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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67351 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

YARA LÚCIA BRAYNER MATTOS: entre a política, a educação e a nutrição1

YARA LÚCIA BRAYNER MATTOS: between politics, education and nutrition

YARA LÚCIA BRAYNER MATTOS: entre la política, la educação y la nutrición

Raylane Andreza Dias Navarro Barreto1 
http://orcid.org/0000-0002-5602-8534; lattes: 6749653436674174

Gabrielly Cavalcanti de Lima2 
http://orcid.org/0000-0001-9305-7935; lattes: 3395143939484902

1Universidade Federal de Pernambuco E-mail: Raylane.navarro@ufpe.br

2Universidade Federal de Pernambuco E-mail: Gabrielly.cavalcanti@ufpe.br


Resumo

Neste artigo, analisa-se a trajetória formativa e profissional da educadora, nutricionista e militante política pernambucana Yara Lúcia Brayner Mattos (1941–2005). A partir de pesquisa bibliográfica e documental, e com vistas a uma compreensão crítica do processo formativo que desembocou em sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e na sua prisão durante o regime civil-militar, o que se buscou foi contribuir para o tecimento de uma história que reflete a atuação das mulheres a partir de sua relação com a política. A investigação, pautada por aspectos familiar, escolar, cultural e político, permitiu entender que sua participação em agremiações como a União dos Estudantes de Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular e as Ligas Camponesas na década de 1960 a levou à militância no PCB como forma de resistência, de reivindicação dos direitos civis e de enfrentamento de um regime político autoritário e ditatorial.

Palavras-chave: história da educação; história das mulheres; movimento de cultura popular; partido comunista brasileiro; regime civil-militar

Abstract

This article analyzes the formative and professional trajectory of Yara Lúcia Brayner Mattos (1941-2005) an educator, nutritionist, militant and native from Pernambuco politician. This documentary and bibliographical research aims to a critical understanding of the formative process that discharged in Yara Lúcia's militancy in the Brazilian Communist Party (PCB) and in her arrest under a military and civilian regime, this article intent to contribute with a history that reflects the women's performance from their relation with the politics. The investigation for familiar, educational, cultural and political aspects allowed us to understand that Yara Lúcia's participation - in clubs as the Pernambuco Union of Students, the Popular Culture Movement and the Peasants Leagues in the decade of 1960 - had taken her militancy in the PCB as resistance and claim of the civil laws and confrontation of an authoritarian and dictatorial political regime.

Keywords: history of education; women's history; popular culture movement (MCP); brazilian communist party (PCB); military and civilian regime

Resumen

Este artículo analiza la trayectoria educativa y profesional de la educadora, nutricionista y activista política pernambucana Yara Lúcia Brayner Mattos (1941-2005). Partiendo de una investigación bibliográfica y documental, y con miras a una comprensión crítica del proceso formativo que condujo a su militancia en el Partido Comunista Brasileño (PCB) y su encarcelamiento durante el régimen civil militar, se buscó contribuir a tejer una historia que refleje la actuación de las mujeres a partir de su relación con la política. La investigación, guiada por aspectos familiares, escolares, culturales, socioeconómicos y políticos, permitió comprender que su participación en asociaciones como la Unión de Estudiantes de Pernambuco, el Movimiento de Cultura Popular y las Ligas Campesinas en la década de 1960 la llevaron a la militancia en el PCB como forma de resistencia, reivindicando los derechos civiles y a enfrentarse contra un régimen político autoritario y dictatorial.

Palavras chave: historia de la educación; historia de la mujer; movimiento de cultura popular (MCP); partido comunista brasileño (PCB); régimen cívico-militar

INTRODUÇÃO

Historiadores têm se debruçado em estudos e pesquisas sobre a história das mulheres, empenhando-se em desvelar o silêncio que as envolve como sujeitas históricas. Isso porque, no decorrer da história, construiu-se uma lógica de poder que marginaliza ações e narrativas femininas, confinando-as, quando muito, a meras coadjuvantes dos fatos. Hoje, dada a desmistificação dos papéis sociais assumidos pelas mulheres ao longo da história da humanidade, a partir de pesquisas que as têm como objetos de pesquisa, o silêncio e a ausência são compreendidos como uma política de exclusão social, dominada por uma cultura tradicional androcêntrica e patriarcal que insiste em coexistir, mesmo depois de tantos movimentos que revelam as mulheres como seres potentes e partícipes dos processos históricos. Foi com a lógica da exclusão que mitos foram criados em torno das funções e dos papéis femininos, associando as mulheres ao sexo frágil, dependente da figura masculina, e, portanto, à impotência diante de muitas ações que eram entendidas como únicas e exclusivas do homem.

Foi a partir da terceira geração da Escola dos Annales (1968–1989) que os historiadores começaram a utilizar a biografia para compreender os contextos sociais. Nesse momento, foram incorporados outros métodos de pesquisa à história. Nesse sentido, os documentos escritos e oficiais deixaram de ser a única fonte, e novas tipologias foram abarcadas nas investigações, o que incluiu as fontes orais. Desse modo, a história foi ganhando, além de uma nova concepção e novas fontes, novas narrativas que incorporaram sujeitos simples, oriundos, inclusive, de camadas populares até então ignoradas como históricas. Foi desse modo que a história considerou e ampliou o leque de fontes a serem investigadas, e não calcou suas investigações apenas nos “grandes homens” e nos seus “grandes feitos”, priorizados na chamada história tradicional.

Para Michelle Perrot (2007), a Escola fundada por Marc Block e Lucien Febvre permitiu que temas como os que cercavam o universo feminino pudessem ser contemplados na escrita da história. A própria autora dedicou-se às relações das mulheres com o poder ao longo da História, destacando suas sublevações enquanto espaço de atuação e de protagonismo feminino, deixando claro o papel atuante das mulheres como agentes sociais de sua própria história.

É seguindo a mesma lógica de Perrot (2007) que nos movemos, neste artigo, para compreender e elucidar práticas e processos emancipatórios, ações e resistências, e não nos ocupar necessariamente da violência, da dominação e da invisibilidade deixada pela lógica patriarcal sobre uma mulher. Não que esses temas não sejam importantes ou essenciais para a compreensão dos fenômenos históricos, mas porque a lógica que seguimos é a de desvendar as (auto)formações das mulheres ativas e, assim, contribuir para a escrita histórica a partir de histórias como a de Yara Lúcia Brayner Matos, que se formou nutricionista e se forjou educadora e militante política do partido mais emblemático na década de 1960, no Brasil, sendo, por isso, presa durante o regime civil-militar brasileiro.

Ao adotar a abordagem biográfica, partimos do indivíduo para compreender uma determinada época. Isso porque, ao focar no indivíduo, entendemos que este está imerso em relações sociais, ações, valores, entre outros aspectos, possibilitando, assim, que conheçamos o social mediante o individual (DOSSE, 2015). A partir da trajetória (auto)formativa de Yara, buscamos entender como a mulher esteve inserida em questões políticas e, no seu caso em especial, sob o impacto de um regime autoritário que custou, para além da castração de direitos humanos fundamentais, a morte de muitos dos que ousaram pensar diferente do que o que estava instituído politicamente.

Tal movimento nos levou a desentranhar e analisar os percursos e as redes por ela constituídas, o que nos revelou as lutas e os pensamentos forjados a partir da experiência vivida num dado contexto histórico marcado pelo medo e pela violência. Assim, por meio da vida de Yara, buscamos entender, também, um fragmento da história social brasileira. Por meio de sua trajetória, é possível perceber como o sistema social influencia o comportamento do indivíduo e como este afeta a comunidade em que vive, podendo, por isso, ser considerado uma fonte histórica da qual se extrai os aspectos culturais, econômicos e sociais nos quais esteve imerso. Também de sua trajetória é possível captar a sua identidade, forjada a partir da sua rede de relações interpessoais, o que nos ajuda a entender a formação de um determinado grupo social — nesse caso, o de mulheres que enfrentaram regimes políticos autoritários.

Para isso, foram pesquisados materiais bibliográficos e documentais sobre o período em que Yara viveu e atuou no Movimento Cultura Popular (MCP) e Partido Comunista Brasileiro (PCB), bem como nos documentos, nas memórias e na entrevista, concedidas e armazenadas na Coordenação Geral de Estudos da História Brasileira (CEHIBRA) da Fundação Joaquim Nabuco. Essas fontes revelam caminhos, estudos, trajetos formativos e problemas de ser mulher e militante política e cultural no século XX.

TRAJETÓRIA FORMATIVA: DA INFÂNCIA À SUA INSERÇÃO NO ÂMBITO POLÍTICO

Filha de Euclides Brayner, funcionário público federal, e Ismailia Albert Brayner, dona de casa, Yara foi a segunda filha de 5 irmãos. Nasceu em Recife, no dia 13 de abril de 1941, e, desde então, residiu, com sua família, na casa de seus avós maternos, no bairro da Boa Vista. Ali morou com seus pais e com sua irmã mais velha, Iêda, até os 2 anos de idade, e um tempo depois, com mais 3 irmãos, Geilza, Eduardo e Flávio. Quando tinha 4 anos, mudou-se com sua família para Parnaíba, no Piauí, devido ao trabalho do pai, tendo voltado para Recife aos 6 anos. Em 1950, também por causa do trabalho do pai, a família passou a morar em João Pessoa, onde permaneceram até 1955 e, depois, voltaram novamente para Recife, onde ficaram por 2 anos. Nessa passagem pela cidade, Yara estudou no Colégio Regina Pacis, instituição frequentada por filhos da elite econômica da capital pernambucana.

Ao relembrar sua infância, Yara (1986) aponta que foi uma “menina de cidade” e pôde desfrutar de uma “infância tranquila”. Ao rememorar essa fase da vida, ela se transporta para o brincar no quintal e para o bairro da Boa Vista, onde se concentrava uma comunidade judaica. Foi a partir desse contato e das relações com membros da comunidade que conheceu outra cultura, com modos, hábitos e costumes distintos dos até então experimentados por ela.

Em Recife, Yara estudou nos Grupos Escolares Manoel Borba e João Barbalho, escolas que ficavam localizadas no bairro onde morava. Ao relembrar do tempo da escola, a adulta Yara (1986) se considerou uma aluna arguta, esperta e uma menina que se destacava entre as demais, como relata em entrevista concedida à Fundação Joaquim Nabuco, em 1986:

Estudei nesses dois grupos, que são de muita recordação para mim. Era uma aluna muito esperta, tinha a fama de ser a primeira da turma, gostava muito de escrever. Minhas redações, no português, eram sempre consideradas as melhores. A minha imaginação era muito fértil. (MATTOS, 1986, p. 2)

Entre as idas e vindas da cidade de João Pessoa, estudou e terminou o ginásio no Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Ao recordar dessa escola, relata o ambiente rígido e a forte base religiosa cristã, uma vez que se tratava de uma educação baseada em valores, normas e padrões de comportamentos a serem adotados por todas as meninas, o que envolvia uma educação castradora, repressora e disciplinadora. Na visão da narradora, essa educação estava atada a uma perspectiva politica conservadora forjada no Estado Novo (1937-1945) e que oprimia e limitava suas descobertas e saberes sobre o mundo, impedindo-a de sentir e buscar novas sensações.

A doutrinação com base no pensamento anticomunista foi bastante presente durante sua formação escolar primária, uma vez que esta reforçava valores conservadores reacionários, cujo objetivo era espalhar medo sobre a iminente “ameaça comunista”. Tal efeito construiu, criou e propagou imagens estereotipadas e tabus que foram elaborados pelos opositores dos ideais comunistas para combater esta ideologia, que tinha como fundamento político-ideológico a construção de um governo de base popular, inspirado pela práxis marxismo-leninismo, que, entre outras coisas, reivindicava melhores condições para os trabalhadores. O pensamento e as ações anticomunistas, entretanto, alimentavam a ideia de que existia um perigo constante, inclusive dentro do espaço escolar.

Nesse sentido, o “perigo vermelho”, como ficou conhecido o comunismo, ameaçava, segundo alguns religiosos, o sistema de valores cristãos, e, por isso, foram adotadas condutas anticomunistas rígidas. O fato de os comunistas defenderem a extinção da propriedade privada e a distribuição igualitária dos bens e riquezas por parte do Estado, bem como a igualdade entre homens e mulheres, destruindo o conceito tradicional de família (MOTTA, 2002), foi um fator decisivo para a pressão imposta pela Igreja e por conservadores que viam, neste desejo, um mal passível de ser combatido. Assim, a escola, sobretudo a católica, foi um dos meios encontrados para esse combate. Yara (1986, p. 3) descreve uma das situações presentes nos retiros escolares feitos, à época, no “Colégio das Freiras”:

Assustavam-nos com a presença dos comunistas dentro das escolas e perguntavam àquelas crianças de 10, 11 anos, qual a posição que teriam. Os comunistas iam invadir a escola com facões enormes, peixeiras, machados, e iam perguntar se acreditávamos em Deus ou não. Os que acreditassem, a cabeça seria cortada e os que não acreditassem, estariam sob a proteção deles.

Esse clima educativo de combate aos comunistas foi bem difundido pelas instituições educativas, inclusive as de ensino superior. Foi devido a esse clima político, ocasionado pelo regime ditatorial e por um modelo escolar tradicional pautado pela disciplina e pela ordem, que nossa personagem e toda a sua turma escolar foram expulsas do colégio, como relembra em entrevista:

Nossa turma foi expulsa, por uma brincadeira que fizemos no encerramento do ano. Fizemos um boneco e o vestimos com a farda, fazendo uma espécie de trote pelo Colégio e pela cidade. Nesta brincadeira, houve a participação de nossos pais, mas foi considerada, pela direção da escola, como um desrespeito à farda e à tradição do Colégio. Todas fomos expulsas, uma turma de 15 moças. (MATTOS, 1986, p. 3)

Após sua expulsão do “Colégio das Freiras”, Yara passou a estudar em uma instituição pública, o Colégio Estadual de João Pessoa, onde fez o curso Colegial. Foi nele que despertou e simpatizou efetivamente com causas e movimentos sociais que despontavam no país, como a campanha “O petróleo é nosso”, estabelecendo uma relação com a política por meio do contato com pessoas consideradas progressistas. Há de se ressaltar que movimentos como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e pessoas como Monteiro Lobato, que atuaram ativamente no cenário político e intelectual brasileiro, tiveram grande influência na consolidação do monopólio do petróleo e na participação e conscientização da população. Monteiro Lobato, autor de obras de literatura infanto-juvenil e condenado pela Igreja Católica, por exemplo, foi evocado por Yara como alguém que contribuiu significativamente para a sua formação, sobretudo pelas suas posições de defesa da soberania nacional e pelo seu envolvimento com a esquerda e as ideias marxistas. Segundo Yara, a leitura da obra de Lobato a foi encaminhando para sua insatisfação e contestação diante do conservadorismo e para a sua atuação em movimentos educacionais e políticos.

Atuação em movimentos sociais e políticos

Em 1960, Yara, com 19 anos de idade, depois de muitas idas e vindas, teve a oportunidade de sair da cidade de João Pessoa — que, segundo ela, era “provinciana e muito castradora” — e regressar, mais uma vez, para Recife, onde alimentou seu engajamento em questões sociais e políticas. Foi em Recife que fez o vestibular para o curso de Nutrição, que teve a duração de três anos, sendo ela da quarta turma. Durante o curso, seu interesse por atividades políticas foi intensificado, levando-a a participar da formação do Centro Acadêmico da Faculdade, que estava se consolidando, sendo direcionada a participar, junto com Emília Aureliano, da primeira eleição para presidente do Centro Acadêmico, da eleição da União dos Estudantes de Pernambuco (UEP). Essa eleição foi realizada de forma indireta, por delegação, e o candidato que a Faculdade de Nutrição apoiava era Fernando Teixeira, que concorreu com Rui Gordo, apoiado pelo antigo ministro do Gabinete Civil, Marco Antônio Maciel. O voto da delegação da Faculdade de Nutrição foi decisivo para a vitória de Fernando Teixeira, o que rendeu às representantes e, consequentemente, ao curso prestigio político.

À época, houve fortes pressões das forças reacionárias na política estudantil, ocorrendo várias tentativas de aliciamento, compras e ameaças pelo voto — uma prática antiga e utilizada para controlar o resultado das eleições, sobretudo nas cidades de interior com população carente. Sobre esse tipo de prática, Yara rememorou:

Lembro de uma tarde em que fui visitada pela chapa opositora, apoiada pela direita, propondo que eu me ausentasse no dia da eleição. Estava presente um primo meu, estudante de medicina, que apoiava essas forças reacionárias. Ele foi porta-voz, sendo mais velho que eu e com a ligação familiar, achava que eu era uma inocente e que estava caindo nas mãos dos comunistas. (MATTOS, 1986, p. 5)

Mesmo sendo alvo de ameaças veladas, Yara participou das eleições e ajudou na vitória do candidato Fernando Teixeira. Na mesma época, foi eleito representante e participou do II Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), conhecido como Congresso da Quitandinha. Naquele congresso, Yara votou em Vinícius Caldeira Brant, militante político católico, para presidente da UNE. O Congresso, realizado em 22 de julho de 1962, no Hotel Quitandinha, foi marcado por violência. Pessoas ligadas à Frente da Juventude Democrática, movimento anticomunista, soltaram bombas de gás dentro de hotel, mas, apesar do ocorrido, a chapa única da UNE foi eleita e tomou posse. Tal vitória deixou marcas positivas naqueles que lutavam contra qualquer tipo de artimanha política.

Foi ainda dentro do movimento estudantil que conheceu seu primeiro marido, Mário Campos Mattos, na época presidente do Diretório da Faculdade de Engenharia. Nesse movimento, foi convidada por Liana Maria Aureliano para trabalhar no Projeto de Educação para Adultos do Movimento de Cultura Popular. Neste projeto, trabalhou sob a orientação do coordenador Aluísio Costa e junto com Josina Godoy e Norma Coelho, sendo esta fundadora, com seu marido, Germano Coelho, do MCP. Ambas foram autoras da primeira cartilha “Livro de Leitura para adultos”, do Movimento, lançada em abril de 1962.

Yara permaneceu trabalhando no MCP mesmo depois de formada e lá ampliou sua rede de relacionamentos e interesses políticos. O Movimento, com sede no Sítio da Trindade, situado no bairro de Casa Amarela, nasceu na efervescência política da década de 1960, na gestão de Miguel Arraes na prefeitura de Recife, obtendo apoio de grupos de educadores, artistas, militantes políticos, estudantes e outros profissionais que ajudaram a promover a formação das camadas populares, com o objetivo de que estas pudessem participar ativamente da vida política, econômica e cultural de Pernambuco. Para que isso acontecesse, era preciso erradicar o analfabetismo, pois alfabetizando os jovens e adultos numa perspectiva de educação conscientizadora, emancipadora, libertadora, como ensinou Paulo Freire, a lógica da dependência deixaria de existir. Com isso, entendia-se que, somente por meio da educação, se poderia atingir os objetivos que eram almejados, ou seja, que a massa popular se integrasse na política e pudesse promover as reformas políticas.

Assim, segundo seu Estatuto, o Movimento de Cultura Popular foi constituído para “[...] promover e incentivar, com a ajuda de particulares e dos poderes públicos, a educação de crianças e adultos” e “proporcionar a elevação do nível cultural do povo” (ESTATUTO DO MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR, 1960, apudCOELHO, 1986, p. 17). Portanto, era a partir da cultura e da educação de base, com a implementação de festivais de cinema e de teatro, semanas estudantis e festas ligadas à cultura local, que se perseguia o objetivo de conscientizar a população. Além disso, pensaram numa educação das pessoas “[...] que as colocasse numa postura de autorreflexão e de reflexão sobre seu tempo e seu espaço” (FREIRE, 2001, p. 36), pois partia-se do princípio de que, somente quando se conhece a sua realidade social, cultural e política, é possível interferir nela de forma transformadora. Desse modo, o que se almejava era a formação de “[...] cidadãos politicamente ativos ou, pelo menos, politicamente disponíveis para a participação democrática” (FREIRE, 2001, p. 18).

Como fruto da parceria de Miguel Arraes com Luiz Portela de Carvalho, prefeito de Palmares, o MCP começou a sua interiorização. Para tanto, iniciou o processo de implementação de escolas radiofônicas. Foi justamente trabalhando para essa interiorização do MCP que Yara deslocou-se para o interior por um ano, com o intuito de divulgar o Movimento, de criar escolas de alfabetização de adultos e de lançar a campanha política de projeção do então prefeito, Miguel Arraes, para governador. Segundo ela, foi mediante a campanha que teve participação, a nível estudantil, da Frente do Recife — aliança política do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e PCB.

Somadas a essas ações, há várias outras, a exemplo de sua atuação nas Sociedades dos Amigos dos Bairros, ou mesmo na abordagem os problemas sociais da desnutrição, que moldaram sua consciência e seu embasamento político-ideológico, forjando-a militante do Partido Comunista. Yara também participou do comício pró-reformas, junto com lideranças camponesas e com Gregório Bezerra, um dos principais integrantes do PCB. Essa “reunião” realizada em Palmares tinha como finalidade discutir as reformas e as mudanças previstas nas estruturas sociais. Também ministrou, com Gregório, um curso básico sobre marxismo para os campesinos; contudo, não durou muito tempo, pois ao perceber a miséria nos engenhos da Zona da Mata Sul, achou que era completamente fora de propósito a discussão. Tendo em vista as circunstâncias, levou a discussão para a direção do Partido e, assim, foi se engajando e se envolvendo na divulgação, formação e organização do PCB.

Para Yara, o governo de Miguel Arraes, tanto na prefeitura do Recife (1960–1962) quanto no estado (1962–1964), contribuiu e constituiu-se um espaço mais democrático para debater questões sociais, contrárias às formas autoritárias da política brasileira. Ainda na opinião da nutricionista-educadora, o governo Arraes contribuiu para melhorar as condições de vida da população pobre pernambucana por meio de políticas públicas de melhoria do saneamento, água encanada, entre outras ações no estado de Pernambuco. (SANTOS; BARRETO, 2021) Um dos seus apoiadores e da causa da reforma agrária foi o presidente João Goulart, que assumiu a presidência após a renúncia do titular, Jânio Quadros. João Goulart subiu ao poder em 1961, e seu governo foi marcado pelas discussões da reforma de base, pensada para superar o atraso econômico e social, fruto do até então descaso do Estado. As melhorias tinham como objetivo promover mudanças nas estruturas econômicas, sociais e políticas e, entre as principais reformas, estavam a bancária, a tributária, a universitária e a urbana, numa tentativa de reduzir a desigualdade social. Isso se fazia urgente frente aos crescentes números de problemas enfrentados pela população, um deles o analfabetismo, cujo número, segundo o IBGE, em 1960, era de 15,9 milhões de jovens e adultos (39,6% da população nessa faixa etária).

Diante desse cenário, Yara foi atraída pelo entusiasmo das ideias de esquerda do advogado e político Francisco Julião e de outras figuras importantes no cenário intelectual e ideológico de Pernambuco, a exemplo dos militantes políticos, como a professora Socorro Ferraz e Enildo Carneiro Pessoa, que estavam envolvidos com a resolução do problema agrário brasileiro e, por isso, com as Ligas Camponesas. Apesar de ser simpatizante da organização, Yara ressalta questões ligadas à própria linha política da organização e, também, da sua prática, que a fizeram considerar “suas ideias românticas e idílicas” para se adotar como militância. Por esse motivo, seu envolvimento durou apenas um mês.

O movimento das Ligas Camponesas teve como um dos apoiadores, tanto na luta pela Reforma Agrária quanto nas propostas de organização dos trabalhadores, através do movimento sindical, o então governador do estado de Pernambuco, em 1963, Miguel Arraes. Nessa perspectiva, Arraes atentava para os problemas sociais no campo e, desse modo, buscava “solucionar” os desafios da vida dos camponeses. Assim, envolvia-se nas pautas dos sindicatos que visavam à transformação do meio rural, sobretudo a partir da aplicação dos direitos trabalhistas. Isto porque foi meta de seu governo a regulamentação da organização dos sindicatos rurais, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) e a ampliação dos instrumentos de sindicalização. Para Yara (1986), entretanto, o posicionamento de Arraes diante do movimento agrário foi o cumprimento da legislação trabalhista, que foi estendido para o homem do campo, deixando de ser uma legislação corporativista, feita na época do Estado Novo. Por isso, ela considerou Arraes como sendo “papai Arraes”. Segundo Yara:

O governador passou a ter uma relação um pouco freudiana, de pai para filho com o camponês, na medida em que cumpriu apenas a legislação. Regulamentando os salários, aumentou o poder aquisitivo do camponês, que pôde comprar uma bicicleta, um rádio de pilha [...] (MATTOS, 1986, p. 10)

Tais ações fizeram com que o governo de Arraes fosse por abertura maior para os movimentos sociais e uma crescente formação de alianças políticas, como a Frente do Recife, e com as forças democráticas. Do ponto de vista econômico, Arraes teve de enfrentar os problemas decorrentes de governos anteriores. Isso também pode ser dito em relação ao governo de João Goulart, o que levou seu governo a implementar uma reforma de base para recuperar a economia nacional, que tinha sofrido devido à alta inflação do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), resultando no aumento da dívida externa e no alargamento da desigualdade social, entre outros problemas sociais. Contudo, houve uma inquietação do grupo militar — membros da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Consequentemente, Goulart começou a perder apoio dos militares, que tinham e controlavam o poder do voto, a indústria e o monopólio.

Assim, grupos começaram a se formar para conspirar a favor da saída de João Goulart da Presidência da República. Figuras como o banqueiro Magalhães Pinto e o jornalista e político Carlos Lacerda juntaram-se, às vésperas de 1964, para acumular forças, a fim de derrubar e desestabilizar o governo. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) também foi uma das organizações conservadoras, anticomunistas e de direita que atuaram ativamente contra o governo de João Goulart. Foi criado para custear campanhas políticas para candidatos contrários a Goulart. Financiado pela Inteligência Americana (CIA), o IBAD atuou em vários níveis: parlamentar, intelectual, estudantil, entre outros. Sobre isso, Yara (1986, p. 14) comenta:

IBAD foi uma concentração de forças, dinheiro e esforços a nível de reação. [...] para desgastar e desmoralizar com discursos e propostas que não atingissem apenas a classe média, mas as populações menos conscientes ou menos preparadas, divulgando, distorcendo.

Movimentos e resistências anti-golpe foram totalmente isolados, governadores desconheciam o compromisso dos militares com o golpe e foram pegos de surpresas, não tendo tempo para reagir. A situação política se agravou à medida que Goulart perdia apoio político, principalmente após sua tentativa de implementar a reforma que não agradou a oposição — classe conservadora e capitalistas. Nessa linha, destacam-se duas manifestações que desgastaram o governo: a Revolta dos Sargentos (1963) e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964). Depois desses protestos, o golpe depôs o presidente eleito e atravessou a democracia, deixando-a inanimada, enquanto uma nova forma de governo foi instaurada.

As prisões

O regime civil-militar, fruto da união entre civis e militares reacionários, foi decisivo para o início de um governo em que o poder foi controlado pelos militares, que deixaram marcas na estrutura brasileira, principalmente nas classes trabalhadores e nos movimentos sociais de esquerda, os quais não conseguiram se articular e reagir ao golpe. Tal regime se caracterizou como um período político de caráter autoritário, firmado pelas práticas de censura, tortura, sequestro, perseguição e assassinato como formas de reprimir a oposição. Além disso, trouxe drástica perdas aos direitos civis e democráticos brasileiros. Contudo, tais imposições governamentais despertaram movimentos populares que buscaram resistir a essas medidas, visto que estavam pautados pela luta do restabelecimento das liberdades e pelo retorno à democracia. Uma das personagens que lutou pela democracia, resistindo e enfrentando, foi a pernambucana Yara Lúcia Brayner.

A respeito do processo de tomada de poder no dia 31 de março de 1964, em Pernambuco, ao recorrer aos relatos memorialísticos de Yara, ela nos revela como os movimentos sociais estavam isolados para congregar forças e reverter a situação. Na época, ela trabalhava na sede do Projeto de Educação, localizada na Pracinha do Diário, centro de Recife, e ficou sabendo do golpe pelo Jornal do Commercio, no caminho para o trabalho. Na tentativa de obter novas informações a respeito da situação, dirigiu-se para a Pracinha, depois para o Arraial do Bom Jesus e, por fim, para o Quartel da Polícia Militar, no qual o próprio Comando Militar não tinha conhecimento de quem eram os soldados que estavam à sua disposição.

Com apenas 10 dias de implementação do regime, Yara Brayner foi presa para averiguação de atividades subversivas junto com outros militantes e/ou simpatizantes políticos do comunismo. Isso incluiu o próprio Arraes e vários outros políticos membros das forças da esquerda, logo, contrários ao novo regime autoritário. À época, pequenos grupos de resistência foram formados, com o objetivo de arregimentar forças da esquerda e reverter a situação. Ocorreram agrupamentos de forças da esquerda do PCB, como a Ação Popular e a Organização Revolucionária Marxista Política Operária, que tinham o intuito de enfrentar e resistir à ditadura; porém, ficou clara a falta de organização, de preparo e de coordenação entre os membros. Os partidos políticos tentaram elaborar um comando conjunto, na tentativa de modificar a circunstância política, no entanto poucas pessoas iam às reuniões pelo medo das práticas repressivas dos militares. Algumas lideranças foram perseguidas e presas, como a professora e líder das Ligas Camponesas Maria Celeste Vidal e Gregório Bezerra, que, em ato desumano e sob a alegação de servir de exemplo aos pretensos revolucionários, foi espancado nas ruas do Recife para que todos vissem. (BARRETO e NASCIMENTO, 2021)

Yara (1986), entretanto, foi levada à Secretaria de Segurança Pública, onde permaneceu dez dias presa na sala do delegado, sofrendo tortura psicológica. Na prisão, teve ao seu lado os companheiros Armando Marques, que era professor, e o candidato a senador, Barros Barreto. Yara foi acusada de retirar o mimeógrafo do Movimento de Cultura Popular, contendo conteúdo “subversivo”, sendo, por isso, uma das acusadas de incitar a rebelião. Também foi acusada de fazer parte da Sociedade Cultural do Brasil-URSS, para a qual, segundo o inquérito, contribuiu monetariamente de março a julho ou agosto de 1963 (PERNAMBUCO, 1964). Foi denunciada e identificada na Secretaria da Segurança por Agenor Peixoto e Carlos Alberto Oliveira, pessoas que atuavam no movimento estudantil. Somando-se a essas ações, assinou o “Manifesto ao Povo” em 1962, solidarizando-se com o povo cubano e defendendo a não interferência das Nações Estrangeiras contra Cuba (PERNAMBUCO, 1964).

Na prisão, foi interrogada pelo secretário de segurança pública Armando Samico, que tinha o intuito de levá-la a denunciar e revelar o esconderijo de figuras expressivas da política, como do seu então noivo Mário Campos Mattos. Interrogatórios seguidos à base de ameaças e de perturbação da condição psicológica não foram suficientes para a delação, e o delegado Alvaro Gonçalves de Costa Lima pediu a transferência de Yara para a Colônia de Mulheres Delinquentes, juntamente com Selma Pires Guerra, presa pelo mesmo motivo (PERNAMBUCO, 1964). Ela conseguiu sair da prisão com a ajuda do seu pai, que tinha contatos com figuras notórias, como o deputado Elpídio Branco, além de ser maçom e ter contato com o general Costa Lima.

Após sair da prisão em abril de 1964, se casou, por procuração, com Mário Campos Mattos, em junho do mesmo ano. Isso porque seu noivo, como ressaltado, estava sendo procurado e ameaçado por Alvaro Costa Lima, delegado do DOPs. Esse é o motivo pelo qual saíram de Recife por um tempo. Ao voltarem para Recife em agosto de 1964, depois de terem vivido em Fortaleza e Teresina, ambos foram denunciados por um companheiro que foi preso, torturado e violentado, situação que os colocou sob vigília, mas nada a mais lhes aconteceu. Neste interim Yara foi morar numa vila operária no distrito industrial de Igarassu, onde seu marido trabalhou na Companhia Agroindustrial de Igarassu, propriedade do então senador da República, o empresário José Ermírio de Moraes.

Yara, por sua vez, continuou a se fazer presente nos espaços políticos em que escolheu atuar. Foi no papel de militante que sua resistência foi exercida, sobretudo por meio de brechas encontradas no sistema político. Assim, se engajou em um trabalho de assistência aos presos políticos e, com isso, constantemente visitava a prisão, tentando amenizar os sofrimentos daqueles que eram presos e torturados. Não obstante, tais visitas também eram um pretexto para discutir políticas dentro da Casa de Detenção (CDR), principal penitenciária de Pernambuco. Nesse período, se aproximou ainda mais de Gregório Bezerra, com quem, como já aludido, compartilhava ideias e ações.

Em 1966, participou, no PCB, de discussões sobre o caráter do golpe e o caminho a ser seguido. Em 1967, os comunistas conseguiram organizar o seu VI Congresso, no qual traçaram uma grande movimentação em relação ao destino que o partido seguiria, o que incluía a reação contra o regime ditatorial instalado no Brasil. Nesse tempo, Yara foi procurada por representantes de uma das tendências comunistas que havia no país — neste caso, pelas pessoas ligadas a Mariguella, Antônio Paulo Carvalho e Mário Alves —, que pretendiam formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Uma parte significativa defendia a luta armada como fator decisivo na derrocada da ditadura.

Nesse mesmo ano de 1967, Yara (1986) foi surpreendida com a morte do seu marido num acidente de trabalho, em uma filial da empresa na cidade de Aracaju. Foi nesse momento de tristeza e luto que se tornou vulnerável ao chamamento para entrar na posição mais radical e sectária, o que abarcava a guerrilha, mas voltou a atuar politicamente na área da juventude. Isto porque depois do falecimento do seu marido, passou a trabalhar, a convite de José Ermírio, para a Companhia Agroindustrial de Igarassu, onde começou a prestar serviço social e político para os jovens operários da fábrica. Esta era uma atividade que ela desenvolvia junto com os trabalhadores, alguns comunistas e as lideranças universitárias, na tentativa de agrupar e organizar as pessoas do Partido em Pernambuco.

No mesmo período, se envolveu em outro projeto, o Cooperarte, que era uma Cooperativa de Arte ligada à Igreja e ao Bispo Dom Helder Câmara, conhecido, entre outras lutas, pela sua ação contra a ditadura. Era um órgão social para atuar dentro das usinas de açúcar, direcionado para o trabalho de alfabetização e de assistência. Esse órgão era financiado pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e pelas Cooperativas dos Usineiros, formados por grupos de usineiros e empresários de pequenas e grandes indústrias. Os usineiros eram ligados à Igreja e a Dom Helder, que montou esse órgão para atuar dentro das usinas de açúcar. Lá realizaram trabalhos assistenciais e de alfabetização. Nas palavras de Yara, todos que trabalhavam dentro da usina foram mandados embora e a fecharam.

Yara foi presa novamente em 1969, no Rio de Janeiro, porque “foi resolver assuntos familiares” e “participar de uma reunião levando uma mensagem”. Passou um ano na prisão, de 1969 a 1970, sob fortes agressões psicológicas e torturas físicas, sendo acusada de “pombo correio” da militância e de fazer ligações do Nordeste com o Sul do país. Ao rememorar sua prisão, conta:

Fui levada ao DOPS, no Rio de Janeiro [...] Depois transformaram em DOI-CODI, antigamente era CIE - Centro de Informações do Exército. Foram eles os autores e estupradores. Não foi bem dentro da polícia: fui torturada fora, numa casa de Petrópolis. (MATTOS, 1986, p. 21)

Na prisão, ela conheceu Beatriz, que era funcionária das Páginas Amarelas, formando uma amizade que lhe rendeu, 5 anos depois, um emprego de vendedora quando foi solta em fevereiro de 1970 e voltou para o Recife em busca de trabalho. Entre 1974 e 1975, conseguiu escapar da famosa queda do Partido Comunista Brasileiro. Nesse período, o PCB foi alvo da mais violenta repressão, quando 10 membros foram assassinados pelos militares e vários dirigentes foram forçados a deixar o país, fugindo da repressão. Foram mortos: Davi Capistrano da Costa, Luís Inácio Maranhão Filho, João Massena Melo, Válter Ribeiro, Elson Costa, Jaime do Amorim Miranda, Hiram Lima Pereira, Itaci José Veloso, Orlando Bonfim Júnior e Nestor Veras (ABREU, s.d.).

Anos depois, em 1978, com seus 37 anos, Yara mudou-se para Moçambique, país que tinha acabado de ficar independente, e lá participou de um programa nacional que objetivava buscar cooperantes para ajudar o povo na reestruturação do governo moçambicano. Trabalhou na condição de nutricionista no Ministério da Saúde do país, sendo responsável pela elaboração de uma alimentação adequada e saudável aos moçambicanos. Ficou em Moçambique até 1980, quando se instalou na cidade de São Paulo, onde trabalhou com Paulo Freire no governo de Luiza Erundina. (YARA, 1986)

Em 1982, Yara integrou a comissão de creche da Universidade de São Paulo como membro e como nutricionista. Nesse mesmo período, teve uma participação ativa no Comitê Central do PCB, sendo, mais uma vez, presa em dezembro de 1982, durante a realização do conturbado Seminário do Partido Comunista. Sua prisão se efetuou mediante o que pregava a Lei de Segurança Nacional, ou seja, ela foi considerada traidora da pátria (MATTOS, 1986). Entretanto, já com a abertura política em 1985, passou a se dedicar à gestão de creches no estado de São Paulo, onde foi diretora da Creche Central e, depois, de outras creches das cidades de Ribeirão Pedro e Bauru. Em 1998, foi nomeada vice coordenadora da Coordenadoria de Assistência Social da Universidade de São Paulo (COSEAS), na qual também assumiu outros cargos administrativos, bem como fez pesquisas nas áreas da educação e saúde.

O estudo da sua trajetória, que não se encerra nessas páginas, nos leva para além das causas defendidas por ela em função de um país justo e democrático, as formas encontradas para tal intento e suas consequências. Tais características, que perpassam a vida familiar, as escolhas políticas e as redes de relacionamentos que foram construídos ao longo da vida, ajudam a compreender um lado da história política e formativa de mulheres que se enredaram na participação política partidária. A partir disso, podemos entender o motivo de tais percursos ajudarem a desmistificar a tradicional ideia inventada de a mulher como ser passivo e submisso ao longo da história. Por certo, o estudo da vida de Yara, encerrada com sua morte em 2005, é um desses caminhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar a trajetória de vida de Yara Lúcia Brayner Mattos, vinculada ao PCB, e atentar para as suas ações e atuações na resistência contra um regime opressor, percebemos seu envolvimento em instâncias formativas que a forjaram ideológica e politicamente, como nos casos do MCP e do PCB, para além da formação escolarizada. Investigando a constituição de sua rede de sociabilidades, também observamos as táticas para enfrentar e se opor a um regime político repressor. Desse modo, ao conhecer a trajetória de vida de Yara, sob a ótica de Dosse, para quem os estudos biográficos dotam o historiador de elementos para pensar o seu tempo, conseguimos enxergar a presença da mulher no enfrentamento da ditadura militar, que era não apenas uma opositora ao regime, mas um “sujeito político” (COLLING, 2004) que agiu, reagiu, resistiu e contribuiu para o ideário de um sistema democrático. Essas constatações nos permitem desconstruir a ideia de participação mínima da mulher na esfera política e mais que isto, permite entender como o regime autoritário as impactaram, as forjaram, ora demandado táticas, ora incitando sublevando, ora despertando modos de ser e de se constituir mulher. Trazer para as páginas da história das mulheres uma mulher com ideais marxista, leninista e comunista, que militou desde a sua juventude em prol de um modelo político, é reconhecer a entrada das mulheres no “espaço público, político, masculino, por excelência” (COLLING, 2004, s/p). Tais considerações nos levam a concluir que precisamos desvelar mais histórias de mulheres para contribuir para uma história mais plural e, por extensão, democrática.

1Este artigo faz parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto de “A relação mulheres - educação e regime político autoritário no nordeste do Brasil (1964-1978) financiado pelo edital CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021. Para a revisão contou com recurso Capes/Proap-Ufpe.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Junho de 2022

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