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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67099 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

FORÇA DE YABÁ: representações da pomba-gira e de identidades femininas em terreiros da região sul do Rio Grande do Sul

YABA'S STRENGTH: representations of the pomba-gira and female identities in terraces in the southern region of Rio Grande do Sul

LA FUERZA DE YABA: representaciones de la pomba-gira y de las identidades femeninas en terreiros de la región sur de Rio Grande do Sul

Rodrigo Lemos Soares1 
http://orcid.org/0000-0002-1690-8991; lattes: 7158430253302821

Denise Marcos Bussoletti2 
http://orcid.org/0000-0002-1399-2534; lattes: 3000225561008826

1Universidade Federal de Pelotas – Faculdade de Educação - Programa de Pós-Graduação em Educação/Grupo Interdisciplinar de Pesquisa: Narrativas, Arte, Linguagem e Subjetividade (GIPNALS). E-mail:rodrigosoaresfurg@gmail.com.br

2Universidade Federal de Pelotas – Faculdade de Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação/Grupo Interdisciplinar de Pesquisa: Narrativas, Arte, Linguagem e Subjetividade (GIPNALS). E-mail: denisebussoletti@gmail.com


Resumo

O artigo que segue tem o objetivo de descrever as representações da pomba-gira, figura feminina da Quimbanda, aproximada das forças das yabás, mães-de-santo de terreiros da região sul do Rio Grande do Sul. A produção do mesmo foi possível pela realização de nove entrevistas semiestruturadas com dirigentes de terreiros, pós aprovação do projeto pelo comitê de ética em pesquisas com seres humanos. Enquanto resultados foi possível observar que as representações das pomba-giras estão aproximadas com as ideias de mulheres que rompem com regramentos sociais que definem seus papeis sociais de sujeitos, enquanto seres domésticos e obedientes. As representações das entidades femininas da Quimbanda exemplificam o contraponto, a resistência e outras formas de ser mulher na sociedade, pois, elas vão de encontro a obediência e silenciamento das vontades. As mães-de-santo, donas dos terreiros cumprem a função de desenvolver noções de liberdade e cultos aos corpos de todos os sujeitos que passam pelas suas mãos e, por sua vez, ensinamentos.

Palavras-chave: pomba-giras; terreiros; dinâmicas culturais

Abstract

The article that follows aims to describe the representations of the pomba-gira, a female figure from Quimbanda, close to the forces of the yabás, mothers-de-santo of terreiros in the southern region of Rio Grande do Sul. The production of the same was possible by carrying out nine semi-structured interviews with directors of terreiros, after approval of the project by the ethics committee in research with human beings. As results, it was possible to observe that the representations of the pomba-giras are close to the ideas of women who break with social rules that define their social roles as subjects, as domestic and obedient beings. The representations of the female entities of Quimbanda exemplify the counterpoint, resistance and other ways of being a woman in society, as they go against obedience and silencing of wills. The mothers-de-santo, owners of the terreiros fulfill the function of developing notions of freedom and cults for the bodies of all subjects that pass through their hands and, in turn, teachings.

Keywords: pomba-giras; terraces; cultural dynamics

Resumen

El artículo que sigue tiene como objetivo describir las representaciones de la pomba-gira, figura femenina de Quimbanda, cercana a las fuerzas de los yabás, madres-de-santo de terreiros en la región sur de Rio Grande do Sul. La producción del mismo fue posible mediante la realización de nueve entrevistas semiestructuradas con directores de terreiros, previa aprobación del proyecto por el comité de ética en investigación con seres humanos. Como resultados, fue posible observar que las representaciones de las pomba-giras se acercan a las ideas de mujeres que rompen con las reglas sociales que definen sus roles sociales como sujetos, como seres domésticos y obedientes. Las representaciones de las entidades femeninas de Quimbanda ejemplifican el contrapunto, la resistencia y otras formas de ser mujer en sociedad, pues van en contra de la obediencia y el silenciamiento de voluntades. Las madres-de-santo, propietarias de los terreiros cumplen la función de desarrollar nociones de libertad y cultos a los cuerpos de todos los sujetos que pasan por sus manos y, a su vez, enseñanzas.

Palavras chave: pomba-giras; terreros; dinámicas culturales

PRIMEIRAS INCURSÕES

“[...] A sua casa não tem porta e nem janela ela que o vento vai é lá que o vento leva... Oh Oh... Oh Oh... A dona da casa chegou [...]”1

Este artigo apresenta possíveis modos de compreensão de quem são e algumas das funções atribuídas a um dos dois personagens, ou diria, protagonistas da Quimbanda, a saber, o Exu e Pomba-gira, com olhares à segunda. Para iniciar a escrita deste trecho, enquanto proposta de pensamento e posição assumida, pauto-me em ideias que vão de encontro às epistemologias religiosas eurocêntricas, as quais, produziram e, ainda definem as identidades dessas entidades enquanto diabólicos(as), prostitutas, cadaverizados(as) (em formato de caveiras), entre outras nomeações que exploram ambos em sentido pejorativo (KAWAHALA, 2014). A Pomba-gira e o Exu cristianizado na noção de diabo católico, figurados em terreiros2, no transe dos(as) médiuns, vestem-se “[...] com capa preta e vermelha, leva na mão o tridente medieval do capeta, distorce mãos e pés imitando os cascos do diabo em forma de bode, dá as gargalhadas soturnas que se imagina próprias do senhor das trevas, bebe, fuma e fala palavrão [...]” (PRANDI, 2001, p. 54).

Como já postulado, no parágrafo acima, a ideia é desmistificar os ideais diabólicos destes dois conjuntos de personagens da Quimbanda. Segundo o sincretismo religioso os Exus são espíritos que já encarnaram na terra. Na sua maioria, viveram de modo a prejudicar seriamente sua evolução espiritual, sendo assim estes espíritos optaram por prosseguir sua evolução espiritual através da prática da caridade. Pomba-gira e Exu, termos originários do idioma Yorubá, da Nigéria, na África, divindades afro e que representam o vigor, a energia que gira em espiral. Em específico, as Pombo-Giras/ Pombogiras é corruptela do termo "Bombogira" que significa em Nagô, Exu. A Pomba-Gira é uma mulher da rua, uma prostituta. Pombo-Gira é um Exu Feminino ou Exu mulher (BARROS, 2007). Povo da rua é outra nomenclatura dada aos Exus e Pomba-giras, em algumas casas essa denominação estende-se ao povo Cigano (BARROS, 2007).

Problematizar a presença das pomba-giras nos terreiros, alicerçadas pelas dinâmicas das mães-de-santo implica em produzir uma história de mulheres que pela liderança social produzem mecanismos de Educação pela via de práticas pedagógicas (SOARES, BUSSOLETTI, 2020). Partir dessa premissa sinaliza o agenciamento de um conjunto de saberes que são forjados por transgressões, resistências e empoderamentos mediados pelas yabás:

Mas enquanto minha odisseia pessoal forma um catalisador para este volume, agora eu sei que as minhas experiências estão longe se serem únicas [...] então a voz que eu procuro agora é ao mesmo tempo, individual e coletiva, pessoal e política, uma reflexão de intersecção da minha biografia particular com o sentido amplo dos meus tempos históricos [...] eu compartilho esta parte do contexto [...] porque este contexto influencia minhas escolhas, em relação a este volume (COLLINS, 2000. p. 8).

Em todas as instâncias pelas quais circulei e, por consequência, fui educado, as mulheres, resistem aos múltiplos discursos e inúmeras instituições que as subjugam, subalternizam, ainda assim, elas produziram e exerceram atividades potentes e criadoras, além de promoverem escapes às posições de sujeitos que as limitavam as singularidades do casamento, à maternidade e à vida doméstica. Enquanto cria de terreiros visualizei inúmeras lutas no campo social, sobretudo, por se tratarem de mulheres das classes trabalhadoras e, em sua maioria, negras. Pessoas discriminadas pela trilogia: classe, raça e gênero:

Toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão elas podem se tornar poderosas fontes de energia servindo ao progresso e mudança. E quando eu falo de mudança, eu não quero dizer a simples mudança de posições ou uma diminuição temporária das tensões, ou a habilidade de sorrir e se sentir bem. Eu estou falando de uma alteração básica e radical dessas presunções que sublinham as nossas vidas (LORDE, 1984. p. 127).

No entanto, as vi assumirem protagonismos ao reivindicarem seus direitos de existir e suas vontades, os quais muitas pessoas lhe faziam crer que tinham perdido. Foram essas imagens de mulheres que me educaram e, por essa razão desenvolvi o artigo que segue com o objetivo de descrever as representações da pomba-gira, figura feminina da Quimbanda, aproximada das forças das yabás, mães-de-santo de terreiros da região sul do Rio Grande do Sul. Este estudo trata-se de uma aproximação a pesquisa de Collins (2000) ao afirmar que significa discorrer sobre mais uma disputa epistemológica, isso porque, proponho uma eficácia dos saberes científicos ao enaltecer as dinâmicas de terreiros, a partir da figura da pomba-gira, com todo seu arcabouço transgressor e, acima de tudo questionador das ordens sociais que insistem em dizer o que deve ser feito com os corpos e comportamentos femininos. Tal como Collins (2000) proponho uma tentativa de estreitamento entre práticas de objetivação e subjetivação ao tecer um artigo que se pauta pelo diálogo entre participantes e demais investigadores(as) que se debruçaram, em coletividade, para suspender verdades, conceitos e saberes que naturalizam as funções sociais das mulheres, bem como suas dinâmicas diárias, a partir do disciplinamento dos seus corpos. Para tanto, pensamento e ação:

[...] podem trabalhar juntos na produção de teoria. A maior parte do meu treinamento acadêmico formal foi configurado para me mostrar que eu devo me distanciar das minhas comunidades, minha família e até de mim mesma em nome da produção de uma credibilidade intelectual. Ao invés de ver o dia a dia como uma influência negativa em minha teorização, eu tentei ver como as ações cotidianas e ideias de mulheres negras na minha vida refletiam as questões teóricas que eu afirmava serem tão importantes para elas [...] experiências concretas modificam visões de mundo oferecidas pela teoria (COLLINS, 2000, p. 08).

Hooks (1981) e Haraway (1995) escreveram que a experiência pessoal é uma dimensão importante, quando se quer compreender problemas de ordem coletiva. Haraway (1995) questiona o enquadramento das produções femininas como escritas particulares diante de uma pretensa objetividade das ciências produzidas por homens. As defesas colocadas aqui são de natureza de distanciamento do objeto, um ideal que beira a pretensão de neutralidade sem com isso retificar a existência das desigualdades de gênero e raça, como por exemplo:

Deste ponto de vista, a ciência - o jogo real, aquele que devemos jogar - é retórica, é a convicção de atores sociais relevantes de que o conhecimento fabricado por alguém é um caminho para uma forma desejada de poder bem objetivo. Tais convicções devem levar em conta a estrutura dos fatos e artefatos, tanto quanto os atores mediados pela linguagem no jogo do conhecimento [...] [Assim] Desmascaramos as doutrinas de objetividade porque elas ameaçavam nosso nascente sentimento de subjetividade e atuação histórica coletiva e nossas versões "corporificadas" da verdade [...] (HARAWAY, 1995, p. 13).

Na esteira desses pensamentos, Hall (2014) escreveu sobre a noção de pertencimento e posicionalidade ao descrever suas experiências como um intelectual diaspórico. Segundo o autor o rememorar das nossas histórias, de modo atento aos elementos que constituem nossas identidades marcadas pelos recortes culturais, temporais e, acima de tudo sociais permite formular nossas experiências diaspóricas. Quando se trata de pesquisar e escrever histórias das mulheres precisamos atentar a um duplo sentimento: o de pertencimento e o de não-pertencimento a lugar algum. De acordo com Hall (2014) isso se deve ao fato de operarmos com o sentimento de “estranho familiar”, isso porque, sabemos o que sabemos sem nunca atingir a totalidade de um conhecimento, pois, somos ao mesmo tempo agentes causadores e alvo das experiências. Essas reflexões, a partir de Hall (2014) permitem-me articular saberes e narrativas em prol de uma multi-posicionalidade afetiva, a qual auxilia-me a referendar pela presença das pomba-giras, histórias de mulheres que me constituíram e, ainda, constituem enquanto sujeito social e educador. Mais que isso, serve para possibilitar referências sobre as minhas trajetórias dentro dos terreiros, enquanto decisivas na produção de sujeito em esferas pessoais e intelectuais, dentro das lógicas dos terreiros, os quais:

[...], com toda sua produção histórica, material e simbólica, com todos seus modos de vida, e, portanto, com toda sua cultura, estão nessas redes educativas. Redes tecidas por danças, cantos, comidas, rezas, folhas, mitos, artefatos, gestos e segredos. Redes tecidas pela história desses povos. O yorubá é uma das línguas que conduz esses saberes, como um fio de linguagem que acende, organiza e mantém a comunicação de crianças, jovens e adultos (CAPUTO, 2015. p. 777).

Caputo (2015) escreveu que as redes educativas que são produzidas nos terreiros, são forjadas pela lógica: muitos ensinam e muitos aprendem. Então desde a infância até a idade adulta os sujeitos são escutados e respeitados pelas suas expressividades e são ensinados a respeitarem as narrativas e saberes alheios (SOARES, BUSSOLETTI, 2020). Nesse sentido, as mulheres assumem centralidade ao serem o foco dessa pesquisa pelas dinâmicas educativas que propõem. A ideia de “rede” proposta por Caputo (2015) estabelece saberes estão em circulação, em disputa, principalmente quando se trata daqueles provindos de mães-de-santo ou, mais especificamente, das narrativas de pomba-giras. Desse modo, os saberes são entrecruzados e constituem processos educativos dentro das casas religiosas, isso porque, todos os sujeitos:

[...] da comunidade são responsáveis pela Educação da pessoa que passa pelo processo de iniciação. A Educação tem caráter coletivo e social, é responsabilidade do grupo e, em especial, das pessoas mais velhas que são consideradas depositárias da cultura. A Educação é uma impregnação permanente; o indivíduo é educado a todo o momento por todas e todos do grupo, servindo a vida cotidiana como pretexto para se educar. A vida e o aprendizado são indissociáveis (BOTELHO, 2010. p. 80).

Recorro a Prandi (1996) ao escrever que "[...] o filho iniciado confia cegamente em sua mãe-de-santo. Guiado por ela, este fiel aprende ano após ano a repetir fórmulas iniciáticas necessárias à manipulação da força sagrada, da natureza, o axé [...]” (PRANDI, 1996. p. 42). Além disso, é preciso se dispor, pois “[...] o que é diferente no outro se junta com o que eu sou para produzir outra coisa” (ROLNIK, 2018, p. 19). A mãe-de-santo tem “[...] seu papel específico, é dirigira a comunidade, assegurar a realização do culto, garantir a correção dos ritos, transmitir os conhecimentos aos auxiliares, consagrar sacerdotes e sacerdotisas” (JOAQUIM, 2001, p. 128).

As mães-de-santo e a presença das pomba-giras proporcionam uma gama de sensações que serão experimentadas e apreendidas pelos corpos. Ao vibrarem juntos (os saberes dos terreiros, espiritualidade e dinâmicas religiosas) são potencializados por campos significação, a partir de exercícios pelos usos da filosofia da linguagem, de criação, nos quais os processos de conferimento de signos culminam na produção de formas de existências (ROLNIK, 2006), “[...] movidos por este paradoxo, somos continuamente forçados a pensar/criar” (ROLNIK, 2003, p. 3) modos de ser e estar no mundo. Essas reflexões partem de saberes dos terreiros, como conjunto complexo de saberes e ofícios (CARVALHO, 2011).

Submeti a pesquisa ao comitê de ética em pesquisas, a qual foi aprovada sob o número: 3.786.778, pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Pós aprovação, realizei entrevistas semiestruturadas. O desenvolvimento desse artigo foi possível pela participação de nove colaboradores(as), são eles(as): Maioral, Maré, Maria Padilha das Almas, Maria Quitéria do Cemitério, Padilhinha, Pantera Negra, Rei das 7 Encruzilhadas, Tiriri da Encruzilhada, Tranca Ruas das Almas, nomes definidos pelos sujeitos da pesquisa e aprovados no mesmo parecer do CEP/UFPEL. Cada um dos nomes significa uma entidade do universo simbólico da Quimbanda, vertente das religiões de matriz africana desenvolvidas no Rio Grande do Sul. As narrativas dos(as) participantes estão alocadas no corpo do texto procedidas dos nomes de quem as proferiu.

Saberes sobre as pomba-giras: narrativas que forjam histórias sobre mulheres

Sobre as Pomba-giras posso dizer que:

[...] é um sincretismo, estas imagens que temos delas não são como elas são. A pomba-gira é uma figura que desempenha a mesma função das demais entidades, com algumas coisas específicas, mas, não é o diabo ou putas, como as pessoas dizem [...] são muito próximos de nós, talvez isso que não passa na cabeça dos outros, isso é, nós somos muito fracos e hoje em dia muito sedutores ou falsos, e isso, alguns filhos e filhas refletem nas suas entidades, isso é deturpar [...] (Padilhinha).

Destaco que, embora, estas representações estejam presentes no imaginário social e, também, nas imagens de gesso, dos terreiros visitados, ainda é possível perceber muitas estatuetas vinculadas as pomba-giras, que exploram uma noção de sensualidade, com cores em roxo, vermelho e preto, apresentando fisionomias, por ora cadavéricas e, em outras, explicitamente homens altivos, de barba e mulheres com curvas corporais acentuadas, para além, daquelas que representam caveiras e outras espécies de monstros da cultura popular. Ademais, é visível, a exposição de tipos corporais, nos quais, tanto o peitoral masculino, quanto os seios femininos mais pernas, especificamente, as coxas, estão em evidência. Na visão eurocêntrica, católica, o corpo aqui exposto na perspectiva de ligação ao profano, portanto, distanciado da salvação e da vida eterna (SILVA, 2015).

No entanto, na mesma pesquisa, Silva (2015) escreve que o Exu gera resistência, representado por um pênis ereto, signo da fertilidade, do novo, de possibilidades éticas e estéticas, características, que ora se aproximam e ora se distanciam das pomba-giras. Além disso, são considerados(as) entidades amorais, as quais não cabem conceituações dicotomizadas, entre o bem e o mal, pois isso compete a quem os invoca e pede auxílio a estes. Ambos realizam, segundo a crença dos(as) praticantes, desde trabalhos/ feitiços/ macumbarias até curas:

[...] Eles [exus e pomba-giras] são o movimento, sem eles não se faz nada, não se tem nada, é o mensageiro, o guardião é o que zela, junto com a sua esposa pomba-gira estão aí para vencer as demandas, abrir os caminhos nos trazer colo para enxugar nossas lágrimas, é o nosso guardião. Eu os trato a pão-de-ló, porque se eu tenho tudo o que eu tenho hoje eu agradeço a todos orixás, mas, principalmente ao povo de exu. Exu é o movimento de rotação, ele fez o dia virar noite, é esse mundo louco que a gente vive hoje, ele é dinâmico, brincalhão é extrovertido, mas acima de tudo é amigo, fiel, é companheiro e exu não trai [...] (Rei das 7 Encruzilhadas).

As pomba-giras tendem a aceitar qualquer pedido de seus fiéis podendo não apresentar preocupação com ordens oriundas de uma moral social estabelecida, no local, porém, necessitam de algum pagamento para execução do pedido, como por exemplo, “[...] os despachos, que incluem seus pratos prediletos [...]” (NEGRÃO, 1996, p. 83). Outras características destes estão no campo de operação da suscetibilidade alheia, eles rompem com a ordem instabilizando os sujeitos, e/ou representam “[...] personagens da desordem” (SILVA, 2015, p. 208):

[...] as Pombo-giras são energias, entidades de luz mais próximas do plano terrestre que nos conecta ao espiritual. Exu entidade masculina, nesta falange podemos encontrar Reis, Nobres, Malandros, Ciganos, Marinheiros, Piratas, Cafetões, Meninos, Feiticeiros, entre outros. Pombo gira é o feminino de Exu, pode ser a mulher de Exu, falange feminina onde encontramos Rainhas, Damas da sociedade, antigas prostitutas, Cafetinas, Ciganas, Feiticeiras, entre outras [...] (Maré).

Estes argumentos reforçam minha vontade de contrapor a ideia cristã católica destes, em diálogo com as narrativas dos(as) participantes da pesquisa, para os(as) quais, tanto os exus quanto as pomba-giras, são antes de qualquer coisa formas de força, de resistência e alegria. Tal pensamento é subsidiado pela leitura do estudo de Negrão (1996) ao expor que estas duas entidades são mais próximas dos sujeitos, por apresentarem arquétipos de incerteza, aflição e transitoriedades. Contudo, tais características não devem ser entendidas como fraquezas ou medidores de desmerecimento, mas sim, como afinidades, na relação de alteridade entre espíritos e humanos. “[...] as pomba-giras são determinação, são o nosso reflexo, tal como os exus. Elas são o empoderamento feminino, a força do humano [...]” (Tiriri da Encruzilhada).

Para Maria Quitéria, Pantera Negra e, posterior Maria Padilha das Almas, por exemplo, estas entidades podem ser entendidas como mal conhecidas,

[...] as Pomba-giras, são representados dessa forma, deturpada, como bichos, seres do mal, caveiras e tudo mais, muito por causa do racismo, por sermos uma religião de matriz africana, por mais que aqui na casa mesmo, sejam maioria de gente branca. Além disso, tem gente que tem medo deles porque não conhece nada sobre, daí só escuta uma coisa aqui e outra lá e, nunca veio no nosso terreiro ou foi em outro, para saber mesmo o que eles são. Eles são força e resistência do terreiro, são guias guardiões, são símbolo de pessoas que hoje em dia sofrem com injustiça, então para mim, eles são a força de quem resiste, de quem não desiste, tudo isso com alegria [...] Mas, eu acho que a imaginação pior é sobre as mulheres, as pomba-giras, que muitas pessoas acham que são putas ou libertinas [...] (Maria Quitéria do Cemitério).

Pela narrativa de Maria Quitéria é possível perceber traços de discriminação, seja de imaginário social, com relação a dicotomia entre o bem e o mal, passando pelo racismo e finalizando com uma explanação acerca da depreciação feminina, seja no campo social ou religioso. Nesse último sentido, dialogo com Meyer (1993), ao escrever que:

Como é mulher, sua associação ao Mal, sua demonização passa pela imemorial marca infamante da feminilidade: a luxúria. Encarnada noutro antigo estereótipo: a prostituta. Uma 'mulher da vida', com 'sete maridos', bem marcada, me parece, pelo tempo em que se constituía a Umbanda no espaço urbano: vários dos seus pontos cantados que ouvi, remetem a um espaço escuso da cidade, que já foi sinônimo de devassidão e 'mulher perdida': a Pomba-Gira é de cabaré (MEYER, 1993, pp. 104-105).

As Pomba-giras e os Exus:

[...] eles, são a nossa energia, são eles, na Quimbanda, que é o meu caso, que dão sentido a minha prática. Sem eles não faço nada, eles são a força do oculto, do segredo, pelo fato das pessoas desconhecerem, por mais que adorem, ambos. [...] Tanto um quanto o outro simbolizam amor, alegria, festa, afeto, não que as outras falanges não sejam assim, mas com eles as pessoas se identificam, então não vejo sentido em quem diz que são demônios, malvados, impuros. Se fosse assim, todo ser humano é isso, mas eu prefiro acreditar no que estou te dizendo. Eles têm força e concedem forças nos caminhos das pessoas, para resistirem aos problemas da vida [...] (Pantera Negra).

Pantera Negra alude ao fato de que eles são seres representativos de sua prática, enquanto quimbandeiro. O participante, lista diferentes características relativas as entidades e, ao final, sinaliza uma relação direta com os seres humanos, a qual ele prefere rechaçar, por acreditar mais na sua percepção de mundo e de sujeitos. Complemento, então, com Barbosa (2000) que:

[...] são considerados uma força motora, geradora, criativa e onipresente, cuja existência se faz nas margens, nos limites, [...] Representando a ambiguidade, o imprevisível e o caótico, eles são também o [...] início da vida, mensageiros da palavra e arauto entre os orixás e os seres humanos (BARBOSA, 2000, p. 155).

Seja pela exposição de Maria Quitéria ou Pantera Negra, compreendo que de princípio, já seja possível escrever sobre os as Pomba-giras e Exus desconfiando das formas/linguagens expostas em imagens. Quando Pantera Negra afirma não poder fazer nada sem eles, estabeleço um diálogo com Sodré (1998), ao demarcar que sem eles, nada acontece, pois são os donos do corpo. Nesta mesma obra, eles são entendidos como responsáveis pelas alterações nas vidas dos sujeitos, ademais, a ambos compete a fala (SODRÉ, 1998). E, complementa afirmando que, sem eles não se atinge o axé. Somente a partir dele é possível acessar e manter o axé - força vital que permite a sobrevivência e a reação diante das adversidades sofridas pelos negros na diáspora:

Num exame das circunstâncias que transformaram a Pomba-gira e o Exu de mensageiro da palavra a figura maléfica, associada ao mal, capaz de matar, envenenar e até levar as pessoas à loucura, Bastide considera que a transformação aconteceu quando eles foram transplantados para o Brasil e ficaram sujeitos aos moldes morais e religiosos da colônia [...] Passou a ser visto pela ótica da religião católica que também censurou a sexualidade dele como uma representação e incorporação do mal [...] A ambivalência deles é sua principal característica, mas, no Brasil, o seu polo negativo foi destacado e eles foram colocados nas margens do permitido, no limiar do proibido (BARBOSA, 2000, p. 157).

“[...] enfim elas são caminho, energia, vida e determinação. Elas cumprem as leis da Quimbanda, são guardiãs. Elas são trabalho, alegria, velocidade, são o viver da magia, são o encanto, o sangue na veia vibrando. Elas são a defesa e o prazer! [...]” (Maria Padilha das Almas). Referente a explanação da Maria Padilha das Almas é possível perceber, um somatório de qualificações positivas a pomba-gira. Para esta participante, desde a abertura dos caminhos até a noção de prazer está presente, na companhia dessa entidade. Ao longo da conversa, ela indicoume um vídeo que aborda com mais ênfase, os modos como ela acredita serem essas entidades, tendo em vista, que os exus são múltiplos. Esses olhares são possíveis, a partir da leitura de Sodré (1998), para o qual na desmistificação pejorativa dirigida aos exus e pomba-giras é preciso compreender que ambos possuem representatividades daquilo que os sujeitos pedem. O que se chama exus e pombo-giras, não são espíritos obsessores, quiumbas, que são energias desprovidas de evolução, que se aproveitam de médiuns fracos(as), no sentido de desenvolvimento espiritual. No estudo de Negrão (1996) pomba-giras e exus:

[...] se incumbem de defender os pais e filhos de santo, e mesmo a clientela, contra os malefícios reais ou virtuais de seus concorrentes, desafetos e inimigos, [...] ligados à preservação da ordem, ao mesmo tempo em que liberta a sexualidade, contrapõe-se às vigências culturais e políticas [...] sua iconografia africana o representa com chifres, tridente de ferro e com falo evidente, além de ter no fogo o seu símbolo. [...] são vistos como espíritos de mortos, “eguns” ou “quiumbas”, que em vida foram assassinos, ladrões, etc. [...] tratam, sobretudo do relacionamento sexual, arranjam namorados, amantes e esposos e fazem as “amarrações” de pessoas amadas, mesmo que casadas. Aparecem nos terreiros rastejando, bebem pinga jogada no chão; se eretos têm o andar cambaleante e as mãos retorcidas como garras. São identificados com os cemitérios (um dos seus lugares prediletos ao lado das encruzilhadas). É evidente que as federações e intelectuais de umbanda tentaram extirpar os exus e suas mulheres das giras. Mas são muito raros os terreiros em que não estejam presentes, de alguma forma. Geralmente tem sua casa na entrada do terreiro, a tronqueira, onde são colocadas suas imagens e oferendas (NEGRÃO, 1996, pp. 82-87).

A Pomba-gira e o Exu são os mensageiros entre o Orun (mundo espiritual) e o Àiyé (mundo físico). Para Ortiz (1999) o Exu pode ser considerado como “[...] a única entidade que conserva ainda traços de seu passado negro [...]. Um primeiro significado de Pomba-gira e Exu pode ser inferido: eles são o que resta de negro, de afro-brasileiro, de tradicional na moderna sociedade brasileira [...]” (ORTIZ, 1999, p. 134). Kawahala (2014) em relação a eles especifica que ambos:

[...] não permitem certezas porque nunca podem ser alcançados. Quando se pensa tê-lo alcançados, que se chegou a algum lugar, eles invertem o caminho e o fim passa a ser o começo, que não é só um caminho, mas uma encruzilhada de quatro caminhos multiplicados por milhares de outras possibilidades [...] não existe certo ou errado, mas caminhos que podem levar a diversos lugares, ou conduzir ao mesmo local por via diferentes (KAWAHALA, 2014, p. 43).

Ainda que Kawahala (2014) explique a figura do exu em outro campo de prática religiosa, é possível estabelecer conexões entre os campos Candomblé e Quimbanda, pois, para, Marcelo do Tranca Ruas das Almas, trata-se da mesma possibilidade de visão. Segundo ele: “[...] as pombagiras são entidades, energias que mexem com os sentimentos das pessoas, eles brincam, fazem testes, não te dão certeza de nada, mas, deixam clara a força que tem. Precisamos deles para manter a casa ativa, firme e funcionando [...]” (Tranca Ruas das Almas).

Partindo da citação e do excerto de Tranca Ruas das Almas, compreendo a figura da pomba-gira como um campo múltiplo de ações. Ela é e não é. É o outro do equilíbrio, da estabilidade, ainda que sua função não seja a desestabilidade, mas sim o equilíbrio. Nesse sentido dialogo com Ortiz (1999) ao expressar que ela é regula o “[...] cosmos, abre as barreiras, traça caminhos” (ORTIZ, 1999, p. 127). Ela é, nesse sentido, propositora, junto com o exu.

Como aponta Maioral:

[...] a pomba-gira é o agente mágico de um terreiro é a executora da lei, ele não é boa, nem mal é somente o executora cármico [...] se alguém fez alguma coisa de mal o ela vai cobrar, se a pessoa fez coisas boas ela vai levar para o caminho do bem.- indicou um ponto para resumir suas ideias – ela é alegria é a grande psicóloga do terreiro, através dos seus trabalhos, da gargalhada, usa alguns paramentos mágicos, como a capa, tudo é magia, então é a grande executora, como te falei, trabalha na arte, que nesse caso, significa magia, guarda as portas de uma casa de religião, a segurança da porta, ali ninguém passa espiritualmente falando, que não seja dentro da lei para que possa ter realmente um caminho de luz, se vier um espírito das trevas, com certeza se passar por ali ele será doutrinado, ele tem uma velocidade de trabalho enorme, por isso, ela é muito parecida com o humano, então ela se identifica muito conosco e nós com ela, claro que ela tem muita luz, se apresenta da forma que ela quer porque ela tem muita luz, então ela pode mudar seu corpo pelo espiritual, seu corpo etéreo [...] (Maioral).

Pomba-gira e Exu são aqueles que, como diz o povo de santo, tem o poder de fazer o acerto virar erro e o erro virar acerto, pois trazem em si o poder de realização, são “[...] os guardiões da casa do futuro, do axé, da energia vital que está presente em todos nós e em todas as coisas da natureza” (SILVA, 2015, p. 208):

[...] Eles (Pomba-giras e Exus) estão preocupados em movimentar a vida das pessoas, por isso, nada fica parado, eles são movimento, nada será sempre o mesmo, uma magia não se repete, assim como as nossas vidas não são iguais, os planos são para cada um e essa é a razão das Pomba-giras e Exus correrem tanto. Eles precisam trazer prosperidade para as pessoas [...] (Pantera Negra).

Pela narrativa de Pantera Negra é possível compreender alguns fatores que atribuem aos Exus e Pomba-giras o fato de “bagunçarem” a ordem. Eles se opõem as repetições, são o outro da organização reiterada, que institui e encerra coisas, que paralisa. A figura Exu é comumente direcionada a imagem de masculinidade, porém, existe o seu outro, a Pomba-gira ou também, Exumulher, que é o híbrido, corresponde a entidades que, embora possuam esta denominação, não se deixam ser encerrados(as) em identidade única, do tipo, ser homem ou mulher. A energia se materializa, geralmente, na forma feminina, porém, ela pode escapar a essa lógica, dependendo de sua missão na terra (CAPONE, 2009). As entidades, que possuem tal denominação, são comumente invisibilizadas na Umbanda, porém, na Quimbanda apresentam forte presença (CAPONE, 2009):

[...] elas e eles – (pomba-giras e exus), são Rainhas e Reis. Elas, carregam em si o dom do feminino, do feminismo e da feminilidade, quando somente pomba-gira, ao dizer exu-mulher, tem aí um híbrido, um misto de identidades e representatividades. A pomba-gira, tende a ser mais debochada, faceira, feliz, já, a ex-mulher, é feliz também, mas não demonstra tanto, não é tão expansiva, ela dança bastante, assim como a pomba-gira, mas costuma ser mais observadora e mais direta quando fala com os consulentes da casa [...] isso tem muito a ver com o médium ou com a médium que recebe essas entidades, ou seja, vai do perfil de orixás que guiam, da vida das pessoas e de como elas estão desenvolvidas na prática religiosa [...] (Padilhinha).

A Pomba-gira, além de andar lado-a-lado, pode ser entendida como promotora de um papel social “dito” feminino, no qual o “[...] lugar de mulher não é em casa cuidando de filho. Mulher tem que ser valente, ir pra caça, ir pra guerra [...]” (DEL PRIORE, 1993, p. 44). Nesse campo de entendimentos, o termo gira, pode se referir, também, à Pomba-gira, ao Exu-mulher, entidades que estão na lógica de transgressão das “ditas” feminilidades. Elas são, por assim dizer, as que ousam apoderar-se dos seus desejos, de suas sexualidades. A pombo-gira, aparece na mitologia africana, tal e qual o Exu, contudo, é no Brasil, onde elas passam a ser caracterizadas como as entidades que carregam em si o binômio sagrado e o profano (CAPONE, 2009):

[...] a pomba-gira é o paralelo com o exu, nada mais é que a guardiã, o equilíbrio junto com o exu e não tem nada a ver com prostituta, que colocaram naquelas imagens nuas só para criar em vermelho ainda para criar que era o diabo e da prostituição, criaram uma forma horrenda a todas as pessoas que ignoram o conhecimento ao culto do que é uma pomba-gira, é a senhora guardiã de um terreiro, ela trabalha atacando todos os espíritos sexolatras, espíritos outros investidos para destruir uniões e outros trabalhos de malefícios [...] tem também o povo cigano, outras entidades que trabalham pelo lado das almas, da encruzilhada, outro pelo lado do mar, vem também as pomba-giras da beira da praia, as ciganas de mar, de estradas, vem também as guardiãs que trabalham nessa parte comandando outros espíritos para atacar o submundo da sexolatria [...] (Maioral).[...] elas são as nossas queridas amigas, eu me identifico muito com as pomba-giras e a elas eu tenho também uma grande falange aqui em casa, então tenho que agradecer muito porque junto com exu ela traz um papel assim que encaixa os dois, são vencedoras de demanda, aliviam uma dor de uma pessoa que foi traída, elas trazem um amor novo, elas trazem esperança para aquela mulher que já está amarga de uma traição, nos trazem alegria e foram em vida tão sofridas, as pomba-giras sofreram muito, foram mulheres da rua, prostitutas, sofreram naquela época em que não tinha esse amparo todo e mesmo assim elas vem trazendo aquela mensagem do amor, elas não desistiram do amor, então a pomba-gira é a doçura do exu. Isso é uma coisa que elas nos ensinam: ser resiliente, para pesquisa acho que esse é o ponto certo para saber das pomba-giras. Elas te ensinam a ver que por pior que as coisas estejam, sempre precisamos enxergar algo bom [...] (Rei das 7 Encruzilhadas).

Especificamente no estudo de Isaia e Manoel (2012) as pomba-giras são descritas como entidades que provocam “[...] medo e fascínio, desejo e repulsa [...]” (ISAIA, MANOEL, 2012, p. 180). Elas, tal e qual os Exus, apresentam possibilidades de exercer tanto algo entendido como mal, quanto fazer o bem, tudo isso, performatizando papeis de mulheres que podem ser sedutoras, provocantes e perigosas, ainda que incorporadas em corpos masculinos. Segundo estes mesmos autores, as pomba-giras:

Vestidas com sedas e babados, adornadas com joias coloridas e armadas com punhais e línguas ferinas, entre goles de cidra, drinque Dreyer ou cachaça, entre palavrões e gargalhadas, as pombo-giras conversam com seus clientes e negociam seus serviços em troca de pagamentos que as satisfaçam:

[...] Na materialização dos espíritos e seus poderes nas estórias, as pombo-giras são frequentemente associadas a acusações de criminalidade. Associada ao cemitério, à encruzilhada e à morte, elas são frequentemente descritas como espíritos menos evoluídos com capacidade ilimitada para o mal, mesmo quando executando trabalhos para o bem (trabalho significa a interferência mágica dos espíritos). Identificadas como prostituta, as pombo-giras são caracterizadas por uma marcante sexualidade, pelo falar carregado de palavrões e referências ao corpo erotizado, e pelo gosto pela bebida e pela riqueza (ISAIA; MANOEL, 2012, pp. 180-181).

Retomando o termo gira, ele remete a noção de movimento, seja de exus ou de pomba-giras, gira, como sinônimo de roda, implica em compreender uma prática privilegiada destes dois personagens, porém, não exclusivo deles. O movimento dessas energias é provocado pelo vazio do inesperado, pela síncope, como escrito por Sodré (1998). Ao girar, movimentar-se essas entidades ultrapassam as barreiras da inércia, chamando os(as) fieis, filhos(as) de santo, sacerdotes ou sacerdotisas para dançar, ou como narrado por Pantera Negra:

[...] é um grito de vida com o corpo, é ser chamado para liberdade, para viver cada momento que está por acontecer, são convites para existir e resistir, pela materialização do movimento e características de cada entidade. É como se por meio dos gestos deles – dos exus e das pomba-giras, a gente mostrasse como somos fortes, como se no meio de tudo isso, fosse possível enxergar a beleza da pessoa, somada com a da sua entidade [...] (Pantera Negra).

No estudo de Prandi (1996) a figura da pomba-gira "[...] trata dos casos de amor, protege as mulheres que a procuram, é capaz de propiciar qualquer tipo de união amorosa e sexual [...]" (PRANDI, 1996, p. 148). O autor, ainda descreve que a essas entidades competem os afazeres ritualísticos que envolvem feitiçarias, com ênfase as que se voltam às relações amorosas (PRANDI, 1996). A partir do estudo, é possível estabelecer relações com os espaços relegados, tradicionalmente, às mulheres, a saber, a privação de sua casa, do seu quintal, onde estão as ervas, seus segredos mágicos e saberes terapêuticos (DEL PRIORE, 1993). Além disso, os afazeres das pomba-giras, estão voltados, basicamente, mas não exclusivamente, ao externo, a rua, a encruzilhada, outro fator que indica um não pertencimento aquilo que se entende por nucleação familiar. Elas – as pomba-giras, não se ajustam as posições de sujeito tradicionalmente atribuídas aos papeis de esposas, mães ou filhas (DEL PRIORE, 1993).

Yabás (mulheres, resistência e Educação): encaminhamentos de incursões iniciais

Para encerrar, destaco que as Pomba-giras e o Exus “[...] têm a preferência nos terreiros, pois são elas e eles que melhor expressam os anseios e as necessidades de sua aflita e carente clientela [...]” (NEGRÃO, 1996, p. 252). Tentei aqui, propor outros olhares a estas entidades ao apontar lugares outros de modo que este texto não “[...] encerra aspectos múltiplos e contraditórios que dificultam uma apresentação e uma definição coerentes [...]” (VERGER, 2012, p. 119) sobre esses personagens da Quimbanda. Pomba-giras e Exus podem representar personagens que povoam o imaginário social, passando por um folclorismo e, a partir dos(as) participantes da pesquisa, creio ter exemplificado alguns modos de como essas entidades, ainda que, alvo de preconceitos de ordens como: gênero, sexuais, raciais, sociais, econômicos e culturais, assumem dentro dos terreiros espaços específicos e, por ora, de destaque. Ademais a isso, ao discorrer sobre entendimentos acerca das Pomba-giras explicito modos de como as mulheres são entendidas no imaginário popular. Um dado importante é que são narrativas de múltiplos sujeitos: mulheres cisgênero, lésbicas, homens gays cisgênero e homens heterossexuais. No entrecruzamento das narrativas, múltiplas histórias apontam que dentro dos terreiros as mulheres produzem subjetivações pela presença dos seus corpos, pelas suas existências e mais que isso, pelos modos como interagem e agenciam saberes que educam os sujeitos que buscam as casas religiosas.

Ao retomar o objetivo do artigo: descrever as representações da pomba-gira, figura feminina da Quimbanda, aproximada das forças das yabás, mães-de-santo de terreiros da região sul do Rio Grande do Sul, percebi o quanto as mulheres são figuras centrais seja para o desenvolvimento ou manutenção das ritualísticas dos terreiros. Os resultados apontaram, ainda que de modo inicial, que as representações das pomba-giras estão aproximadas com as ideias de mulheres que rompem com regramentos sociais que definem seus papeis/funções de sujeitos enclausuradas por comportamentos do privado, enquanto seres domésticos e obedientes. As representações das entidades femininas da Quimbanda exemplificam o contraponto, a resistência e outras formas de ser mulher na sociedade elas reiteram o valor e poder do feminino, da coletividade. As yabás vão de encontro a obediência e silenciamento das vontades, tanto das filhas de santo, consulentes e entidades e, propiciam isso pelas práticas ritualísticas que propõem, ao reiterarem noções de comunidade. As mães-de-santo, donas dos terreiros cumprem a função de desenvolver noções de liberdade e cultos aos corpos de todos os sujeitos que passam pelas suas mãos e, por sua vez, ensinam que cada sujeito é único e assim imprimem modos de compreender e respeitar individualidades que dialogam com noções éticas que fazem funcionar toda dinâmica religiosa de suas casas.

1Ponto de Pomba-gira – A Dona da casa chegou. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AbQ6Y83EESQ Acesso em 05 de maio de 2022. – No tempo: em 03h00min.

2Utilizarei o termo terreiro para me referir aos espaços para o qual convergem os rituais, as cerimônias, as festas e as sociabilidades de uma família de Santo. Além deste, também aparecerão os termos: casa de santo ou Ilê, que aqui terão a mesma conotação, porém, possuem especificidades. Priorizei do uso do termo “terreiro”, por ser recorrente nas narrativas dos(as) colaboradores(as) do estudo.

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Recebido: 01 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Junho de 2022

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