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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./sept 2022  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67448 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

VIOLÊNCIA E O CRIME EM LEGÍTIMA DEFESA: resistência e transgressão de Amélia dos Santos (1921)

VIOLENCE AND CRIME IN LEGITIMATE DEFENSE: resistance and transgression of Amélia dos Santos (1921)

VIOLENCIA Y EL CRIMEN EN LEGÍTIMA DEFENSA: resistencia y traslado de Amélia dos Santos (1921)

Laura Maria Silva Araújo Alves1 
http://orcid.org/0000-0003-2936-605X; lattes: 6009592378453661

Telmo Renato da Silva Araújo2 
http://orcid.org/0000-0003-4115-1668; lattes: 9817032475771593

Elianne Barreto Sabino3 
http://orcid.org/0000-0002-2593-0402; lattes: 9302207290830081

1Universidade Federal do Pará (UFPA) E-mail: laura_alves@uol.com.br

2Universidade do Estado do Pará (UEPA) E-mail: trsaaraujo@hotmail.com

3Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) E-mail: eliannesabino2018@gmail.com.br


Resumo

Este artigo analisa os autos do processo judicial de Amélia Moreira dos Santos, ocorrido em 1921, na cidade de Inhangapy, no estado do Pará. Amélia dos Santos – mãe de dois filhos, pobre, sem instrução –, foi acusada de matar seu companheiro Manoel Canuto Limeira. Vivendo uma relação abusiva e de violência, Amélia dos Santos era considerada pelas testemunhas mulher trabalhadora, boa esposa, dedicada ao lar e aos filhos; já para a justiça uma pessoa desqualificada e sem índole para criar seus filhos. Amélia dos Santos, a ré, vai a júri popular por três ocasiões sendo absolvida por legítima defesa. Amélia dos Santos viveu em um contexto social que, apesar de estabelecer um discurso de moralidade a respeito da figura feminina, ainda reverberava o poder masculino. Além disso, um judiciário reprodutor de um discurso impositivo de conceitos e estereótipos de gênero. O caso criminal de Amélia dos Santos acaba por revelar, de um lado, à violência sofrida por muitas mulheres na capital do Pará no início do século XX e, de outro, que elas não tinham nenhuma política social de amparo contra a violência. Contudo, embora diante do patriarcalismo e uma justiça machista, Amélia dos Santos resistiu e transgrediu as normas vigentes dando final a uma relação conjugal abusiva.

Palavras-chave: mulher; violência; gênero

Abstract

This paper analyzes the case file of Amélia Moreira dos Santos, which took place in 1921 in the city of Inhangapy, in the Pará state. Amélia dos Santos – a poor, uneducated mother of two – was accused of killing her partner Manoel Canuto Limeira. Living in an abusive and violent relationship, Amélia dos Santos was considered by the witnesses as a hardworking woman, a good wife, dedicated to her home and children, already, for justice, an unqualified person and without character to raise her children. Amélia dos Santos, the defendant, goes to the jury on three occasions and is acquitted for self-defense. Amelia dos Santos lived in a social context that, despite establishing a discourse of morality regarding the female figure, still reverberated male power. In addition, a judiciary that reproduces an imposing discourse of gender concepts and stereotypes. Amélia's dos Santos criminal case ends up revealing, on the one hand, the violence suffered by many women in the capital of Pará at the beginning of the 20th century and, on the other hand, that they had no chance of defense and no social policy to protect against violence. However, despite facing patriarchalism and sexist justice, Amélia dos Santos resisted and transgressed the current norms, ending an abusive marital relationship.

Keywords: woman; violence; gender

Resumen

Este artículo analiza el expediente de la demanda de Amélia Moreira dos Santos, ocurrida en 1921 en la ciudad de Inhangapy, en el estado de Pará. Amélia, madre de dos hijos, madre pobre, sin instrucción, fue acusada de matar a su pareja Manoel Canuto Limeira. Viviendo una relación abusiva y violenta, Amelia dos Santos fue considerada por los testigos una mujer trabajadora, una buena esposa, dedicada al hogar y a los hijos, ya para la justicia una persona descalificada y no calificada para criar a sus hijos. Amélia dos Santos, el anuncio, acude a un jurado popular en tres ocasiones y es absuelta por defensa propia. Amélia dos Santos vivió en un contexto social que, a pesar de establecer un discurso de moralidad sobre la figura femenina, aún reverberaba el poder masculino. Además, un reproductor judicial de un discurso imponente de conceptos y estereotipos de género. El caso penal de Amélia dos Santos termina revelando, por un lado, la violencia sufrida por muchas mujeres en la capital de Pará a principios del siglo 20 y, por otro, que no tenían ninguna posibilidad de defensa ni una política social para apoyar la violencia. Sin embargo, aunque frente al patriarcado y la justicia machista, Amélia dos Santos resistió y transgredió las normas actuales al poner fin a una relación matrimonial abusiva.

Palavras chave: mujer; violencia; género

À GUISA DA INTRODUÇÃO

A letra da canção “Ai que saudades da Amélia”, composta em 1942, por Ataulfo Alves e Mario Lago, tornou-se um dos sambas mais emblemáticos sobre a mulher do século XX. A composição na primeira estrofe traz a narrativa de duas mulheres completamente diferentes: a primeira, uma mulher vaidosa e leviana que faz “exigência” e “não sabe o que é consciência”, só “pensa em luxo e riqueza”, além de ser fútil, pois “tudo o que vê, quer”; a segunda, uma mulher chamada “Amélia” compreensiva e submissa ao homem e que aceita as privações por amor. Numa posição financeira humilde, a Amélia de Ataulfo Alves e Mario Lago passava fome e na condição de subserviência ao seu companheiro se conformava em “não ter o que comer”, e quando ela via “o pobre rapaz” (seu companheiro) contrariado, dizia-lhe: “meu filho, o que há de se fazer?

O narrador ao comparar as duas mulheres, nas estrofes seguintes, diz que “Amélia que era mulher de verdade”, pois a força de expressão dada a essa mulher era de conformismo, já que ela “achava bonito não ter o que comer”, no mais “Amélia não tinha a menor vaidade”, e finaliza destacando que a “Amélia que era mulher de verdade”. Os referidos compositores acabaram por imortalizar um malandro (pobre rapaz) que enaltecia uma mulher (Amélia) que abdicava a tudo, principalmente, a uma vida de luxo e se conformava com uma vida pobre que ele lhe dava.

A canção de Mario Lago e Ataulfo Alves retrata metaforicamente o perfil de uma mulher que se constituiu nas primeiras décadas do século XX. Amélia era, de um lado, subserviente ao marido e às imposições morais e sociais decorrentes de uma sociedade patriarcal1, e de outro, uma mulher silenciada, oprimida e atravessada pela obediência e anulação de si. Mulheres desse tempo eram atravessadas por um contexto histórico e cultural de imposição e submissão do marido. A elas restavam somente uma postura de resignação. A dominação masculina estava atrelada à condição de poder, fruto de um sistema patriarcal enraizado na sociedade brasileira que colocava a mulher na condição de subserviência ao homem.

A Amélia ficcional da canção de Mario Lago e Ataulfo Alves tem relação direta com Amélia dos Santos, de “carne e osso”, que morava em um pequeno lugarejo no interior do estado do Pará. Era uma mulher jovem, na “flor” de seus 26 anos, mãe de duas crianças pequenas e que foi acusada de matar seu companheiro Manuel Canuto, em 1921. O homicídio chocou não somente o pacato Distrito de Inhangapy no nordeste do estado do Pará, mas principalmente as autoridades locais, já que era pouco comum a violência de mulher contra seu companheiro. Amélia dos Santos, dentro de uma perspectiva jurídica, foi uma mulher transgressora ao seu tempo. Entre as duas mulheres há elementos históricos, culturais, sociais e educacionais que as aproximam. Ambas apresentam personificação de uma mulher submissa e subserviente ao marido.

O crime cometido pela jovem Amélia dos Santos teve uma repercussão não somente no lugarejo, mas, principalmente, na capital do Pará, em razão da complexidade do crime que ao longo de anos teve reviravoltas sobre a condenação da jovem esposa na comarca de Belém. A acusada foi inicialmente condenada pela justiça pelo crime e posteriormente absolvida por legitima defesa, já que a justiça entendeu que a ré sofrera por anos a violência do companheiro.

Amélia dos Santos, mãe de dois filhos menores, não sabendo ler e escrever, desenvolvia atividades voltadas para serviços domésticos em casas de famílias mais favorecidas economicamente. É sabido que o serviço doméstico era o principal reduto ocupacional das mulheres pobres no início do século XX no Pará. Geralmente, essas mulheres realizavam ocupações relacionadas à serviços de limpeza, lavadeiras, cozinheiras, tacacazeiras, costureiras, engomadeiras, vendedora de frutas, flores etc. Segundo Sarges (2010, p. 54), com a expansão da pobreza, da urbanização e do aburguesamento da cidade de Belém, no início do século XX, as mulheres pobres e analfabetas começaram a ocupar o trabalho doméstico e serem vítimas de preconceitos de uma sociedade que menosprezava esse tipo de atividade. Era um “[...] trabalho físico, que depende do corpo, pouca qualificação e pouco mecanizado apesar das mudanças contemporâneas. O pano, a pá, a vassoura, o esfregão continuam a ser seus instrumentos mais constantes” entre as mulheres (PERROT, 2007, p. 115).

Mesmo com o declínio da economia da borracha, o trabalho doméstico ainda estava em expansão no Pará, sendo realizado por mulheres negras, ex-escravas, migrantes nordestinas e demais mulheres pobres que tiveram que buscar outras formas de sobrevivência e viram no trabalho informal a possibilidade de tentar conseguir o sustento da família. Nos finais de século XIX e início do século XX, o mercado de trabalho feminino perpassava pelas perspectivas racionais e morais dentro da sociedade. As senhoras que empregavam mulheres para o serviço doméstico, por exemplo, muitas vezes não admitiam no seio de sua família a presença de mães solteiras, mulheres que estabeleciam laços de afetividade fora do casamento e moradores de cortiços e casas de cômodos, nas quais viviam sem suas famílias (TRINDADE, 1997).

Para Chalhoub (2012), o trabalho remunerado da mulher pobre, como Amélia dos Santos, em geral, era uma extensão das suas funções domésticas, sendo realizado dentro de sua própria casa ou na casa da família que a empregava. Sendo assim, era relativamente fácil para essas mulheres arrumarem uma locação como lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, quituteiras, entre outras.

Nos autos do processo criminal de Amélia dos Santos, há materializada uma estratégia de poder da sociedade e do judiciário que torna o caso criminal bastante emblemático por duas razões: a primeira é que a época os crimes contra mulheres eram recorrentes, tanto que no acervo do judiciário do estado do Pará − que está sob a guarda do CMA (Centro de Memória da Amazônia) − há diversas tipificações de crimes contra a mulher, entre os anos de 1905 a 1925, como defloramento, ferimentos leves, apropriação indébita, ameaças, injurias verbais, assassinatos entre outros.

Em vista disso, o presente artigo analisa a violência e a relação abusiva materializada nos discursos dos autos de crime de homicídio de Amélia dos Santos contra seu companheiro Manoel Canuto, ocorrido no distrito de Inhangapy no Pará, em 1921. Para construção analítica, questionamos: Qual a motivação da violência praticado pela ré contra seu companheiro? Que aspectos discursivos sobre a mulher se constituíam nos anos 1920 no Pará? Que concepção de mulher estava discursivamente materializada sobre a Amélia dos Santos nos depoimentos das testemunhas, autoridades policiais e tribunais judiciais? Qual a resistência e transgressão de Amélia dos Santos diante de uma sociedade patriarcal que a condenou inicialmente e depois a absorveu do crime?

Como referencial teórico sobre gênero, dialogamos com Trindade (1997), Pinsk (1995), Scott (1995), Louro (1997), Soibet (2004), Perrot (2007), Ginzburg (1912) e Faria (2014). Com relação à discussão sobre violência contra mulher destacamos Araújo (2008), Bandeira (2014), Foucault (1979) e Sanches (2009). Sobre patriarcalismo buscamos Matos (2010), Bourdieu (2012) e Chalhoub (2012). Para análise do contexto histórico do século XIX e XX no Pará e o papel da mulher na sociedade trouxemos Cancela (2006) e Sarges (2010).

Para melhor balizar a análise o processo criminal de Amélia dos Santos, dividimos o artigo em três partes. Na primeira fazemos uma discussão sobre a violência contra a mulher nos séculos XIX e XX destacando os aspectos históricos, sociais, culturais e educacionais na formação feminina, além de reflexo do patriarcalismo e a violência sofrida por mulheres em ambientes do lar; na segunda apresentamos uma discussão sobre o enfrentamento dessa violência no século XX e a questão da violência de gênero no caso criminal de Amélia dos Santos; na terceira parte, a partir dos pormenores do caso criminal de Amélia dos Santos, analisamos os discursos que estão materializados nas testemunhas e autoridades damos ênfases ao discurso de legitima defesa, as relações abusivas e o discurso da justiça até chegar a absolvição da ré.

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NOS SÉCULOS XIX E XX: HISTÓRIA, CULTURA E EDUCAÇÃO

A violência contra a mulher não é um tema da nossa contemporaneidade. É um fenômeno recorrente no contexto da História das Mulheres, independente da época, nível socioeconômico e cultural. Desta forma, esta prática, que faz refém à mulher no ambiente doméstico é atemporal, pois não está relacionada a uma determinada época ou período da nossa história, muito menos a uma classe social específica. No contexto brasileiro, a violência contra a mulher tem uma relação atrelada a uma prática cultural machista que perdura desde o Período Colonial. Diante de uma sociedade moralista e patriarcal, o homem era concebido como o senhor absoluto e, em caso de adultério, por exemplo, cabia ao marido buscar a sua honra.2

A violência contra a mulher é parte da cultura herdada de uma sociedade excludente, preconceituosa e extremamente disciplinadora, que aceitava a violência como forma de controle e disciplina da mulher. A partir do discurso religioso e do controle patriarcal, o casamento era a única alternativa para mulher ser respeitada socialmente. Casar, ter filhos e servir à família era o projeto destinado a elas nas primeiras décadas do século passado. Havia, recorrentemente, de um lado, casamentos fracassados em que a mulher se submetia a viver uma relação infeliz por anos; de outro, o fim do casamento muitas vezes não era aceito pelo homem. Era inevitável um conflito conjugal, pois acabava geralmente em um fim ameaçador, com episódios de violência, sobretudo, por parte do marido que não aceitava o fim do relacionamento. A situação se agravava mais ainda se acontecia o adultério.

No contexto dos séculos XIX e XX, a mulher enfrentava uma sociedade moralmente controladora e silenciada. Havia um código de educação que determinava a conduta social e moral das mulheres em todas as classes sociais. Contudo, as mulheres trabalhadoras da camada social mais baixa transgrediam naturalmente a boa parte dos códigos morais e sociais. Elas transitavam pelas ruas das cidades sozinhas e em horas impróprias em razão das atividades que exerciam para se sustentarem. Elas não sabiam ler nem escrever e não estavam limitadas ao ambiente carregado de privações em razão de serem mulheres que trabalhavam fora do seu lar.

Nos processos criminais do século XIX e início do XX há também materializados a situação de violência contra mulher, porém muitas mulheres se rebelavam contra os maus tratos e outras formas de violência que estavam submetidas. Soibet (2004), em um levantamento feito sobre a violência entre mulheres pobres em zona urbana do Rio de Janeiro (1890-1920), destaca que as mulheres, ao contrário do usual, se insurgiram contra a violência sofrida pelos companheiros, mostrando que as mulheres das camadas populares não ficavam caladas. A autora traz à baila casos de mulheres que mataram os companheiros desencadeando nestas vítimas a violência proporcionalmente sofrida durante anos de maus tratos, humilhações, opressões, autoritarismo, controle e submissão. As queixas das mulheres eram principalmente ao estado de embriaguez dos companheiros.

A violência era muito presente nos segmentos populares de mulheres trabalhadoras face às mazelas de uma sociedade que via o sexo feminino sob a égide de um sistema de opressão e repressão. Embora no início do século XX houvesse uma concepção de mulher submissa, recatada, delicada e frágil, as mulheres populares, em geral, não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino das camadas mais elevadas da sociedade, pois eram mulheres que trabalhavam muito e não seguiam os padrões morais impostos. Segundo Soibet (2004), as mulheres das camadas populares eram vítimas de violências físicas e verbais em ambientes privados. No mais, a sociedade e a justiça entendiam que os homens agiam por um impulso passional para justificar o crime contra a honra. Cabia também ao homem desmoralizar a mulher alegando às vezes de que ela não tinha princípios morais para cuidar e educar os filhos.

O CASO CRIMINAL DE AMÉLIA MOREIRA DOS SANTOS: ENTRE O TERÇADO E O PUNHAL

Nos interiores do Pará eram recorrentes casos de mulheres que não aceitavam passivamente a violência praticada por seus companheiros. Elas não ficaram caladas, como no caso de Amélia dos Santos que matara seu companheiro em 1921. Vamos aos pormenores do crime, a cena e o cenário que vitimou seu companheiro Manoel Canuto.

Era noite de sexta-feira, dia 2 de setembro de 1921, “[...] num recuado recanto longínquo do districto de Inhangapy no Pará, dentro do silêncio e da treva de uma noite fatídica” 3 que a jovem Amélia dos Santos matara seu marido Manoel Canuto. Eram aproximadamente dez horas da noite quando Amélia dos Santos atravessara aflita e ligeiramente a Praça São Vicente Ferrer, no centro do pacato distrito de Inhangapy, indo até a casa dos vizinhos Indalescio Duarte Gomes e João Ferreira Gonçalves4 e dissera que acabava de assassinar seu marido. Solicitava desesperadamente que salvassem seus dois filhos pequenos. Prontamente Indalescio e João dirigiram-se − junto com Amélia dos Santos a sua residência −, até então os primeiros a chegar à cena do crime, onde verificaram que Manoel Canuto, marido de Amélia dos Santos, estava morto, banhado em sangue e deitado em uma rede com parte do corpo para fora e outro para dentro.5

Na noite do crime aconteceu uma forte discussão entre ambos, pois Manuel Canuto queria forçá-la a participar de um furto na residência de um vizinho. Amélia dos Santos recusa a praticar o delito e diante da negativa da companheira, Manuel Canuto se enfurece, partindo para agressão. Na observância da cena do crime, as autoridades notaram o nervosismo de Amélia dos Santos diante da insistência dos policiais em saber as reais motivações do crime. Diante do interrogatório, as autoridades policiais passam a indagá-la sobre a veracidade dos fatos e a verdadeira motivação do assassinato do seu companheiro. Amélia então confessa as autoridades policiais que tinha matado seu marido Manuel Canuto em razão de uma vida conjugal de violência e opressão.

Nos autos de declaração feitos pelo policial Manoel Duarte Gomes, Amélia dos Santos confessa que foi a autora do assassinato de seu próprio marido, que havia praticado este crime em vista de já não poder suportar cotidianamente os maus tratos, violência física e verbal e humilhações que recebia do seu companheiro. Na noite do crime ela e seus filhos foram ameaçados de morte por ele em razão da sua recusa em participar de um furto de porcos na residência do professor João Coelho de Encarnação, vizinho do casal.

Diante do que foi narrado por Amélia dos Santos foi notório que ela vivia uma relação permeada por agressões, físicas ou verbais por parte de um marido violento, alcoólatra e com atitudes criminosas. Quando afirma que no calor da discussão Manoel Canuto armou-se de um terçado e a atacou, desferindo vários golpes, foi quando Amélia dos Santos resolveu “[...] por termo a tão cruel soffrimento e quasi louca resolveu a matar ou morrer e assim poude lançar mão de um punhal d’elle e desfechou-lhe o golpe [...]”. A violência praticada por Amélia dos Santos, contra seu agressor, e agora vítima, foi produzida e reproduzida por relações de poder, ou seja, Amélia dos Santos revida os atos violentos deferidos a ela pelo agressor, seu marido Manoel Canuto. Porém, neste caso a ordem masculina foi invertida. A mulher não é por natureza dominada, pois oferece resistências às situações impostas, isto estimula a perceber que a mulher possui seu campo de poder e o exerce também, mesmo em graus menores (FOUCAULT, 1979).

Ao ser indagada, pelo subprefeito Alfredo Monteiro, do “por que” do motivo de ter cometido o crime, Amélia, a acusada, afirmara que “[...] foi pelo motivo de saber que elle a perseguiria até matal-a, [...] que mais tarde ou mais cedo seria assassinada [...], foi levada a cometer semelhante crime, já não tanto por si como por seus filhinhos pois além de viverem quase nus como pela necessidade que passavam, pois a única profissão que seu marido exercia actualmente era o do roubo com qual queria sustentar a si e seus filhos”. A partir da resposta de Amélia é possível constatar o medo que ela sentia dos comportamentos delituosos de seu companheiro e que tantas outras mulheres têm da perseguição do seu agressor e, principalmente, da ameaça de morte aos filhos.

Um fator que leva a mulher a permanecer em uma relação abusiva é a internalização da dominação masculina como algo natural. Contudo, conforme Araújo (2008), outros fatores também são frequentes, entre eles a preocupação com os filhos. Nos casos de violência de gênero podemos pensar que, embora a dominação masculina seja um privilégio construído historicamente e deixado pela sociedade patriarcal aos homens, nem todos a utilizam da mesma maneira, assim como nem todas as mulheres, em diferentes contextos, se submetem igualmente a essa dominação. O poder se articula segundo o “campo de forças”, e se homens e mulheres detêm parcelas de poder, embora de forma desigual, cada um lança mão das suas estratégias de poder, dominação e submissão.

No caso de Amélia dos Santos, essa relação de forças se manifestava no poder masculino de Manoel Canuto que a queria forçar a todo custo à participação no furto. Os dez anos de relação conjugal com Manoel Canuto foram provavelmente marcados por uma relação de poder consolidada na violência interpessoal, condicionada pela “dissimetria de poder” no âmbito do ambiente privado (BANDEIRA, 2014). Essa dissimetria ocorre no contexto interpessoal do cotidiano familiar. Ela condiciona a “violência de gênero”.

O poder que o homem tem sobre a mulher é o fator preponderante para lhe dar o “direito” de agredi-la por qualquer motivo (ARAÚJO, 2008). Coação, humilhação, imposições, jogos de poder que Manoel Canuto estabelecia com sua companheira são “ações que caracterizam transgressões dos valores morais”, pois é uma violência psicológica ou emocional que no contexto privado é silenciosa para a mulher. Geralmente, “[...] a mulher na condição de violência6 permanece coagida a um relacionamento baseado, muitas vezes, na dependência financeira e emocional, levando a efeitos cíclicos de violência” (FONSECA, 2012, p.308). Nesse sentido, o caso de Amélia dos Santos, enquadra-se na definição de gênero, já que o núcleo essencial da definição de gênero “[...] baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p. 21).

O fenômeno da violência acaba por promover sofrimento psíquico na mulher que com o passar do tempo se naturaliza no ambiente familiar. Esse sofrimento produzido pelas constantes agressões vai tomando feições de caráter silencioso e crônico na vítima. No caso da Amélia dos Santos, percebe-se, a partir dos autos do processo criminal, uma mulher que não suportava mais as investidas do seu companheiro que a obrigava praticar o furto e ao se negar sofrera às agressões físicas e decide por revidar as agressões, o que era muito raro à época.

Ao utilizar a categoria “violência de gênero”, tem-se como perspectiva entender que as ações violentas são produtos do contexto e dos espaços relacionais, marcados por relações interpessoais, com cenários sociais e históricos não uniformes. Que historicamente agem sobre os corpos femininos, onde as relações violentas existem devido ao poder desigual e assimétrico e permeiam a vida cotidiana das pessoas (BANDEIRA, 2014).

Compreender a agrura de Amélia dos Santos é perceber como se dava a violência de gênero dentro das relações familiares no início do século XX. Sua história de violência permeia muitas outras histórias, visíveis no presente. O uso da categoria gênero na história da humanidade tem como preocupação principal “[...] entender a importância, os significados e a atuação das relações e representações de gênero no passado, suas mudanças e permanências dentro dos processos históricos e suas influências nesses mesmos processos” (PINSK, 1995, p. 162).

ENTRE O DISCURSO DA LEGITIMA DEFESA E O DA CONDENAÇÃO NOS AUTOS DO PROCESSO CRIMINAL DE AMÉLIA DOS SANTOS (1921)

O processo criminal de homicídio da vítima Manoel Canuto, tendo como ré Amélia dos Santos, ocorrido em setembro de 1921, foi se desenrolando. O promotor de justiça Arthur Porto pediu a prisão preventiva de Amélia dos Santos.7 Em 23 de setembro é deferido o pedido de prisão preventiva da acusada, pelo juiz do caso o Dr. Pedro dos Santos Torres. A audiência de depoimentos testemunhais foi marcada para a sala de inquirição de testemunhas da repartição criminal da 4ª Vara da capital – Belém para o dia 28 de setembro do mesmo ano.

De acordo com que está materializado nos autos do processo criminal, é possível destacar aspectos não somente dos pormenores referentes aos acontecimentos e depoimentos de testemunhas, mas também elementos discursivos sociais e culturais a respeito da forma como o judiciário à época determinou a condenação da ré Amélia dos Santos.

Nessa perspectiva, não podemos deixar de pontuar que cabia à mulher ser “[...] vigilante, atenta, soberana no seu espaço de atuação, ela se torna a responsável pela saúde das crianças e do marido, pela felicidade da família e pela higiene do lar” (RAGO, 2014, p. 109). Desta forma, no jogo social a desigualdade de gêneros e a violência de gênero, desde sempre, ainda é perversa sobre a mulher. Vimos que Amélia dos Santos sofreu violência e praticou um ato violento. De acordo com os autos do processo criminal, a defesa argumenta que Amélia dos Santos matou o seu companheiro por não ter uma alternativa, já que vivia uma situação de intensas ameaças que lhe causavam medo, mas ao mesmo tempo revolta.

A violência sofrida e praticada, no caso em tela, foi fruto de uma dinâmica conjugal abusiva. Assim, a conflitualidade no âmbito privado deve ser compreendida como um fenômeno relacional. Fazendo parte daquela cena os diversos sujeitos e atores sociais, tais como: Amélia dos Santos, Manoel Canuto e os filhos da acusada. Daí a importância da análise dos contextos e significados atribuídos por estes sujeitos. Nessa direção, não se pode definir a violência como uma categoria a priori, mas configurada segundo as regras do espaço social no qual se manifesta.

A violência contra a mulher é um fenômeno extremamente complexo, com raízes nas relações de poder baseadas no gênero, na sexualidade, na classe, entre outras. E em muitos casos, o direito (masculino) a dominar a mulher é considerado a essência da masculinidade. Porém, para cada relação sempre haverá um que sofre e outro que, como Amélia dos Santos, um dia resiste ou chega a situações extremas.

No contexto da época do crime, a virilidade tinha que ser validada pelos outros homens, ou seja, havia uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si mesmo (BOURDIEU, 2012). Logo, a raiva imbuída do sentimento de traição, era condicionante, em muitos casos, de assassinatos de mulheres cometidos por homens; companheiros ou não das vítimas.

A história de Amélia dos Santos é mais uma entre tantas outras que demarcam a violência cometida por maridos déspotas. Entretanto, sua história vai além. Há de ser observado não apenas seu ato, que teve como consequência a morte de seu marido Manoel Canuto, mas as circunstâncias que envolveram este ato. Não sabemos realmente se houve uma luta corporal entre ela e Manoel Canuto, ou, se verdadeiramente, o matou dormindo. Todavia, conforme os autos do processo criminal, fica claro que Amélia dos Santos o matou para se defender física e moralmente, sobretudo para defender seus filhos e das fortes agressões de seu companheiro. Ao se recusar praticar o furto de porcos no sítio do professor Encarnação, Amélia dos Santos percebeu que não havia outra saída a não ser se contrapor as investidas agressivas do seu companheiro, pois as informações obtidas nos autos do processo criminal apontam que ela sofrera recorrentes situações de violência, obrigando-a sob constante pressão a realizar atos criminosos.

As testemunhas são unânimes em dizer que Manoel Canuto, companheiro de Amélia dos Santos, era violento, alcoólatra, dado a prática de roubos e que espancava constantemente a sua esposa. Os relatos das testemunhas são de que Manoel Canuto agredia recorrentemente a vítima verbal e fisicamente na presença de seus filhos, ao ser contrariado. Essa situação foi muitas vezes testemunhada por vizinhos, que em razão da índole de Manoel Canuto, não o denunciavam as autoridades a violência perpetrada sob a sua mulher. Portanto, as testemunhas relatam que Amélia dos Santos vivia uma relação abusiva, sob ameaça de seu agressor que a obrigava a realizar pequenos furtos e ser sua cúmplice em atos criminosos. Embora a violência sofrida por Amélia dos Santos fosse de conhecimento de muitas pessoas da pequena cidade, havia silenciamento e descaso, pois ninguém interferia nas agressões sofridas por Amélia dos Santos em razão do provérbio “briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

Somente após o crime e da acusação de homicídio foi que testemunhas arroladas no processo puderem enfim tirar Amélia dos Santos do silenciamento de anos de uma relação conjugal de violência. O depoimento da testemunha João Vicente Gonçalves confirma que Manoel Canuto praticava roubos e que ele afirmara que “[...] quando nada mais pudesse arranjar mataria todos de casa e a si também”. João Vicente confirma em seu depoimento a versão relatada por Amélia dos Santos, de que sofria maus-tratos e agressões desferidas a ela e a seus filhos. Isso demonstra as táticas, utilizadas pelo marido tirano, para manter seu poder de dominação e a submissão de companheira e de seus filhos por longos anos.

Essa relação demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia ao longo da história, induzem relações violentas entre os sexos e indica que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim, do processo de socialização das pessoas. A partir dos autos do processo criminal é possível perceber pelas falas das testemunhas o perfil da vítima, assim como aspectos da dinâmica dessa família. Em outros depoimentos, as testemunhas relatam a verdadeira índole de Manoel Canuto. Em seu depoimento, Manoel Duarte Gomes Jr. assevera que a vítima Manoel Canuto “[...] era pessôa de maus instintos, se dava a prática de furtar”. Manoel Cursino de Oliveira, diz que conhecia a vítima “[...] e sabe porque diziam, lá em Inhangapy, que o mesmo se dava a prática de furtar, e mais, maltratava sua esposa Amélia. João Ferreira Gonçalves, confirma o depoimento de Manoel Cursino de Oliveira, quando afiança que “[...] é público e notório lá, em Inhangapy, que Manoel Canuto Limeira, se dava a prática de furto, e além disso maltratava constantemente, sua mulher e filhos dando-lhes pancadas”.

Manoel Canuto, a vítima, é descrito como um cidadão que vai à contramão do que se idealizava ser um pai de família, responsável e, sobretudo, trabalhador, pois vivia da prática do roubo e a obrigar a esposa a ser sua parceira nos crimes. No contexto social, cultural e moral da época, valorizava-se o homem por sua capacidade de ação, praticidade, objetividade, sucesso, força e iniciativa. Os atributos da virilidade ao trabalho deveriam desempenhar uma função central na vida do homem, fazendo-o se sentir reconhecido e aceito socialmente (MATOS, 2010). O trabalho cumpria também a função de nomear o mundo subjetivo do homem, fazendo-o por meio de uma tentativa de eliminar o que nele há de duvidoso, impreciso e disforme.

A vida sem trabalho, a prática do furto e da má índole de Manoel Canuto é confirmado por mais uma testemunha, Indolescio Duarte Gomes ao afirmar que “[...] pode dizer que Manoel Canuto “[...] era pessoa de má reputação e se dava a prática de furto”.8 O depoimento de Indolescio nos demonstra que Manoel Canuto era mesmo dado a prática de furto, tendo conduta duvidosa, inclusive, na maioria dos depoimentos havia a confirmação de terem presenciado carnes de porcos na casa da ré e da vítima, o que era de se estranhar, já que ele não criava porcos e muito menos desenvolvia uma atividade laboral que justificava a significativa quantidade de carne suína em sua residência. Ao que tudo indica, os vizinhos faziam “vistas grossas” aos delitos de Manuel Canuto, em razão de Amélia dos Santos ser uma pessoa querida na cidade.

De acordo com os relatos discursivos das testemunhas nos autos do processo criminal, as autoridades policiais criam então um perfil de Manoel dos Santos: homem sem trabalho, violento, viciado em bebida e dado a prática de furtos, ou seja, um sujeito avesso ao trabalho e que gerava entre a população do lugarejo a imagem de uma pessoa que não cumpria suas funções como provedor da família. Enfim, era visto como um homem violento e que ameaçava sua família constantemente. As testemunhas em seus discursos deixam claro que restava a Amélia dos Santos a subserviência e silenciamento diante de uma relação de controle.

No início do século XX, havia uma relação entre trabalho e moralidade “quanto mais dedicação e abnegação o indivíduo tiver em seu trabalho, maiores serão os atributos morais” (CHALHOUB, 2012, p.70). Enfim, a vítima não era bem quista pelas testemunhas e por viver do vício do roubo, sem labor, não tinha os atributos morais necessários ao cidadão de bem.

Alguns depoimentos ressaltam o comportamento e o caráter da acusada. Manoel Cursino de Oliveira, por exemplo, afirmou que Amélia dos Santos, a qual conhecia “desde mocinha”, tinha “[...] bom comportamento, era recatada, tem dois filhos menores, os quaes, com a mesma viviam em companhia de Manoel Canuto com quem casara”. As informações indicam que Amélia dos Santos já tinha dois filhos quando foi viver em companhia de Manuel Canuto. Conforme os valores morais da época, algumas testemunhas acreditavam que o motivo de agressões que Amélia sofrera estava diretamente relacionada à dificuldade de Manoel Canuto em aceitar os seus filhos, fruto de outro relacionamento amoroso. Para Cancela (2006), o amasiamento e concubinato, eram mais recorrentes entre a população de baixa condição social, que marginalizados e incapazes de contrair matrimonio, teriam assumido a condição de amancebados.

As testemunhas destacavam as qualidades de Amélia dos Santos. João Ferreira Gonçalves, por exemplo, em seu depoimento, disse que ela era uma “[...] pessoa séria, dona de casa dedicada, estimada na localidade”. Indolescio Duarte Gomes ratifica as qualidades da ré afirmando que ela era “[...] Uma pessôa séria, conceituada e que se cometteu crime foi porque a isso foi obrigada para se defender”. Certamente, a construção da imagem sobre a Amélia dos Santos apresentada por essas testemunhas favoreceu a sua defesa no tribunal. Vista como boa mãe e esposa, isso corroborava para um modelo ideal de mulher, no qual a submissão era indício de moralidade, assim como a fidelidade e dedicação à família e ao marido.

O significado de ser mãe carrega toda a peculiaridade daquele ser que gera a vida, alimenta, cuida, protege, faz crescer, isto é, pessoa abnegada, que não mede esforços e sacrifícios para ver o bem e a felicidade dos filhos. Expressa, também, a ternura, a firmeza e a responsabilidade de quem zela pela casa e pela família. No caso das mulheres da camada mais pobre da sociedade, estas são cercadas de um discurso de moralidade oficial que não condizia com sua realidade (FONSECA, 2008).

Essa dualidade personificada de Amélia dos Santos e Manoel Canuto constitui um dos quatro elementos que envolvem a definição de gênero defendida por Scott (1995) – símbolos que evocam representações – inocência e corrupção, trabalhador e vagabundo, boa mãe e mulher perdida. Símbolos que estabelecem o papel do masculino e do feminino no universo social. A mulher como Amélia dos Santos, tinha que ser submissa e obedecer às normas estabelecidas pela sociedade em questão, por mais que isso a levasse a passar por dificuldades financeiras, pois a vida pública e o trabalho fora do âmbito privado não eram vistos com bons olhos. Aquelas que se aventuravam a sair do lar para buscar uma forma de trabalho para sobreviverem, estavam sujeitas a serem chamadas de “mulher da vida”, “mulher pública”, “fulana de tal”, “mulher de vida alegre”, “mulher perdida”, etc. Além de tudo isso, também eram taxadas de mães desnaturadas para com os filhos.

Aos homens, caberia o papel de trabalhador, bom pai de família responsável pelo sustendo de todo núcleo familiar. As denominações de bom pai e homem honrado se encontram sobrepostas às evidências do que seja o masculino; reforçam uma imagem que socialmente se esperava de um homem. O que não era o caso da vítima, não que isso justificasse a violência cometida por Amélia dos Santos.

As relações entre homens e mulheres podem ser percebidas como relações de poder na medida em que sejam relações entre sujeitos livres e, portanto, que suponham resistências, respostas, reações, transformações (LOURO, 1997). É preciso pensar que todas essas ações se dão de modo diversificado, segundo os gêneros, ou seja, se homens e mulheres estão envolvidos nessas múltiplas relações e, portanto, se ambos sofrem seus efeitos, deve-se lembrar que elas são vividas de modos diferentes por cada um deles.

Embora algumas testemunhas tenham destacado aspectos relevantes a respeito de Amélia dos Santos, não foi possível sensibilizar as autoridades policiais sobre sua índole. Portanto, após os depoimentos das testemunhas é revogada a prisão preventiva de Amélia dos Santos pelo juiz do caso até o julgamento definitivo. Em março de 1923, ela é sentenciada a prisão celular no presídio São José e seu nome é posto do “Rol dos Culpados”. A alegação do juiz do caso teve como embasamento a falta de perícia médica para verificar – “visum et repertum” – a posição do morto no momento que recebeu o ferimento, e que haviam pontos conflitantes no caso o que dificultava confirmar se houve legitima defesa, além do mais não há testemunha ocular do fato.9

De acordo com o magistrado, os fatos antecedentes de violência contra ré, constante nas falas das testemunhas, não podiam ser requisitos para justificar a legítima defesa, que a ré quis afastar-se de suas responsabilidades quando não assumiu imediatamente que matou seu marido, Manoel Canuto. Ressaltamos que no final do século XIX e início do século XX, os intelectuais do campo do direito, como por exemplo, os juízes, voltavam seus discursos contra os sujeitos considerados potencialmente perigosos para a sociedade. Contudo, embora as testemunhas defendessem a Amélia dos Santos, na ótica das autoridades era ela quem apresentava um perigo para a sociedade. O direito cria um poder e uma verdade, ou seja, o que o autor chamou de uma “ortopedia social”, por meio de um discurso de verdade. Enquanto o magistrado argumentava contra a ré, criando um discurso no qual Amélia dos Santos usou da covardia para desferir os golpes contra Manoel Canuto, o seu advogado apelou ao tribunal para que ré fosse a júri popular e entregou libelo de defesa.10 A audiência é marcada para 08 de abril de 1923, no tribunal do Júri. A defesa advogava a tese de que Amélia dos Santos matou por amor, que por amor não se separava do marido, mesmo diante das recorrentes ameaças e violência sofrida.

A defesa defendia que Amélia dos Santos estava sob forte emoção, o que lhe causou um nível de perturbação dos seus sentidos. A defesa dizia, ainda, que a violência do marido desencadeou em Amélia o medo, terror e pânico que afetou sua inteligência. Enquanto a acusação defendia a suposição de que ré teria matado o marido enquanto o mesmo dormia, pois foi encontrado em uma rede e que a falta de perícia na cena do crime dificultava a análise de legitima defesa defendida pelos advogados de Amélia dos Santos. Seu motivo seria “frívolo”, visto que se apoiava no discurso da violência que recebia do marido.

Na votação do júri popular, os argumentos da defesa prevaleceram, Amélia dos Santos foi absolvida por maioria dos jurados. A promotoria recorreu à sentença – Absolvição. Foi então deferido o pedido da promotoria e, assim, marcou-se um novo julgamento para 12 de abril de 1923, também com júri popular. Amélia dos Santos foi novamente absolvida. Em novembro de 1924 foi impetrado pela promotoria mais uma apelação. Amélia dos Santos foi presa e recolhida ao presídio São José em março de 1925. Neste mesmo ano há mais dois julgamentos, em ambos, Amélia dos Santos foi absolvida.

Em todos os processos, a ré foi absolvida pelo crime que cometeu. Apesar de a promotoria seguir com recursos alegando sua culpa, os conselheiros dos diversos julgamentos no tribunal do júri a absolveram. Analisando os julgamentos é perceptível que a questão da violência contra ela, enfatizada nos discursos das testemunhas, e usada pelos advogados de defesa, foi imprescindível para suas absolvições.

É sabido que a mulher que está vivenciando situações de violência nem sempre assimila passivamente essa situação. Nessa trama e drama envolvendo o assassinato de Manoel Canuto, Amélia dos Santos foi tanto vítima, como autora da violência. Seu ato foi uma forma de resistência a tudo que Manoel Canuto cometeu conta ela, posto que os maus tratos, físicos e emocionais eram presentes, quase que cotidianamente.

À GUISA DA CONCLUSÃO

O cenário do século XIX e XX, a respeito da história de mulheres no Brasil, especialmente no Pará, era constituído de situações de violência. A gravidade das diversas formas maus-tratos e agressões que as mulheres eram submetidas no ambiente privado se naturalizavam pela sociedade paraense nas primeiras décadas do século XX. A situação de violência vivida pela população feminina desencadeava nas vítimas o sentimento de medo e vergonha e as deixavam impossibilitadas a buscarem formas de luta e resistência diante de uma sociedade machista que foi cultural e historicamente transmitida por gerações.

A história da jovem Amélia dos Santos, ocorrida há cem anos, que trazemos para análise, enfatiza a partir do processo criminal, do seu depoimento e das testemunhas, a violência que sofria do marido Manoel Canuto. As testemunhas descortinam não somente a realidade da jovem Amélia dos Santos, mas de muitas outras mulheres que enfrentavam maridos tiranos no início do século XX. De acordo com as testemunhas, Amélia dos Santos era uma mulher amedrontada e coagida, já que vivia constantemente sob ameaças e maus-tratos por parte de seu companheiro Manoel Canuto.

Mulheres do início do século XX estavam submetidas às diversas práticas de violência, maus tratos e diversos eventos de agressão. Assim como Amélia dos Santos, muitas mulheres se sentiam amedrontadas e envergonhadas diante das agressões sofridas no ambiente privado. Era uma sociedade que silenciava as mulheres. Em razão disso era comum elas manifestarem passividade, vergonha e culpa diante do controle exercido pelo companheiro. Constatamos que Amélia dos Santos naquela fatídica noite do crime decidira mudar os papeis desse jogo de poder deferindo golpes no seu companheiro tirano e pondo fim ao casamento. A defesa diante do júri alega que Amélia dos Santos resolveu dar um fim ao ciclo de violência que estava recorrentemente submetida na relação conjugal com o Manoel Canuto.

Fruto da cultura patriarcal e machista, a violência vivenciada por Amélia dos Santos, descortina a existência de uma relação desgastada pelas constantes ameaças e controle de Manoel Canuto no contexto familiar. O caso Amélia dos Santos reafirma uma estrutura de poder e dominação disseminadas dentro de uma sociedade patriarcal que se estruturou ao longo dos anos nos lugarejos do estado do Pará. A Amélia da cidade de Inhangapy não era mais a Amélia submissa, conformada e silenciada da música de Ataulfo Alves e Mario Lago. Amélia dos Santos teve sua absolvição em razão de conviver com um companheiro que para a justiça era uma ameaça para toda população do pequeno lugarejo. Talvez outras mulheres que sofreram agressões de homens respeitados pela sociedade não tenham conseguido da justiça a absolvição. O que favoreceu a defesa de Amélia dos Santos foi, de um lado, o clamor da sociedade por justiça com sua absolvição; de outro, dos relatos de testemunhas (todas do sexo masculino) que vão em defesa de ré sustentando o discurso de legítima defesa. Certamente, outras Amélias não tiveram a mesma sorte, pois muitas foram condenadas, embora sob o argumento da legítima defesa.

1

Segundo Delphy (2009), conceito muitas vezes é usado como sinônimo de "dominação masculina" e "opressão das mulheres", ou substituído por falocracia, e relações de gênero. Para ela, o debate sobre patriarcado coloca, no centro da discussão, o poder do homem sobre a mulher. Nos sistemas patriarcais, as mulheres estão em patamar de desigualdade tendo uma série de obrigações em relação aos homens, tais como manter relações conjugais mesmo contra sua vontade, além de um grande controle sobre sua sexualidade, seu comportamento, não tendo vontade própria, ou seja, se configura num "sistema de estruturas no qual o homem domina, oprime e explora as mulheres".

Ver: DELPHY, Cristine. (2009), "Patriarcado (teorias do)". In: HIRATA, Helena [et al_] (orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo, Editora UNESP.

2O debate jurídico acerca da “honra feminina” tem início no século XIX com discussões em torno do Código Penal de 1830 e sobre o projeto do Código Civil, em que o crime de defloramento se tornou um dispositivo legal que visava proteger a honra sexual das “mulheres honestas”. Portanto, o tema “honra feminina” estava centrado, em seu início, na ação penal tendo como crime a violência sexual.

3Trecho da petição feita pelo advogado de defesa de Amélia Moreira dos Santos, José Leocadio do Amaral para alegar legitima defesa da ré.

4Município de Inhangapi em 1921 era um distrito localizado a 92 km da cidade de Belém-PA. Compunha a circunscrição judiciária da comarca da capital Belém.

5O exame cadavérico indicava que a vítima Manoel Lameira morreu por um ferimento provocado por uma arma perfuro cortante. O ferimento foi no mamilo esquerdo com dois e meio centímetro e uma polegada de profundidade, indicando que fora morto por punhal.

6A violência contra a mulher pode ser definida em: violência física, violência patrimonial, violência sexual, violência moral e violência psicológica.

7Os itens que embasavam o pedido de prisão preventiva pela promotoria foram: gravidade do crime; alarde social; perigo de escape da ré; inafiançabilidade do crime.

8Autos de crime de homicídio de Amélia Moreira dos Santos, fl. 20.

9visum et repertum – termo em latim utilizado em perícias criminais que tem o sentido de examinar, descobrir e dar conhecimento. Na constituição do relatório pericial refere-se ao histórico, ao preâmbulo, a descrição, a discussão/conclusão e as respostas aos quesitos do crime.

10Libelo – Dedução, escrita ou oral, apresentada a um magistrado antes de início de um processo judicial, na qual se encontra a essência argumentativa da defesa e da acusação.

FONTES

Autos Crime de Homicídio em que é ré Amélia Moreira Dos Santos. Processo n. 1781, fls. 408. Tribunal do Jury (4ª vara – comarca da capital). Centro de Memória da Amazônia, Caixa 35 - Homicídio (1922-1925). [ Links ]

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Junho de 2022

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