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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.69625 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

HISTÓRIA DE MULHERES E EDUCAÇÃO: transgressões, resistências e empoderamentos

HISTORY OF WOMEN AND EDUCATION: transgressions, resistances, and empowerments

HISTORIA DE LA MUJER Y LA EDUCACIÓN: transgresiones, resistencias y empoderamiento

Maria Celi Chaves Vasconcelos1 
http://orcid.org/0000-0002-3624-4854; lattes: 9511377122315447

Márcia Cabral da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-8748-5893; lattes: 3141195844022565

Cristina Maria Coimbra Vieira3 
http://orcid.org/0000-0002-9814-1076; lattes: 2717061488825445

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil E-mail: maria2.celi@gmail.com

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil E-mail: marciacs.uerj@gmail.com

3Universidade de Coimbra, FPCE, e Universidade do Algarve, CEAD, Portugal E-mail: vieira@fpce.uc.pt


Resumo

Ao longo da história, as mulheres, resistindo ao discurso e às instituições que as subalternizavam, conseguiram exercer atividades criadoras e promover deslocamentos da posição que as circunscrevia ao casamento, à maternidade e à vida doméstica. Trabalhadoras da indústria têxtil, enfermeiras, professoras, ativistas foram alguns dos postos que ocuparam a partir do acesso à leitura e à educação. Contudo, para elas, muitas foram as lutas travadas no campo social, sobretudo, quando se tratava de mulheres das classes trabalhadoras e de mulheres negras, discriminadas pelo preconceito que sobrepunha classe, raça e gênero. Nesta Seção Temática, cujo foco são histórias de mulheres em diálogo com a educação, reunimos artigos que contribuem para refletir e questionar as relações que se estabeleceram entre as mulheres e a sociedade, em diversos contextos e temporalidades. A partir da ampliação de pesquisas sobre a história de mulheres, dão-se a conhecer protagonistas que se destacaram em diversos campos do conhecimento, muitas, inclusive, pela arte e pela escrita, bem como aquelas que se projetaram na sociedade utilizando a tribuna para reivindicar os direitos civis e de cidadania que lhe tenham sido subtraídos.

Palavras-chave: mulheres; resistências femininas; empoderamento; gênero e educação

Abstract

Throughout history, women, resisting the discourse and institutions that subordinated them, managed to exercise creative activities, and promote displacements from the position that limited them to marriage, motherhood, and domestic life. Textile industry workers, nurses, teachers, activists were some of the positions they occupied because of access to reading and education. However, for them, there were many struggles in the social field, especially when it came to working class women and black women, discriminated against by prejudice that overlapped class, race and gender. In this Thematic Section, which focuses on stories of women in dialogue with education, we have gathered articles that contribute to reflecting and questioning the relationships that have been established between women and society, in different contexts and temporalities. From the expansion of research on the history of women, protagonists who stood out in various fields of knowledge, many, including art and writing, as well as those who projected themselves in society using the tribune to claim civil and citizenship rights that have been taken away.

Keywords: women; female resistances; empowerment; gender and education

Resumen

A lo largo de la historia, las mujeres, resistiendo al discurso y las instituciones que las subordinaban, lograron ejercer actividades creativas y promover desplazamientos de la posición que las limitaba al matrimonio, la maternidad y la vida doméstica. Obreros de la industria textil, enfermeros, docentes, activistas fueron algunos de los cargos que ocuparon a raíz del acceso a la lectura y la educación. Sin embargo, para ellas había muchas luchas en el campo social, especialmente cuando se trataba de mujeres de clase trabajadora y mujeres negras, discriminadas por prejuicios que superponían clase, raza y género. En esta Sección Temática, que se centra en relatos de mujeres en diálogo con la educación, hemos reunido artículos que contribuyen a reflexionar y cuestionar las relaciones que se han establecido entre las mujeres y la sociedad, en diferentes contextos y temporalidades. A partir de la expansión de la investigación sobre la historia de las mujeres, protagonistas que se destacaron en diversos campos del saber, muchas, entre ellas el arte y la escritura, así como aquellas que se proyectaron en la sociedad utilizando la tribuna para reivindicar derechos civiles y ciudadanos que les han sido arrebatados. lejos.

Palavras chave: mujeres; resistencias femeninas; empoderamiento; género y educación

POR UMA HISTÓRIA DE MULHERES E DE EDUCAÇÃO

A história das mulheres está envolta em silêncios e esquecimentos que foram deliberadamente impostos à condição feminina, uma vez que à mulher cabia um papel subalterno, no âmbito do privado, e, portanto, invisibilizado no espaço público. Quando se trata de mulheres anônimas, esse processo de apagamento é ainda mais absoluto, com os registros de sua história escassos e praticamente inexistentes, tendo que ser buscados por meio de fontes que tangenciam os objetos e as sensibilidades que lhes eram contemporâneas. Ainda assim, algumas mulheres, ao longo da história, souberam romper as barreiras de sua condição, transgredindo, resistindo e transformando seu cotidiano de aprisionamento em possibilidades de empoderamento.

Contudo, como afirma Michele Perrot, buscar a presença e a fala feminina em locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, trata-se de um processo recente que enfrenta a mudez da historiografia:

Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços da memória e, ainda mais, da história, este relato que, por muito tempo, ‘esqueceu’ as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade de reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo ou ao menos fora do acontecimento (PERROT, 2005, p. 9).

Além disso, Perrot (2005, p. 11) chama a atenção para o fato de que o silêncio pesa mais fortemente sobre as mulheres que são deliberadamente “tragadas pelo esquecimento”, pela dificuldade de se definir seu papel e sua narrativa na cena pública, o que dificulta sua “apreensão” no tempo, falando-se pouco delas e, ainda menos, caso quem faça o relato seja um homem que se acomoda com uma costumeira ausência, serve-se do masculino universal, de estereótipos globalizantes ou da suposta unicidade de gênero: “a mulher”. Portanto, a “longa historiografia do silêncio” reforça “seu caráter viril”, pois a história das mulheres foi feita por homens. No entanto, como demonstra Michelle Perrot (2005, p. 54) “[...] as mulheres souberam apossar-se dos espaços que lhes eram deixados ou confiados, para desenvolver sua influência junto às portas do poder”.

Assim, para a autora (PERROT, 2005, p. 39), as mulheres foram relegadas a uma “memória do privado” voltada para a família e para o íntimo, cujas convenções fazem associá-las, notadamente, a uma narrativa historiográfica que prioriza a infância, a educação, o casamento, a maternidade, as qualidades e o legado que deixaram a outra geração de mulheres. Romper com essa retórica causa um enorme estranhamento que, como consequência, produz extremos: do esquecimento ao heroísmo exacerbado.

No cenário do privado, a educação das mulheres limitava-se a aprendizagens baseadas em ser capaz de ler e de escrever, tocar piano, cozer, bordar, além de outras "tarefas do seu sexo", como noções de economia doméstica e gestão da casa. O conteúdo destinado às mulheres era complementado por inúmeros manuais na mesma linha ideológica, disseminados em uma imprensa voltada para o público feminino, que exaltava o bom comportamento e a higiene, a leitura de fábulas, poesias e guias femininos para meninas, entre outras obras permitidas, por não oferecerem risco de comprometerem a “ingenuidade” natural da mulher. No entanto, cabe ressaltar que nem todas conformavam-se à ordem vigente e muitas mulheres encontraram maneiras de burlar a vigilância estabelecida e vislumbrar, ainda que por fragmentos, o proibido:

Marcado por uma estrutura binária, o imaginário ocidental estabeleceu seus cânones, relegando à condição marginal àqueles que não se enquadrassem em seus modelos. Um desses segmentos foi, sem dúvida, o elemento feminino. O maniqueísmo em torno do qual se organiza a sociedade falocêntrica elege um digma masculino, relegando à mulher a condição de ‘outro’. Na estrutura polarizada, ela é o ‘não-ser’ construindo a própria identidade a partir da alteridade. Em virtude disso, sua fala tem sempre estado associada à negação, espelhando a estrutura social a partir de outra ótica. Transgressora, irreverente, rebelde, a voz feminina desafia a ordem patriarcal vigente (CALDAS, 2004, p. 227).

Ao longo da história, muitas mulheres aprenderam a ler e a escrever, assim como os conhecimentos básicos permitidos a elas, por meio da educação doméstica, no espaço privado, em contato somente com os próprios familiares ou com outras mulheres contratadas para ensiná-las (VASCONCELOS, 2018). Cada uma, de acordo com a classe a que pertencia, foi educada com algum conteúdo escolhido pela própria família, mas todas tinham em comum o objetivo de preparação para serem boas esposas e mães, obedecendo à expectativa proveniente da divisão discriminatória dos espaços e funções masculinas e femininas, defendidas como naturais pela sociedade, particularmente, em um país como o Brasil oitocentista, patriarcal e estratificado socialmente. Aos viajantes estrangeiros, essa condição feminina não passava despercebida

Na verdade, o que escandalizava o visitante não era tanto o estigma de inferioridade que acompanhava a condição feminina, já que o mesmo existia nas suas sociedades de origem, mas sua estreita base de sustentação, inatingível pela censura e desprovida de qualquer refinamento ideológico. Do lado brasileiro, a autoridade despótica do pater familias, assentada no domínio indevassável do lar, isto é, no âmbito do privado, de outro, a sujeição voluntária a uma ordem pessoal regulada pela esfera pública mas, em todo o caso, governada pelos homens (QUINTANEIRO, 1995, 38-39).

Todavia, não se pode perder de vista que foi também no século XIX que a educação feminina começou a ser considerada um diferencial, agregando valor para a obtenção de um bom casamento o fato de se ter aprendido a ser gestora da casa, assim como, a partir dos anos de 1850, em nosso país, a educação, tradicionalmente reservada ao espaço doméstico, inicia um deslocamento para o ambiente escolar, ainda que a escola para mulheres demorasse muito tempo para ser vista como um local adequado pelas camadas da população mais favorecidas social e economicamente.

Ainda que houvesse um preconceito em relação aos espaços coletivos como a escola, sujeita à contaminação por epidemias e à mistura de classes sociais, ressalvadas as limitações existentes quanto à formação das mulheres, não foram raras as iniciativas de escolarização de meninas por meio de inúmeros colégios fundados na Corte imperial, a cidade do Rio de Janeiro, dos anos de 1850 em diante. No entanto, insistia-se que a educação das mulheres deveria ser acima de tudo moral, com pouco conteúdo intelectual, e sua finalidade era como um "adorno" feminino, entre tantos que remetiam às mulheres, tratadas como despreparadas para a vida pública e para tudo o que fazia parte dela. Debret, no início do oitocentos, já anotava essa tendência:

Os pais e os maridos favoreciam essa ignorância, a fim de destruir pela raiz os meios de correspondência amorosa. Essa precaução, tão nociva aliás ao desenvolvimento da instrução, levou as brasileiras a inventarem uma combinação engenhosa de interpretação simbólica das diferentes flores, construindo uma linguagem de modo que uma simples flor oferecida ou mandada era expressão de um pensamento ou de uma ordem transmitida, aos quais podiam ligar consequências diversas pela adição de inúmeras outras flores ou de simples folhas de certas ervas convencionadas de antemão. Pensamentos suaves, cólera, hora do dia, lugar do encontro, tudo se exprimia da maneira mais simples. Mas como a chave dessa correspondência era entregue ao rapaz que devia responder, essa ciência, transmitida assim de geração a geração, tornou-se um objeto de mofa quando os progressos da educação feminina a substituíram pela escrita (DEBRET apudLEITE, 1984, p. 69)

À mulher era destinado o papel de “rainha do lar” e, nesse espaço doméstico, bastante restrito em termos de circulação, ela se movia em meio aos elementos do seu cotidiano, entre seus parentes, seus pertences, as crianças da sua casa, suas leituras e suas escritas, embora tudo isso ocorresse sob rigorosa vigilância e quase sem nenhuma privacidade, o que limitava a própria intimidade.

O discurso pedagógico sobre a formação da mulher se organizava em torno de três eixos: domesticidade, preservação do corpo e decoro. Esses eram os três ingredientes necessários para configurar o modelo do "anjo da casa", aspiração da educação feminina por excelência na sociedade (MUSEO PEDAGOGICO, 2014). Além disso, atentava-se para os novos discursos médicos e higienistas típicos do paradigma positivista que, através da “ciência”, pretendiam ensinar a mulher, como mãe de família, a cuidar bem dos filhos e da casa, para evitar moléstias e preservar a saúde. Essas políticas acabaram por consolidar a discriminação feminina ao atribuir às mulheres a exclusiva responsabilidade sob a saúde dos familiares, marido e filhos, tornando-a encarregada pela limpeza, higiene, alimentação, nutrição, vestuário, arrumação e tudo o que se referia ao cotidiano da casa e das outras pessoas. Outros objetivos, porventura mais ambiciosos da educação feminina, como os que valorizavam a sua realização pessoal ou a entrada no espaço público, incluindo o mundo do trabalho pago, eram considerados despropositados, pelo que o acesso à educação formal e ao espaço público podem ser vistos como conquistas históricas relativamente recentes (VIEIRA, 2002), contudo ainda num processo marcado por inúmeros obstáculos e com grandes desigualdades entre nações nesta terceira década do século XXI.

No contexto de um país patriarcal, escravocrata e oligárquico, como o Brasil, em que pesem as mulheres da aristocracia serem as que tinham acesso à leitura e à escrita, assim como aos bens de consumo e àqueles considerados de luxo na época, elas eram, por sua vez, as mais aprisionadas. Vivendo em um ambiente restrito, estavam sempre acompanhadas, sob as ordens decisivas de pais e mães, da infância até o casamento. Não tinham nenhuma influência na escolha de sua educação, nem opção sobre o que liam e o que escreviam, moldavam-se aos padrões de vestimenta e de adereços, às imagens perpetuadas pelos fotógrafos, à escolha do cônjuge, da moradia, enfim, eram, na maioria dos casos, dirigidas por toda a vida, pois, quando se libertavam dos pais, passavam à submissão do marido. O francês Charles Expilly (2000, p. 184), uma testemunha ocular dos costumes em sua viagem pelo Brasil durante os anos de 1850, assim descrevia as mulheres, em que pesem os preconceitos originados de seus insucessos no novo continente:

Hoje ainda a educação de uma brasileira está completa, desde que saiba ler e escrever corretamente, manejar o chicote, fazer doces e cantar, acompanhando-se ao piano, num romance de Arnaud ou de Luísa Puget. Até agora as senhoras não tomaram da civilização senão a crinolina, o chá e a polca. A crinolina... coisa de que afinal elas não têm necessidade. O chá – a mais detestável de todas as bebidas, a meu ver. A polca – dança elegante e leve, que não se adapta nem ao seu temperamento, nem à sua compleição. É verdade que conservam o cafuné o chicote, prova de que elas são as principais escravas da casa. Mas que dizer da ignorância das mulheres que vivem no interior das províncias e nas fazendas? Nada. Senão que elas pouco têm a invejar de seus maridos.

A formação das meninas já era pensada para o cumprimento desse ciclo de uma vida doméstica e privada dedicada à casa, ao marido e aos filhos. Qualquer coisa que fugisse a essa regra não era considerada natural e, portanto, tratava-se de um infortúnio, uma “infelicidade” que manchava o nome da família que não teria conseguido colocar em prática a trajetória feminina esperada pela sociedade.

No tempo e contexto do Rio de Janeiro oitocentista, em suas últimas décadas, ensinar era um dos poucos ofícios aceitos e apreciados para mulheres que precisavam prover seu próprio sustento, por não ter tido a trajetória natural esperada para o sexo feminino, de gerir a sua própria casa sem precisar sair dela para trabalhar. Além do mais, tornava-se também o único caminho possível para as que não possuíam nenhum outro talento, mas haviam frequentado colégios e, portanto, tinham possibilidade de ensinar outras mulheres, reproduzindo aquilo que aprenderam (VASCONCELOS, 2005; FREIRE, 2008; JINZENJI, 2010; MALTA, 2011;).

No que diz respeito ao século XX, a condição das mulheres nas três primeiras décadas na sociedade brasileira é digna de nota. As mudanças pelas quais passavam os centros urbanos, com a industrialização em ritmo crescente, implicam deslocamentos importantes na construção da sua identidade como cidadãs. Se, para as mulheres das camadas médias e de maior prestígio social, emergiam perspectivas de trabalho em profissões consideradas honrosas, tais como enfermagem, secretariado, magistério; para as mulheres das camadas populares e negras, as fábricas, o emprego doméstico, o trabalho informal constituíam o destino conhecido desde o século XIX e do qual, raramente, se deslocavam (SILVA, 2013).

Necessário sublinhar da mesma forma que os deslocamentos observados em relação às mulheres das camadas médias e de maior prestígio social, alfabetizadas e que já detinham consideráveis níveis de escolaridade, ocorriam em uma sociedade ainda regulada por instituições e códigos que as mantinham sob vigilância, não obstante o enfraquecimento do sistema patriarcal. Conforme Besse (1999, p. 19-20):

Em meados da década de 1910, dezenas de anos de desgaste do poder patriarcal já haviam tornado obsoletas a organização tradicional da família da elite e as definições de gênero. Como instituições extrafamiliares haviam assumido muitas das funções da família patriarcal extensa, esta foi sendo gradualmente substituída pelo modelo da família nuclear burguesa urbana. E, como a economia de mercado em rápida expansão havia solapado progressivamente os papéis produtivos dentro das famílias, as mulheres das classes média e alta ingressaram na esfera pública em grande variedade de papéis.

As mudanças na vida cultural são também significativas. O cenário cultural se modifica como derivação do advento do cinema, da fotografia, do rádio, assim como da maior circulação de revistas ilustradas e romances. Nas revistas, por exemplo, era possível acompanhar as micro mudanças de uma sociedade que, seguindo a lógica da distensão do controle, buscava alcançar um certo padrão de modernidade. Nesse cenário, a leitura consistia em um dispositivo relevante para educar a imaginação feminina. Entretanto, romances para mulheres na sociedade brasileira daquela época eram avaliados com grande cautela. Por um lado, advertia-se sobre os perigos de as mulheres se identificarem com enredos perniciosos, com as personagens consideradas promíscuas, imitandolhes as ideias e os gestos; por outro, alardeava-se a possibilidade de que a leitura as distraísse das obrigações domésticas e maternais (SILVA, 2013; ADLER; BOLLMAN, 2006)

Considerando a trajetória feminina desde o século XIX e as marcas produzidas na formação das mulheres ao longo de décadas, este artigo tem como objetivo apresentar a proposta do Dossiê HISTÓRIA DE MULHERES E EDUCAÇÃO: transgressões, resistências e empoderamentos, buscando trazer pesquisas sobre circunstâncias que envolveram a educação feminina e realizando um aprofundamento deste tema, por meio do estudo de diferentes representantes do ser feminino na condição de aprendizes, alunas e/ou também professoras.

A proposta é evidenciar fragmentos de distintas histórias depreendidas da leitura das cartas, das imagens forjadas nas fotografias centenárias, das rápidas anotações nos diários, no rodapé dos livros, que poderão levar-nos à releitura do passado e do tempo presente, ou até mesmo a uma revisão dos acontecimentos, tendo as mulheres como personagens coadjuvantes, mas, por vezes, protagonistas no cenário de cada época.

Nessa perspectiva, justifica-se a importância do Dossiê HISTÓRIA DE MULHERES E EDUCAÇÃO: transgressões, resistências e empoderamentos, em sua relevância para área de história e, particularmente, para o campo de estudos da história da educação feminina, à medida que possibilita um conhecimento centrado em personagens que marcaram a história do país, entretanto, até então silenciadas, evidenciando suas crenças, desejos, anseios e contradições (PERROT, 2005).

Entrelaçando presente e passado na proposta de história de mulheres e educação

O ano de 2020 ficará marcado como o momento em que o mundo foi surpreendido por uma pandemia de proporções ilimitadas e cujos efeitos de fenômenos semelhantes estavam, até então, esquecidos. A última pandemia da qual tínhamos notícia encontrava-se relegada aos livros de história e era tratada como “a gripe espanhola”, algo que parecia distante, e com poucas possibilidades de se repetir devido aos avanços da ciência. No entanto, de forma repentina, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, um surto da doença sada pelo coronavírus (COVID-19), que ao se alastrar rapidamente pelo mundo, foi caracterizada, em 11 de março de 2020, como uma pandemia, constituindo “uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional”.

A partir do dia 16 de março de 2020, nos diferentes estados brasileiros, foram estabelecidas medidas de controle da propagação do vírus, entre elas, o isolamento social para a toda a população, o que ocasionou, como consequência mais imediata, entre outras determinações, o fechamento de todos os espaços educativos, artísticos e culturais. Inicialmente, acreditava-se que o isolamento social duraria por um período quinzenal, podendo se estender por um ou, no máximo, dois meses. Contudo, o avanço dos casos de infecção pelo coronavírus e as informações científicas sobre a pandemia, assim como a falta delas, logo alertaram a população de que o isolamento social se desdobraria por mais tempo e o retorno às atividades presenciais ocorreria somente a longo prazo (VASCONCELOS, 2021).

Somando-se às dificuldades que foram enfrentadas durante o período de medidas restritivas que se estendeu pelo ano de 2021, a pandemia atingiu fortemente os espaços educativos mantendo-os fechados por mais de um ano. Além disso, novas práticas cotidianas e de trabalho se consolidaram, sendo acentuadas as modalidades tecnológicas e os meios remotos e online de comunicação. As mulheres, por sua vez, foram as mais atingidas pelo distanciamento social vivido nos anos de 2020 e 2021, tendo que conciliar as jornadas acumuladas de trabalho remoto e doméstico, em único espaço, a casa, demonstrando, historicamente, o quanto é recente o protagonismo feminino nos espaços públicos.

Assim, concernente aos últimos acontecimentos vividos, buscando enaltecer a produção de gênero, no que se refere aos aspectos teórico-metodológicos propostos para o Dossiê HISTÓRIA DE MULHERES E EDUCAÇÃO: transgressões, resistências e empoderamentos, pretendeu-se uma ruptura com a produção historiográfica relativa à educação de mulheres no Brasil que tem sido tecida, sobretudo, em relação à história da trajetória de mulheres bem-sucedidas e/ou com representação social significativa, deixando lacunas sobre outras tantas mulheres anônimas, sua formação, seus saberes e seus fazeres. Igualmente quando se trata da educação formal de nível primário e secundário, superior, profissional, e o que aqui chamamos de educação política, autoformação e formação doméstica, a produção bibliográfica conta com interpretações tímidas, mas já se fazendo temática de teses e de dissertações que contemplam a educação feminina em uma perspectiva histórica, com ênfase na compreensão das tendências da educação de gênero, eminentemente atuais. São também essas vozes que o Dossiê se propôs a ouvir, reunido pesquisas que pudessem contribuir para o campo da história e da educação, colocando as mulheres como as principais protagonistas das produções contidas nessa publicação.

O Dossiê recebeu diversas propostas de artigos. Após avaliação cega por pareceristas ad hocs, 18 artigos foram selecionados e compõem três eixos temáticos que versam sobre: 1- Mulheres negras: saúde mental, lutas, subjetividades e resistências; 2- Mulheres em movimentos de educação e deslocamentos sociais: professoras, gestoras, artistas, mães; e 3- Escolarização das mulheres no Brasil: o direito à cidadania e à educação.

O primeiro eixo temático Mulheres negras: saúde mental, lutas, subjetividades e resistências agrega os artigos O despertar da mulher negra: processos de lutas e existências, de Gleyce Borges Carneiro e Ladislau Ribeiro do Nascimento; O canto das aves negras: escrita de docência como sonho de liberdade para mulheres negras, de Alexandra Lima da Silva; A decolonialidade em direção ao feminismo negro quilombola: uma reflexão necessária, de Francisca Edilza Barbosa de Andrade Carvalho e Suely Dulce de Castilho; Força de Yabá: representações da pomba-gira e de identidades femininas em terreiros da região sul do Rio Grande do Sul, de Rodrigo Lemos Soares e Denise Marcos Bussoletti.

O segundo eixo temático Mulheres em movimentos de educação e deslocamentos sociais: professoras, gestoras, artistas, escritoras, mães reúne os artigos Mulheres professoras: campo, poder e resistência (1957-1970), de Rosa Lydia Teixeira Corrêa; Yara Lúcia Brayner Mattos: entre a política, a educação e a nutrição, de Raylane Andreza Dias Navarro Barreto e Gabrielly Cavalcanti de Lima; A escritora Anilda Leão no contexto cultural de Alagoas, de Fabiana Sena e Ângela Maria dos Santos; Violência e o crime em legítima defesa: resistência e transgressão de Amélia dos Santos (1921), de Laura Maria Silva Araújo Alves, Telmo Renato da Silva Araújo e Elianne Barreto Sabino; Trajetória de mulheres gestoras universitárias de iberoamerica: um ensaio sobre a Espanha, de Marlene de Oliveira e Ángel Baldomero Spina Barrio; Loide Bonfim: retratos da trajetória de uma mulher na reserva indígena de Dourados de MT (1938-1984), de Cristiane Pereira Peres e Alessandra Cristina Furtado; Em cena a mestra Rosa Castro: o percurso de uma professora no cenário educacional Maranhense, de Marcia Cordeiro Costa e Cesar Augusto Castro; A presença das mulheres na História da Educação no Brasil, de Rayane Silva Guedes e Daniela Oliveira Ramos dos Passos; Emancipação da mulher artista: o caso da poetisa pernambucana Léa Teresa Lopes de Oliveira, de Gaciele Maria Coelho Gomes.

O terceiro eixo temático Escolarização das mulheres no Brasil: o direito à cidadania e à educação agrupa os artigos A linha tênue entre mulher negra, educação escolar e profissão (Rio Grande do Norte, 1931-1963), de Marta Maria Araújo e Paulo Basílio de Alcântra; Deslocamento social mediante a educação: tessituras da mulher pobre e periférica (1970-1994), de Lia Machado Fiuza Fialho, Vitória Chérida Costa Freire e Francisca Genifer Andrade de Sousa; A escolarização no compasso da vida: rememoração das sertanejas idosas do Proeja, de Jailson Costa da Silva, Marinaide Lima de Queiroz Freitas e Miscelânia da Silva; Trajetórias socioeducacionais de mulheres negras no Amapá: rompendo relações de poder, de Alaídes Aguiar Lima e Elivaldo Serrão Custódio.

Além desses, destacamos o artigo de Miriam Southwell, Histórias de mulheres educadoras: transgressões e alterações do formato da escola, um artigo em espanhol, também compondo o terceiro eixo temático, publicado na sessão Elos, que trata da consolidação do sistema educacional argentino por volta das décadas de 1910-1920, após a intensa experiência escolar no século XIX e início do século XX.

FINALIZANDO...

O Dossiê HISTÓRIA DE MULHERES E EDUCAÇÃO: transgressões, resistências e empoderamentos, para além da diversidade dos textos que apresenta, reunindo histórias de mulheres de norte ao sul do país, também tem a característica de compor uma publicação com pesquisadores de diferentes Universidades e pertencentes a distintos Grupos de Pesquisa, tendo em comum o estudo de mulheres nos séculos XIX e XX.

Assim, a operação historiográfica possibilitada por esse Dossiê é também como aquela que nos ensina Perrot (2008), sacá-las do silêncio em que estavam submergidas, tirá-las da inviabilidade, saber interpretá-las por meio de seus vestígios que não são somente relatos, mas imagens, imprensa, corpos, marcas de sua passagem nos espaços públicos e privados. Se as mulheres não foram as detentoras do “poder” ao longo da história, elas certamente tiveram “poderes” (PERROT, 2001, p. 167). E esses poderes estão inscritos, especialmente, em sua capacidade de reinar no imaginário, como heroínas, profetizas, feiticeiras, santas, deusas, sacerdotisas etc., foram elas que povoaram os sonhos de gerações. Se não faziam parte do discurso oficial, eram protagonistas da narrativa oral, aquela que atravessava fronteiras e se tornava potência civilizadora que cristalizou um ideal de comportamento, bondade, pureza, virtude, bem como o seu antônimo e a condição de mulher má, depravada, infiel e imoral.

Ao transgredir e resistir aos rótulos e aos estereótipos muitas mulheres fizeram da educação uma forma de liberdade, da escrita um empoderamento e, a partir desse domínio, foram, pouco a pouco, mudando o seu entorno e, dele, para o mundo.

Nossa breve contribuição com a proposta deste Dossiê é para que essa matéria não deixe de estar em pauta, permitindo uma possibilidade de escrita sobre mulheres, por mulheres, entre mulheres, tanto para as mulheres como a todos e todas que se interessem por essa temática.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 01 de Agosto de 2022; Aceito: 01 de Agosto de 2022

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