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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67103 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

O CANTO DAS AVES NEGRAS: Escrita e docência como sonho de liberdade para mulheres negras

THE SONG OF THE BLACK BIRDS: writing and teaching the dream of freedom for black women

EL CANTO DE LOS PÁJAROS NEGROS: la escritura y la enseñanza como sueño de libertad para las mujeres negras

Alexandra Lima da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-0310-7896; lattes: 3035434886894830

1Afiliação institucional: Universidade do Estado do Rio de Janeiro E-mail: alexandralima1075@gmail.com. Bolsista de Pós-Doutorado Sênior do CNPq, Procientista da UERJ e JCNE da FAPERJ


Resumo

Este artigo procura dar visibilidade às trajetórias de mulheres negras que praticaram a educação como prática de liberdade. O foco da análise serão as autobiografias escritas ou narradas por mulheres que vivenciaram a traumática e dolorosa experiência da escravização. Por diferentes caminhos, a palavra escrita, o ativismo e a educação foram compreendidos como sendo instrumentos mais precisos na luta pelo fim da escravidão e pela liberdade nas experiências de tais mulheres. A partir do entendimento de que é preciso dizer os nomes delas, o texto reúne as histórias de oito mulheres, a saber: Amanda Berry Smith, Lilly Ann Granderson, Mattie Jackson, Annie L. Burton, Susie King Taylor; Fanny Coppin, Anna Julia Cooper, Ida B. Wells. O trabalho sinaliza para a importância de conhecer as trajetórias de mulheres negras e adverte para a necessidade de compreendê-las a partir do paradigma da pluralidade e das múltiplas subjetividades, mas sem perder o caráter coletivo e engajado destas existências pedagógicas e transgressoras.

Palavras-chave: mulheres negras; educação; trajetórias; existências pedagógicas; práticas de liberdade

Abstract

This article seeks to give visibility to the trajectories of black women who practiced education as a practice of freedom. The focus of the analysis will be the autobiographies written or narrated by women who have experienced the traumatic and painful experience of enslavement. In different ways, the written word, activism and education were understood as an instrument in the struggle for the end of slavery and freedom in the experiences of such women. Based on the understanding that it is necessary to say their names, the text brings together the stories of eight women, namely: Amanda Berry Smith, Lilly Ann Granderson, Mattie Jackson, Annie L. Burton, Susie King Taylor; Fanny Coppin, Anna Julia Cooper, Ida B. Wells. The work points to the importance of knowing the trajectories of black women and warns of the need to understand them from the paradigm of plurality and multiple subjectivities, but without losing the collective and engaged character of these pedagogical and transgressive existences.

Keywords: black women; education; trajectories; pedagogical stocks; freedom practices

Resumen

Este artículo busca dar visibilidad a las trayectorias de mujeres negras que ejercieron la educación como práctica de libertad. El foco del análisis serán las autobiografías escritas o narradas por mujeres que vivieron la traumática y dolorosa experiencia de la esclavitud. De diferentes maneras, la palabra escrita, el activismo y la educación fueron entendidos como instrumentos más precisos en la lucha por el fin de la esclavitud y por la libertad en las experiencias de estas mujeres. Partiendo del entendimiento de que es necesario decir sus nombres, el texto reúne las historias de ocho mujeres, a saber: Amanda Berry Smith, Lilly Ann Granderson, Mattie Jackson, Annie L. Burton, Susie King Taylor; Fanny Coppin, Anna Julia Cooper, Ida B. Wells. El trabajo señala la importancia de conocer las trayectorias de las mujeres negras y advierte la necesidad de comprenderlas desde el paradigma de la pluralidad y las múltiples subjetividades, pero sin perder el carácter colectivo y comprometido de estas existencias pedagógicas y transgresoras.

Palavras chave: mujeres negras; educación; trayectorias; existencias pedagógicas; prácticas de libertad

INTRODUÇÃO

Em um mundo onde as palavras de escritoras negras, até mesmo nossos próprios nomes, costumam ser esquecidas rapidamente, é essencial e necessário vivermos por meio da escrita e do ensino das palavras de nossas grandes e boas escritoras, cujas vozes não podem mais ser silenciadas, nem mesmo pela morte (hooks, 2021, p. 256).

Acompanhando bell hooks, os corpos negros femininos “[..]são postos numa categoria em termos culturais tida como bastante distante da vida mental” (hooks, 1995, p. 469). A autora sinaliza ainda que dentro das hierarquias de sexo/raça/classe, as mulheres negras “[..]sempre estiveram no nível mais baixo. O status inferior nessa cultura e reservado aos julgados incapazes de mobilidade social por serem vistos em termos sexistas racistas e classistas como deficientes incompetentes e inferiores” (hooks, 1995, p. 469).

Outra Referência fundamental para pensar a complexidade da experiência das mulheres negras é o livro Mulheres, raça e classe, de Angela Davis (2016). Dentre as muitas contribuições de Davis (2016, p. 15), destaco o entendimento de que a luta da população negra foi constante, e tais sujeitos almejavam, para além da liberdade, “[..] possuir terras, ansiavam votar e estavam dominados pelo desejo por escolas” (DAVIS, 2016, p. 116). Para a autora, “[..]a situação específica das mulheres escravas permanecia incompreendida” nas muitas discussões sobre o tema. As mulheres negras foram especialmente impactadas pela brutalidade da escravidão, pois eram “[..]obrigadas pelos senhores de escravos a trabalhar de modo tão masculino quanto seus companheiros” (DAVIS, 2016, p. 23). E as mulheres negras também foram à luta, se rebelaram contra as opressões, visto que “[..]afirmavam sua igualdade de modo combativo, desafiando a desumana instituição da escravidão” (DAVIS, 2016, p. 31). Elas “[..]resistiam ao assédio sexual dos homens brancos, defendiam sua família e participavam de paralisações e rebeliões” (DAVIS, 2016, p. 31).

O livro Self-Taught: African American Education in Slavery and Freedom, de Heather Williams, explora os esforços dos próprios sujeitos, escravizados e libertos, na luta pela educação nos Estados Unidos na vigência da escravidão, na Guerra Civil e na primeira década de liberdade (WILLIAMS, 2005, p. 1). A autora observou que os esforços criativos dos escravizados na luta pela alfabetização forneceram a base para a vontade de frequentar escolas logo após a Guerra Civil. Muitos foram os homens alfabetizados que escaparam da escravidão para se alistarem no Exército da União e tornaram-se professores em regimentos de homens negros. Após a guerra, tais homens seguiram ensinando em comunidades locais, na luta pela igualdade política e pelos direitos da cidadania da vida em liberdade numa sociedade letrada (WILLIAMS, 2005, p. 1).

A autora revisitou caminhos já trilhados por outros historiadores para interrogar silêncios e ler nas entrelinhas. Williams evidencia o incômodo com o paternalismo dos missionários brancos e a ausência de fontes produzidas por pessoas negras. O encontro com a autobiografia de um homem negro foi o divisor de águas na pesquisa:

Naquele dia, encontrei Elias Marrs em uma bibliografia de autobiografia negra, e ele se tornou um importante guia que me levou desde o tempo em que aprendeu a ler enquanto era escravizado em Kentucky, até sua decisão de levar outros negros ao exército, a seus ensinamentos. Seu regimento, sua agitação pelos direitos políticos afro-americanos e, finalmente, ensinar as crianças negras no século XX (WILLIAMS, 2005, p. 1).

De acordo com Williams, a partir da leitura da autobiografia de Elias Marrs, outros guias foram surgindo na pesquisa, nomes como John Swney, Mattie Jackson, London Ferebee, Margaret Adams, dentre outros, com destaque para os registros militares, as narrativas de escravizados, arquivos universitários negros, dentre outros.

A autora analisa o significado da instrução a partir de algumas narrativas de vida e trajetórias de pessoas que vivenciaram a escravidão, tais como Mattie Jackson, Booker Washington, Harriet Jacobs, Henry Bibb, Susie King Taylor, apenas para citar alguns. Com o fim da escravidão, os afro-americanos depositaram na escola pública o caminho que tornaria possível sua independência e sua plena participação na sociedade civil (WILLIAMS, 2005).

Defendo que por meio do estudo das trajetórias individuais, torna-se possível compreender o protagonismo de mulheres negras. Pesquisar as escritas de si pode contribuir para a visibilidade das mesmas.

LIVRES PARA ENSINAR

Nasci em Long Green, Maryland, em 23 de janeiro de 1837.

O nome de meu pai era Samuel Berry. O nome da minha mãe, Mariam. Matthews era seu nome de solteira. O nome do mestre do meu pai era Darby Insor. O nome do mestre da minha mãe, Shadrach Green (SMITH, 1893, p. 17).

O fragmento acima é parte do livro An Autobiography: The Story of the Lord's Dealings with Mrs. Amanda Smith, the Colored Evangelist: Containing an Account of Her Life Work of Faith, and Her Travels in America, England, Ireland, Scotland, India, and Africa as an Independent Missionary. A obra narra em primeira pessoa a vida de Amanda Berry Smith, filha mais velha do escravizado Samuel Berry e da escravizada Mariam. Amanda nasceu em uma fazenda, em Long Green, Maryland, no ano de 1837. O pai, após conquistar a alforria, lutou pela liberdade da esposa e dos cinco filhos.

Amanda Smith resistiu inicialmente na escrita de sua autobiografia, pois alegava que “[..]tendo em vista a deficiência na minha educação infantil, e outras desvantagens a este respeito, nos termos do qual eu tenho trabalhado, eu imploro a indulgência de todos que possam ler esta história simples e sem retoques da minha vida” (SMITH, 1893, p. 4). Após muitas súplicas dos amigos, Amanda Berry Smith é tomada pela coragem e decide colocar a própria vida no papel para que outras pessoas a lessem.

O livro apresenta prefácio de Amanda Smith e uma introdução, escrita pelo religioso J. M. Thoburn. Estrutura-se em 36 capítulos, alguns contendo imagens e trechos de correspondência ativa e passiva de Amanda Smith.

Amanda Berry casou-se duas vezes. O primeiro casamento, com Calvin Devine, realizouse no ano de 1854, aos dezessete anos. Este é descrito como um período bastante difícil na vida de Amanda, pois a pobreza era extrema, o que levou ao óbito de quatro filhos nascidos neste casamento.

Amanda relata que o primeiro marido desapareceu enquanto lutava na Guerra Civil, tendo ela que cuidar da única filha que sobreviveu. Em 1865, Amanda Berry casou-se com o pastor James Smith, da African Methodist Episcopal, passando a assinar Amanda Berry Smith. O segundo casamento durou poucos anos, pois James Smith faleceu em 1869. Após casar-se duas vezes, e ter trabalhado como empregada doméstica e lavadeira, a narrativa de vida ganha uma inflexão com o pertencimento à Igreja Metodista. Em 1878, Amanda Berry Smith torna-se missionária, viajando para diferentes países (SILVA, 2015, p. 232).

Durante doze anos, Amanda Smith conheceu diferentes culturas, conheceu pessoas e visitou instituições diversas. Com isso, o tom da narrativa muda, ganha feições de diário de viagem. Após percorrer 3 continentes e escrever uma autobiografia, fundou a Amanda Smith Orphan Home and Industrial School, destinada a abrigar crianças negras abandonadas. Amanda Berry Smith faleceu aos 78 anos, no ano de 1915.

Por volta do ano de 1863, Missionários do Norte foram surpreendidos pela existência de uma escola noturna para pessoas negras e libertas na cidade de Natchez, no Mississipi. A escola já existia há muitos anos, e era liderada por uma mulher, Lilly Ann Granderson (também creditada como Milla Granson e Lila Grandison):

Sra. Milla (Lilly Grandison (Granson), uma mulher escravizada, ensinava secretamente em Natchez, Mississipi; ela havia aprendido a ler e escrever com os filhos de seu dono indulgente em Kentucky. Sua morte fez com que ela fosse vendida para o Mississipi, onde ela trabalhou primeiro como ajudante de campo e depois como empregada doméstica. Os escravos da fazenda costumavam estudar em sua casa das onze às duas da noite, escreveu o capelão do Exército da União Joseph Warren em 1864. Desta escola, acrescentou ele, surgiram outras de caráter semelhante (GUTMAN, 1987, p. 261).

Lilly Ann Granderson nasceu no Estado da Virgínia, por volta do ano de 1816, tendo sido transferida posteriormente para o Estado do Kentucky. Ela trabalhava como escravizada doméstica, e os filhos de seu mestre a ensinaram a ler e a escrever. Sua vida se transformou quando foi vendida para uma plantation no Mississipi, onde foi obrigada a trabalhar nas plantações de algodão. Foi neste lugar que ela transgrediu e abriu uma escola clandestina à noite, e ensinou o segredo das letras para dezenas de homens e mulheres negros, com sede de letras e liberdade.

O livro A história de Mattie J. Jackson também tinha por “[..]objetivo conquistar a compaixão de amigos sinceros para com as pessoas subjugadas por uma raça dominante em circunstâncias sobre as quais não tinham controle” (THOMPSON, In: JACKSON, 1866, p. 2). Mattie Jackson era descrita como sendo uma moça de caráter elevado e muito respeitada por todos. Mattie escolhe iniciar a autobiografia lembrando da dolorosa jornada dos antepassados africanos:

MEUS antepassados foram trazidos da África para a América na época em que o tráfico de escravos estava crescendo nos estados da costa leste. Não sei dizer em que data, pois meus pais, por serem escravos, não tinham condições de guardar esse registro. O que diziam era que meu bisavô tinha sido capturado e trazido da África. Nunca soube qual era o seu nome de nascimento. Seu senhor chamava-se Jackson e residia no estado de Nova York. Meu avô nasceu nesse mesmo estado e também viveu escravizado por muito tempo até que o seu senhor o libertou e deu-lhe várias propriedades como recompensa por ter sido leal, honesto e responsável. Encheu-se de entusiasmo com a perspectiva animadora de dias melhores, com a chance que surgia de poder melhorar sua condição de vida (JACKSON, 1866, p. 3).

Nascida na escravidão, no ano de 1843, em St. Charles County, no Estado do Missouri/EUA, Mattie Jackson era filha de Westly Jackson e Ellen Turner. No ano de 1863, já adulta, Mattie viu numa Estrada de Ferro Subterrânea o caminho para a liberdade. Ela foi uma das muitas pessoas escravizadas que conseguiu fugir para a escravidão por meio da rede de abolicionistas, chamada Underground Railroad.

Com o livro A história de Mattie J. Jackson, a autora esperava que as pessoas comprassem seu livro para ajudar a obter educação para que ela pudesse fazer algum bem em nome da elevação dos irmãos e irmãs emancipados. Educação e emancipação caminhavam lado a lado na luta de Mattie por igualdade.

Annie L. Burton nasceu na escravidão, no ano de 1858, no Alabama. A mãe conseguiu fugir da escravidão, enquanto ela cresceu na plantation de Clayton, tendo crescido durante a Guerra Civil. Após a Emancipação, a mãe de Annie retornou para buscar a filha. A partir do livro Memories of Childhood's Slavery Days, publicado em 1909, é possível saber que Annie recebeu alguma instrução:

Algumas pessoas ricas em Clayton que tinham escravos abriram a igreja metodista aos domingos e começaram o trabalho de ensinar os negros. Minha nova professora me mandava para a escola dominical todos os domingos de manhã, e logo consegui ler. Mis 'Mary me ensinou todos os dias em seu joelho. Logo pude ler bem. (...) Depois disso, Mis 'Mary continuou meus estudos e me ensinou a escrever. À medida que fui crescendo, ela me ensinou a cozinhar e a fazer as tarefas domésticas. Durante esse tempo, Mis 'Mary deu a minha mãe um dólar por mês em troca de meus serviços; agora, quando me tornei jovem, pensei que gostaria de ter um pouco de dinheiro para mim. Dessa forma, Mis 'Mary passou a me pagar quatro dólares por mês, além de me dar a pensão e as roupas. Durante dois verões, ela me deixou sair enquanto estava fora, e eu ganhava cinco dólares por mês (BURTON, 1909, p. 15).

Coube à Annie a responsabilidade de criar os irmãos mais novos após a morte da mãe. Em 1879, ela se mudou para Boston e mais tarde, para a Geórgia; e depois para Jacksonville, Flórida, onde se tornou gerente de restaurante, antes de retornar a Boston.

Em 1888, ela se casou e, juntos, ela e o marido dirigiam uma pensão. Ela começou a ter aulas noturnas na Franklin Evening School, e o diretor, Frank Guild, sugeriu que cada um dos alunos escrevesse sua história de vida. Foi essa sugestão que deu a Burton a coragem para escrever sua autobiografia. Memories of Childhood's Slavery Days é dividido em quatro partes. Na primeira seção, intitulada Lembranças de uma vida feliz, Burton descreve sua infância na plantação no Alabama e seu casamento com Samuel H. Burton. Na segunda seção, Reminiscências, Burton reflete sobre a Emancipação e a maneira como ela mudou sua vida. A terceira seção, Visão, dá um relato detalhado da conversão religiosa de Burton. Burton também inclui um ensaio que ela escreveu em Franklin sobre Abraham Lincoln, algumas composições mais curtas que ela escreveu, um ensaio sobre a questão racial, vários poemas e vários hinos (IRELAND, 1998).

O acesso às letras também esteve presente na vida de Susie King Taylor, a qual diz, em sua autobiografia: “NASCI sob a lei dos escravos na Geórgia, em 1848, e fui criado por minha avó em Savannah. Estávamos três de nós com ela, minha irmã mais nova e meu irmão” (TAYLOR, 1902, p. 5). A exemplo de outras autobiografias de ex-cativas, ela também destaca o processo de aprendizagem das letras:

Meu irmão e eu sendo os dois mais velhos, fomos enviados a uma amiga de minha avó, a Sra. Woodhouse, uma viúva, para aprender a ler e escrever. Ela era uma mulher livre e morava em Bay Lane, entre as ruas Habersham e Price, a cerca de oitocentos metros da minha casa. Íamos todos os dias por volta das nove horas, com os nossos livros embrulhados em papel para evitar que a polícia ou os brancos os vissem. Entramos, um de cada vez, pelo portão, para o quintal da cozinha L, que era a sala de aula. Ela teve vinte e cinco ou trinta crianças a quem ensinou, assistida por sua filha, Mary Jane. Os vizinhos às vezes nos viam entrar, mas supunham que estávamos ali aprendendo ofícios, pois era costume dar às crianças algum tipo de ofício. Depois da escola saímos da mesma forma que entramos, um a um, quando íamos para uma praça, a cerca de um quarteirão da escola, e esperávamos um pelo outro. Juntávamos folhas de louro e colocávamos nas mãos, a caminho de casa. Permaneci na escola dela por dois anos ou mais, quando fui enviado para a Sra. Mary Beasley, onde continuei até maio de 1860, quando ela disse à minha avó que tinha me ensinado tudo o que sabia, e é melhor a avó arranjar alguém que poderia me ensinar mais, então parei meus estudos por um tempo (TAYLOR, 1902, p. 5).

Publicada pela própria autora no ano de 1902, a autobiografia Reminiscences of my life in camp with the 33d United States Colored Troops Late 1st S. C. Volunteers confere grande destaque ao tempo que ela serviu no Exército da União em várias funções: oficialmente como lavadeira, mas na realidade atuou como enfermeira, zeladora, educadora na Primeira Infantaria Voluntária da Carolina do Sul (posteriormente o 33º Regimento de Infantaria de Tropas Coloridas dos EUA).

Após o término da guerra, dedicou-se às causas da instrução da população negra:

No final da guerra, meu marido e eu voltamos para Savannah, vários camaradas voltando ao mesmo tempo. Uma nova vida estava diante de nós agora, toda a velha vida deixada para trás. Depois de me estabelecer, abri uma escola em minha casa na South Broad Street, hoje chamada de Avenida Oglethorpe, pois não havia escola pública para crianças negras. Tive vinte alunos na minha escola e recebia um dólar por mês para cada aluno, também tinha alguns mais velhos que vinham à noite. Havia várias outras escolas particulares além da minha. A sra. Lucinda Jackson tinha uma na mesma rua que eu morava. Lecionei quase um ano, quando foi inaugurado o Instituto da Praia, que ocupava vários dos meus bolsistas, por ser uma escola gratuita. Em 16 de setembro de 1866, meu marido, o sargento King, morreu, deixando-me logo para receber um pequeno estranho sozinho. Ele era um carpinteiro chefe, mas por ter acabado de sair do exército e o preconceito contra sua raça ser ainda muito forte para lhe garantir muito trabalho em seu comércio, ele fez contratos para descarregar navios e contratou vários homens para ajudá-lo. Ele era muito respeitado pelos cidadãos e era o favorito de seus associados. Em dezembro de 1866, fui obrigada a desistir de lecionar, mas em abril de 1867 abri uma escola em Liberty County, Geórgia, onde lecionei por um ano; mas a vida no campo não combinava comigo, então voltei para a cidade e a sra. Susie Carrier se encarregou da minha escola (TAYLOR, 1902, p. 54).

Susie King Taylor faleceu no dia 6 de agosto de 1948, no Estado da Geórgia.

Educação e docência foram marcantes na vida de Fanny Jackson Coppin. Nascida na escravidão, Fanny foi libertada por uma tia ] que comprou a carta de alforria da menina por 125 dólares. As mulheres da família tiveram grande destaque em sua escrita de si:

Costumávamos chamar nossa avó de mamãe, e uma das minhas primeiras lembranças de que eu devia ter cerca de três anos é que fui enviada para fazer companhia à minha mamãe. Foi em uma pequena cabana de sala. Costumávamos subir uma escada para o loft onde dormíamos. Mammy costumava fazer uma longa oração todas as noites antes de ir para a cama, mas de tudo o que ela dizia, não me lembro, exceto a palavra prole. Ela pediria a Deus para abençoar sua descendência. Esta palavra permaneceu comigo, pois eu me perguntei o que significa prole. Mammy teve seis filhos, três meninos e três meninas. (...) Na minha infância, tive duas queimaduras graves. Sei que no meu batizado os velhos deram uma grande festa, e eu fui amarrada a uma cadeira e colocada perto do fogão. À noite, quando tiraram minha meia, toda a pele do lado da perna próxima ao fogão descascou (COPPIN, 1913, p. 9).

Publicada em 1913, ano em que a autora morreu, a autobiografia Reminiscences of School Life e Hints on Teaching confere especial visibilidade à incansável busca de Fanny Coppin pela educação e em seu desejo de formar educadoras e educadores. O prefácio da obra acentua que tal narrativa serviria para inspirar as vidas de outras pessoas a também se instruir moral e intelectualmente:

A autora desta obra foi frequentemente exortada por amigos a escrever, para publicação, algo que apresentasse uma visão da infância da escritora, bem como fornecesse alguns de seus métodos de transmitir a instrução intelectual e moral que se provou tão eminentemente bem-sucedida, influenciando e moldando tantas vidas (COPPIN, 1913, p. 8).

Ainda muito jovem e conciliando com o trabalho em casas de famílias brancas, ela teve a oportunidade de frequentar boas escolas:

Aqui eu tinha uma hora a cada duas tardes da semana para ter algumas aulas particulares, o que eu fiz com a sra. Little. Depois disso, frequentei por alguns meses a escola pública de cor que era ministrada pela sra. Gavitt. Assim, preparei-me para entrar no exame para a Escola Normal Estadual de Rhode Island, com Dana P. Colburn; a escola era então localizada em Bristol, R. I. Aqui, meus olhos foram abertos pela primeira vez sobre o assunto do ensino. Eu disse a mim mesma: é possível que o ensino possa ser tão interessante quanto isso! Mas, tendo concluído o curso de estudos lá, senti que havia apenas começado a aprender; e, ouvindo falar do Oberlin College, decidi tentar chegar lá. Eu havia aprendido um pouco de música enquanto estava em Newport e havia dominado os estudos elementares de piano e violão (COPPIN, 1913, p. 11).

Fanny Jackson conquistou a aprovação na Rhode Island State Normal School e aprendeu que a educação era algo vital para a existência dela (COPPIN, 1913, p. 11). Mais uma vez, a ajuda da tia que vivia em Washington foi fundamental para que Janny Coppin experimentasse a educação como prática de liberdade:

Minha tia em Washington ainda me ajudou e eu pude pagar minha passagem para Oberlin, o curso de estudos lá sendo o mesmo do Harvard College. Oberlin era então a única faculdade nos Estados Unidos onde estudantes negros tinham permissão para estudar (COPPIN, 1913, p. 12).

Os 5 anos em Oberlin mereceram destaque na narrativa de vida de Coppin, pois foram anos decisivos para a população afro-americana:

Os anos de 1860 e 1865 foram anos de importância histórica e atividade incomuns. Em '60, o imortal Lincoln foi eleito, e em '65 a terrível guerra chegou ao fim, mas não antes que a liberdade para todos os escravos na América fosse proclamada, e essa proclamação tornada válida pelas armas vitoriosas do partido União. No ano de 1863, um sentimento muito amargo foi exibido contra os negros do país, porque eles foram responsabilizados pela guerra fratricida então em curso. Os tumultos em Nova York, em especial, evidenciaram esse mal-estar. Foi nesse ano que o corpo docente me colocou para dar aulas (COPPIN, 1913, p. 18).

Após lecionar em Oberlin, Fanny Jackson mudou-se para a Filadélfia:

E durante anos essa instituição, conhecida como Institute for Colored Youth, foi visitada por interessados de diferentes partes dos Estados Unidos e da Europa. Aqui me foi dada a deliciosa tarefa de ensinar meu próprio povo, e como fiquei encantado em vê-los dominando César, Virgílio, Cícero, Horácio e a Anábase de Xenofonte. Também ensinamos grego. Era costume haver exames públicos uma vez por ano, e quando os professores estavam examinando suas aulas, qualquer pessoa interessada na plateia era solicitada a comparecer e fazer perguntas. Em um desses exames, quando pedi a um inglês titulado para fazer a aula e examiná-la, ele disse: “Eles são mais capazes de me examinar, sua proficiência é simplesmente maravilhosa” (COPPIN, 1913, p. 20).

Além de professora do Institute for Colored Youth, Fanny Coppin também atuou como diretora do departamento feminino de ensino secundário. Em 1869 ela se tornou a diretora do Instituto. Foi a primeira mulher afro-americana no país a ocupar tal cargo. A escola procurou desafiar as noções de inferioridade afro-americana testando “[..]se o negro era ou não capaz de adquirir algum grau considerável de educação” (COPPIN, 1913, p. 19).

Além da dedicação ao ensino e à docência, Coppin trabalhou para a Igreja Episcopal Metodista Africana, servindo como Presidente da Women's Home and Foreign Missionary Society. Em 1881, ela se casou com o reverendo L. J. Coppin, um bispo da A. M. E. Igreja. Ela passou a assinar Fanny Jackson Coppin; em 1900, ela viajou com ele para a Cidade do Cabo para ajudar em seu trabalho missionário. Ela ofereceu educação às mulheres da região. As viagens foram importantes momentos na vida de Fanny Jackson Coppin. A viagem à Inglaterra mereceu destaque no capítulo XII da autobiografia:

NO ANO DE 1888, o Centenário das Missões foi realizado em Londres, e todas as Sociedades Missionárias Estrangeiras foram convidadas a enviar delegados ao encontro. Naquela época, eu era presidente da Sociedade Feminina Missionária Doméstica e Estrangeira da Igreja A. M. E. e fui eleita delegada para representar a Sociedade naquela reunião. Para melhor compreensão do trabalho, fui a Nova York e conheci os diferentes chefes das Sociedades na América. Entre eles estava o Dr. Kincaid, um colega meu no Oberlin College e um ministro representativo em sua igreja. (...) Nunca tendo estado no exterior e não conhecendo ninguém no navio, tive muitas dúvidas de como me sairia. E então eu conversei com o Senhor. Vês, ó Senhor, que não tenho ninguém para me ajudar, e se tiver náuseas, posso desmaiar e ser muito incômodo para os que estão ao meu redor (COPPIN, 1913, p. 115).

Na companhia do marido, Fanny Coppin viajou para a África do Sul para servir como missionária no ano de 1902. Enquanto estava lá, o casal fundou o Instituto Betel, uma escola missionária com programas de autoajuda para os sul-africanos:

IR à África, a casa original de nosso povo, vê-los em sua vida e hábitos nativos, e contribuir, ainda que em pequena escala, para o desenvolvimento, civil e religioso, que está acontecendo entre eles, é um privilégio que qualquer um ficaria feliz em desfrutar. Depois de ter passado trinta e sete anos na sala de aula, trabalhando para dar um começo de vida correto aos jovens que estavam sob minha influência, foi, de fato, para mim, um feliz incidente terminar meu trabalho ativo bem na África, o lar dos ancestrais daqueles cujas vidas eu me esforcei para dirigir (COPPIN, 1913, p. 122).

Em 1907, Coppin decidiu retornar à Filadélfia enquanto lutava contra várias complicações de saúde. Ela e seu marido trabalharam em uma variedade de programas como missionários. Como a saúde de Coppin piorou, ela decidiu voltar para a Filadélfia, onde morreu em 21 de janeiro de 1913.

A EDUCAÇÃO COMO CAUSA DA HUMANIDADE EM ANNA JULIA COOPER

A causa da liberdade não é a causa de uma raça ou seita, partido ou classe – é a causa da humanidade e o direito de primogenitura da humanidade (COOPER, 1892, p. 121).

A frase acima pode ser localizada em passaportes de cidadãos dos Estados Unidos, e foi cunhado por Anna Julia Cooper, uma educadora negra, nascida na escravidão. Durante o período de um ano de minha pesquisa nos Estados Unidos, vi muitos monumentos, ruas e praças em homenagem à memória de homens negros, tais como Frederick Douglass, W. E. B. Du Bois e Martin Luther King. Poucos foram aqueles dedicados à memória de mulheres negras. Em minhas visitas às instituições de ensino americanas, me chamou a atenção o rico acervo digitalizado a respeito de Anna Julia Cooper na Howard University, uma universidade historicamente negra. Anna Julia Cooper Colletion é um: “[..]projeto concluído com financiamento e apoio da Dra. Shirley Moody-Turner em conjunto com a Anna Julia Cooper Society; uma Bolsa de Humanidades Digitais do Centro de Humanidades e Informação da Penn State University; e Adrena Ifill e Double Back Productions”1.

Dentre os documentos pertencentes à referida coleção, destaco a notícia do jornal The Evening Star, datada de 29 de fevereiro de 1964, intitulada: Mrs. Anna Cooper, 105, educadora negra, morre.

Por meio da notícia da morte de Anna J. Cooper, é possível saber que “[..]a Sra. Anna J. Cooper, uma educadora de Washington e defensora dos direitos da educação acadêmica do Negro por mais de meio século, morreu na quinta-feira durante o sono aos 105 anos” (The Evening Star, 1964, s/p). Ela “[..]se tornou uma das primeiras mulheres negras graduadas em uma faculdade quando recebeu o bacharelado pelo Obelin College em 1884”. Anna J. Cooper também “recebeu um título de mestre honorário de Oberlin e um doutorado da Sorbonne em Paris” (The Evening Star, 1964, s/p.).

A notícia dedica apenas um parágrafo à vida pessoal da educadora: “Ela era filha de George Washington Haywood, um escravo. Em 1877 ela se casou com o Rev. George A. C. Cooper, um ministro episcopal, em Raleigh N. C. Após a morte de seu marido, dois anos depois, ela foi para a faculdade” (The Evening Star, 1964, s/p).

Os demais parágrafos são todos dedicados à vida pública e profissional de Anna Julia Cooper, que dedicou a vida à docência e à vida acadêmica, tendo sido professora na “antiga M. Street High School, hoje Dunbar, que era então a única escola secundária para negros no Distrito. Ela ensinou latim na escola por muitos anos e foi diretora de 1901 a 1906” (The Evening Star, 1964, s/p).

Contrariando a tese defendida por sujeitos como Booker T. Washington, para o qual pessoas negras deveriam ser treinadas apenas para o trabalho manual, “[..]a Sra. Cooper persuadiu as universidades de Harvard, Yale e Brown a considerar os graduados de sua escola para bolsas de estudo”. Em 1925, Anna Julia Cooper concluiu o doutorado na Sorbonne, e publicou, em francês, a tese Le Peerinage de Charlemagne. Na sequência, ela tornou-se presidente da Frelinghuysen University, fundada por Jesse Lawson em 1906, voltada para pessoas negras que “[..]queriam estudar enquanto mantinham um emprego regular”. Anna J. Cooper chegou a doar uma casa para que ali pessoas negras pudessem estudar.

O centenário de Anna J. Cooper foi bastante celebrado, tendo ela sido homenageada por amigos, ex-alunos e dirigentes das universidades nas quais atuou, conforme publicado no jornal Post, datado de 10 de agosto de 1958.

Filha de mãe escravizada, Anna Julia Cooper nasceu em 10 de agosto de 1858, no Estado da Carolina do Norte, Estados Unidos. Sua mãe, Hannah Haywood, foi uma mulher negra escravizada e seu pai, George Haywood, era um homem branco e um proeminente escravizador da Carolina do Norte. Era a mais nova dos três filhos de Hannah. Anna Julia estava entre o primeiro grupo de estudantes a frequentar a Escola Normal Santo Agostinho e o Instituto Colegial em 1868. Permaneceu nesta escola durante 14 anos, concluindo o curso de estudos das artes clássicas em 1877. Em 1877, Anna casou-se com George Cooper, um estudante e instrutor de teologia de Santo Agostinho. George faleceu em 1879. Anos depois, ela se tornou professora de alunas e ensinou latim, grego e matemática. Agora assinando o nome Anna Julia Cooper, mudou-se para Ohio, para estudar no Oberlin College em 1881; ela se formou em 1884, com outros duas mulheres negras, Mary Church (Terrell) e Ida A. Gibbs (Hunt). Após a formatura, Anna Julia Cooper lecionou na Wilberforce University por um ano, e depois voltou a Raleigh para ensinar em Santo Agostinho. Enquanto estava lá, ela lutou para garantir igualdade de tratamento e salários para professores afro-americanos nas escolas da Carolina do Norte e argumentou em defesa de escolas públicas para jovens afro-americanos. Em 1887, Cooper aceitou um cargo de professor na Washington Coloured High School (apelidada de M Street e posteriormente rebatizada de Paul Laurence Dunbar), o mais prestigiado colégio afro-americano do país naquela época. Nesse ano, ela ainda foi premiada com um mestrado em Oberlin.

A principal causa da vida de Anna Julia Cooper foi a defesa da educação para mulheres negras, o que foi registrado no texto The Higher Education os Women, publicado no livro A Voice From The South, datado de 1892:

Só a MULHER NEGRA pode dizer ‘quando e onde eu entro, na dignidade tranquila e indiscutível de minha feminilidade, sem violência e sem processo ou patrocínio especial, então e aí toda a raça negra entra comigo.’ Não é evidente então que, como obreiros individuais para esta corrida, devemos nos dirigir, sem zelo indiferente, a esta característica de nossa missão. A necessidade é sentida e deve ser reconhecida por todos. Há um apelo aos trabalhadores, aos missionários, aos homens e às mulheres com a dupla consagração de um amor fundamental pela humanidade e o desejo de sua melhoria através do Evangelho; mas somados a isso exigimos uma compreensão inteligente e simpática dos interesses e necessidades especiais do Negro (COOPER, 1892, p. 31).

Aos 66 anos, Anna Julia Cooper obteve o título de doutora pela Universidade de Paris, defendendo uma tese sobre a atitude da França em relação à escravidão durante a Revolução do Haiti.

Fonte: Biographical Sketch from The Parent-Teacher Journal (2017). Biographical Data. 4. https://dh.howard.edu/ajc_bio/4

Figura 1 Anna Julia Cooper vestida com beca 

QUANDO A ESCRITA NASCE DO SANGUE: A TRAJETÓRIA DE IDA B. WELLS

Por meio da palavra escrita, a jornalista e ativista Ida B. Wells também lutou contra os linchamentos e brutalidade praticados contra a população negra. Nascida durante a Guerra Civil, em 16 de julho de 1862, em Holly Springs, Mississipi, Ida Bell Wells era a mais velha de oito crianças. Filha de James Wells, carpinteiro e filho de um senhor de escravos branco, e Elizabeth Warrenton, cozinheira, Ida B. Wells e suas irmãs frequentaram a Rust University, uma escola criada por ex-cativos. Adulta, ela tornou-se professora (PAGE, 2007, p. 601).

Aos 18 anos e órfã, herdou a responsabilidade de cuidar das irmãs mais novas. A docência garantiu o sustento da família. Ela também começou a escrever para periódicos locais e tornou-se a editora do jornal Evening Star. No ano de 1884, ela se recusou a se retirar do vagão destinado às mulheres e foi impedida de viajar por esse motivo. Em 1889, Ida B. Wells foi punida por escrever um editorial criticando o Conselho de Educação pelo tratamento desigual dado às escolas frequentadas por pessoas negras. Por tal crítica, ela não teve a renovação da permissão para lecionar. Com isso, ela passou a dedicar-se ainda mais à escrita, agora como um meio de garantir o próprio sustento. Após ter inúmeros amigos vitimados pelos linchamentos, Ida B. Wells tornou esta a causa de sua existência. Desde então, foram muitos os discursos e textos publicados por ela como ferramenta de luta contra a brutalidade dos linchamentos praticados contra a população negra no início do século XX (PAGE, 2007, p. 601).

Além da escrita em periódicos, Ida B. Wells dedicou-se à escrita de um diário pessoal. Publicado como livro em 1995, o diário descreve o cotidiano íntimo de uma jovem professora e jornalista negra que lutou em meados da década de 1880 contra problemas pessoais, de saúde, financeiros e profissionais. Conflitos internos não faltaram em sua vida.

Ela começou a escrever diários ainda jovem, no ano de 1885, sendo a escrita aqui compreendida como um refúgio, sem autocensura:

O diário se tornou um lugar para Wells registrar aqueles pensamentos íntimos que ela não podia compartilhar com os outros, um lugar para falar sobre aquelas questões que ela parecia não conseguir resolver e uma forma de esclarecer e afirmar seu próprio crescimento. Embora haja uma continuidade notável entre a Ida B. Wells pública e o eu privado que emerge no diário, o aspecto mais atraente do diário é o raro vislumbre que nos dá a vida privada de Wells. É provavelmente o único momento de descuido na vida de Wells, pois, uma vez que ela se torne uma figura pública politicamente conectada, ela nunca mais estará tão disposta a se expor sem autocensura” (WASHINGTON, In: WELLS, 1995, p. 9).

Ainda de acordo com Mary Helen Washington, a prefaciadora do livro The Memphis Diary of Ida B. Wells: An Intimate Portrait of the Activist as a Young Woman:

Em uma era de crescente despotismo Jim Crow e conservadorismo negro, Wells foi uma das vozes mais desafiadoramente militantes por qualquer padrão. No Diário de Memphis, temos apenas um registro parcial da ativista independente e corajosa que ela se tornaria, mas contém quase todas as pistas. Aqui nas páginas deste diário fragmentado estão as faíscas que acenderam aquele fogo (WASHINGTON, apudWELLS, 1995, p. 17).

É perceptível a importância da escrita de si na experiência de Ida B. Wells, pois ela escreveu ao todo quatro narrativas em primeira pessoa, em diferentes momentos da vida: o diário de Memphis, datado de 1885-87; um diário de viagem datado de 1893; outro diário, datado de 1930; e uma autobiografia, a qual iniciou a escrita em 1928, publicada postumamente por Alfreda M. Duster, sua filha, a qual aborda as conquistas em torno dos direitos civis e do sufrágio feminino:

É, portanto, pelos jovens que têm tão pouco da história da nossa raça registrada que pela primeira vez na vida escrevo sobre mim mesmo. Estou ainda mais constrangido a fazer isso porque há uma falta de história racial autêntica nos tempos da Reconstrução escrita pelo próprio Negro (DUSTER, apudWELLS, 1970, p. 4).

Outra motivação para a escrita da autobiografia foi o combate ao esquecimento e ao silenciamento, tendo em vista que o nome dela sequer foi lembrado nas obras de historiadores negros como Carter Woodson (WELLS, 1970, p. 4).

Ida B. Wells se apropriou da própria narrativa no livro Crusade for justice. The Autobiography of Ida B. Wells. No capítulo 1, intitulado Nascida na escravidão, ela também inicia sua história com a fórmula i was born: “Eu nasci em Holly Springs, Mississipi, antes do término da Guerra Civil [16 de julho de 1862]. Meus pais, que tinham sido escravizados, se casaram novamente assim que a liberdade chegou” (WELLS, 1970, p. 7).

A educação mereceu destaque em suas memórias dos tempos de infância:

Eu não me lembro quando ou onde eu iniciei a escola. Tenho recordações de ler jornais para o meu pai e para um grupo de amigos dele. Ele era interessado em política, e eu ouvia falar de Ku Klux Klan antes mesmo de saber o que isso significava. (...) Nosso trabalho era ir para a escola e aprender tudo o que podíamos (WELLS, 1970, p. 9)

Ida B. Wells se casou com o advogado Ferdinand Lee Barnett em 1895. Juntos tiveram quatro filhos. Ela faleceu em Chicago, no ano de 1931. Contudo, o legado de Ida B. Wells segue vivo. A luta e a existência de mulheres como Ida B. Wells ensinam que sim, vidas negras importam e nossos passos vêm de longe.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Quais os significados da educação na experiência de mulheres negras?

Por diferentes caminhos, a docência, os usos da palavra escrita e a educação foram compreendidas como sendo instrumentos mais precisos na luta pela liberdade e pela igualdade. O caráter coletivo e de engajamento em causas pela liberdade e por justiça também no pósabolição são marcas presentes em muitas das (auto)biografias de mulheres negras que vivenciaram a escravidão.

A partir da análise de trajetórias individuais, este trabalho procurou compreendê-las e situá-las no movimento coletivo e de engajamento por meio de lutas por liberdade, por direitos e por justiça social.

Acredito que as experiências de tais mulheres tenham uma dimensão pedagógica, pois as lutas e as existências delas nos ensinam que sim, a liberdade é uma luta constante e que é preciso aprender a ouvir e a respeitar a beleza do canto da graúna

REFERÊNCIAS

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COOPER, Ana Julia. A voice from the South. By A black woman of the South. XENIA, OHIO: THE ALDINE PRINTING HOUSE. 1892. [ Links ]

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WILLIAMS, Heather. Self-Taught: African American Education in Slavery and Freedom. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2005. [ Links ]

Recebido: 01 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Maio de 2022

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