SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número70DESPLAZAMIENTO SOCIAL A TRAVÉS DE LA EDUCACIÓN: tesituras de la mujer pobre y periférica (1970-1994)TRAYECTORIAS SOCIOEDUCATIVAS DE MUJERES NEGRAS EN AMAPÁ: rompiendo las relaciones de poder índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./sept 2022  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.67220 

História de mulheres e educação: transgressões, resistências e empoderamentos

A ESCOLARIZAÇÃO NO COMPASSO DA VIDA: rememorações das sertanejas-idosas do Proeja/Ifal (2020-2021)

SCHOOLING IN THE LIFE COMPASS: remembrances of the sertão’s elderly ladies from Proeja/Ifal (2020-2021)

LA ESCOLARIZACIÓN AL COMPÁS DE LA VIDA: remembranzas de las sertanejas ancianas de Proeja/Ifal (2020-2021)

Jailson Costa da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-5078-3603; lattes: 4481661071361187

Marinaide Lima de Queiroz Freitas2 
http://orcid.org/0000-0003-3659-4165; lattes: 0771452713521203

Miscelânia da Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-5857-140X; lattes: 2166224531438142

1Instituto Federal de Alagoas (Ifal – campus Piranhas) E-mail: jailson.costa@ifa.edu.br

2Universidade Federal de Alagoas (Ufal) E-mail: naide12@hotmail.com

3Instituto Federal de Alagoas (Ifal – campus Piranhas) E-mail: ms7@aluno.ifal.edu.br


Resumo

A pesquisa de base deste artigo aconteceu no município Piranhas, AL – um sertão à beira-rio São Francisco. O texto traz memórias de resistências partilhadas por idosas no âmbito de uma investigação que objetivou compreender, a partir das histórias e memórias, as razões da descontinuidade da escolarização das sertanejas-idosas estudantes do Proeja, bem como as motivações que impulsionaram o retorno à escola. Utilizamos a metodologia da história oral, cujas narrativas foram construídas por meio de entrevistas temáticas que propiciaram o desfiar de lembranças. Os achados da pesquisa demonstraram que as interlocutoras foram interditadas do direito à educação desde a infância, e após se casarem, precisaram assumir os serviços domésticos e assegurar o sustento da família; agregue-se ainda a ausência de escolas na região onde moravam. O estudo demonstrou também que, para além da perspectiva do direito, a educação de pessoas idosas promove melhorias na qualidade de vida e liberdade, uma vez que, o retorno à escola, vem dandolhes novas perspectivas de vida na comunidade sertaneja.

Palavras-chave: história oral; memória; sertanejas-idosas; escolarização

Abstract

This article is based on research that took place in the city of Piranhas, AL – a sertão land nearby the São Francisco River. The text brings memories of resistance shared by elderly women in the context of an investigation that aimed to understand, based on stories and memories, the reasons for the discontinuity of schooling those students of Proeja, as well as the motivations that made they return to school. We used the methodology of oral history, whose narratives were constructed through thematic interviews that allowed the unraveling of memories. The findings of the research showed us that the interlocutors were denied the right to education since childhood, and after getting married, they had to take on domestic chores and ensure the family's sustenance; there was also an absence of schools in the region where they lived. From this study, we can also state that, beyond the perspective of the right, the education of the elderly people promotes improvements in quality of life and freedom, since the return to school has given them new prospects for life in the sertão community.

Keywords: oral history; memory; sertão’s elderly ladies; schooling

Resumen

La investigación de base de este artículo ocurrió en el municipio de Piranhas, AL – un sertón en los márgenes del río São Francisco. El texto trae memorias de resistencias compartidas por ancianas en el ámbito de una investigación que tuvo como objetivo comprender, a partir de las historias y memorias, los motivos de la interrupción de la escolarización de las sertanejas ancianas estudiantes de Proeja, además de las motivaciones que impulsaron el regreso a la escuela. Utilizamos la metodología de la historia oral, cuyas narrativas se construyeron a través de entrevistas temáticas que propiciaron el desafío de los recuerdos. Los hallazgos de la investigación han demostrado que las interlocutoras fueron segregadas del derecho a la educación desde la infancia, y una vez casadas, tuvieron que encargarse de los servicios domésticos y asegurar el sustento de la familia; se agrega además la ausencia de escuelas en la región donde vivían. Este estudio demostró también que, más allá de la perspectiva del derecho, la educación de personas ancianas promueve mejoras en la calidad de vida y libertad, ya que, con el regreso a la escuela, les ha dado nuevas perspectivas de vida en la comunidad sertaneja.

Palavras chave: historia oral; memoria; sertanejas ancianas; escolarización

PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

Dei banho nas crianças e preparei para sair. Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

(Carolina Maria de Jesus, 1960, p. 18)

Decidimos iniciar estes escritos com um excerto do livro Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, por dois motivos: o primeiro relaciona-se à presença das necessidades imediatas da vida cotidiana, na “[..]narrativa tragicamente poética de Carolina” (DANTAS, 1993, p. 3), que – mesmo com pouca escolarização – adquiriu gosto pela leitura e escrita. O segundo motivo relaciona-se ao tempo histórico de publicação da obra, contexto em que as narradoras – eram crianças à época – e começavam a vivenciar, nos sertões alagoanos, interdições de direitos, inclusive o direito à educação, quando alcançaram a chamada idade escolar.

Tanto Carolina de Jesus – catadora de lixo na rua e moradora de favela – como as nossas interlocutoras, tornaram-se idosas, assim como tantas outras sertanejas que “[...] além dos serviços domésticos, atuavam na roça, com os muitos filhos, para assegurar o sustento da família como força de trabalho não remunerada” (MOREIRA, 2018, p. 55).

A pesquisa1 de base deste artigo denominada “A escolarização no compasso da vida: memórias das trajetórias educacionais das sertanejas-idosas-estudantes do Proeja” aconteceu no município de Piranhas, sertão de Alagoas. (Pibic – 2020-2021). O artigo tem como objetivo socializar os achados da pesquisa acima referida que visou compreender, a partir das histórias e memórias, as razões que levaram à descontinuidade da escolarização das sertanejas-idosas, bem como as motivações que impulsionaram o retorno à escola, no curso técnico de nível médio integrado em alimentos, no âmbito do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja).

É importante dizer que, em contexto de pandemia da Covid-19, nós pesquisadores/as, diante das circunstâncias postas demos continuidade aos nossos estudos num processo de reinvenção, incluindo a investigação que nos referimos. É que se fez necessária a utilização de interações online para a realização dos procedimentos da pesquisa, sem desprezarmos “[...] a metodologia da história oral para ampliar o conhecimento sobre experiência e práticas desenvolvidas, registrá-las e difundi-las entre os interessados [...]” (ALBERTI, 2008, p. 156).

Reinvenção essa, sobretudo, nas entrevistas que requeriam além do contato face a face com os sujeitos interlocutores “[...] equipamentos de gravação e reprodução de áudio e/ou vídeo [...]”. (ALBERTI, 2008, p. 181), que são indispensáveis. Em época de pandemia, deu lugar às chamadas de vídeos a partir dos aplicativos Google Meet e WhatsApp e com isso respeitamos o isolamento social e as medidas sanitárias.

No entanto, não nos impediu de permanecermos na metodologia da história oral, que mais uma vez permitiu que as narrativas de histórias de vida e escolarização fossem rememoradas pelas interlocutoras que transmitiram de forma dialogal nas entrevistas, em um movimento passado-presente evocado pela intervenção dos pesquisadores.

Nessa interação entre pesquisadores e entrevistados nos sentimos como nos alerta Portelli (2010) “[...] em um encontro pessoal causado pela pesquisa de campo. E “[...] os conteúdos da memória [foram] evocados e organizados verbalmente no diálogo interativo [...]” (PORTELLI, 2010, p. 19-20). Nesse contexto, o diálogo passou a ser o mediador da construção e nos colocou na posição de construtores dessas fontes, nos retirando da condição de meros coletores dos relatos.

Alertados por Bosi (1994), destacamos a impossibilidade de resgate do passado. Para a autora não é possível revivê-lo a partir da lembrança; é possível apenas a reconstrução e o repensar deste passado, tendo como base as ideias e imagens do presente. A autora ressalta que “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p. 55). E nessa direção Amado (1995) destaca a necessidade de se estabelecer distinção entre história e memória. Essa distinção deve iniciar-se com a diferenciação entre o fato vivido e o fato rememorado, ou seja, distinguir o que passou – a história –, e o que se recorda desse fato que passou – as memórias.

Essa socialização dos achados da pesquisa em referência parte da necessidade de escuta sensível das narrativas memorialísticas de idosas que tiveram a escolarização interrompida na idade escolar, com ênfase nas suas motivações, dificuldades e sentimentos E, reconhecendo as atribuições que as mulheres enfrentam na vida cotidiana; suas experiências de vida, buscando a superação dos estigmas que tentam desqualificá-las.

Concordamos com Louro (1997, p. 19), ao afirmar que: “Sua condição de excluído/a da escola ‘regular’ vai muito além do pertencimento ao sexo feminino, por si só. Um conjunto de fatores conduz estes sujeitos à invisibilidade”. (grifo nosso). A autora reforça que “[...]a segregação social e política as quais as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como consequência a sua ampla invisibilidade como sujeito – inclusive como sujeito da Ciência” (LOURO, 1997, p. 17).

Esse é um estigma que, no sertão alagoano vem sendo rompido pela presença do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifal) – criado em 2010, em Piranhas – situado a 290 quilômetros da capital do Estado. Essa instituição impactou positivamente a realidade socioeconômica da região, no que se refere à implantação de uma educação profissional voltada para geração de emprego e renda local e nas cidades circunvizinhas e que permitiu/permite às mulheres sertanejas o acesso ao ensino técnico profissional.

Assim como outras ações implementadas nas comunidades que deram visibilidade às mulheres, a exemplo do Programa Bolsa Família, “[...] primeira política pública de massa que priorizou as donas de casa como foco prioritário” (MOREIRA, 2019, p. 362). O referido Programa – implantado no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2007) valorizou “[...] a mulher como gestora da renda familiar, estas iniciativas inverteram o lugar da mulher nas famílias sertanejas, elevando-as à condição de protagonistas, e apontando consequências positivas na estrutura familiar patriarcal” (MOREIRA, 2019, p. 362).

No que se refere às pessoas idosas, há uma moral oficial demagógica que “[...] prega o respeito ao velho, mas quer convencê-lo a ceder seu lugar aos jovens, afastá-lo delicada mais firmemente dos postos de direção” (BOSI, 1994, p. 78). Nesse sentido o assujeita a uma condição de passividade, diferentemente do que Beauvoir (1990, p. 468) recorda-se “[...] outrora, imaginava-se que em cada um, ao longo dos anos, acumulava um tesouro: a experiência”.

É dessa forma, que vemos e sentimos as nossas idosas do Proeja nas investigações que realizamos e as reconhecemos sertanejas-idosas-estudantes – todas do nosso estudo são mulheres – da Educação de Jovens e Adultos (EJA) trabalhadoras e atuantes na cotidianidade da vida que vêm desenvolvendo “[...] mecanismos de afirmação e sobrevivência frente às estratégias de construção e manutenção do patriarcado. [...] teceram a vida e a alegria sertaneja que mitigaram a existência árida do sertão patriarcal latifundiário” (MOREIRA, 2019, p. 358).

Nesse percurso articulamo-nos aos estudos de Sawaia (2014, p. 100), considerando que trata a exclusão “[...] como sofrimento de diferentes qualidades recupera o indivíduo perdido nas análises econômicas e políticas, sem perder o coletivo. Dá força ao sujeito, sem tirar a responsabilidade do Estado”. É um posicionamento enfático da autora ao dizer que as várias formas de exclusão se efetivam nos sujeitos; no nosso caso, as idosas da EJA, representantes de muitos outros grupos de mulheres que no contexto pandêmico iniciado em março de 2020 se avolumam dramaticamente, nos mostrado que “[...] os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando” (DANTAS, 1993, p. 5).

Para além destas palavras introdutórias, o artigo está estruturado em três partes. Na primeira, alinhavamos os contextos históricos a partir das experiências de vida e escolarização das sertanejas-idosas, e trazemos a caracterização das narradoras. Na segunda, apresentamos as revelações das memórias, com ênfase nas trajetórias partilhadas a partir da oralidade, demonstraram as razões que levaram à descontinuidade da escolarização; bem como as motivações que impulsionaram o retorno escolar ao Proeja. Finalizamos com as considerações (in)conclusivas sobre a pesquisa, entendida como um campo em aberto nos sertões de Alagoas.

ALINHAVANDO CONTEXTOS, TECENDO EXPERIÊNCIAS

O Câmpus Piranhas vem constituindo-se como um direito público em um espaço privilegiado considerado de formação dos/as sertanejos/as, e permite que seus saberes produzidos no cotidiano e na prática laboral apresentem possibilidade da construção de “[...] grupos heterogêneos quanto à faixa etária [entre eles os de idosos, que têm], conhecimentos e ocupação” (BRASIL, 2007, p. 45).

Isso se coaduna com o que o estudo de Coura (2008, p. 15), demonstrou ao apontar que para além da perspectiva do direito, a educação dos idosos é promotora de qualidade de vida e permite “[...] uma forma de [os] manterem vivos não apenas biologicamente, mas também socialmente”. Pois, são sujeitos históricos e sociais (LEONTIEV, 1978). É que o retorno à escola desses artistas do cotidiano (VYGOTSKY, 2009) vem dando-lhes uma nova perspectiva de vida na comunidade. Para as sertanejas, tem sido de grande importância esse direito que lhes garante uma nova perspectiva de vida; no dizer de Hooks (2013, p. 273): “A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades”. Um espaço que permite a transgressão; a insurgência. “Isso é a educação como prática de liberdade.”

O curso surgiu da necessidade do contexto econômico por ser uma cidade turística com restaurantes, pousadas e hotéis dispor de pessoas qualificadas, uma vez que a grande maioria utilizava a pesca como fonte de renda além da produção tradicional, relacionada às atividades primárias: “[...] pecuária bovina, produção de milho, feijão, além de outros produtos, estes, porém com menor representatividade a depender de cada situação específica no município como, por exemplo, a produção de mel de abelhas” (LINS, 2010, p. 91).

Nesse cenário, as sertanejas idosas – nossas interlocutoras – atraídas pela realização de sonhos e projetos de vida, rompem paradigmas. “Saem do luto. Vão à luta. Mesmo com essas interpretações estáticas e repletas de estereótipos desfavoráveis, o universo feminino vem buscando estratégias de se fazer ouvir [...]” (LOURO, 1997, p. 49). Nessa jornada, destaca-se o valor da solidariedade por parte dos familiares, professores, colegas de turma e a própria comunidade, que dentro de uma cumplicidade de retorno à escola dessas pessoas, contribuem, também, para que permaneçam estudando. Isso porque começam a respeitá-las as colocando em um lugar que avança do que antes, era um confinamento em casa. Visão que ainda predomina sobre o/a idoso/a, difícil de se romper com essa hegemonia, e garantir o direito a “[...] fruição, o gosto por aprender, a realização de sonhos e projetos de vida adiados, a necessidade de se sentir vivo, ativo, atualizado e inserido na sua comunidade” (CACHIONI, NERI, 2004, p. 109). Nesse sentido o Câmpus Piranhas teve também de entender esse processo e assumir que estudar para o/a idoso/a é um direito.

Durante a nossa pesquisa sobre o sertão de Alagoas escutamos histórias do local e de seus habitantes, histórias essas, marcadas pela dominação colonial de seus líderes, mas também de belezas e peculiaridades, como no caso do município de Piranhas2, situado na região Nordeste do Brasil, no extremo Sudoeste do Estado de Alagoas, que é o segundo menor estado brasileiro.

A cidade é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e possui belíssimos casarios; um museu que conta a história não só da cidade, mas também do fenômeno do cangaço; e um mirante secular, onde é possível ter a vista admirável da cidade e dessa forma atrai turistas do Brasil inteiro e os recebem com muito calor humano.

Em 2010, o Ifal iniciava oficialmente suas atividades na cidade de Piranhas, fruto da expansão dos Institutos Federais, que foi estabelecida pela lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008. Com isso, nessa região, buscamos garantir o propósito de propiciar aos alunos da EJA – a partir de 2016. Neste percurso algumas idosas sentiram-se atraídas pelo curso de Alimentos/Proeja, como possibilidade de continuidade do processo de escolarização. Na tabela que se segue, as apresentamos por meio dos respectivos pseudônimos, o que para tanto escolhemos nomes de grandes escritoras3, por serem também autoras da vida cotidiana. Mulheres fortes, situadas na faixa etária de 60 a 64 anos, que representam, em suas histórias de vida, muitas outras sertanejas.

Tabela 1 Perfil dos narradores da pesquisa 

Idosasestudantes Perfil Profissão
Dona Rachel Sexo feminino, 60 anos, casada, quatro filhos. Agricultora
Dona Carolina Sexo feminino, 62 anos, viúva, três filhos. Artesã
Dona Conceição Sexo feminino, 60 anos, separada, dois filhos. Auxiliar de segurança do trabalho.
Dona Clarice Sexo feminino, 60 anos, viúva, duas filhas. Datilógrafa4
Dona Adélia Sexo feminino, 64 anos, casada, três filhos. Costureira

Fonte: Elaboração dos autores, a partir das entrevistas.

Observamos na tabela acima um recorte de gênero, isso porque no curso há predominância de mulheres, categoria que historicamente é mais excluída da sala de aula na infância e na juventude. Concordamos com Paiva (2006, p. 527), quando diz que a diferenciação das categorias – homens e mulheres –, de excluídos de direitos está marcadamente na “[...] condição das mulheres se ‘destaca como objeto de atenção’ (grifo nosso), pela desigualdade que as acomete mais fortemente no interior de cada categoria”.

E descobrimos que essas narradoras – que foram objeto da nossa atenção –, têm sonhos, metas, desejos, e propósitos que as fizeram buscar a escola; precisam ser consideradas enquanto integrantes do processo educativo pois, com suas experiências vividas “[...] podem ser [atrizes] da transformação de sua realidade histórico-social; [...] promover valores humanizantes sem cair no assistencialismo e na tutela política dos idosos” (CACHIONI; NERI, 2004, p. 110).

Escutamos, também, que as narrativas dessas mulheres foram marcadas pelo sentimento da alteração da vida cotidiana devido o surgimento da pandemia que afetou a todos nós, e principalmente às pessoas idosas – grupo de risco – em meio a esse fato histórico que acomete principalmente os mais vulneráveis. Vulneráveis esses, que já vivem em desigualdade acentuada e com a pandemia a questão ficou bem mais notória com a exploração pela mídia de forma geral.

E nesse cenário de diálogo ficou perceptível como a pandemia as atingiu no processo de escolarização, a exemplo do que expressou de forma emocionada uma das interlocutoras: “Essa pandemia ela veio pra mexer com a vida de todos nós, não somente com a minha vida, mas de todas as famílias [...]” (Dona Clarice). Sua colega, Dona Conceição demonstra o mesmo sentimento ao dizer: “[...] na verdade essa pandemia, ela afetou não só a mim, mas a muitas pessoas, né? [...]”.

Os fragmentos acima expressam o quanto a pandemia dificultou os estudos e suas vidas em sociedade, as privaram em casa e, consequentemente, as privaram da família e dos colegas de turma, prejudicando a interação com os seus pares e da energia positiva que recebiam enquanto estavam na sala de aula.

Especificamente tratamos na sequência de outras narrativas que foram organizadas em categorias temáticas, de acordo com as recorrências das falas que nos permitiram inserir essas categorias, na elaboração de um quadro conceitual, que passamos a interpretar.

A primeira dominação é de caráter patriarcal, e gera o fenômeno do direito interditado e negado. A interdição advém primeiramente dos pais machistas que permitem aos homens a possibilidade de estudarem. A mulher, desde a infância, cresce ouvindo da família e da sociedade que a sua função é só para o lar e cuidar dos filhos. Posteriormente, com o casamento e a gravidez precoce, o machismo do pai é assumido pelo companheiro, muitas vezes de forma severa e provoca o abandono da escola. A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, publicada em 2020 aponta o tímido acréscimo das mulheres nas turmas de EJA e expressa como principais motivos da interrupção da escolarização a gravidez e o trabalho, com 23%, respectivamente. E nos diz que 11,5% das mulheres elegeram realizar os afazeres domésticos como principal motivo de terem abandonado ou nunca frequentado a escola, enquanto para os homens este percentual foi inexpressivo, de 0,7%.

Nesse sentido, percebemos que a luta pela equidade deve ser constante e que para Santos (2020), não poderá ser isolada, mas articulada às demais que dizem respeito às chamadas minorias, para que não estejamos sempre avançando e recuando, sem a consolidação de políticas públicas de Estado.

Essa realidade ainda as deixa em uma condição de exclusão, que além da interdição acarreta a negação do direito de “[...] se relacionar com o social, (família, trabalho, lazer e sociedade) [...]” (SAWAIA, 2014, p. 100), o que para a pesquisadora gera o sofrimento que se traduz na “[...] dor mediada pelas injustiças sociais”. Muitas mulheres a exemplo das nossas interlocutoras ficaram e ainda ficam silenciadas por muito tempo, e não tiveram o direito à escola na chamada idade certa, embora existisse esse desejo de forma latente.

É importante dizer que “[...] a existência das mulheres nos sertões aparece vinculada no seio da família, já que esta representa a matriz de reprodução das identidades nesse espaço [...]” (MOREIRA, 2019, p. 356). Nessa perspectiva as sertanejas foram “[...] reduzidas a símbolo de posse, exploração e ostentação das práticas de dominação patriarcal” (MOREIRA, 2019, p. 356). Ou seja, mesmo que quisessem frequentar a escola, os pais e os maridos não permitiam, uma vez que, a mulher é vista como alguém que deve ser submissa ao marido ou ao pai.

A segunda e última categoria diz respeito às motivações para retornar à escolarização. Motivações essas tão esperadas e guardadas ao longo do tempo, mas o desejo de ser mais5 (FREIRE, 2011), que permaneceu vivo em seus corações faz essas mulheres retornarem à escola. Enxergam “[...] a possibilidade de [irem] mais além dos fatores determinantes, de superá-los, que nos tornou seres condicionados [...]” (FREIRE, 2000, p. 55). Ou seja, mesmo diante das situações-limite – essas idosas retomaram a escolarização de cabeça erguida, pois tinham em suas mentes um sonho a ser realizado – a utopia possível6 – a busca do inédito-viável. E provaram a partir de suas histórias de vida, que foram/são “[condicionadas] e não [determinadas, por que são] seres da decisão e da ruptura” (FREIRE, 2000, p. 55).

Isso, explicitamente, ficou percebível na sala de aula de EJA, quando as interlocutoras apresentaram as suas dificuldades de aprendizagem diante dos professores e dos colegas, porque pensam que o ambiente escolar não é mais seu lugar. Nessa direção, entra em ação o estigma da chamada idade certa, que denota a preocupação somente com a cronologia biológica, que provoca muitas vezes um sentimento de vergonha por estudarem com alunos mais jovens.

Além de inferiorização subjacente que fazem sentirem-se incapazes de realizarem tarefas escolares, cujos pareceres avaliativos – de alguns docentes –, não reconhecem os seus saberes advindos das agências de letramento a exemplo: a rua, o trabalho, a família, a igreja dentre outras, que fazem parte de um processo contínuo de aprendizagens que acontecem não apenas em espaços escolares e, que têm condições de se apropriarem de conteúdos socialmente aceitos e construídos pela humanidade.

Concordamos com Sawaia (2014, p. 101) que ao “[...]estudar exclusão pelas emoções dos que a vivem é refletir sobre o ‘cuidado’ que o Estado tem com seus cidadãos, são indicadoras do (des)compromisso como sofrimento do homem [...]”, o que requer ainda um campo de luta dos coletivos da EJA.

TRAJETÓRIAS PARTILHADAS: O QUE REVELAM AS MEMÓRIAS

As nossas interlocutoras trouxeram longas e complexas histórias de vida que se traduzem em “[...] experiências, conhecimentos acumulados e reflexões sobre o mundo externo, sobre si mesmo e sobre as outras pessoas” (OLIVEIRA, 1999, p. 60). Essas trajetórias e experiências agregaram parte importante de suas jornadas, fazendo com que tenham um significado muito além do que pode ser percebido pelas demais pessoas de sua convivência e pela própria escola, que funciona com base em uma cultura específica, e voltada para crianças, e esquecendo-se a cultura no plural e o direito e de todos/as.

Entendemos também, que a escolarização no compasso da vida nas trajetórias educacionais das sertanejas-idosas, busca não só a formação humana, mas ‘‘[...] seu sentido lato, com acesso ao universo de saberes e conhecimentos científicos e tecnológicos” (BRASIL, 2007, p. 13). Visto que para estudar e ocupar seu lugar na sociedade é necessária uma formação onde “[...] a perspectiva precisa ser, portanto, de formação na vida e para a vida” (BRASIL, 2007, p. 13). Onde não se busca apenas para si, mas para a vivência em sociedade com mais dignidade, uma vez que “[...] as relações sociais tornam-se mais positivas quando o idoso passa a compreender a importância de sua experiência e a viver plenamente as tarefas próprias de sua etapa vital” (CACHIONI, NERI, 2004, p. 109). Nas nossas conversas, as idosas revelaram que se sentiram valorizadas pelos professores e colegas de turma, fatores que elevaram as suas autoestimas e foram determinantes para a permanência no curso de Alimentos.

Ao narrarem sobre as suas histórias de escolarização e os seus motivos que provocaram a descontinuidade dos estudos, as rememorações das sertanejas-idosas revelaram o sofrimento estético-político que Sawaia (2014, p. 106) descreve como “[...] a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época”. No caso das nossas interlocutoras, gerou a interdição do direito à educação escolar em diversas fases da vida.

As narrativas explicitam com notoriedade a vontade de estudar que as entrevistadas demonstram e na maioria das vezes carregadas de emoções: “[...]. Eu continuei porque na realidade meu sonho (grifo nosso) sempre foi terminar meus estudos [...] aí apareceu essa oportunidade [referindo-se à oportunidade de estudar no Ifal] e eu agarrei com todas as garras pra realizar esse sonho meu que era terminar os meus estudos [...]”. Para Freire (2000, p. 133), com quem concordamos “O sonho de um mundo melhor nasce das entranhas do seu contrário”. É o que acontece com essa entrevistada que idealizou um mundo melhor para si e nesse sentido desgarrou-se do concreto vivido e com isso rompeu com o imobilismo fatalista.

Nesse processo de contradições aparecem os sonhos interrompidos, a exemplo Dona Conceição, ao revelar que um dos fatores para sua descontinuidade no processo de escolarização foi o lado financeiro “[...] meu irmão ficou desempregado e eu já estava no 3° ano (terminologia da época) e eu, infelizmente, fui obrigada a desistir porque eu não tinha como pagar”.

Dona Conceição continua a sua narrativa e afirma com uma mescla de indignação e emoção “[...] eu fiquei sozinha com os meus filhos [...]” nos deu a entender que o irmão teve de deslocar-se em busca de emprego e não tinha mais com quem deixar as suas crianças. Desabafou ainda que não tinha emprego também “[...] e, assim, estudar [...] ficou muito difícil”.

Em continuidade, a interlocutora, pensativa, nos diz que depois de um tempo, na busca de superar as dificuldades ano a ano, não deixou de sonhar e lutar pelo seu direito e fez como Bel Hooks (2013, p. 23) reconheceu “[...] o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e repensar, para criar novas visões, [...] um movimento contra as fronteiras. É esse movimento que transforma a educação na prática da liberdade”.

O direito que todos/as cidadãos/cidadãs têm de uma educação igualitária e de qualidade, anda na contramão da dominação patriarcal implica no direito interditado de estar em sala de aula. Essa é uma realidade de muitos lares. “[...] Era filho, era casa, era marido que não deixava, essas coisas [...]” (Dona Rachel). O que para Saffioti (1992, p. 185) “Não basta que um dos gêneros conheça e pratique atribuições que lhe são conferidas [...], é imprescindível que cada gênero conheça as responsabilidades do outro gênero”. Concordamos com Santos (2020, p. 15) que “As mulheres são consideradas ‘as cuidadoras do mundo’ (grifo do autor), dominam na prestação de cuidados dentro e fora das famílias”.

Essa narrativa demonstra o quanto as mulheres eram submissas a seus maridos e principalmente ao pai. Vejamos outros depoimentos:

[...] Tinha dias que eu conseguia ir, tinha dias que eu não conseguia, é aquilo o pai não queria que estudasse, tinha que trabalhar, tinha que viver na roça, tinha que cuidar da casa [...] esses dias eu já não podia ir pra escola. (Dona Adélia).

Eu fazia administração e contabilidade, aí eu parei e nesse tempo pra cá que eu parei, aí foi quando eu me casei, aí não tive como continuar a estudar porque tive filho e tive que deixar aquele processo. (Dona Conceição).

A minha dificuldade foi por causa do casamento que a gente ia pras cidades e também antigamente mulher casada geralmente não estudava né além dos maridos muita gente não estudava aí ficou ruim pra mim também. (Dona Carolina).

As narrativas dizem respeito às dificuldades dessas mulheres enquanto jovens e na dita idade certa para a escolarização. Partiam da própria família, tanto o pai e, posteriormente, do marido pois, na cultura que vivem “[...] fazem parte da construção do discurso hegemônico, o qual pertence ao território do boi: um sertão monolítico, masculinizado, árido, bárbaro e estéril [...]” (MOREIRA, 2019, p. 356). O machismo enredado nos sertões retrata “[...] relações e imagens que exterminaram, excluíram, diluíram ou ignoraram as contribuições do ‘outro’, em particular, das mulheres [...]” (MOREIRA, 2019 p. 356). Percebemos nas narrativas o pensamento esperançoso, e guiado pela denúncia do direito negado, bem como pelo anúncio da utopia de dias melhores, o que “[...] implica a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio de como poderíamos viver” (FREIRE, 2000, p. 55).

As motivações dessas estudantes que não obtiveram apoio da família e, muitas vezes, o incentivo partia de si, de amigos/as ou de filhos/as após anos sem estudar. Dona Carolina expressa “[...] é assim, meus filhos sempre me apoiaram principalmente o meu mais novo [...]”. Na sequência Dona Conceição relembra “[...] o incentivo nessa caminhada partiu de mim mesma [...]”. Dona Clarice revela “[...] Foi a minha filha que me incentivou, para que ela não desistisse de fazer o curso eu acompanhei ela, eu gostei [...]”.

As narrativas a seguir demonstram as interações sociais, internas e externas, que motivaram as sertanejas-idosas na retomada dos estudos:

[...] Ele me dizia: ‘Mainha a senhora ainda é jovem tem que estudar tem que evoluir acompanhar o tempo, não pode se perder assim. Viver parada no tempo assistindo só novela sentada na porta. Não, tem que crescer tem que estudar’ falava o meu filho mais novo (Dona Carolina).

[...] Não, teve não! Eu tive só meu mesmo, se fosse ‘por os outros’ perguntava: O que é que você ia ver nessa idade, vai estudar pra quê? Aí eu disse: Eu vou porque eu quero, eu quero estudar e eu vou (Dona Rachel).

As meninas sempre me deram força, os professores também quando eu tava aperreada querendo desistir; eles diziam – Não, você vai conseguir. Então tenho muito que agradecer, tanto aos meus professores como à turma que sempre me incentivou. Também teve o pessoal da coordenação (Dona Clarice).

As interlocutoras ao falarem das razões que as levaram ao retorno à sala de aula disseram da importância de estudar em uma escola pública e de qualidade como o Ifal e afirmaram porque não é qualquer escola, e isso aponta para o campo da utopia possível de Freire. Compreendemos o quanto se orgulham e se sentem bem de terem a oportunidade7 de estudarem em um espaço, que conta com uma estrutura que faz a diferença entre as outras escolas públicas da rede estadual existentes em Piranhas. Compreendemos, também, que o Ifal faz parte das suas motivações e traz a valorização, por isso “[...] teceram ou remendaram as identidades fragmentadas, alimentaram os corpos de sabores, e as almas sertanejas de sonhos” (MOREIRA, 2019, p. 359).

Consideramos, portanto, o dizer de Moreira (2019, p. 359) “Se existe um sertão de afetos, encantos e fartura, esse sertão é feminino”, tanto quanto as narrativas que se seguem:

A8 Ifal tem uma importância muito grande pra cidade, quando a gente tinha aqui só as escolas e os alunos tinham que se locomover para outras pra fazer seu curso superior era desgastante porque muitas vezes tem o perigo das viagens, então ter uma escola federal em Piranhas, isso é uma grande honra! (Dona Carolina).

Ter um local para estudar se formar isso aí é muito importante pra cidade ainda mais do nível que é a Ifal de Piranhas e o nível dos professores dos coordenadores de todas as pessoas que fazem o corpo da Ifal. Eu digo assim que foi um prêmio que a cidade ganhou. (Dona Carolina).

A gente olha, eu vejo no Ifal as oportunidades de grande chance para quem quer prosseguir. E assim, às vezes eu penso que por causa da minha idade, às vezes eu penso que é difícil, mas nunca é tarde para a gente sonhar e conquistar (Dona Conceição).

As idosas não esperavam ser tão bem recebidas no Ifal, e ficaram surpresas com a estrutura ampliada, com a equipe de professores e diretores que compõem o Câmpus. Foram compreendendo que a instituição fora de extrema importância ao oportunizar o direito ao acesso também à graduação, pois evita o deslocamento dos seus moradores para outras cidades do Estado ou fora dele.

Quanto ao retorno à escolarização as narradoras relatam que:

Pra mim foi difícil porque eu passando com esse estado de saúde meu eu conseguia devagarzinho ir até o Ifal, mesmo com esse problema de visão que eu me encontro talvez eu conseguisse mesmo indo pra ouvir. [...] e também com esse problema meu que é do câncer, a gente vai pra o hospital e fica com aquele medo, que a gente faz quimioterapia tem a imunidade baixa e isso tudo é dificuldade para que a gente enfrente (Dona Clarice).

[...] vivia em casa, eu já tava com medo de pegar uma depressão, dentro de casa direto, de dia eu já não saiu e à noite pior, com certeza que aí a gente vai ver gente diferente, ver coisa diferente a gente conversa com um, conversa com outro e todo dia tem uma novidade. Tem sempre uma novidade, né já ajuda, fica conversando com outras pessoas fazendo um trabalho. Aquilo ali é um alívio pra nossa mente, eu acho que pra mim foi uma terapia muito forte (Dona Adélia). Eu fiquei tomando remédio, mas não era tanto remédio! Porque a minha pressão não ficava ‘arteando’ muito, porque aí eu tomava remédio e ela sempre alta, sempre alta, aí eu disse: sabe de uma coisa? Eu vou sair de casa! Aí eu comecei a estudar aí melhorou mais, que eu sou hipertensa. Aí foi também por causa da saúde (Dona Rachel).

É gratificante identificar os benefícios que o curso trouxe para a vida dessas idosas estudantes. Muitas falam que a escola servia de terapia mental “[...] Faz uma terapia na mente [...]” (Dona Rachel). Ainda relata que tinha problema de pressão, mas devido ocupar a mente na escola se sentiu melhor. As narrativas das sertanejas dialogam com os estudos de Coura (2008, p. 15), que demonstraram, que para além da perspectiva do direito, a educação dos idosos é promotora de qualidade de vida e permite “[...] uma forma de se manterem vivos não apenas biologicamente, mas também socialmente”. O retorno à escola vem dando-lhes uma nova perspectiva de vida na comunidade sertaneja.

(IN)CONCLUSÕES

A realização de pesquisas sobre os sujeitos da EJA, no âmbito da sua intergeracionalidade, consideramos ser de fundamental importância, e que contribuirá para a reflexão sobre as desigualdades enfrentadas, sobretudo, pelas mulheres e, entre elas, as sertanejas, incluindo-se as idosas marcadas historicamente pela negação de direitos, e ao direito fundante à educação.

Neste artigo socializamos os achados de uma pesquisa que teve como objetivo compreender, a partir das histórias e memórias, as razões que levaram à descontinuidade da escolarização das sertanejas-idosas, bem como as motivações que impulsionaram o retorno à escola no Proeja, e considerando o seu inacabamento revelou que:

  • a) A dominação patriarcal – como razão principal da descontinuidade dos estudos que se deu pelo pai ou pelo marido, ao provocar o direito interditado e o direito de ter direito. É que essas mulheres não frequentaram a escola ou tiveram de abandoná-la para cuidar de suas casas, dos companheiros e, quando crianças, dos irmãos;

  • b) No caso das motivações internas – elas vieram dos/as filhos/as e amigas bem próximas, e o desejo de um sonho – utopia possível – para o alcance do inédito-viável. Destacamos também as motivações externas proporcionadas pelo Ifal a saber: a interação social, a elevação da autoestima, a construção de vínculos solidários com os colegas de turma e a liberdade.

O estudo revelou que o Ifal Câmpus Piranhas apresenta-se para elas a possibilidade de realizar seus sonhos e alcançarem os inéditos-viáveis (FREIRE, 1987). A partir de suas histórias de vida relatam os medos, as expectativas e os momentos tidos como destaque neste retorno à vida escolar foi possível entender a importância que a instituição representa para essas mulheres.

A pesquisa nos ajudou a perceber que o Câmpus precisa entender mais as singularidades desses sujeitos, e avançar do currículo prescrito para o currículo pensadopraticado, o que é necessário para o melhor aprendizado do alunado. Demonstrou ainda que todas as sertanejas idosas e estudantes são guerreiras, pois em meio a tantos problemas ao logo de suas vidas, nunca deixaram o sonho de cursar a graduação – e expressaram a possibilidade de pós-permanência, o que para tanto a conclusão do ensino médio é uma realidade concreta.

E, por fim, registramos que o estudo abriu um espaço de diálogo com os outros Câmpus do Ifal, que também estudam a temática da memória e, principalmente, o estabelecimento de um trabalho em rede daqueles que, por direito, atendem a essas pessoas em seus cursos, na busca de implantar a política de valorização junto às pessoas que retomam as suas trajetórias escolares, que foram interrompidas ao longo de suas vidas.

1A pesquisa faz parte do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (Pibic) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal). Edital No 04/2020 – PRPPI/IFAL.

2O município tem uma área de 410,10 Km2, e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é baixíssimo, com apenas 0,589, e a população de 25.298 habitantes (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL, 2017).

3A exemplo: Rachel de Queiroz; Carolina de Jesus; Conceição Evaristo; Clarice Lispector e Adélia Machado.

4Com o surgimento dos computadores os datilógrafos foram substituídos pelos digitadores. Na atualidade as máquinas de escrever caíram em desuso e o datilógrafo deixou de se uma profissão.

5O “ser mais” nos escritos de Freire envolve a autonomia dos sujeitos, conquistada no processo contínuo de amadurecimento, “[...] é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 2011, p. 105).

6Para Freire a utopia é sempre possibilidade de mudança e transformação do mundo para melhor e mais justo. “[...] jamais falo da utopia como refúgio dos que não atuam ou [como] inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser humano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se, que homens e mulheres não prescindam, em condições normais, do sonho e da utopia” (FREIRE, 2001, p. 85).

7A palavra oportunidade é recorrente nas narrativas, e ela deve ser compreendida como direito das mulheres sertanejas.

8Ao se referirem ao Ifal, grande parte dos moradores e até alguns estudantes dizem “a Ifal”. Acreditamos que um dos motivos para o uso no feminino vem de uma conotação de escola, pois o Instituto oferta a educação básica como as demais instituições locais.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. In: PINSKY, Carla B. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 155-202. [ Links ]

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São Paulo, 14: 125-136.1995. [ Links ]

ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Rio de Janeiro, PNUD, Ipea, Fundação João Pinheiro. Disponível em http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/. Acesso em 4 mar. 2017. [ Links ]

BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. [ Links ]

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. [ Links ]

BRASIL, Ministério da Educação – Programa Nacional de Integração da Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Documento Base. Brasília, 2007. [ Links ]

CACHIONI, Meire; NERI, Anita Liberalesso. Educação e gerontologia: desafios e oportunidades. RBCEH – Revista Brasileira de Ciências do Envelhecimento Humano, Passo Fundo, 99-115 – jan./jun. 2004. [ Links ]

COURA, Isamara Grazielle Martins. Entre medos e sonhos nunca é tarde para estudar: a terceira idade na educação de jovens e adultos. 31ª Reunião Anual da Anped, Caxambu, 2008. [ Links ]

DANTAS, Audálio. A atualidade do mundo de Carolina. In: JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 3-5. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Algumas reflexões em torno da utopia. In: FREIRE, Ana Maria de Araújo (org.). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. [ Links ]

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Edição popular. [S. l.]: 1960. [ Links ]

LINS, Regina Dulce Barbosa (Coord.). Perspectivas para o meio ambiente urbano: GEO Piranhas. Alagoas, Maceió: [s.n.], 2010. [ Links ]

LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978. p.: 261-284. [ Links ]

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ Uma perspectiva pós-estruturalista: Vozes, 1997. [ Links ]

MOREIRA, Gislene. Sertões contemporâneos: rupturas e continuidades no semiárido. Salvador: Eduneb; Edufba, 2018. [ Links ]

MOREIRA, Gislene. Mulher rendeira: re-tecendo afetos e identidades de gênero nos sertões contemporâneos. Sæculum – Revista de História, [S. l.], v. 24, n. 41, p. 354–372, 2019. DOI: 10.22478/ufpb.2317-6725.2019v24n41.47606. Disponível em https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/47606. Acesso em: 6 abr. 2022. [ Links ]

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. In; Reunião anual da ANUAL DA ANPEd. XXII, Caxambu, 1999. [ Links ]

PAIVA, Jane. Tramando concepções e sentidos para redizer o direito à educação de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006. [ Links ]

PNAD Contínua Educação 2019. IBGE. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28285-pnad-educacao-2019-mais-da-metade-das-pessoas-de-25-anos-ou-mais-nao-completaram-o-ensino-medio. Acesso em 11 ago. 2020. [ Links ]

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. [ Links ]

SAFFIOTI, Heleieth. Rearticulando gênero e classe social. In: Uma questão de gênero. OLIVEIRA, Albertina; BRUSCINI, Cristina (orgs.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. Coimbra – Portugal: Edições Almedina, S.A, 2020. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, S.A., 2020. [ Links ]

SAWAIA, Bader Burihan. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão In: SAWAIA, Bader Burihan (org.). As artimanhas da exclusão análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2014. [ Links ]

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática. [ Links ]

Recebido: Maio de 2022; Aceito: Junho de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.