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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./sept 2022  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.66918 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

A LINHA TÊNUE ENTRE MULHER NEGRA, EDUCAÇÃO ESCOLAR E PROFISSÃO (RIO GRANDE DO NORTE, 1931-1963)

THE FINE LINE BETWEEN BLACK WOMEN, SCHOOL EDUCATION AND PROFESSION (RIO GRANDE DO NORTE, 1931-1963)

LA DELGADA LÍNEA ENTRE LAS MUJERES NEGRAS, LA EDUCACIÓN ESCOLAR Y LA PROFESIÓN (RIO GRANDE DO NORTE, 1931-1963)

Marta Maria de Araújo, Profa. Dra.1 
http://orcid.org/0000-0001-5820-9462; lattes: 690579449620579

Ms. Paulo Basílio de Alcântara2 
http://orcid.org/0000-0002-6927-1808; lattes: 8721387356632256

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte E-mail: martaujo@uol.com.br

2Colégio Monte (Natal, Rio Grande do Norte) E-mail: pa.basilio94@gmail.com


Resumo

Com a intenção de prosseguir na discussão sobre a escolarização das mulheres no Brasil, este estudo reflete acerca do alcance do direito à educação primária, principalmente de dez mulheres negras que estudaram no Rio Grande do Norte entre 1931 e 1963, em intersecção com a teia humana da origem social da família, os estudos escolares e as profissões. Metodologicamente, para análise do corpus documental (entrevistas semiestruturadas e documentos oficiais), faz-se uso do entendimento de direito à educação de Cury (2002), Chizzotti (2020) e Anísio Teixeira (2009), essencialmente por concebê-lo na amplitude da dimensão humana e social de cada pessoa. Em termos de conclusão, o corpus documental pesquisado revela que o direito à educação escolar das dez mulheres negras estudadas foi resultante da sociedade da escolarização, embora com oportunidades socioeducacionais limitadas e desiguais: uma parte delas (três), que estudou o ensino primário em fazendas, sítios e povoações, não prosseguiu os estudos para os níveis secundários seguintes, além de ter exercido profissões diferenciadas daquelas das sete mulheres que tiveram o direito à continuidade dos estudos em nível secundário (quatro) e universitário (três) no período em pauta.

Palavras-chave: mulheres negras; direito à educação; Rio Grande do Norte

Abstract

With the intention of continuing the discussion about women’s schooling in Brazil, this study reflects about the scope of the right to elementary education, mainly of ten black women who studied in Rio Grande do Norte between 1931 and 1963, in intersection with the human web of family social origin, school studies and professions. Methodologically, for the analysis of the documental corpus (semi-structured interviews and official documents), we use the understanding of the right to education of Cury (2002), Chizzotti (2020) and Anísio Teixeira (2009), essentially by conceiving it in the amplitude of the human and social dimension of each person. In conclusion, the researched documented corpus reveals that the right to school education of the ten black women studied was a result of the schooling society, although with limited and unequal socio-educational opportunities: part of them (three), who studied elementary education on farms, ranches and settlements, did not continue their studies to the next secondary levels, besides having exercised different professions from those of the seven women who had the right to continue their studies at the secondary level (four) and university level (three) in the period in question.

Keywords: black women; right to education; Rio Grande do Norte

Resumen

Con la intención de continuar la discusión sobre la escolarización de las mujeres en Brasil, este estudio reflexiona sobre el alcance del derecho a la educación primaria, principalmente de diez mujeres negras que estudiaron en Rio Grande do Norte entre 1931 y 1963, en intersección con la tela humana del origen social familiar, los estudios escolares y las profesiones. Metodológicamente, para el análisis del corpus documental (entrevistas semiestructuradas y documentos oficiales), se utiliza la comprensión del derecho a la educación de Cury (2002), Chizzotti (2020) y Anísio Teixeira (2009), esencialmente concibiéndolo en la amplitud de la dimensión humana y social de cada persona. En conclusión, el corpus documental investigado revela que el derecho a la educación escolar de las diez mujeres negras estudiadas fue resultado de la sociedad de la escolarización, aunque con oportunidades socioeducativas limitadas y desiguales: parte de ellas (tres), que estudió la educación primaria en haciendas, ranchos y asentamientos, no continuaron sus estudios hasta los niveles secundarios siguientes, además de haber ejercido profesiones diferentes a las de las siete mujeres que tuvieron derecho a continuar sus estudios en el nivel secundario (cuatro) y universitario (tres) en el período en cuestión.

Palavras chave: mujeres negras; derecho a la educación; Rio Grande do Norte

INTRODUÇÃO

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova dirigido ao Povo e ao Governo (1932; 1984, p. 411) – síntese de múltiplas determinações, no parecer de Cury (2004) – evocava a educação nova pelo seu caráter pragmático de “[...] se propor ao fim de servir não aos interesses de classes, mas aos interesses do indivíduo [...], reconhecendo a todo o indivíduo o direito de ser educado até onde permitem as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social”.

Expressão de uma civilização em mudança e razão social para constante revalorização é como deve ser traduzida a educação escolar, no julgamento de Anísio Teixeira (2009, p. 33), porquanto as novas experiências de vida não podem fazer-se “[...] sem que todos e cada indivíduo tivessem oportunidade de se educar até o limite de suas possibilidades”. Evidentemente, para Teixeira (1997, p. 86), o mínimo da educação escolar é que ensine cada indivíduo a viver melhor; “[...] transmitir os meios para participar, plenamente, de acordo com suas capacidades naturais, na vida social e econômica da civilização moderna”.

A educação – para Lourenço Filho (2002, p. 77) – assenta-se na dinâmica do individual e do social, cujo entendimento geral a cada momento, está apresentando a garantia da existência social e da reconstrução das experiências na qual se move o continuum da história. “E certo de que podemos apreciar os seus efeitos num só e determinado indivíduo, mas o caráter social não desaparece.”

Mas, ao logo da história dos povos, percebe-se uma discussão frequentemente centrada na ideia de sociedade (nação, governo, família, classes sociais etc.). O sociólogo Elias (1994, p. 45) chama atenção para o fato de que “[...] a história é sempre história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos.”

Conforme Elias (1994, p. 19), cada indivíduo é criado e educado por outro da geração que lhe antecede, por conseguinte “[...] ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo social, seja este qual for”. Todavia, sua liberdade individual para a escolha das oportunidades preexistentes – ressalva Elias (1994, p. 21, grifo nosso) - “[...] depende largamente do ponto em que ele nasce e cresce na teia humana e da situação de seus pais e, em consonância com isso, da escolarização que recebe”.

Pareceu que uma possibilidade de corroborar a discussão no que se refere à escolarização das mulheres numa determinada sociedade é, doravante, refletir sobre quanto do alcance do direito à educação escolar primária, principalmente de mulheres negras que estudaram, entre 1931 e 1963, no Rio Grande do Norte em intersecção com a teia humana da origem social da família, dos estudos escolares e das profissões que elas conseguiram.

Metodologicamente, far-se-á uso do entendimento de direito à educação de conformidade com Cury (2002), Chizzotti (2020) e Anísio Teixeira (2009), essencialmente por concebê-lo na amplitude da dimensão humana e social de cada pessoa, como, com propriedade, teoriza Cury:

A magnitude da educação é reconhecida por envolver todas as dimensões humanas [de cada pessoa]: o singulus, o civis, e o socius. O singulus, por pertencer ao indivíduo como tal, o civis, por envolver a participação nos destinos de sua comunidade, e o socius, por significar a igualdade básica entre todos os homens (CURY, 2002, p. 254, grifo do autor).

Para evidenciar o caráter específico das aprendizagens dos saberes escolares de cada nível de ensino, igualmente, para todos os cidadãos, Chizzotti (2020, p. 8) defende que, indistintamente, elas devem garantir “[...] a igualdade dos direitos sociais e a equidade das oportunidades educacionais [...]”.

A própria acepção de garantias escolares, sejam quais forem, devem abranger como assevera Anísio Teixeira (2009, p. 29), “[...] o princípio da igualdade individual, proclamado como princípio fundamental da forma social democrática [...]”, graças à qual devem ser dadas a todas as pessoas oportunidades iguais de estudar e de aprender como necessidade humana e social.

Este artigo é um dos produtos do Projeto de Pesquisa “A Educação de Mulheres ao Longo dos Séculos XIX e XX”, do Grupo de Pesquisa Interinstitucional Educação de Mulheres nos Séculos XIX e XX, e de um trabalho acadêmico (AUTOR, 2022) que ilustrará a cadeia da teia humana nos planos individual e social de mulheres negras com base no corpus documental (entrevistas semiestruturada realizadas presencialmente por alunas e alunos do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte dos semestres 2018.1 e 2018.2, dentre outros documentos oficiais).

Nas duas seções subsequentes, discorrer-se-á sobre a educação escolar de cada mulher negra entrevistada, em intersecção com as políticas escolares públicas, contextos locais, níveis de estudos e profissões.

1ª SEÇÃO | EDUCAÇÃO ESCOLAR PRIMÁRIA DE MULHERES NEGRAS EM FAZENDAS, SÍTIOS E POVOAÇÃO (1931-1961)

No Rio Grande do Norte, a primazia das políticas públicas escolares, desde o ano de 1930, e até antes, foi para a expansão do ensino primário, com o propósito de ampliação das oportunidades socioeducacionais para as crianças em idade escolar. No ano de 1930, a mensagem apresentada à Assembleia Legislativa pelo governador Juvenal Lamartine de Faria (1928-1930) sublinhava que a matrícula total, nas 486 escolas primárias públicas e particulares, subvencionadas e não subvencionadas, havia atingido 23.715 alunas e alunos, enquanto, no ano de 1929, tinham sido 20.853, uma diferença de 2.862 matriculados.

No ano de 1935, a Exposição apresentada ao presidente da República Getúlio Dornelles Vargas pelo interventor federal no Rio Grande do Norte Mário Leopoldo Pereira da Câmara (1933-1935) fazia referência ao número de escolas inauguradas em cidades, vilas, povoações, fazendas, sítios, praias e às respectivas modalidades (grupos escolares, escolas reunidas, escolas isoladas, escolas subvencionadas e escolas operárias), totalizando 423 escolas primárias, para uma matrícula de 28.893 alunas e alunos.

Nos relatórios apresentados ao presidente da República Getúlio Dornelles Vargas pelo interventor federal no Rio Grande do Norte Rafael Fernandes Gurjão referentes aos anos de 1939 e 1940, a quantidade de escolas primárias já correspondia a outros números: 508 e 529: grupos escolares (35 e 37); escolas reunidas (51 e 49); escolas isoladas (261 e 265); escolas subvencionadas (120 e 137); escolas operárias (41 e 41). Quanto à matrícula, o total atingia 36.556 alunas e alunos em 1939 e 37.529 em 1940. Já a matrícula do ensino secundário totalizava, em 1940: 602 alunas e alunos matriculados.

A presente seção evidencia, portanto, o alcance do direito à educação de cinco mulheres negras entrevistadas que estudaram o ensino primário, especialmente, em fazendas, sítios, povoações e, igualmente, evidencia os estudos que seguiram, ou não, além de profissões.

Cícera Souza - A senhora Cícera Souza (conforme a entrevista, 2018) nasceu em 8 de julho de 1928, na fazenda Carnaubinha, município de Acari. É filha de Sebastiana Alvelina de Jesus (parteira e lavadeira de roupa) e de Sérvulo Souza (vaqueiro), ambos analfabetos. Inicialmente, a senhora Cícera foi alfabetizada pelas filhas do proprietário da fazenda, Leônidas Pires, por meio do ensinamento de leitura, escrita e bordado.

Na fazenda Carnaubinha, ela cursou a educação primária por três anos (1931-1933), com a professora Irene (certamente em escola isolada rural), por meio dos seguintes estudos disciplinares: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), rudimentos de história, de geografia e de preceitos da religião católica. Segundo a senhora Cícera (2018), seus estudos restringiram-se às três primeiras séries da educação primária, por ela ter necessitado trabalhar como empregada doméstica na casa da fazenda do senhor Leônidas Pires.

Irene Borges da Silva.- Nascida no engenho Várzea de Dentro (município de Ceará- Mirim), em 27 de agosto de 1927, a senhora Irene Borges da Silva (conforme sua entrevista, 2018), é filha de Cândida Teixeira de Lima (agricultora) e João Borges de Lima (agricultor), ambos minimamente alfabetizados.

Na Escola Municipal Manguari, pertencente ao sítio de igual nome (município de Ceará-Mirim), a senhora Irene estudou da primeira série à quarta série da educação primária (1938-1941). A professora Djanira obedecia a um programa de estudos com seis disciplinas: linguagem (gramática, leitura e escrita), aritmética (quatro operações), história, geografia, ciências e noções de higiene. Concluída a quarta série da educação primária, a senhora Irene exerceu a profissão de costureira e de bordadeira, para o sustento de sua família.

Maria Hilda Rocha Rafael -Na povoação Januário Cicco (município de São José de Mipibu), no dia 08 de dezembro de 1933, nasceu a menina Maria Hilda Rocha Rafael, filha de Maria Imaculada Rocha (dona de casa) e Gabriel Rocha da Silva (agricultor), ela minimante alfabetizada e ele analfabeto. Na escola Isolada da povoação de Januário Cicco, a senhora Maria Hilda cursou a educação primária no período de quatro anos (1941-1944). De acordo com a entrevista (2018), seus professores adotaram essas disciplinas: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), história, geografia e ciências.

Por razões que se atrelavam à sobrevivência familiar, com mais ou menos doze anos, a senhora Maria Hilda começou a trabalhar como empregada doméstica na cidade do Natal, não prosseguindo os estudos escolares.

Cristina Maria de Lima - No sítio Açude Velho (município de São Tomé), no dia 15 de agosto de 1952, nasceu a menina Cristina Maria de Lima, filha de Maria Francelina de Lima (agricultora) e Esperidião Nunes de Lima (agricultor), ambos minimamente alfabetizados. Ela estudou as cinco séries primárias (1957-1961) na Escola Municipal Açude Velho, pertencente ao sítio onde nasceu e residia com sua família.

Conforme a entrevista (2018), sua professora Maria José Procópio e seu professor Francisco Nunes de Lima observavam as disciplinas daquela época: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), história, geografia, ciências e educação física.

Antes e durante esses estudos, das cinco séries da educação primária a senhora Cristina trabalhou na agricultura com seus pais e exerceu o ofício de vendedora. Ao concluir a quinta série primária, foi aprovada para o curso secundário ginasial normal, mediante o processo de exame de admissão. O magistério primário foi exercido por ela até a aposentadoria, possivelmente na cidade de São Tomé.

Isolda Guedes Miranda - A senhora Isolda Guedes Miranda nasceu no dia 14 de março de 1948, na povoação Poço Branco (município de Taipu). É filha de Salvina Guedes Miranda (dona de casa) e José Miranda da Silva (agricultor), ela analfabeta e ele minimamente alfabetizado. A senhora Isolda estudou as quatro primeiras séries primárias (1955-1958) em salas de aula improvisadas nessa povoação. A primeira funcionava nas dependências de um armazém cedido pelo proprietário; já a segunda era em uma casa de taipa com chão de terra batida.

De acordo com a entrevista (2018), as professoras – Geralda Guedes, Miranda Dantas, Maninha e Janete (uma para cada série primária) – ensinaram, basicamente, as mesmas disciplinas de estudo, a saber: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), história, geografia e ciências. A senhora Isolda foi professora primária após a conclusão do curso secundário ginasial normal em alguma cidade próxima da povoação Poço Branco e trabalhou como professora até sua aposentadoria. Conforme o Tabela 1, as cinco mulheres entrevistadas dessa 1ª seção alcançaram uma educação escolar superior ao seus pais (4 deles analfabetos).

Tabela 1 Escolarização dos pais e das mulheres entrevistadas e profissão 

Entrevistada Mãe Pai

Nível de

Escolarização

Profissão
Cícera Souza analfabeta analfabeto

1ª, 2ª e 3ª

séries primárias

emprega doméstica
Irene Borges da Silva minimamente alfabetizada minimamente alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª e 4ª

séries primária

costureira e

bordadeira

Maria Hilda Rocha Rafael

minimamente

alfabetizada

analfabeto

1ª, 2ª, 3ª e 4ª

séries primária

emprega doméstica
Cristina Maria de Lima minimamente alfabetizada

minimamente

alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª

séries primárias

curso secundário ginasial normal

professora primária
Isolda Guedes Miranda analfabeta

minimamente

alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª

séries primárias

curso secundário ginasial normal

professora primária

Fonte: Entrevistas (2018)

O direito à educação primária (mesmo incompleta, como ocorreu com três dessas mulheres que estudaram até a 3ª ou a 4ª séries primárias em ecolas isoladas, escolas municipais ou em salas de aula improvisadas de fazendas, sítios e povoações) interferiu na existência humana e social das cinco mulheres entrevistadas que estudaram no período de 1931 a 1961, posto que lhes possibilitou (mais ou menos) a aprendizagem de saberes escolares disciplinares (leitura, escrita, cálculos aritméticos, ciências e outros), além do direito cívil de uma profissão para a reprodução da vida pessoal e familiar. Nas palavras delas, a educação escolar lhes trouxe inúmeros benefícios para lidar com seu cotidiano, o da família e o do trabalho:

Estudar foi muito importante para mim. Saber ler, escrever, contar dá dignidade. [...] Me ajudou no trabalho, quando precisava ler alguma coisa. Por isso eu quis que minhas filhas estudassem (SOUZA, 2018, p. 7).

[...]

A educação primária que recebi representou a aquisição de conhecimentos que usei durante toda a minha vida [...], o uso das noções de matemática para cobrar um preço justo pelos meus serviços de costura e bordado e me proporcionou que alfabetizasse meus seis filhos [...] (SILVA, 2018, p... 6-7).

[...]

A educação escolar foi para mim crescimento profissional e futuro. [...] Tive a oportunidade de ensinar meus filhos a leitura e a escrita, ajudando no desenvolvimento escolar (RAFAEL, 2018, p. 8).

[...]

A educação primária representou tudo na minha vida [...] foi a possibilidade de prosseguimento na formação escolar [...]. A partir dela tornei-me professora e aprendi o respeito pela minha comunidade (MIRANDA, 2018, p. 6).

[...]

A [educação primária] foi o incentivo para prosseguir meus estudos, [...] para interagir com o mundo [...] e para agir no mundo do trabalho (LIMA, 2018, p. 6).

Com efeito, pode-se dizer, à luzde deAnísio Teixeira (1997, p. 82), que o direito à educação primária, incompleta, para três das mulheres negras entrevistadas, “[...] apenas atendeu o mínimo essencial da sua educação”.

Já quanto ao direito à continuidade dos estudos em nível secundário ginasial normal, para duas delas, pode-se dizer, recorrendo, ainda, a Anísio Teixeira (1977, p. 88), que “[...] uma simples vista dos olhos para a situação então das mulheres [...] deixa-nos ver como as tendências que estão modelando a nossa época são elas uma participação nas responsabilidades e bens da existência [...]”.

Do ponto de vista individual e social dessas cinco mulheres negras, as circunstâncias civis do direito à primeira educação escolar deveram-se, principalmente, ao desenvolvimento com continuidade das limitadas políticas escolares públicas (antes referidas). Mas é preciso também reconhecer que a primeira educação escolar dessas mulheres foi mobilizada mediante o que Chizzotti e Bocchi (2016) nomeiam como tempo do ensino disciplinar, o qual se caracterizava como procedimento elementar para as aprendizagens culturais.

2ª SEÇÃO | EDUCAÇÃO ESCOLAR PRIMÁRIA DE MULHERES NEGRAS EM CIDADES (1936-1963)

No Rio Grande do Norte, a institucionalização de uma rede de escolas primárias públicas, especialmente nas cidades dos 42 municípios, foi levada a efeito pelos interventores federais e pelos governos eleitos de 1936 a 1963.

A mensagem do governador eleito José Augusto Varela (1947- 1951) à Assembleia Constituinte do Estado (1947) explicitava a quantidade de escolas isoladas públicas, notadamente de povoações, fazendas, sítios e praias, e de escolas particulares subvencionadas, respectivamente 500 e 200. Quanto ao ensino secundário, ministrado no Atheneu, de Natal, na Escola Normal de Natal e na Escola Normal de Mossoró – conforme a mensagem do governador José Augusto Varela (1948) –, nele estavam matriculados mais de 1.400 alunas e alunos.

A mensagem do governador Sílvio Piza Pedroza (1951-1956) à Assembleia Legislativa (1951) deteve-se no aumento da quantidade de escolas primárias e de matrículas nesse nível de ensino nos 42 municípios do Estado: 1.151 públicas e 294 particulares subvencionadas, sendo 223 escolas rurais. De maneira geral, estavam matriculados 61.451 alunas e alunos.

Em sua última mensagem, o governador Sílvio Pedroza (1955) afirmou que se orgulhava de ter dado impulso à educação escolar em geral. Quanto à educação primária, havia um total de 1.070 escolas primárias, para uma matrícula de 75.000 alunas e alunos. No seu governo, houve uma redução do número de escolas isoladas (de 835 para 730), decorrente do aumento das escolas reunidas (de 28 para 40), sendo estas estruturalmente superiores àquelas. No Atheneu, de Natal (37 salões de aula), com os cursos ginasial, científico e clássico, estavam matriculados cerca de 2.500 alunas e alunos; já na Escola Normal de Natal e na Escola Normal de Mossoró, o total da matrícula era de 172 alunas e alunos.

O governador Dinarte de Medeiros Mariz (1956-1961), em sua última mensagem (1960) para os deputados da Assembleia Legislativa, trazia uma síntese do que ele chamava de grande obra educacional, para a educação das crianças: 1309 escolas haviam sido criadas nas modalidades gupos escolares (29 a mais), escolas reunidas (23 a mais), escolas isoladas (502 a mais) e subvencionadas (319 escolas a mais).

Ao todo, eram 2.069 escolas primárias públicas e particulares e uma matrícula aproximada de 151.000 alunas e alunos. É possível dizer que, entre o ano de 1956 e o de 1960, a expansão das escolas primárias atingiu o percentual de 72,9%. Também se pode acrescentar que o aumento da matrícula atingiu o percentual de 91,5%.

No entanto, tendo em vista o presumível número de crianças em idade escolar no Estado, esse governador concluía que cerca de 60% delas se beneficiavam das escolas primárias públicas e particulares subvencionadas e não subvencionadas, principalmente nas cidades. Todavia, aproximadamente 40% das crianças em idade escolar não se beneficiavam do direito à educação primária.

Esta seção discute o alcance do direito à educação escolar de cinco mulheres negras entrevistadas que estudaram em cidades sedes e não sedes dos 42 municipios do Estado e, igualmente, discute os estudos que elas seguiram bem como suas profissões.

Mabel Freire de Castro Pereira - A senhora Mabel Freire de Castro Pereira nasceu no município de Natal, no dia 10 de julho de 1927. É filha de Ana Adélia Freire (dona de casa) e de João Freire da Silva (pequeno comerciante), ambos minimamente alfabetizados. Os estudos correspondentes às quatro séries da educação primária (1936-1939) realizados no Grupo Escolar Antônia de Souza e no Colégio Pedro II, ambos localizados em Natal.

De acordo com sua entrevista (2018), os estudos disciplinares cumpridos pelas professoras Teonila e Beatriz Lima compreendiam linguagem (leitura e escrita); aritmética (quatro operações); história; geografia; ciência; desenho; educação física e aulas de bordados.

Ao final da quarta série primária, a senhora Mabel foi aprovada para o curso secundário do Colégio Atheneu de Natal, onde estudou até a quarta série do ginasial. Aprovada no concurso público para o cargo de técnica do Instituto Nacional do Sal, passou a residir no Rio de Janeiro.

Jaci de Medeiros da Costa - A senhora Jaci de Medeiros da Costa nasceu no dia 3 de junho de 1938, no município de Ceará-Mirim. É filha de Judite Costa de Medeiros (costureira) e Jorge do Ó de Medeiros (mestre de obras), ambos minimamente alfabetizados.

As cinco primeiras séries da educação primária (1946-1950) foram por ela cursada no Colégio de Santa Águeda (Ceará- Mirim). De acordo com a entrevista (2018), suas professoras ensinaram as seguintes disciplinas: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), geografia, história, ciências, educação física, educação moral e cívica e preceitos da religião católica.

O zelo da família da senhora Jaci Costa com os estudos escolares dela possibilitou seu ingresso no ensino secundário ginasial na Escola 7 de Setembro (Natal), e (por meio do vestibular) no curso superior de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela exerceu a profissão de enfermeira até sua aposentadoria.

Maria Inês da Silva Ferreira- A senhora Maria Inês da Silva Ferreira nasceu no dia 27 de março de 1945, no município de Santana do Matos. Era filha de Izabel Inês da Silva (dona de casa) e Aristides Pereira da Silva (torneiro mecânico), ambos analfabetos. Maria Inês estudou as quatro séries da educação primária (1951-1954) na escola isolada da cidade de Santana do Matos.

Conforme sua entrevista (2018), suas professoras cumpriam tais disciplinas: linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), geografia, história e ciências.

Em Natal, a senhora Maria Inês prosseguiu os estudos até o curso secundário ginasial, após se submeter ao exame de admissão. Com esse nível de estudo, foi aprovada por meio de concurso público para a Secretária de Serviços Urbanos de Natal.

Janete Dantas dos Santos - A senhora Janete Dantas dos Santos nasceu no município de Jardim do Seridó, no dia 16 de novembro de 1947. É filha de Alzira Dantas dos Santos (dona de casa) e de João Etelvino dos Santos (agricultor), ambos minimamente alfabetizados. A senhora Janete estudou as cinco séries primárias (1955-1959) no Grupo Escolar Antônio de Azevedo, da cidade de Jardim do Seridó. Sua entrevista (2018), faz referência as disciplinas do programa de estudo, composto de linguagem (leitura e escrita), aritmética (quatro operações), geografia, história e ciências.

Após a conclusão da quinta série da educação primária, a senhora Janete ingressou no curso ginasial normal da cidade de Jardim do Seridó, tornando-se professora do magistério primário (possivelmente nessa cidade), após aprovação em concurso público. Anos depois, a senhora Janete foi aprovada no curso superior de Contabilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e em concurso público para o setor de tributação da Secretaria Estadual de Educação.

Maria de Lourdes Costa de Nascimento - A senhora Maria de Lourdes Costa de Nascimento nasceu no município do Natal, no dia 30 de março de 1946. É filha de Joana da Costa (dona de casa) e de Francisco João Filho (carpinteiro), ambos minimamente alfabetizados. Cursou as cinco séries da educação primária (1959-1963) no Grupo Escolar do Rotary, da cidade do Natal.

De acordo com a entrevista da senhora Maria de Lourdes (2018), o estudos disciplinares levado a efeito pelas professoras Luzinete Barreto, Lídia, Mirta e Francinalba compreendia: linguagem (ler e escrever), aritmética (as quatro operações), história do Brasil e história do Rio Grande do Norte, geografia, ciências e educação física.

Com incentivo da família, a senhora Maria de Lourdes prosseguiu os estudos secundários e universitários, este último no curso técnico e superior de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A profissão de enfermeira foi exercida por ela até a aposentadoria.

Como visto no Tabela 2, as cinco mulheres entrevistadas alcançaram uma educação escolar superior à de seus pais (somente uma delas tinha pais analfabetos).

Tabela 2 Escolarização dos pais das mulheres entrevistadas e profissão 

Entrevistada Mãe Pai Nível de Escolarização Profissão
Mabel Freire de Castro Pereira minimamente alfabetizada minimamente alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries

primárias

curso secundário ginasial

funcionária federal

do Instituto

Nacional do Sal

Jaci de Medeiros da Costa minimamente alfabetizada minimamente alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª

séries primárias

curso secundário ginasial

curso superior de Enfermagem

profissão de enfermeira
Maria Inês daSilva Ferreira analfabeta analfabeto

1ª, 2ª, 3ª e 4ª

séries primárias

curso secundário ginasial

funcionária da Secretária de Serviços

Urbanos de Natal

Janete Dantas dos Santos

minimamente alfabetizada minimamente alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª

séries primárias

curso ginasial normal

curso superior de Contabilidade

funcionária do setor Tributação da

Secretaria Estadual de

Educação

Maria de Lourdes Costa de Nascimento minimamente alfabetizada minimamente alfabetizado

1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª

séries primárias

curso secundário ginasial

curso técnico de Enfermagem

curso superior de Enfermagem

profissão de enfermeira

Fonte: Entrevistas (2018).

À luz do Tabela 2, todas as cinco mulheres negras ultrapassaram o ensino primário e ingressaram no curso secundário ginasial (duas) e três delas foram além, fizeram cursos universitários de Enfermagem (duas) e de Contabilidade (uma). Em relação às profissões, nenhuma delas reproduziu o trabalho da mãe (dona de casa e costureira). Com execeção de uma das mulheres entrevistadas que estudou a educação primária no período 1955-1959, todas as demais são filhas de trabalhadores de profissão urbana (pequeno comerciante, mestre de obras, torneiro mecânico e carpinteiro).

O direito à educação primária e ao prosseguimento nos estudos escolares nos níveis secundário ginasial, normal e universitário não pode deixar de ser referido, tendo-se em vista a árdua vida dessas mulheres, pertencentes à classe trabalhadora e de cor negra. A persistência nos estudos, além de constituir-se em alicerce para a aquisição de saberes escolares para o exercício do trabalho profissional, concorreu para outros proveitos na tarefa de educar os filhos e para o sustento do núcleo familiar. São palavras das mulheres entrevistadas:

[A educação escolar] representou tudo de bom. Tive ótimos professores, que me incentivaram sempre a estudar e sempre reconheciam o empenho que exercia nos estudos (PEREIRA, 2018, p. 6).

[...]

[A educação escolar] teve vários momentos de luta e persistência. Foi uma fase importante de conhecimentos e de interesse pelos estudos (COSTA, 2018, p. 6). [...]

A formação escolar me possibilitou os conhecimentos básicos [...] me relacionar com outras crianças, aprender em um meio que não o da minha casa, além de dar continuidade aos estudos que ampliou também as oportunidades profissionais (FERREIRA, 2018, p. 7).

[...]

A inspiração a continuar estudando e chegar até o curso superior e melhorar de vida [...] representou o começo da inclusão na sociedade letrada. A educação primária foi a base para alcançar novos horizontes e sair de onde vivia, da situação difícil (SANTOS, 2018, p. 6).

[...]

Ajudar meus filhos a hoje estarem bem estudados e em um bom emprego, pois foi através da educação que eu pude contribuir para a educação dos meus filhos [...] proporcionou o acesso ao meu trabalho e a colocação social de destaque na sociedade (NASCIMENTO, 2018, p. 6-7).

Por um lado, o alcance do direito à educação primária e ao prosseguimento nos estudos em nível secundário ginasial (por duas delas) e em nivel universitário (por três delas) espelha o que Magalhães (2014) qualifica como o grau de desenvolvimento de uma dada sociedade, com as suas estruturantes igualdades sociais, para uns, e desigualdades, para outros. Ademais, espelha o que Cury (2020, p. 124) julga ser uma “[...] redução das desigualdades”.

Por outro lado, o alcance do direito à educação escolar por todas essas cinco mulheres negras é o que se poderia chamar de realização pessoal, ao lado da realização pelo esforço – uma e outra - para a manutenção no lugar social em que se inseriram pela educação, e das aprendizagens correlatas aos estudos escolares. Além do mais, o alcance do direito à educação por parte dessas mulheres deveu-se à continuidade das políticas escolares públicas (ainda que limitadas, a lembrar que, em 1960, aproximadamente 40% das crianças em idade escolar não se beneficiavam do direito à educação primária), além dos mínimos progressos públicos e privados da cidade onde cada uma delas nasceu e estudou.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos 32 anos a que se refere este estudo (1931-1963), o prioritário educacional dos governos do Rio Grande do Norte situava-se nas políticas públicas de expansão do ensino primário em fazendas, sítios, povoações e cidades sedes, ou não, de municípios, desigualmente, embora com certo desígnio de ampliação das oportunidades socioeducacionais para as crianças em idade escolar. Todavia os tempos eram de mudanças estruturantes, em constantes reajustamentos interdependentes.

Por um lado, remodelavam-se, minimamente, o ambiente urbano e o trabalho produtivo. Por outro, aprimoravam-se os indivíduos pelo direito (limitado) à primeira educação e aos saberes escolares e, até certo ponto, à continuidade dos estudos. Um e outro direito, pode-se dizer, com base em Dewey (1979b), subentendiam a educação como processo de reconstrução das experiências individuais, pelas regras das sociabilidades da vida urbana e industrial, que são indissociáveis das práticas da leitura, da escrita e dos cálculos aritméticos.

É certo que a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934, no capítulo que trata da educação e da cultura declarava: “A educação é um direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e estrangeiros domiciliados no país [...]”.

Por sua vez, a Constituição de 10 de novembro de 1937, nesse mesmo capítulo sobre a educação e a cultura, somente determinava: “O ensino primário é obrigatório e gratuito.” Já a de 18 de setembro de 1946, no capítulo sobre a educação e a cultura, assegurava: “A educação é um direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade.”

No Rio Grande do Norte, o Recenseamento Geral de 1940 registrou uma população de 768.018 pessoas – 388.073 mulheres e 379.945 homens –, da qual grande parte declarou não saber ler e escrever. Por esse Recenseamento, a população na faixa de idade de 10 a 19 anos compreendia 94.879 mulheres e 92.436 homens. Dentre estes, 32.498 mulheres e 24.579 homens declararam que sabiam ler e escrever, enquanto 62.293 mulheres e 67.738 homens declararam que não sabiam.

O Censo Demográfico de 1950 dos Estados brasileiros assinala que a população do Rio Grande do Norte era de 967.921 pessoas: 494.060 mulheres e 473.861 homens. A população na faixa de idade de 10 a 19 anos consistia em 110.083 mulheres e 104.460 homens. Nessa faixa de idade, 41.402 mulheres e 28.467 homens declararam saber ler e escrever e 68.124 mulheres e 75.022 homens declararam que não sabiam.

O Censo Demográfico de 1960 dos Estados brasileiros indica uma população do Rio Grande do Norte de 1.140.823 pessoas – 585.515 mulheres e 555.308 homens. A população na faixa de idade de 10 a 19 anos compreendia 139.116 mulheres e 129.378 homens. Destes, 74.115 mulheres e 51.658 homens declararam saber ler e escrever e 65.697 mulheres e 77.720 homens declararam que não sabiam ler e escrever.

Observa-se, pelos dados dos três documentos referidos - 1940, 1950 e 1960 -, que o Estado do Rio Grande do Norte possuía uma população de 344.078 mulheres. Desse total, na faixa de idade de 10 a 19 anos, declararam saber ler e escrever 148.015 mulheres, e 196.114 declararam não saber. Consequentemente, constata-se um déficit de 48.099 mulheres que nem ao menos sabiam ler e escrever.

A despeito das cifras do analfabetismo de mulheres pela qualificação do não saber ler e escrever, dez mulheres entrevistadas de cor negra que cursaram a educação primária, em escolas isoladas, municipais, e em salas de aulas improvisadas, mediante um programa de estudos disciplinares mais ou menos comum - linguagem (leitura e escrita); aritmética (quatro operações); geografia, história, ciências e outros - fizeram parte da população de mulheres que tiveram assegurado o direito constitucional à educação escolar formal completa, ou incompleta, que ia além do saber ler e escrever.

Em quaisquer das particularidades, como reconhece Dewey (1979a, p. 83), a educação escolar é, de fato, para cada indivíduo, um alicerce sobre o qual se dá início à “[...] reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece e aumenta o sentido desta e também a aptidão para dirigir o curso das experiências subsequentes”.

Sem dúvida, tal definição de educação dialoga muito de perto com a reconstrução das experiências, nos planos individual e social, das mulheres negras que participaram deste estudo. Ademais, a inserção dessas mulheres pelas funções da divisão do trabalho era vigorosamente tributária da educação escolar completa, ou incompleta, que alcançaram.

Durante os anos de 1940 e 1950, a formulação da educação escolar como regularizadora da distribuição social de mulheres e homens pelas funções da divisão do trabalho esteve presente nos debates pedagógicos, como sugere esta asserção de Anísio Teixeira:

A educação escolar regula a distribuição social. Daí ser a educação escolar mais do que um esforço para redistribuir cada mulher e cada homem pelas diversas ocupações e meios de vida em que se repartem as atividades humanas (TEIXEIRA, 1997, p. 42).

À guiza do que refletiu, bem depois, Chizzotti (2020), a justa distribuição social dos bens produzidos na vida coletiva é equanimamente decisiva para o alcance dos direitos individuais que a educação promete, para que, assim, cada mulher e cada homem

[...] adquiram um conjunto de saberes e competências que irão permitir melhor contribuir para sua própria realização pessoal [...]. Quanto melhor a educação escolar contribuir para a realização das aspirações pessoais e sociais, melhor poderá contribuir para assegurar a integração de cada cidadão na vida social e no trabalho [...] (CHIZZOTTI, 2020, p. 16).

Todavia, para a história da educação do Rio Grande do Norte, o direito à educação escolar das dez mulheres negras aqui estudadas foi resultante da sociedade da escolarização, ainda que assim, as oportunidades socioeducacionais decorressem limitadas e desiguais. Com Elias (1994), poder-se-ia dizer que esse fenômeno sociopolítico exprimia mais um certo espírito da época e menos as pretensões individuais das mulheres, em geral, e das mulheres negras, em particular, na reprodução da teia humana das complexas relações sociais da qual a educação é partícipe.

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Junho de 2022

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