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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67253 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

EMANCIPAÇÃO DA MULHER ARTISTA: o caso da poetisa pernambucana Léa Tereza Lopes de Oliveira

THE FEMALE ARTIST EMANCIPATION: the case of the poetess from Pernambuco Léa Tereza Lopes de Oliveira

EMANCIPACIÓN DE LA MUJER ARTISTA: el caso de la poetisa de Pernambuco Léa Tereza Lopes de Oliveira

Graciele Maria Coelho de Andrade Gomes1 
http://orcid.org/0000-0003-1550-9937

1Universidade Federal de Pernambuco E-mail: andradegraciele@yahoo.com.br


Resumo

Neste artigo objetiva-se identificar e compreender o processo de emancipação da mulher artista pernambucana durante as décadas de 1960 a 1970 a partir da análise da vida e obra da poetisa Léa Tereza Lopes de Oliveira. É estudo conduzido a partir da metodologia da História Oral (ALBERTI, 2004) e tem por base teórica a História Cultural (CHARTIER, 2002) e a História das Mulheres (PERROT, 2017; 2019). Em acordo com a Metodologia da História Oral, os dados obtidos são resultado da realização de entrevista temática com a poetisa Léa Lopes. A fim de compreender o processo formativo da artista como mulher e a construção da sua poética na arte, coloca-se em discussão os conceitos de práticas e representações. A partir deste estudo foi possível observar que a vida e obra da poetisa exemplifica como a família, a escola e as redes de sociabilidade mantêm relação com a construção da subjetividade do sujeito e com seu processo de emancipação. Sua trajetória histórica revela a necessidade de uma educação que abra espaço para discussões sensíveis da vida, como a sexualidade, a formação política e dignidade. Deste modo, Léa Lopes, está entre as mulheres que experienciaram uma educação castradora nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil e que utilizaram de manobras para fugir das relações androcêntricas que ainda no século XXI, estão presentes na sociedade.

Palavras-chave: emancipação feminina; educação de mulheres; poesia marginal; mulher artista

Abstract

This article aims to identify and understand the process of emancipation of the Pernambuco artist woman during the 1960s to 1970s, based on the analysis of the life and work of the poetess Léa Tereza Lopes de Oliveira. It is a study based on the methodology of Oral History (ALBERTI, 2004) and is theoretically based on Cultural History (CHARTIER, 2002) and the History of Women (PERROT, 2017; 2019). In order to understand the artist's formative process as a woman and the construction of her poetics in art, I discuss the concepts of practices and representations. From this study it was possible to observe the life and work of the poetess exemplifies how the family, the school and the sociability networks maintain a relationship with the construction of the subject's subjectivity and with its process of emancipation. Its historical trajectory reveals the need for an education that opens space for sensitive discussions of life, such as sexuality, political formation and dignity. Thus, Léa Lopes is among the women who experienced a castrating education in the 1960s and 1970s in Brazil and who used maneuvers to escape the androcentric relationships that are still present in society in the 21st century.

Keywords: female emancipation; women's education; marginal poetry; female artist

Resumen

En este artículo se objetiva identificar y comprender el proceso de emancipación de la mujer artista pernambucana mientras las décadas de 1960 y 1970 a partir del análisis de la vida y labor de la poetisa Léa Tereza Lopes de Oliveira. Es un estudio conducido a partir de la metodología de La Historia Oral (ALBERTI, 2004) y tiene por fundamento teórico la Historia Cultural (CHARTIER, 2002) y la Historia de las Mujeres (PERROT, 2017; 2019). Con objeto de comprender el proceso formativo de la artista como mujer y su arte poético, pongo en discusión los conceptos de prácticas y representaciones. Partiendo de este estudio fuera posible mirar la vida y labor de la poetiza ejemplifica como la familia, la escuela y las redes de sociabilidad mantienen relación con la construcción de la subjetividad del sujeto y con su proceso de emancipación. Su trayectoria histórica revela la necesidad de una educación que abra espacio para discusiones sensibles de la vida, como la sexualidad, la formación política y la dignidad. De esta manera, Léa Lopes es una de las mujeres que experimentaron una educación castradora em las décadas de 1960 y 1970 en Brasil y que utilizaron de maniobras para huir de las relaciones androcéntricas que aún en século XXI, están presentes en la sociedad.

Palavras chave: emancipación feminina; educación de la mujer; poesía marginal; mujer artista

INTRODUÇÃO

Se vocês me forçarem a andar de quatro, eu lhes farei ver a beleza de um andar felino! (OLIVEIRA,1976/1977)

A história cultural permitiu ao historiador explorar uma riqueza de objetos de estudo. Novas fontes e novos questionamentos às fontes ganharam espaços à medida que a complexidade que é a vida passa a ser considerada por meio de estudos biográficos. Por isto, as narrativas e os detalhes íntimos da vida de uma mulher comum encorpam este estudo. No intuito de contemplar a educação das mulheres, as narrativas contribuem na busca de significados para as realidades sociais, à medida que investiga os sujeitos em suas interações, lugares e momentos da história. Pois, a partir de sua análise é possível identificar como uma realidade social é construída e dada a ler, considerando o tempo e espaço em que cada grupo e indivíduo têm participado na sociedade (CHARTIER, 2002).

A história da mulher no cenário brasileiro, não está distante das encontradas em outros países. Ainda se revela como um reflexo da construção de uma condição de existência que está mergulhada na cultura machista, a qual reafirma, ao longo de anos, que há mais valor na masculinidade do que na feminilidade. A mulher, tal qual o homem, tem suas subjetividades construídas a partir das experiências vivenciadas em toda sua jornada. Sua infância, sua vida escolar e sua experiência profissional modelam sua personalidade, logo, a estrutura familiar e o modelo de sociedade em que vive são aspectos que contribuem para compreender tanto as posturas de ruptura e enfrentamento dos ditames da cultura patriarcal e capitalista, quanto a obediência a estes.

A mulher envolvida no panorama artístico, entretanto, recebe regulações do que seja a arte produzida por mulheres e para mulheres, como se houvesse uma identidade do feminino. Isto por certo vai de encontro à pluralidade de poéticas do feminino, pois as mulheres, seja por meio da palavra ou das imagens têm abordado uma gama múltipla de temas no campo das artes. Enquanto umas optam por trabalhar com as questões do corpo e a visibilidade dos seus desejos, outras querem se comunicar com o mundo, expondo o cotidiano, expressando, denunciando o que precisa florescer nele, dentre outros caminhos temáticos e inspiradores que estão nos seus horizontes de expectativas.

No caso específico do Estado de Pernambuco, são muitas e distintas as atuações e representações simbólicas das mulheres que fazem parte do cenário das artes. Entretanto, como afirma Madalena Zaccara (2017), existe uma ancestralidade androcêntrica que culminou no apagamento dos nomes femininos na história das artes de Pernambuco.

Pernambuco traz consigo a marca de ter gerado inúmeros artistas com produção relevante para o país e para o mundo. Mas é também um dos espaços brasileiros onde, pedagogicamente, a mulher foi marcadamente condicionada pelo sistema patriarcal, por várias gerações, a uma existência e uma educação voltadas para o lar e suas afinidades. (ZACCARA, 2017, p. 17)

Artistas estas que são fontes da história, não só da arte pernambucana, mas de todo cenário político e social do estado, pois as mulheres além de comporem a história junto aos homens, possuem experiências de vida particulares da condição feminina e que muito podem contar sobre a história das mulheres e a história da Educação. Isto porque, são resultado de processos de formação e de autoformação, os quais acontecem nos ambientes escolares ou nos meios de socialização do sujeito. Por isso é importante dar a ver "(...) as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história." (PERROT, 2017, p.172).

Desta maneira e com alicerce fincado na metodologia da história oral, esta pesquisa tem como instrumento de coleta de dados a realização de entrevista temática com a poetisa Léa Lopes sobre a sua experiência de vida a partir de um roteiro temático prévio. Sendo a narrativa da biografada e a aura imaginária de suas obras as fontes desta pesquisa, uma vez que a obra de arte é um registro de um homem/mulher no tempo e espaço. Considera-se a narrativa seu relato para investigar os mecanismos de resistência acionados pela artista para fugir das privações de liberdade relacionadas às questões de gênero que estavam presentes na realidade social e educacional da mulher e, consequentemente, da artista pernambucana na década de 1960 e de 1970. Assim como observado por Chartier na França, considera-se que “(...) o testemunho deve, portanto, ser decifrado em primeiro lugar como uma apresentação de si mesmo, moldada a uma enorme distância social e cultural, ligada a uma trajetória excepcional.” (CHARTIER, 2002, p.142).

Léa Lopes era uma mulher desejosa de acessar um mundo que só era permitido aos homens, um mundo onde existe a liberdade, a criação. Um mundo de coisas possíveis, enfim, da arte. Um sentimento que não foi único de Léa, pois, por mais que pertençam a pessoa da Lea Lopes, em algum ponto se aproxima e reflete o coletivo de outras mulheres desejosas de um modelo de vida não submisso. De acordo com o pensamento de Mary Del Priore (2020), muitas mulheres, foram protagonistas ao seu tempo, reinventaram-se e souberam encontrar brechas para enfrentar o patriarcalismo. Mulheres que fizeram questão de deixar claro como desejam existir, o que desejam fazer de suas vidas.

Com base na perspectiva da micro-história, toma-se os detalhes da vida de Léa Lopes como uma possibilidade para identificar as relações que as pessoas desenvolvem tanto com os indivíduos quanto com os espaços sociais. Uma possibilidade para conhecer a vida de pessoas comuns, como é o caso da poetisa Lea Lopes, pois, a escrita sobre a rotina de uma garota dentro e fora do seu ambiente familiar pode revelar as representações sobre a educação de mulheres artistas. Uma vez que, é da necessidade de entender como os comportamentos, escolhas e solidariedades se originam que a micro-história se volta para análises complexas sobre uma escala de observação reduzida. Sendo possível, a partir da microanálise encontrar respostas para questionamentos relacionados ao contexto geral (LEVI, 2016), assim como também permitir que um sujeito se conheça a partir do outro, uma vez que se trata de um estudo biográfico. Neste sentido, o problema de pesquisa que move este estudo é: como a trajetória de vida e obra da poetisa Léa Tereza Lopes de Oliveira, contribui para compreender o processo de emancipação da mulher artista pernambucana que atuava entre as décadas de 1960 e 1970?

Buscando responder tal questionamento, a fonte oral é tida como um dos meios fundamentais para alcançar o conhecimento histórico, pois, por meio dela o historiador é capaz de encontrar e/ou estabelecer conexões entre o que há de particular na história vivida por cada ator social com a vida dos diferentes sujeitos em sociedade. Considerando-se que as narrativas apresentadas pelas fontes orais corroboram para a construção de imagens sobre o passado (LORIGA, 2012), percebe-se que elas dão forma a imaginários sociais, os quais podem ser um imaginário de mulher, de artistas ou da educação em determinado contexto regional e temporal. Fragmentos do passado que se acessa a partir da atividade rememorativa do outro.

Desta maneira, o objetivo deste texto é identificar e compreender, por meio da trajetória de vida e obra da poetisa Léa Tereza Lopes de Oliveira, o processo de emancipação da mulher artista pernambucana que atuava entre as décadas de 1960 e 1970. Para tanto, vale-se de uma escrita biográfica que se apoia, não necessariamente, em etapas cronológicas da vida, mas nas experiências formativas escolares e das experiências do tensionamento no espaço artístico e político que contribuíram com a constituição da mulher artista. A quais, por consequência estão presentes em sua estética literária de existência, ou seja, uma arte que é expressão de um estilo de vida não-conformado. Algo próximo da ideia de “estética da existência” defendida por Foucault (2006), na qual fazem parte aquelas pessoas capazes de realizar atitudes à frente de seu tempo, que rompem com padrões esperados pela sociedade, vivem uma “vida artística”.

Com relação a metodologia da pesquisa, a entrevista foi realizada por meio da ferramenta Google meet, em 19 de março de 2021 e teve duração de 1:12:04. Seguindo os critérios do Comitê de ética, a entrevista foi gravada e salva em pasta de arquivos por um prazo de cinco anos. Após a transcrição, o texto da entrevista foi enviado, lido e aprovado pela entrevistada, que realizou também a leitura e autorização do uso de dados por meio de assinatura de Termo de Consentimento Livre e esclarecido.

A pesquisa considerou enquanto critérios éticos os riscos e benefícios possivelmente ocasionados a entrevistada: eventual cansaço físico e/ou mental, decorrente do tempo despendido com a entrevista, bem como uma possível tensão e constrangimento a medida que as lembranças de momentos difíceis sejam rememoradas, uma vez que a entrevista narra trechos de sua trajetória de vida, tanto com relação a seu trajeto formativo artístico e político bem como das repressões e violências que possa ter vivido durante a ditadura militar. A fim de amenizar estes riscos promoveremos um momento de diálogo onde explicaremos que a entrevistada pode se negar a responder qualquer uma das perguntas e que também pode interromper a entrevista caso sinta algum desconforto com o tema bem como algum tipo de cansaço, salientado a possibilidade de cancelar e remarcar a entrevista e/ou até mesmo se desligar da pesquisa, a fim de não incorremos no erro de violar o direito ao esquecimento de memórias dolorosas que estas mulheres possuem, enquanto vítimas da ditadura militar. Benefícios: Oportunidade de escuta da história das entrevistadas e reconhecimento da importância de suas histórias para a sociedade, de modo a difundir o conhecimento histórico sobre o passado ditatorial do estado de Pernambuco a partir da história de vida das mulheres entrevistas, corroborando com a lei 10.559/02 relacionada à Comissão da Anistia do Ministério da Justiça. Neste sentido, ao rememorar a versão da história que associa o regime civil-militar a um período antidemocrático e de violação de direitos humanos, a narrativa destas mulheres está de acordo com o direito a memória e verdade que se embasa na Lei de Anistia (Lei 6.683/79. A pesquisa ainda contribui às mulheres entrevistas como a estimulação de suas funções cognitivas e imaginativas a partir do exercício de rememorar seu passado.

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de ética e Pesquisa 6 de janeiro de 2021. Uma vez que, na metodologia da história oral a entrevista permite o acesso as lembranças de eventos que a pessoa pesquisada/entrevista protagonizou. Considera-se também, nesta metodologia o modo como a pessoa se constrói narrativamente, sendo a narrativa da poetisa o objeto e fonte de investigação.

INICIANDO A NARRAÇÃO DE UMA HISTÓRIA...

A fim de conhecer mais sobre a vida de sujeitos históricos que ajudam a compreender a pluralidade do passado, elege-se como objeto de análise a vida e obra de Léa Lopes. Assim como a Sabina Loriga (2012, p.33), toma-se a escrita biográfica a fim de “cultivar a dimensão ética da história” e não buscando respostas para ela. Isto porque ao explorar as narrativas históricas dos sujeitos comuns, como o é o caso de Léa Lopes, pode-se povoar o passado, mostrar sua pluralidade e captar aspectos de transgressão da cultura patriarcal e conservadora, bem como os aspectos que influenciaram sua formação política, artística e sua emancipação feminina, logo far-se-á possível compreender aspectos de sua geração e das composições do feminino no período.

Léa Tereza Lopes de Oliveira nasceu em 1955 na cidade do Recife-PE. Filha de Mário Cavalcanti Lopes, diretor comercial da Usina Frei Caneca e de Gildete Brandão de Souza, do lar. Viveu a infância com os avôs maternos no interior da Bahia. Onde estudou no Centro Educacional Cenecista Professor Diógenes Vinhais em Itajuípe. Seu avô materno, Lyrio Alves de Souza era jornalista, jornaleiro e mantinha uma coluna em um jornal de Salvador, a qual era escrita com a ajuda dos netos, entre eles estava Léa Lopes, que entre os 8 e 9 anos de idade já era responsável pelas notícias sociais. Cada neto escrevia sobre um tipo de notícia, um de seus irmãos fazia a página policial e o outro a política. Havia momentos em que os três irmãos escreviam e outros em que revisavam os textos, ajudando nas dificuldades de leitura e escrita que o avô possuía. Dentre os três irmãos da poetisa, dois se tornaram artistas. Um era desenhista e outro um poeta que desenhou o manifesto comunista em sextilha no cordel:

Sobre meus avós, minha avó, Amália Brandão de Souza, viveu até os 90 anos. Ela trabalhava fora de casa, eles tinham um pequeno comercio, uma vendinha de secos e molhados como se dizia na época. E meu avô, Lyrio Alves de Souza, também foi um cara muito bacana, muito influente na minha vida. Ele faleceu em 1974 com 101. (OLIVEIRA, 2021)

Durante a infância Léa teve uma aproximação muito forte com a leitura e a escrita. Os livros eram um item que seus avôs, ainda que humildes, não deixavam que faltasse, eram frequentes as entregas de livros pelos correios. Entre as leituras realizadas na infância estão clássicos escritos pelos franceses Júlio Verne e Alexandre Dumas, além de muitos gibis. Aos 12 anos já havia lido obras do Marquês de Sade, em entrevista ela relembra que foi uma leitura que lhe trouxe uma sensação de nojo na época. A leitura foi uma experiência que lhe possibilitou conhecer o mundo externo e a si mesma, uma maneira de olhar os fatos, e os problemas da realidade sem estar dentro dela. Evidenciando-se que a leitura ao possibilitar a analisar os fatos a partir de um esforço teórico apresenta-se como um exercício fundamental ao pensamento crítico:

Eu tive uma infância. Eu fui muito privilegiada nesse aspecto, eu tive uma infância cercada de livros, a televisão era um negócio remoto, eu fui ver televisão eu tinha quase 12 anos de idade. Os livros foram muito presentes especialmente na minha casa, o meu avô, eu morava com meus avós. Eles davam muita atenção aos livros, uma contradição. Minha avó analfabeta mais deixava de comprar roupa, comida e trabalhava dobrado para não faltar livro pra gente. A gente mandava buscar livros pelos correios ... tínhamos uma boa acessibilidade ... de livros. (OLIVEIRA, 2021).

Enquanto morava na Bahia, sua educação doméstica esteve sob os cuidados de seus avôs maternos. Enquanto seu avô tinha uma visão humanitária, próxima da vertente socialista e com pouco traços machista, sua avó, Amália Brandão de Souza, de quem ela não recorda a data de nascimento e morte, mas considera que tenha vivido até os 90 anos, reproduzia uma cultura machista sobre o lugar das mulheres na sociedade. Devido aos comportamentos que ela considerava correto para as mulheres proporcionou uma educação castradora e que reprimiu alguns desejos da poetisa durante sua infância, fazendo com que ela tivesse várias vontades reprimidas ou subjugadas de acordo com os princípios do catolicismo:

Na minha educação doméstica tinha muito o viés machista, eu nunca consegui aprender a montar bicicleta, minha avó dizia que era coisa de menino, mulher não podia ficar de perna aberta que perdia a virgindade [risos], aí ela me podou de uma tal maneira que até hoje eu detesto bicicleta e me recuso a aprender, já passou de quando eu queria, agora não quero mais. (OLIVEIRA, 2021).

A desigualdade entre os sexos e as limitações impostas à mulher não era algo apenas relacionado a uma postura do masculino, devido a cultura patriarcal que rege o ocidente, as mulheres também acabam por oprimir outras mulheres. O que também se percebe no relato da artista Lea Lopes: “Minha avó era extremamente machista, meu avô era muito mais liberal, um contraste que há né, a mulher mais machista do que o homem.” (OLIVEIRA, 2021). É interessante lembrar que no Brasil de 1950, ainda era comum mulheres refletirem a concepção de que sua função na sociedade era o casamento, a maternidade e cuidado com o lar, e que sua felicidade se daria na execução bem feita dessas funções. como resgatado por Bassanezi (1997).

Ao oprimir suas filhas/netas, avós/mães garantiam que elas não tivessem uma imagem social negativa e pudessem se encaixar dentro do que a sociedade machista e conservadora esperava. De todo modo, a mulher traça sua vida conquistando com luta o que deseja, é onde ele se forma e se transforma em quem ela quer ser. Pois, por mais que participe de uma estrutura social e de uma convivência familiar opressora, as pioneiras da história têm mostrado, cada uma ao seu tempo, que a mulher possui inteligência e criatividade para burlar as imposições de uma sociedade machista, conservadora e opressora.

Outra opressão que Léa Lopes sentia na infância era a imposição da prática religiosa. Na casa de seus avôs maternos havia a rotina de ir às missas no domingo, uma atividade que mesmo não sendo prazerosa para a poetisa ela não podia deixar de realizar. A fim de reverter o que era uma rotina entediante em um momento divertido, convidava e levava à missa as crianças que moravam perto de sua casa. A partir de então teria um momento de distração no caminho até a igreja, e também uma ocupação durante a missa, que seria a responsabilidade de cuidar das crianças mais novas. Ao recordar esse momento, Léa Lopes o interpreta como uma experiência que teria lhe despertado para uma vocação de cuidar e guiar os outros. Até mesmo a refletir sobre a necessidade de as pessoas terem uma formação política democrática que respeite os modos de cada pessoa, ainda que na infância, de expressar ou não sua espiritualidade.

A política foi outro aspecto que a poetisa começou a perceber ainda na infância. Em seu lar ela observava a postura de seu avô, que embora não falasse diretamente sobre política dentro de casa se mostrava contrário aos reflexos do sistema capitalista, em especial, a suas reverberações na violação da dignidade humana. Ela lembra que:

ele era um velhinho rebelde, com tendências não vou dizer socialista, humanitárias, ele era um cara muito humano, amoroso, queria proteger os mais pobres, tinha briga com minha avó porque ele vendia e depois não queria cobrar da pessoa que pegou fiados, uma situação assim e assim e não pode pagar. E ia deixando passar muitos fiados na nossa venda, por generosidade também o lado católico. (OLIVEIRA, 2021).

Na vizinhança ela observava os aspectos de um governo autoritário. Em sua memória ficou registrada uma experiência que a fez refletir e confrontar o que ouvia nas ruas sobre os perseguidos políticos e o que ela mesma percebia nas pessoas. Como ela relembra ao falar da figura do sapateiro:

Em 1965 eu morava numa cidade pequena no interior da Bahia, Itajuipe, fica na região do cacau, e o povo começou a falar que os militares estavam prendendo gente, o sapateiro, que se escondeu embaixo da cama, porque era comunista -O comunista era um monstro e estava destruindo o país - eu fiquei muito impressionada com aquilo porque o sapateiro era nosso amigo. Uma pessoa maravilhosa, como pode ser tão horroroso, nosso amigo conserta nosso sapato, conversa com a gente, dá bala para as crianças? (OLIVEIRA, 2021).

Filha de pais separados, entre os anos de 1969 e 1970 passou a morar com sua família paterna no Recife. Estudando no Colégio da Sagrada Família em Casa Forte e na Escola Rural Alberto Torres. Tendo vivenciado nesta última uma boa relação com o professor Humberto Vasconcelos, que colocava em destaque a qualidade da produção textual de Léa Lopes e a incentivava a escrever, afirmando que ela possuía o dom das palavras. Aos 14 anos, a garota Léa começa a perceber que sua forma de falar era diferente da dos demais colegas, foi quando evidenciou seu lado poético e começou escrever poesias:

Eu sou poetisa, eu me descobri poetisa eu acho que na grande maioria, na escola. Eu sempre me destacava nas minhas redações, sempre as minhas redações eram comentadas, eram elogiadas. Eu gostava muito de debater com os professores e expor meu ponto de vista. E aí, alguns professores começaram a me “cutucar” (OLIVEIRA, 2021).

A vivência escolar possuía características de um ensino conservador e tradicional, com atividades voltadas apenas para as estudantes do sexo feminino, como o bordado e a costura. Diferente das aulas de Moral cívica, que aconteciam para os meninas e meninas. Sobre estas aulas a poetisa relembra que a condição social e política do Brasil era um dos temas abordados, e que ainda que as aulas acontecessem de forma mais tradicional, um momento em que os estudantes tinham a oportunidade de despertar ou não o espírito político. Uma experiência que revela a influência que um professor pode exercer na sala de aula. Um poder. Uma vez que mesmo se tendo um currículo determinado, o professor consegue, até certo modo, trazer discursos que podem burlar o currículo e o sistema, como neste caso, uma disciplina rígida em um contexto de ditadura militar, mas o professor conseguia tornar um momento de diálogo e reflexão política.

Embora gostasse do hábito da leitura e tivesse habilidade com a escrita, Léa Lopes não concluiu o segundo grau, justificando que:

Eu rejeitei o sistema escolar que me obrigava a somar e multiplicar os catetos da hipotenusa, mas não me ensinava o que é a hipotenusa nem para que serve. A filosofia da matemática é maravilhosa, mas só ensinam cálculos contas decoreba, inútil pra quem quer a área de humanas. Rejeito até hoje mesmo sabendo que é estupidez minha contra mim mesma. (OLIVEIRA, 2021)

A rejeição ao sistema escolar não impediu que Léa ingressasse em outros espaços formativos. Em 1970 ela ingressou na Aliança Francesa no Recife, foi bolsista por alguns anos no curso Nancy, que possui uma base curricular que se assemelha a um curso de letras, curso que conclui em São Paulo. Formação que a habilita a lecionar francês em cursos de idiomas, mas não permite que lecione em escolas regulares, uma vez que cumpriu a grade curricular do Brasil. Como a Aliança Francesa segue as normas da França, o acesso a esta instituição aconteceu por meio de uma seleção de ingresso, a qual não tinha a conclusão do ensino médio como um requisito. Em 1981 ela fixou moradia em São Paulo. Em 1989 ela cursou um semestre do curso de tradução, o qual foi interrompido devido a uma gravidez.

UM FINAL DE SEMANA E ENTÃO, UM CASAMENTO HIPPIE...

Durante muito tempo na história brasileira as relações com os dispositivos de formação, baseada no catolicismo e na visão antropocêntrica, moldaram às mulheres e as fizeram corresponder a uma cultura onde seu corpo e sua fala tinham pouco valor. Entretanto, sempre existiram e ainda existem fugas, representadas dentre outros elementos pela desobediência às imposições feitas. Michelle Perrot (2019), lembra que o feminino, dentro da história da diferença dos sexos, foi sinônimo de carência e uma as consequências foi a mulher ser vista enquanto o outro humano que vive na mesma sociedade que o homem, mas, não pôde participar dela com a mesma liberdade, a mesma desenvoltura, a mesma independência.

As questões de gênero condicionaram por muito tempo a educação das mulheres, e ao mesmo tempo que umas aceitaram as imposições e as perpetuaram em outras gerações, também houve aquelas que quanto mais sentia o controle sobre seu corpo e seus comportamentos, devido ao seu sexo, mais se rebelava e confrontava as imposições e as estruturas sociais. Mulheres dispostas a correr riscos, a subverter a ordem cultural imposta e transformada em tradicional. A história mostra que a submissão não é parte da natureza da mulher, mas algo imposto, e por isso muitas relutam e rompem com o que a sociedade e a família lhes impõe como um modelo de vida e conduta a ser seguido, seja na vida pública ou privada.

Quando Léa Lopes chega no Recife, por volta dos seus 15 anos de idade se depara com um momento de grande agitação política, e com uma realidade onde o autoritarismo da ditadura levava as pessoas contrárias ao regime a se aproximarem uma das outras buscando a força do coletivo. Foi neste momento que ela se aproximou de pessoas mais velhas, entre elas estaria o poeta e escritor pernambucano Marcelo Mário Melo e outros colegas também ligados às artes como: Jomard Muniz de Brito, Juareiz Correia, Lula Cortês, Mario Mota, Paulo Bruscky e outros. Na época, o Bar Sete era um ponto de encontro de artistas e intelectuais, um local onde ela conheceu e se aproximou de pessoas perseguidas, presas e torturadas pelo Regime Civil-militar.

Foi o período em que ela também se aproximou do movimento hippie, devido a estar mais inclinada politicamente para uma vertente revolucionária mais preocupada em transformar a pessoa e não transformar a política. “A nossa geração teve uma diferença muito grande de “ideologia”, eu sou muito mais para o hippie. Havia uma visão socialista da gente, a preocupação do pessoal com quem eu mais convivi era de mudar a pessoa. (OLIVEIRA, 2021). Neste período, Léa Lopes mantinha amizade com Juarez Correa, Lyrio (que era um de seus irmãos), Luiza russo, Marciano, Marconi Notaro e outros. Ambos eram atraídos pelo acesso a diferentes livros, ao jornal revolucionário Pasquim, que era uma forma de fazer oposição à ditadura, e também gostavam dos modos de se vestir das pessoas hippies. Revela-se por esta realidade vivida por Léa a existência do que seria uma identidade social, a qual para Chartier (1988) tem relação com a representação que se faz de si e do mundo. Do modo de participar do mundo e escolher uma posição mediante diversas formas de ser e existir.

A partir da década de 1960 se tem no Brasil, assim como em outros países, um levante de jovens que se recusaram a seguir padrões de vida baseados na cultura moderna e por dizer, os padrões educativos das famílias tradicionais conservadoras. Na rua se via uma conduta que foge ao modelo de vida traçado para sustentar a sociedade capitalista e que expressava uma vontade de liberdade dos sujeitos, seja com relação ao trabalho, a alimentação, a vida sexual e até mesmo a sua imagem e o modo de se portar e de se apresentar no mundo.

Léa Lopes representa as mulheres que em sua juventude desejavam o amor livre. Por muitas vezes questionou a permissão que o pai cedia ao filho homem de levar as namoradas para dormir em casa e que para ela, a filha mulher não era concedida. Uma situação em que o pai sempre se posicionava argumentando que o homem não engravida e que a responsabilidade sobre os filhos é sempre das mulheres. Uma demonstração de como o prazer da mulher estava associado a procriação, não existindo a ato sexual sem a ideia de maternidade, uma realidade que fez com que as mulheres tivessem seu prazer regulado pela sua formação biológica, pelo seu corpo. Aspectos que poderiam ser repensados a partir da educação sexual, da utilização dos métodos contraceptivos, caso o corpo da mulher fosse visto como portador dos mesmos direitos que o dos homens. Se na rua Léa Lopes frequentava e convivia com pessoas não dicotômicas, pessoas que não se apressam em julgar e dividir o mundo entre o certo e o errado, em seu lar as coisas eram diferentes. Com uma família de base conservadora, no seio familiar as instruções recebidas perpassavam a cultura machista e conservadora.

O casamento da poetisa Léa Lopes é indício de uma estratégia de fuga do controle sobre o desejo feminino. Aos 15 anos de idade ela resolve passar um final de semana fora de casa, na companhia de seu namorado, Gerson de Oliveira Filho, que aos 24 anos era um apaixonado pelo teatro e na época pretendia montar uma peça no teatro Happening (improviso), uma tendência da época. Com a estratégia utilizada, o pai da poetisa, um ateu declarado e suas tias, católicas praticantes conservadoras, não poderiam, mas impedi-la de estar na companhia do namorado, pois uma moça que dormiu fora de casa com o namorado não poderia ficar sem se casar. Motivo pelo qual surge o evento do casamento, algo que o casal queria que fosse para “abalar as estruturas” (OLIVEIRA, 2022). Logo, optaram por um casamento no terreiro de Pai Edu de Olinda, no Alto da Sé. Um evento que fugia ao costume da época, com cerimônias realizadas nas igrejas católica e noivas virgens de véu e grinalda. Assim o casamento acabou por ficar registrado em uma matéria publicada no Jornal do Comércio em 1971, entre os dias 24 e 25 de junho. E novamente publicado em 1975 no jornal o Diário de Pernambuco.

Fonte: Jornal do Comércio, impresso, 1971.

Figura 1 Reportagem do casamento publicada no Jornal do Commércio 

Fonte: Diário de Pernambuco, impresso, 1975.

Figura 2 Reportagem do casamento publicada no Diário de Pernambuco 

Estas experiências da poetisa, demonstram que não são todos os costumes culturais que se pode burlar, pensando na compleição física e no sexo, os homens, as religiões e o Estado tentaram, e em alguns casos conseguiram controlar os espaços de circulação, as atividades possíveis de serem desenvolvidas por mulheres. O modo como devem ser e se portar e até mesmo o modo como são reconhecidas. A maneira como a poetisa Léa se apresenta depois de 46 anos de seu casamento, faz pensar sobre este último modo de controle: “Meu nome é Léa Tereza Lopes de Oliveira, por casamento” (OLIVEIRA, 2021). Uma fala que faz refletir sobre a prática da adoção do sobrenome da família do marido pela esposa. A qual, no Brasil, era uma prática obrigatória para a mulher definida no Código Civil de 1916 e que só passou a ser facultativa com a Lei 6.515/77. A partir da Constituição de 1988, a mesma prática poderia se estender aos homens, mas não de forma obrigatória. Determinações que são traços da herança patriarcal institucionalizada e legalizada, e que demonstram o exercício do controle sobre a vontade da mulher, pois não eram todas as mulheres que tinham o interesse de mostrar a fusão das famílias a partir do uso do sobrenome do marido. Há que se considerar então, que pensando a transmissão de bens da família, Pierre Bourdieu (1993) destaca o sobrenome como elemento base do capital simbólico hereditário.

A MATERNIDADE FELINA

Léa Lopes foi mãe aos 17 anos, depois que ficou viúva aos 19 anos ela teve outros envolvimentos e mais três filhos, gestações que por falta de um planejamento geraram conflitos no seu lar:

Não me organizei para não engravidar, fui descuidada, engravidei, engravidei, isso gerou um problema sério com a família, brigas fortes e brigas sérias até chegar ao ponto de eu ter que renunciar aos meus filhos e vir embora para São Paulo. Renunciei, eu não podia criá-los eu não tinha condição econômica de criá-los, eu não queria criá-los de qualquer jeito feito a maioria dos hippies. Eu não tinha condição de conviver com minha família, que era meu suporte econômico. Eu “abri mão” dos filhos para que eles tivessem uma base econômica, não me arrependo em nenhum momento. (OLIVEIRA, 2021)

No ano de 1989 Léa morava em São Paulo, foi lá onde nasceu sua quinta filha, Eva. Com quem ela mora atualmente. Sua filha é professora da rede pública de ensino, o que considera uma oportunidade para melhorar a população, uma vez que considera que não faz sentido a pessoa estar bem se o mundo onde se vive está mal.

Sua experiência como mulher e mãe é um período que ela considera muito forte e íntimo. Em casa ela não recebeu uma educação com abertura para conversar sobre sua sexualidade. O que ela aprendeu em casa é que uma mulher não podia beijar fora do casamento. Recebia instruções de seus avôs, pais e tias sobre a higiene da mulher, mas o prazer seguro e cuidado com o corpo da mulher não era uma temática discutida. Experiências que levaram a poetisa a apostar em uma educação para a sexualidade, ela observa que “ainda hoje é mais fácil o tratamento e cirurgia para transição de gênero do que uma mera laqueadura... só depois de 30 anos” (OLIVEIRA, 2021). Neste mesmo sentido considera também que:

Toda a minha experiência e toda essa vivência de família que é uma coisa muito íntima e muito reservada minha, isso logicamente influenciou muito na minha poesia. Ela é a libertação da mulher, que depende do cuidado que a mulher vai ter com ela mesma. Filhos é muito bom é muito lindo. Mas a gente tem que saber né, tem que haver esse esclarecimento essa conscientização da mulher, coisa que eu não tive e que eu passo para minha filha e para minhas amigas e para as filhas das minhas amigas. Provavelmente a minha poesia pega muito esse gancho, da liberdade da mulher, a liberdade o equilíbrio a educação a orientação dela, não é! (OLIVEIRA, 2021)

Um sentimento que ela deixa transbordar, de modo simbólico o imaginário de proteção da maternidade da espécie felina na estética de sua poesia visual “materna” (1989).

Fonte: Facebook, on-line, 2022.

Figura 3 Poesia Visual Materna 

A partir da experiência com a maternidade e com sua sexualidade Léa Lopes amadurece e se empodera, tomando estas experiências como um aprendizado a ser repassado para outras mulheres. A microanálise da trajetória de vida de Léa Lopes descortina seu processo de emancipação feminina, e representa as mulheres que sofrem com a falta de informação e orientação, que pagam um preço alto para ter liberdade sobre o corpo e seus desejos. Escolhas que a levou a desentendimentos em família por ter gerado 5 filhos sem planejamento familiar, sem estrutura para receber e criar as crianças, fazendo com que a tutela do/as seus/suas 4 primeiro/as filhos/as fosse repassada para familiares com melhores condições. Um assunto que a poetisa não se sente confortável em adentrar. Expondo:

A minha geração a minha época amor livre liberdade e igualdade e quis ser igual aos meninos, ter a mesma liberdade sexual que os meninos tem e não me organizei pra não engravidar, fui descuidada, engravidei, engravidei, isso gerou um problema sério com a família, brigas fortes e brigas sérias até chegar ao ponto de eu ter que renunciar aos meus filhos e vir embora para São Paulo. Renunciei, eu não podia criá-los, eu não tinha condição econômica de criá-los, eu não queria criá-los de qualquer jeito feito a maioria dos hippies. Eu não tinha condição de conviver com minha família, que era meu suporte econômico. Eu "abri mão" dos filhos para que eles tivessem uma base econômica, não me arrependo em nenhum momento. (OLIVEIRA, 2022)

De modo subjetivo, a poesia "Num reino sem cavalheiros" (2005), apresenta simbolicamente entre os imaginários de cavalheiros, damas e figuras religiosas seus sentimentos relacionados a sua intimidade, seus relacionamentos amorosos e sobre a sua liberdade sexual.

Num reino sem cavalheiros

Num reino sem cavalheiros

a poesia é mais uma

— dama bêbada.

perambulando através

de palavras dos cortesãos:

...versos flutuando,

pétalas levianas, murchas e letais...

Num reino sem cavalheiros

menestréis e pajens

duelam com alaúdes e foices

enquanto os cavalheiros

valentes e ausentes

combatem nas cruzadas,

em batalhas homéricas

por uma causa quimérica:

—Proteger a sepultura

do Deus mortal!

Num reino sem cavalheiros

amores são adiados.

Damas são traídas,

lares são desprezados,

pois combater mais que amar

"é o voto,

é a sina,

é a glória

do cavalheiro!"

Num Reino sem cavalheiros

os abades são amantes

e as gentis damas insatisfeitas,

patéticas Dulci Nóias

usadas, ousadas,

usando armaduras remendadas

combatem saqueadores

e dragões,

enquanto reconstroem

os moinhos de vento.

UMA ARTISTA MARGINAL...

Casada aos 15 anos, mãe aos dezessete, viúva aos 19 e com um total de 5 filho(a)s era na poesia que Léa Lopes colocava para fora aquilo que a incomodava. A partir de meados da década de 1970 ela era uma das poetisas que atuava ativamente no movimento literário “marginal” do Recife1:

Em 1970 era o começo de publicações sem ISBN sem vínculo com formalidades. Em 1980 surgiu a Editora Pirata e toda uma movimentação inspirada nas publicações feitas pelo pessoal da Pirata (Cunha Melo J. Bezerra etc). Dependíamos da agenda deles para publicar algo e eles publicaram de enxurradas. o Movimento do Escritores Independentes de Pernambuco em 1980 deu seguimento, mas seguiu formalidades "empresarias”. Percebe a diferença? O poeta deixa de ser dono absoluto de sua produção pois necessita do editor que materializa seu projeto (OLIVEIRA, 2021).

Um movimento onde a inspiração poética advinda das ruas e becos da cidade, de pensar o corpo e seu deslocamento no espaço urbano. Neste modelo de produção literária os poemas eram impressos em papel sulfite e colocados para circular na cidade, os bares eram um dos locais de circulação da poesia:

Não falávamos de arte de resistência, mas era isso, talvez na época era mais imediato perceber a poesia/arte como trabalho/renda. Era pra vender poemas. Existia uma colega chamada Glória que vendia uma rosa e dava um poema como brinde. Era para provar que trabalhávamos e éramos produtivos. necessários e demandados. Era um sonho viver de arte não ser consumido nem consumidor na sociedade do consumo. Parece que a galera de hoje em dia, diferente da patota de antigamente, tem outro enfoque de arte como ativismo político na base, slam. Enfim em 70 se fazia a arte de negar a política e em 22 se faz a arte do ativismo político (OLIVEIRA, 2021).

A poesia para ela “[...] é a libertação da mulher, que depende do cuidado que a mulher vai ter com ela mesma.” (OLIVEIRA, 2021). Léa Lope é uma mulher que vê nas pessoas a salvação para um mundo doente e sua poesia reflete algumas das mazelas que ela encontrou pela vida. À medida que a arte permite a existência em um mundo paralelo, ela também permite tratar do que se sente e daquilo que por vezes a mulher não podia expressar no âmbito familiar e na esfera pública, sobretudo em relação aos seus desejos sexuais, um diálogo que ainda no século XXI é tabu nas famílias conservadoras. Assim, o corpo e a poesia se relacionam na medida que a escrita materializa o espírito do artista em suas sensibilidades. Logo, “a poesia, se por acidente é narrativa e significante, essencialmente é uma modulação da existência” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 209). Em seu poema Auto retrato, de 2016, Léa Lopes deixa transparecer o sentimento que tem sobre sua existência em uma sociedade castradora da liberdade feminina.

Auto Retrato

O meu rosto?

— Tenso como o medo!

O meu olhar?

— Triste como a solidão!

O meu corpo?

— Ágil como o desespero!

A minha alma?

— Mais carente do que a fome!

A minha vida?

— Um átomo entre existência e eternidade!

A diferença sexual e as implicações da cultura patriarcal se destacam como dois dos principais fatores que interferiram nas dinâmicas da vida social e privada das mulheres ao longo da história. O modo como as mulheres se expressam, se vestem e se comportam seja na vida pública ou privada tem sido ditado pela sociedade, o que não significa que elas aceitem. Até mesmo a falta de associação da mulher com as atividades que desenvolvem, uma vez que as palavras que definem as atividades e profissões, em maioria não são utilizadas na sociedade com a flexibilização de gênero, pois, historicamente o gênero masculino tem sido adotado como forma de representação coletiva. Uma forma de secundarizar a presença da mulher em determinados cargos e atividades, isto para não afirmar uma tentativa de invisibilizar suas ações na sociedade.

Em contrapartida ao gênero, que, tradicionalmente, dá significado às relações de poder, a arte permite fugir do poder imposto, sendo um meio tanto de resistência, quanto de existir e de viver um mundo paralelo onde a liberdade é plena e possível de ser alcançada. Dentro de casa, Léa Lopes não encontrava liberdade para uma atividade literária pública. Se de um lado seu pai era um homem que gostava de literatura e estimulava esse prazer nos filhos, por outro, ele achava que o lugar da mulher era dentro de casa. Entretanto, há mulheres a exemplo de Léa Lopes que se apresentam, que se anunciam, que se impõe ao mundo na medida em que deixa clara a sua constituição e o que é. Disse ela: “Bom, eu sou basicamente poeta, poetisa, eu gosto, não abro mão da palavra poetisa, se eu falo juíza porque eu não falo poetisa, eu acho um absurdo da modernidade, como tem outros aí pelo caminho, e que acho uma coisa meio deslocada.” (OLIVEIRA, 2021).

Muito do que a mulher não pode viver no mundo real ela viveu e vive dentro da linguagem artística que tinha/tem mais afinidade, utilizando a arte como uma fuga das dores advindas da condição humana. Já expunha Ernst Fischer (1976), ao tratar da necessidade e da origem da arte: “(...) aqui se reflete a filosofia do homem que voou para fora da sociedade ou pretende fazê-lo. Erga a sua tenda, longe do mundo. Nenhum outro modo de vida vale a pena. O mundo é escuro. Entre na tenda, refugie-se nela. No interior dela há luz.” (FISCHER, 1976, p.117). Ao discutir sobre as origens da arte e a concebendo como um trabalho humano Fischer (1976) afiança que:

O homem se apodera da natureza transformando-a. O trabalho é a transformação da natureza. O homem também sonha com um trabalho mágico que transforme a natureza, sonha com a capacidade de mudar os objetos e dar-lhes nova forma por meios mágicos. Trata-se de um equivalente na imaginação àquilo que o trabalho significa na realidade. O homem é, por princípio, um mágico. (ERNEST, 1976, p.22).

Embora o uso da expressão homem, seja utilizada por Fischer, convém entendê-la também contemplando a mulher. A história da mulher no ocidente emerge da narrativa religiosa cristã, devido aos colonizadores destas terras, entre elas a do Brasil. Uma perspectiva que situa a mulher como aquela que levou o homem a escolha errada, aquela que o prejudicou, visão que insere na nossa cultura o mito da obediência e serventia. O mundo masculino traça a história que se quer fazer, que os privilegia. Não foi ensinado a ver a “mulher Eva” como uma pessoa de atitude, dotada de capacidade de decisão, como exemplo de mente ativa. Aquela que buscou liberdade e conhecimento ao ser subversiva, cuja escolha deixou seus olhos abertos para não mais se enganar.

A história bíblica é narrada de modo que por milênios a mulher, por meio de tal alegoria, é sufocada, é secundarizada, quando comparada ao homem. Uma outra leitura do mítico paraíso poderia mudar a perspectiva sobre a capacidade da mulher, lhe deixando em posição de igualdade e não de inferioridade. Uma perspectiva de análise que rompe com a ideia de que havia aptidões e qualidades inerentes ao homem e a mulher, bem como vocações naturais a cada um dos sexos. “Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos.”(PERROT, 2017, p.186).

Outro ponto que condiciona a voz feminina ao silêncio é o aperto de mãos entre o patriarcado e o capitalismo, o modo como eles estão imbricados não permite que a mulher se sobressaia enquanto fonte de produção tão potente, quanto eles a têm como de reprodução da espécie. No século XX, as feministas gritam por igualdade, uma luta que leva em consideração o direito ao saber, pois, por ser um instrumento de poder, ele contribui com a luta pelo espaço público. O que é fundamental para as mulheres que não querem ter suas vidas resumidas às cozinhas e aos afazeres de casa, mas que desejam participar da produção de riquezas, tanto de produtos quanto do conhecimento que transforma a população. Assim, “o direito ao saber, não somente à educação, mas à instrução, é certamente a mais antiga, a mais constante, a mais largamente compartilhada das reivindicações. Porque ele comanda tudo: a emancipação, a promoção, o trabalho, a criação, o prazer.” (PERROT, 2019, p.159).

No estado de Pernambuco na década de 1950 e 1960 ainda se tinha uma sociedade baseada na doutrina católica e no patriarcalismo das famílias açucareiras e coronelistas, que exerciam poder na sociedade, a qual era marcada por diferentes formas de desigualdades — classe, raça e gênero. Um cenário representado na obra “O auto da Compadecida” de Ariano Suassuna (1990), com o personagem do Major Antônio Morais, figura que manda e desmanda em uma típica cidade do interior do nordeste. No Nordeste, vale lembrar que há um imaginário coletivo cercado de figuras masculinas associadas ao grosseiro, ao que é bruto, a tradição do “cabra macho”2. Uma representação simbólica que dá forma a padrões da vida cotidiana e acabou por impactar diretamente na educação das mulheres. Um simbólico que não é estrutural, mas que considera a cultura e o tempo, fomentando em uma representação baseada na relação social e cultural dos indivíduos e dos grupos.

A historiadora Mary Del Priore (2020) observou que durante séculos as mulheres foram sobreviventes e guerreiras ao mesmo tempo. Enquanto se tornavam pioneiras em diferentes atividades, sua presença atendia ao interesse do sistema patriarcal, construindo a representação de mulher que era conveniente à sociedade. Foi assim no rádio, que enviava a mensagem do moralismo vinculado à pureza feminino e no teatro que tentou construir uma imagem da mulher moderna com base em uma estética feminina do corpo sexualizado. Diferentemente do que acontecia no Teatro Popular e Amador, o qual tinha por proposta alcançar as camadas menos abastadas da sociedade e estavam focados nos temas relacionados aos problemas sociais.

A respeito do que se via entre 1940 e 1960 no cinema brasileiro, “As representações sobre as mulheres reproduziam situações conhecidas e repletas de moralismo conservador da época. As personagens femininas, principais ou secundárias, heroínas ou vilãs, só existiam em função de suas relações com os homens.” (PRIORE, 2020, p. 167). De um modo cíclico, a representação é constituída a partir do mundo social que, em seguida, o constitui também, base para as tradições que legitimam as posturas autoritárias e os comportamentos que reforçam a desigualdade de gênero. Uma realidade que no final da década de 1960 começa a mudar, pois com as produções da Maria do Rosário Nascimento (1949-2010), primeira cineasta brasileira, observa-se uma ruptura dos roteiros e direções cinematográficas, com abertura para temas marginais a sociedade, dentre eles a sexualidade feminina e as desigualdades encontradas por aqueles que vivem nas periferias brasileiras.

De acordo com Perrot (2005), as relações entre os sexos estiveram envolvidas com diferentes problemas do tempo e da história, como o sofrimento, a violência, o amor, a sedução, o social, o trabalho e a criação do pensamento simbólico, questões que desembocam na vida e na educação das mulheres, por isso a “A diferença dos sexos revelava-se de uma grande fecundidade.” (PERROT, 2005, p. 25). Neste sentido, como analisou Chartier, concordo que:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p. 17)

A linguagem é uma das maneiras pelas quais se pode conhecer as representações sociais dentro da sociedade, junto às práticas cotidianas elas podem materializar uma tradição inventada. Neste sentido, diferentemente da educação dos rapazes, observa-se que na educação das moças havia a preocupação com o controle de seus desejos sexuais, um costume verbalizado por meio do ditado popular “prendam suas cabras que meu bode está solto”, comumente utilizado no interior do nordeste. Um discurso relacionado a aproximação entre moças e rapazes, que tem por objetivo afirmar que as moças seriam responsáveis caso alguma intimidade viesse a acontecer entre eles. Uma fala trazida por mulheres mais velhas — mães e avós — que é capaz de evidenciar o quanto a sociedade conservadora associa o prazer do homem à liberdade e o da mulher a responsabilidade. Seja a responsabilidade em caso de perda da pureza/virgindade feminina ou ainda a responsabilidade em caso de uma gestação, uma vez que, o prazer feminino é atrelado a maternidade. Vale salientar que:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 2002, p. 17).

Neste sentido, a observação da história da vida de Léa Lopes demonstra que normas de conduta e representações do feminino com um viés machista tem regido a educação das mulheres. A repetição dessas normas e representações de uma geração a outra exemplificam o poder de uma tradição, neste caso, a nordestina, em que uma das principais características é a castração das liberdades femininas, sobretudo sobre a sexualidade e a atividade profissional das mulheres. Para John Scott “Na era das revoluções democráticas, “mulheres” tornam-se excluídas políticas por parte de um discurso baseado em diferença sexual” (SCOTT, 2002, p. 26). Neste sentido, vislumbrando encontrar indícios do que pode ter sido o cotidiano das mulheres pernambucanas educadas nas décadas de 1950 e 1960, o trabalho com as narrativas das fontes orais é visto como um dos caminhos de acesso a experiências pessoais. Isto porque, “Existem diferentes formas de uma sociedade produzir tradição, através de modelos e referências. Essa produção está vinculada às práticas, aos rituais ou aos símbolos inventados sobre determinadas pessoas, instituições ou sociedades”. (HOBSBAWN, 1997, p.9).

As tradições que colocam o feminino em desvantagens e se calcificam e de maneira tão profunda que, para algumas mulheres, a fuga do patriarcado somente é possível no campo da imaginação e por conseguinte nas artes. Quando questionada sobre qual a tônica de sua arte, a poetisa Léa Lopes (2021) a poetisa é contundente em afirmar que “É um ato de liberdade!”. Liberdade do corpo e da alma, liberdade das dores de quem teve que abrir mão da criação de alguns filhos, de quem percebia suas vontades e sonhos serem reprimidos.

O corpo que sente, é o mesmo corpo que em alguns momentos guarda, e em outros fala. A presença do corpo e alma da poetisa na Cidade de São Paulo, de tudo que uma jovem mãe migrante observou nas ruas de uma grande metrópole, se junta a conjuntura econômica e política do momento. Haja vista que, em 1981, ano que Léa Lopes chega em São Paulo, o Brasil passa por uma transição política e por uma crise econômica marcada pelo descontrole da inflação. Os aspectos subjetivos da construção da identidade da mulher/cidadã no contexto de volta à democracia podem ser observados com a análise sensível do seu poema visual “Grananciosidade São Paulo”, construído em um amplo espaço de tempo. Onde os elementos verticais trazem os sentimentos e impressões sobre este espaço urbano, uma vez que, “a primeira vez que vi sampa pensei/senti beleza e medo e muitas luzes (néon era a palavra...) e fui compondo até chegar no visual para o livro "se catar"” (OLIVEIRA, 2021).

Fonte: Poesia viva das cidades, 2022

Figura 4 Imagem do poema visual Grananciosidade São Paulo de Léa Lopes 

Observa-se então que o trajeto artístico de Léa Lopes acontece em dois momentos diferentes. No Recife, na efervescência de uma cidade em um momento de autoritarismo, quando ela participou do movimento da literatura marginal, mas também realizou exposições, com outros colegas, como a participação um evento com Paulo Bruscky, poeta e artista multimídia. No segundo momento, em São Paulo, na década de 1990 realizou a exposição Pincelavras, por meio do projeto “Arte na Rua” do Instituto Yázigi.

Durante 18 anos Lea Lopes trabalhou no Embu das Artes com a reciclagem e restauração de roupas e livros. Também participou do Projeto “Solidariedade é Chic”, no qual ensinava reciclagem, reciclava e fazia a distribuição das roupas recolhidas pela Campanha do Agasalho, em parceria com Rê Gonda. Realizando por muito tempo trabalho com customização de roupas, a partir do Jeans e da Chita. Atualmente Léa Lopes produz peças apenas para a família e dedica seu tempo ao cuidado da família, é o suporte para que a filha possa lecionar. As poesias produzidas pela artista possuem circulação por meio de publicação em livros e em exposições realizadas individualmente e junto a outros artistas nacionais. Tratando-se de uma artista que enfrentou a invisibilidade de sua obra ao se firmar com uma temática que não faz parte do interesse editorial comercializado em larga escala. Podendo considerar suas obras como de uma circulação local e de acesso ao público interessado na temática e estilo da artista.

É entre uma trajetória escolar na rede pública, a convivência com pessoas ligadas as artes, o envolvimento em atividades de grupos hippies, envolvimentos amorosos e sobretudo, sendo repreendida por alguns familiares mais conservadores que Léa Lopes constituiu seu modo de viver em sociedade. Pois, no âmbito familiar sua visão de mundo se forja a partir de experiências de relacionamento que anulam a necessidade do outro e seus desejos. A vida da poetisa demonstra aspectos de como era a realidade das meninas e moças de famílias comuns pernambucanas na década de 1950 e 1960. Uma educação que sedimenta padrões de comportamentos femininos definidos pela sociedade e se distancia dos diálogos sobre o corpo das mulheres e de seus desejos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o objetivo deste texto é identificar e compreender, por meio da trajetória de vida e obra da poetisa Léa Tereza Lopes de Oliveira, o processo de emancipação da mulher artista pernambucana que atuava entre as décadas de 1960 e 1970 observou-se, a partir da análise da vida e de obras da artista, que não foram poucos os obstáculos enfrentados pelas mulheres que se colocaram em atividades e espaços que não são comuns a presença do feminino, assim como, a condutas que fogem do padrão estipulado pelo conservadorismo de uma sociedade patriarcal. No que tange a história da educação, as experiências narradas por Léa Lopes exemplificam a distância que se tem na educação das meninas do século XX no que diz respeito ao corpo das mulheres, seja com relação a sua sexualidade e desejos reprimidos historicamente.

Ao estudar a vida de Léa Lopes encontra-se uma mulher que enfrentou desafios comuns as mulheres educadas em meados do século XX, em especial aquelas mulheres que não se sentiam à vontade com uma sociedade androcêntrica, capitalista e conservadora. Assim como outras mulheres artistas, encontrou na liberdade da arte espaço para expressar seus anseios, desejos e sua leitura de mundo. Sua trajetória de vida exemplifica como o processo formativo acontece interligado as mais diferentes experiências vivenciadas por cada pessoa ao longo da vida. Onde suas relações com o outro e com o mundo acontecem em diferentes espaços, no público e privado.

Léa Lopes é exemplo da necessidade de uma visão política nas pessoas, tanto para pensar o mundo como a própria vida e suas vontades, revelando que a ideia de liberdade deve ser construída junto com uma formação cidadã e uma educação que vislumbre além de um currículo formal também as sensibilidades do ser humano. O que se observa na narrativa de Léa Lopes é uma mulher que é fruto de educação castradora e do convívio com pessoas mais experientes envolvidas com a política e com a arte em um contexto de Regime Civil-militar. Sua vivência, assim como a de qualquer outra pessoa, exigiu a tomada de consciência sobre como viver no mundo e sobre que mundo se quer construir. Seu impulso criativo é sua própria vida, sua vontade de falar, de partilhar seu modo de ver a si mesma e ao mundo, é seu grito a ecoar por mudanças, para as mulheres e para a sociedade.

Deste modo, a narrativa da poetisa Léa Lopes aponta os modos utilizados nas sociedades conservadoras para regulamentar o feminino, o que transborda na sua estética poética, corroborando para ideia de que para a artista a arte é exílio das normas de conduta e representações do feminino vivida em sua trajetória de vida como mulher e artista. Assim como revela a castração da liberdade da mulher, em especial de sua sexualidade e de sua atividade profissional como parte da tradição nordestina, a qual demonstra seu poder à medida que se observa a repetição de normas e representações do feminino de viés machista durante as gerações. Suas experiências escolares revelam o lugar do feminino e alguns aspectos e implicações da ocultação do currículo e da atividade do magistério na formação das subjetividades da personalidade e da identidade profissional na vida das pessoas.

1Movimento criado na década de 1970 por um grupo de artistas que tinham por ideal a democratização das produções literárias, colocando a poesia produzida e entregue nas ruas da cidade como uma forma de emancipação da tutela editorial.

2No Nordeste, e principalmente nas regiões mais afastadas da capital o homem costuma ser associado a pessoa de pouca sensibilidade, não chora, não tem medo e por isso foram colocados dentro de um padrão de comportamento relacionado ao agressivo ao violento e a outros comportamentos e atitudes presentes na ideologia machista que coloca o homem como sendo superior a mulher. Um exemplo de como a cultura Machista não é maléfica apenas as mulheres, mas aos homens também, pois ainda que não se encontre dentro desse padrão o sujeito do gênero masculino para ser julgado de modo positivo precisa demonstrar uma virilidade agressiva. O que caminharia e exemplificaria a construção cultural tanto do sexo quanto do gênero.

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Agosto de 2022

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