Só essa questão. A maior parte da prova era bem tranquila, só quando caia nessa parte era que me preocupava. (Amanda, EMEF 1).

Por fim, as ressalvas à ANA também se direcionavam à universalidade das avaliações para diferentes regiões do país, assim como à consequente discrepância nos níveis de dificuldade.

[...] a questão da formulação da prova, muitas vezes eu acha que não estava bem elaborada, na questão do tipo de letra, na questão do nível das questões, eram pessoas que eram de outro níveis, no caso, da universidade (...)questão da letra do conteúdo, então depende do nível de turma que tu tens, tu não consegues... tinham questões muito fáceis, mas tinham questões que as crianças não conseguiam fazer, e daí entra a questão do atendimento e outras. (Eliana, EMEF 9).

[...] como eu te disse muitas vezes elas não refletem a realidade. Eu acho que a linguagem, a forma como elas são elaboradas, há algumas questões que não têm muito a ver com a realidade do teu aluno, então foge um pouco da realidade dos nossos alunos algumas questões (...). (Claudia, EMEF 8).

Ao lançar o olhar sobre as críticas das professoras às avaliações em larga escala, observamos que se restringem à discordância com as metodologias, ao fato de as mesmas não atentarem para regionalidades ou, sobremaneira, para as condições socioeconômicas dos alunos e das escolas.

Entendemos que tais contestações são importantes, entretanto, por compreendermos que os sistemas de avaliação em larga escala relacionam-se a determinadas concepções de educação, nas quais, ainda que haja a contextualização, o investimento nas condições externas à escola, ou a adequação às práticas pedagógicas desenvolvidas no cotidiano escolar, os discursos reproduzidos na lógica do desempenho, dos resultados e da mensuração da educação prevalecerão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação às articulações do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e os sistemas de avaliação em larga escala, frisamos que a política de formação continuada previa a aplicação da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), realizada anualmente com os alunos do terceiro ano do ciclo de alfabetização, e que o IDEB, apesar de não considerar os resultados dos estudantes do ciclo de alfabetização, insere-se no contexto escolar como um compromisso a ser assumido por toda a escola ao longo do processo educativo e, por isso, também esteve presente nas discussões desta análise. Todavia, “[...] quer a competição quer a colaboração nestes casos são ‘produzidas’ e ‘realizadas’ através de incentivos e de uma ação deliberada” (BALL, 2005, p. 29), o que subjuga as ações coletivas e colaborativas a interesses de desempenho, de resultados educacionais, de instrumentalização da educação.

No âmbito das formações continuadas percebemos que as múltiplas interpretações desencadeadas ao longo dessa política resultaram em duas vias principais de atuação. A primeira condiz com o entendimento de que a partir da aplicação das práticas e metodologias apresentadas no Programa as professoras alcançariam melhores resultados na ANA e que os alunos estariam melhor preparados para as provas nos anos seguintes de escolarização. A segunda perspectiva refere-se às narrativas que criticam as provas e a desarticulação com as formações continuadas.

Como efeito da primeira via, as professoras são capturadas pelas práticas e discursos produzidos no contexto das formações, que articulam o profissionalismo docente, a adoção de boas práticas de alfabetização e o rendimento nas avaliações em larga escala. Ainda que não haja consenso sobre a abordagem das provas durante os encontros do PNAIC, as narrativas docentes enunciam as reformas nas práticas pedagógicas, na relação com o próprio fazer docente, e para além, denunciam os sentimentos paradoxais de responsabilização e orgulho sobre os resultados alcançados.

Na segunda perspectiva, as professoras tencionam a lógica inerente às avaliações em larga escala, relatando tentativas de distanciamento e de resistência diante dos mecanismos operacionalizados antes e durante a aplicação das provas. Tais movimentos são postos em prática por meio da recusa em adotar práticas pedagógicas direcionadas às Prova Brasil e/ou ANA, como os simulados. Contudo, as denúncias e os tensionamentos se encerram na falta de contextualização de tais mecanismos, e não avançam sobre a concepção de educação e de profissionalismo inerente a eles.

No que se refere às articulações do PNAIC com as avaliações em larga escala, sob nosso ponto de vista, não é possível afirmar que as formações continuadas promovidas pelo PNAIC repercutiram, diretamente, nos resultados obtidos tanto pelas escolas pesquisadas, quanto pela rede municipal de educação, uma vez que, a SMED conta com um plano de ações para este fim.

Por fim, concordamos com Amaro (2014) e Biesta (2018) quando propõem outros caminhos para as avaliações educacionais, nos quais tais práticas sejam baseadas em procedimentos e instrumentos que valorizem as múltiplas dimensões educacionais, e que perpassem as formas democráticas de responsabilidade, nas quais os sujeitos que são avaliados tenham poder para articular o que é qualidade desejada. Nessas condições, pensar as avaliações como parte da educação, não exime os professores e professoras de responsabilidades, mas permite que sejam parte dos processos pelos quais seus alunos e seu trabalho estão sendo avaliados.

1Entende-se por governos democrático-populares o período político liderado pelo Ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e pela Ex-presidenta Dilma Roussef (2011-2016), assim como várias experiências em governos municipais e estaduais, desde os anos de 1980 às primeiras décadas do Século XXI.

2Tendo como base os escritos de Stephen Ball e colaboradores(as), utiliza-se o termo “atores” em referência aos professores e às professoras, pois nos processos que envolvem a (re)contextualização das políticas educacionais, tais profissionais constituem-se em objeto e público-alvo das propostas oficiais, mas, sobretudo, no contexto da prática, assumem a posição de sujeitos que atuam nas políticas educacionais conforme as possibilidades do cotidiano escolar, a própria identidade profissional e os fatores subjetivos.

3As professoras alfabetizadoras participaram do PNAIC ao longo das quatro edições analisadas e atuavam em 10 escolas municipais distintas, as quais foram selecionadas a partir de dois critérios: aquelas com crescimento no IDEB e no Índice de Aprendizagem (7 escolas), entre 2015 e 2017; e aquelas que apresentaram, nesse mesmo intervalo temporal, resultados no Índice de Aprendizagem menos que a média geral das escolas municipais (3 escolas).

4Salientamos que na apresentação dos dados das entrevistas adotamos nomes fictícios para todas e todos participantes a fim de preservar a identidade dessas e desses.

5A análise das demais categorias pode ser consultada na dissertação de Mestrado de AUTOR X (2019).

6O Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Renato Janine Ribeiro, foi Ministro da Educação entre abril e outubro de 2015, durante o governo da Presidenta Dilma Roussef.

7Nota das/es autoras/es: Quando o ex-ministro da Educação cita o estado do Ceará faz alusão, na verdade, ao Programa Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PAIC), lançado em 2007 pelo governo estadual, e que por gerar resultados satisfatórios, inspirou a criação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).

8A aplicação da ANA ocorreu nos anos de 2013, 2014 e 2016. Em 2015, o MEC divulgou a suspensão da prova por falta de recursos.

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Recebido: 1 de Fevereiro de 2021; Aceito: 1 de Abril de 2021

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