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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.70 Rio de Janeiro jul./aet 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.61638 

Artigos de Demanda Contínua

O BRINCAR EM SENTIDO ECOLÓGICO

PLAYING IN ECOLOGICAL SENSE

JUGAR EN SENTIDO ECOLÓGICO

1Universidade Federal da Paraíba E-mail: djavananterio@gmail.com

2Universidade Federal do Rio Grande do Norte E-mail: marianasanfer13@gmail.com

3Universidade Federal da Paraíba E-mail: adelaide.ufpb@gmail.com


Resumo

Este artigo traz um apanhado do que foi o trabalho de pesquisa doutoral intitulado Brincando na Roda dos Saberes, apresentado em 2018 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Paraíba, Brasil. Através de programas de extensão universitária envolvendo pesquisadores bolsistas e voluntários, crianças matriculadas em escolas da rede de ensino público tiveram acesso a conhecimentos artísticos e culturais vivenciando o projeto Brincando Capoeira, com oficinas integradas aos projetos políticos pedagógicos das escolas parceiras, dentre elas a Escola de Educação Básica da UFPB, e a Escola Viva Olho do Tempo. Dos resultados obtidos, destaca-se a tese de que o ato de educar pela prática da capoeira sob uma perspectiva ecológica repercute positivamente e diretamente na corporeidade. Para isso, a criatividade, a inteiração socioambiental, o engajamento solidário-afetivo e a reverência aos saberes de tradições populares, sobretudo os corpo-orais, devem estruturar a pedagogia do processo, constituindo-se em ações transdisciplinares. O brincar, neste processo, vem a ser chave de religação entre o corpo que brinca e a sabedoria que se manifesta.

Palavras-chave: educação ecológica; brincar; corporeidade; capoeira angola

Abstract

This article brings an overview of what was the doctoral research work entitled Brincando na Roda dos Saberes, presented in 2018 to the Graduate Program in Education at the Federal University of Paraíba, Brazil. Through university extension programs involving fellow researchers and volunteers, children enrolled in public schools had access to artistic and cultural knowledge by experiencing the Brincando Capoeira project, with workshops integrated into the political pedagogical projects of partner schools, among them the Escola de Basic Education at UFPB, and the Viva Olho do Tempo School. From the results obtained, the thesis stands out that the act of educating through the practice of capoeira from an ecological perspective has a positive and direct impact on corporeality. For this, creativity, socio-environmental interaction, solidary-affective engagement and reverence for the knowledge of popular traditions, especially oral-body knowledge, must structure the pedagogy of the process, constituting transdisciplinary actions. Playing, in this process, becomes the key to reconnect the body that plays and the wisdom that manifests itself.

Keywords: ecological education; to play; corporeality; capoeira angola

Resumen

Este artículo trae un panorama de lo que fue el trabajo de investigación doctoral titulado Brincando na Roda dos Saberes, presentado en 2018 al Programa de Posgrado en Educación de la Universidad Federal de Paraíba, Brasil. A través de programas de extensión universitaria que involucran a compañeros investigadores y voluntarios, los niños matriculados en escuelas públicas tuvieron acceso al conocimiento artístico y cultural a través del proyecto Brincando Capoeira, con talleres integrados a los proyectos políticopedagógicos de las escuelas asociadas, entre ellas la Escola de Educación Básica de la UFPB, y la Escuela Viva Olho do Tempo. De los resultados obtenidos, la tesis destaca que el acto de educar a través de la práctica de la capoeira desde una perspectiva ecológica tiene un impacto positivo y directo en la corporeidad. Para ello, la creatividad, la interacción socioambiental, el compromiso afectivo-solidario y la reverencia por el conocimiento de las tradiciones populares, especialmente el oral-corporal, deben estructurar la pedagogía del proceso, constituyendo acciones transdisciplinares. Jugar, en este proceso, se convierte en la clave para reconectar el cuerpo que juega y la sabiduría que se manifiesta.

Palavras chave: educación ecológica; jugar; corporeidad; capoeira angola

INTRODUÇÃO

A educação e seus desafios contemporâneos revelam sinuosidades sob as quais estamos passando a sociedade moderna. Como estabelecer uma educação plural potencializando aprendizagens sem que estas sejam invadidas pela dinâmica da comparação competitiva, bases do sistema capital que somos inseridos? Produzir sem degradar. Ler a palavra do corpo, dos rios, folhas, e ventos, vivenciando assim uma projeção mais ecológica de simplesmente sermos, dançando no jogo da compreensão de sentimentos, emoções e plurais afetos.

A Capoeira Angola, jogo de tradição popular, aparece como epicentro neste estudo. Sua filosofia, abarcada num conjunto de saberes tradicionais, dão alicerces à autonomia própria e libertária, consonante ao sentido de comunidade e a busca pelo autoaperfeiçoamento. Foram estes os aspectos basilares trabalhados na pesquisa e desenvolvidos de forma participativa em processos pedagógicos criativos com crianças e jovens em idades variadas. Vislumbrou-se o fortalecimento da premissa de que a prática da capoeira na escola auxilia sobremaneira o processo de educabilidade, emergindo questões existenciais tocantes à consciência crítica e a visão de mundo.

Adotando perspectiva alternativa ao modelo de ensino prevalecente nas escolas, sejam elas públicas ou privadas, dedicamos este manuscrito a compartilhar a pesquisa de doutorado que aconteceu em formato de extensão universitária e contou com a parceria de instituições na cidade de João Pessoa/Paraíba/Brasil. Atendendo cerca de 120 crianças em processo de formação institucional básica, o projeto intitulado Brincando Capoeira partiu com a premissa de que a Capoeira Angola guarda em si mesmo uma potência cultural educativa ecológica, por assentar-se seus fundamentos no autoconhecimento e conhecimento de mundo pelas esferas culturais, artísticas, históricas e holísticas.

Ao desvelarmos sobre o conceito de lúdico e sua manifestação enquanto brincar, intencionamos na pesquisa um horizonte na compreensão deste fenômeno a partir de sua potência cultural ancestral. Tal ponto está relacionado a ludicidade como ambiência de aprendizagem favorável ao viver criativo, repleto em histórias e imaginários (HUIZINGA, 2012; WINNICOTT 1975; GANDHY, 2017). Apesar do tema já bastante difundido, são ainda poucos os estudos que discutem o brincar enquanto fenômeno da corporeidade. Isso se amplia se emergimos o entendimento de uma corporeidade ecocentrada. Aqueles que trazem, inspira-nos como referências importantes (KRENAK, 2020; GOMES-DA-SILVA, 2014; MEIRELLES, ECKSCHMIDT, SAURA, 2016).

A partir de métodos de pesquisa fundamentados na pesquisa-ação e na etnografia, remontamos narrativas correspondentes às situações que foram experienciadas na práxis, sendo imprescindíveis durante todo processo, os relatórios de experiência, as anotações em diários de campo, bem como transcrições das falas dos mestres, educadoras e educadores com quem estivemos em aprendizagem. Chegamos a um conceito ecológico do jogo da capoeira, apresentada como tese e proposição pedagógico-didática. O lúdico, pela interface do brincar, e o manuseio criativo das linguagens artísticas no processo de ensino-aprendizagem, se integram num movimento de aglutinação conceitual, gerando a questão norteadora que nos instigou durante todo percurso da pesquisa: Considerando o brincar como expressão de vitalidade, quais estratégias pedagógicas podemos adotar para que a prática educativa seja projetada ao nível ecológico de compreensão de mundo?

O LÚDICO E SUAS INTERFACES

Os estudos sobre o lúdico vêm com algum tempo produzindo pesquisas significativas na literatura. Friedrich Schiller, poeta e filósofo, já nos anos de 1700, revigorava o conceito de estética aliando natureza e razão através de um estágio transicional (ou intermediário), entre o sensual bruto e o sublimemente racional, denominado por ele de "[...]impulso lúdico" (EAGLETON, 1993, p. 79). O lúdico, compreendido também como jogo, vem a ser uma energia exuberante. Com certo ar de poesia, o autor alemão acreditava que tais afirmações poderiam ser percebidas nas ações de pássaros, animais e insetos, e também nos jogos de imitação do homem. Surge a hipótese de que os animais teriam mais energia do que precisassem para a feitura de suas ações naturais, havendo uma sobra excedente canalizada a alguma ação específica e própria de sua espécie. De forma análoga, a criança pequena, por não ter preocupação aparente com as demandas cotidianas da vida – trabalho ou mesmo a preservação própria, de autocuidado –, também funcionaria na lógica da energia excedente voltado ao jogar.

Não obstante, Herbert Spencer, pesquisador adepto da teoria da energia excedente, se refere ao fato que “[...]as espécies, que não estão lutando mais pela sobrevivência, têm um excesso de tempo e de energia”. Outro ponto seria a questão de haver uma base instintiva, pois o desejo pela atividade lúdica repousa sobre e sob o instinto. Um terceiro elemento era encontrar no jogo uma possibilidade para a imitação (COURTNEY, 2006, p. 23).

Da filosofia antiga aos textos sagrados, o lúdico/jogo – ou ao menos aquilo que se pretende às teorias que o abarca – toma silhueta em proposituras teóricas de outros autores já consagrados. Antônio Cabral, filósofo português, é um deles, expondo em sua obra, Teoria do Jogo, uma linha de compreensão que amplia os horizontes conceituais que envolve o tema. O conceito de jogo tem uma extensão bem maior do que à primeira vista parece. Por via de regra, fala-se de jogo a propósito do desporto e dos jogos populares, infantis, de jovens ou de adultos. E, quando se fala, por exemplo, do jogo artístico e do político, quase se percebe que a palavra tem aí um sentido metafórico (CABRAL, 1990, p. 7). Mesmo não sendo nossa intenção tecer maiores considerações etimológicas aos termos provenientes, consideramos importante referenciarmos a passagem em que Cabral (1990, p. 79) detalha o fato de que, embora a palavra jogo provenha do latim (jocus), “[...]a forma latina que traduz a ideia de jogo, na acepção atualmente mais generalizada, de diversão mais ou menos competitivo, é ludus, palavra que assumia outros significados, como por exemplo, representação teatral”.

Johan Huizinga, também filósofo, sugere uma teoria que enfoca a ideia do lúdico como fenômeno cultural, antecedente a própria cultura, sob a prerrogativa de que até mesmo os animais ditos não racionais, como os cachorros, brincam. A teoria de Huizinga (2012) nos ajuda pensar o lúdico para além de uma atividade meramente recreativa, mas enquanto vertente de estudo e compreensão de mundo. Ultrapassa-se assim noções que projetam a ludicidade tão somente em suas particularidades de diversão ou entretenimento, discutindo no aspecto lúdico, a ausência de um fenômeno meramente fisiológico. Pelo contrário, o jogo traz consigo elementos que transcendem as necessidades imediatas e que transferem significado para a ação. Desse modo, a expressão de prazer, angústia, dor, desespero, alegria, acabam por se revelarem conjuntamente na expressividade de quem joga. Jogar capoeira de mãos fechadas, por exemplo, pode já indicar uma tendência violenta do jogador. As razões podem ser complexas, mas é fato que o corpo comunica dizendo em linguagem própria sobre suas emoções.

Na perspectiva conceitual trazida por Huizinga (2012), encontramos características que desenham uma configuração de jogo interessante. O fator primário a ser elucidado diz respeito ao fato da pessoa precisar querer jogar, isto é, se voluntariar à ação. Outro aspecto corresponde ao tempo, uma vez ser necessário que o jogo esteja compreendido como uma atividade temporária. Este, em particular, supõe o jogo como parte ilusória da vida, expressão de evasão e fuga temporária da realidade. Dar-se aí uma ruptura – ou uma suspensão – momentânea da rotina e da seriedade do cotidiano. Entretanto, apesar de nos apoiarmos em Huizinga debatendo o lúdico como uma manifestação, um fenômeno da natureza humana, é com Roger Caillois que temos ampliada a observação dos elementos constituintes do jogo. Caillois (2008) avança nas concepções sobre o jogo embasando-se na antropologia, psicologia e sociologia. Suas interpretações contestam a classificação de correntes biologicistas estabelecidas, que derivavam para o substantivo jogo, cuja gênese evolutiva o assenta como uma atividade fútil, de certa forma rebaixada em relação as demais atividades, o que pode propiciar um parco desenvolvimento para o ser humano considerado holisticamente (PICCOLO, 2008).

Através do que explicita Caillois (1990), podemos compreender que o jogo se caracteriza como uma atividade livre, separada, incerta, improdutiva, regulamentada e fictícia. Ainda que o autor advirta que tal categorização pouco explique as atitudes psicológicas que estruturam os jogos, o impulso lúdico para ele perpassa o jogo e o cotidiano de forma a gerar processos de contaminação. Dentre as principais características de qualquer jogo humano, ao que fundamenta Caillois, destaca-se a constante presença da concepção de limites e liberdades em seu desenvolvimento, uma vez todo o jogo ser “[...]um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido” (CAILLOIS, 1990, p. 11; PICCOLO, 2008).

As contribuições sobre a teoria do jogo nos chegam pela organização que se dá a sociedade, independente da época, apesar da divergência de concepções do jogo e sua relação com a civilização. Contudo, nossas interpretações se atem a questão do jogo não como resíduo de uma ocupação de adulto que foi abandonada, como sugere Huizinga, mas atividade paralela e independente que se opõe a atos e decisões da vida ordinária mediante características peculiares que lhes são próprias. Neste viés, Lara e Pimentel (2006) partem em defesa de que jogo e vida se constituem como campos antagônicos, interdependentes que se dão de modo complementar, gerando relações complexas e peculiares em cada momento de cultura.

Para nossa interpretação, lúdico é como faísca propulsora para a criatividade, e sua expressão mais genuína é a ação de brincar e incorporar-se como um próprio brinquedo. Há quem defenda jogo e brincadeira como sinônimos. De certo modo os são. Contudo, em se tratando não do substantivo, mas do verbo de ação jogar/brincar, propomos uma discussão dialética sobre estes, a partir da hipótese de que o brincar caracteriza-se como o estado lúdico mais genuíno do jogador/brincante se apresentar à brincadeira. O que nos traz ao entendimento do brincar como oportunidade de fruirmos a liberdade de criação, de expressão, de inteireza ao que ali se degusta viver (ANTÉRIO, 2018).

O BRINCAR COMO EXPRESSÃO VÍVIDA

Olharmos para atrás no intuito de melhor sermos no agora e assim então prosperar num futuro corresponde também elucidarmos o brincar enquanto ação/ato energético, de vitalidade, expressividade e conexão. Se é fato que os bichos brincam, no humano a consciência potencializa tal energia relacional, interna e externa, impulsionando o corpo em extensão viva daquilo que está sentindo e produzindo. A infância, fase da meninice e da entrega ao descobrir das coisas, ancora vivência em sua expansividade mais genuína. Na sociedade Bantu-Kongo, na antiga África, a conceitualização do tempo cósmico tem direta relevância social, refletindo todos os seres biológicos como seres vivos. “O nascimento de uma criança, por exemplo, é concebido da mesma maneira em que uma pessoa contempla o sol saindo no mundo superior, o mundo físico ou o mundo da comunidade viva” (FU-KIAU apud MO-MAIE, 2016, sn).

Em tempos de efemeridades pandêmicas, conflitos e indiferenças, buscar um estado equânime pelo brincar talvez se revele habilidade de grande sabedoria. Brincar para espantar o medo, mostrar a malícia sem machucar, apresentar-se positivo às circunstâncias mais incertas. Brincar e exercitar o autocontrole, personificando a si mesmo. É o self que não se faz ou se monta, mas se vai constituindo continuamente nas experiências assimiladas, comuns e muitas vezes conflituosas. Neste sentido, achar que o brincar se manifesta só em beleza, desfruto e prazer, é em si uma ilusão (WINNICOTT 1975).

Pesquisador brasileiro dedicado a cultura da infância, Gandhy Piorski reflete o brincar como valor fundante na fase primeira da vida. Trata da perspectiva de encontrar nas representatividades do brincar, a oportunidade de compreender o processo criativo imaginativo da criança, bem como a liberdade desta em ser de fato criança e assim expandir-se. Gandhy (2017) é defensor da imaginação como construtora da psique da criança, de sua personificação constitutiva no agora, proporcionando a criança a transposição do mundo real descontruído imaginativamente de suas lógicas de moduladas formatações. A imaginação traz a verdade da criança, um mundo em descoberto. O adorno imaginativo, neste sentido, possibilita a síncope subjacente à realidade, deslocado do universo social para o eco intuitivo na ação imaginativa.

Outra autora referência na pesquisa do brincar é Renata Meirelles, idealizadora do premiado projeto Território do Brincar, apresentado em formato de documentário de longa duração no ano 2015. Caracterizando-se como um trabalho de escuta, intercâmbio de saberes, registros e difusão da cultura infantil, no que diz respeito ao conceito do brincar, o filme coloca em diálogos diversos especialistas para debater temas que tocam a infância, a educação e o brincar, erguendo argumentações que o difundem como essência natural da vida. Por isso tão importante na educabilidade, sobretudo de crianças. Em estudo publicado, Renata admite o brincar como expressão máxima da criança:

O brincar na educação infantil figura nos Parâmetros Curriculares Nacionais de forma imperativa, adentra os discursos escolares - com maior ênfase no espaço de liberdade possível da primeira infância - mas se estende na discussão escolar de outras faixas etárias (MEIRELLES, ECKSCHMIDT, SAURA, 2016, p. 21).

Donald Winnicott, ao relacionar o self ao movimento criativo, argumenta que a personificação de si mesmo se dá no início da relação intimista mãe-bebê. A criatividade, assim, não tem a ver com algo inédito, original, e sim com os canais de comunicação relacionados ao sentimento de realidade. Nesse sentido, o mundo é constantemente recriado por cada um de nós, sendo o sentimento de realidade experienciado a partir desse movimento. No começo da vida, “[...]a adaptação quase perfeita da mãe às necessidades do bebê é a condição para que, no momento em que estiver preparado para encontrar algo (primeira mamada teórica), se produza no bebê a ilusão de ter criado os objetos externos” (WINNICOTT apud SEKKEL, 2016, p. 87). O ser humano, assim, é compreendido a partir de três vidas experimentadas. Uma, correspondendo a relações interpessoais: Vida no mundo. As outras são a vida da realidade psíquica pessoal e a área da experiência cultural, que, segundo o que propõe o autor psicanalista, tem início “[...] no espaço potencial entre uma criança e a mãe, quando a experiência produz na criança um alto grau de confiança na mãe”, no fato que ela não vai faltar quando aquela tiver necessidade (WINNICOTT, 1975).

Desdobrando alguns estudos sobre a temática do brincar, Walter Benjamin aborda o movimento das crianças em trazer fragmentos da realidade cultural para a brincadeira, reinventando, a partir deles, um mundo próprio. Só que, enquanto para Winnicott a criança traz para dentro da atmosfera brincante objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa, para Benjamin (2002, p. 103), “[...]as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível”. Naquilo que descreve como produtos residuais, Benjamin constrói a hipótese de que as crianças reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas, expressando assim uma amostra do potencial onírico. O brincar, no entendimento de Benjamin (2002), vem a ser uma atividade entre mundos e não simplesmente entre pessoas e objetos isolados. Mundos repletos de significados, que se contextualiza nos sentimentos, anseios, valores e fantasias. Eis que forma e conteúdo se alternam num processo de equivalência fruto da ‘insaciabilidade’ de um ir e vir sem fim, consolidando a lei da repetição enquanto regente de todas as brincadeiras. “A essência do brincar não é ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformando a experiência mais comovente em hábito” (BENJAMIN, 2002, p. 102).

Ao pensarmos Educação Infantil, é possível indagarmos então o modo com que o processo de ensino-aprendizagem na escola, por muitas vezes, via imposição sistemática, é gerado. Todos aqueles conteúdos, a necessidade de se ensinar algo traçado num planejamento prévio e fechado. A pressa em o quanto antes fazer a criança ler e escrever sem antes ajudá-la a compreender sobre as emoções que vem descobrindo sentir. Não é preciso disputar sempre o primeiro lugar na fila ou a posse do brinquedo. O excesso de ofertas e atividades, tarefas, deveres escolares, muitos brinquedos, entretenimento, estímulos e mais estímulos, limita a criança em sua expressão expansiva natural, entedia, tira-lhe a autonomia, desvitaliza sua força imaginadora, empreguiça seu auscultar minucioso das coisas mais ínfimas e instrutivas do viver (GANDHY, 2017).

Considerando o sentido ecológico sobre o qual acomodamos nossas reflexões e proposições pedagógicas, tratemos das bases conceituais que sustentam outras concepções-chave do que foi nossa pesquisa, fundamentando uma educação ecológica a partir da aprendizagem com a Capoeira Angola, arte-impulso de mudança do modo de ser no mundo, agente-senciente ao contexto que vive, configurando contrarespostas eficazes frente as desigualdades que assolam uma civilização justa e equânime (ANTÉRIO, 2018). Apresentamos a seguir, princípios epistêmicos do entendimento de ecologia, pensados para o ensino e a aprendizagem com a capoeira em ambientes educativos.

A NOÇÃO ECOLÓGICA DO EDUCAR(-SE) COM O MUNDO

Ao falarmos ecologia é comum vir em foco o conceito de educação ambiental, muito abordado na área das ciências biológicas e naturais. As discussões acerca da ecologia englobam uma multiciplinaridade peculiar. Seria prolongado aprofundarmos aqui sua origem etimológica epistêmica, sobretudo pelas variantes históricas. Contudo vale ressaltar que o termo tem origem mais recente, escrita pelo biólogo alemão Ernst Haeckel no seu livro Generelle Morphologie der Organismen (1866):

Por ecologia entendemos o corpo de conhecimentos sobre a economia da natureza, da investigação das relações totais dos animais com o ambiente inorgânico e orgânico; incluindo, sobretudo, suas relações amigáveis e hostis com aqueles animais e plantas com as quais entram diretamente ou indiretamente em contato – em uma palavra, ecologia é o estudo de todas as complexas interrelações referidas por Darwin como as condições da luta pela existência (HAECKEL apudFONSECA, CALDEIRA, 2008, p. 74, grifo nosso).

Ao que esclarece Moraes (2021), Haecke já se referia a ecologia como ciência que estuda a interdependência e as interações entre os organismos vivos e seu meio-ambiente, cuidando das relações entre seres, o que faz o sentido usual da palavra transcender a natureza, indo além do ambiente natural para englobar também a cultura, a sociedade, a mente e o indivíduo, enfatizando os enlaces entre todos os fenômenos naturais, sociais e culturais (MORAES, 2021, p. 71). Logo, mesmo a Agrologia e a Engenharia Ambiental se destacando enquanto áreas de pesquisa, vale frisar que o entendimento de uma preservação ambiental vem a muito tempo sendo praticada pelos povos originários desse território pindorâmico, também chamados de povos das florestas, ou mais comumente, povos indígenas:

Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e você, no fluxo, sente a sua pressão. Isso que chamam de natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que comemos, para onde vai o ar que expiramos. Para além da ideia de eu sou a natureza, a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir o rio, a floresta, o vento, as nuvens são nosso espelho da vida. Eu tenho uma alegria muito grande de experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por este mundo (KRENAK, 2020, p. 99).

Ailton Krenak, influente pensador indígena que lançou em meio a deflagrada pandemia do Covid-19, flechas em formato de livros, gerando grande impacto sobre um tema que, na verdade, nunca deve estar sobrepujado. O trecho antes citado, da obra A Vida Não é Útil, convida-nos a sair de um entendimento mais superficial e conveniente, para então refletir que fomos induzidos a imaginar que podemos agir impunimente sobre o planeta. No campo da educação, Krenak é categórico: “Acho gravíssimo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema desigual e injusto” (KRENAK, 2020, p. 101).

Em consonância de entendimento, a filosófica africana, amalgamada em nossa cultura brasileira, também pesa sobre nossa relação mais íntima e regenerativa com a Natureza, influenciando a relação que temos no que hoje se configuram como sociedades modernas e desenvolvidas. Hampaté Bá, em texto publicado no livro História geral da África, em 2010, conduz a compreensão da tradição oral em territórios do continente africano. Sob tal conhecimento, que muito se aproxima com o apresentado pelos povos indígenas, referenciamos a consideração da natureza como viva e animada pelas forças elementares, abstratas, etéreas. Assim, é preciso sabedoria na convivência e na relação de troca, podendo o conhecimento ser incorporado não somente aos gestos e ações, mas também à totalidade da vida, uma vez a necessidade em se respeitar um conjunto de proibições e obrigações ligadas à atividade em si, que constitui um verdadeiro código de comportamento em relação à natureza e aos semelhantes: “Todo ato que a perturba (a natureza) deve ser acompanhado de um comportamento ritual destinado a preservar e salvaguardar o equilíbrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em tudo, toda ação faz vibrar as forças da vida e desperta uma cadeia de consequências cujos efeitos são sentido pelo homem”(HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 188).

O costume, o ofício, as estruturas que se organizam para o viver cotidiano, esculpe a corporeidade. Emerge daí a diferença entre educação moderna e a tradição oral, onde aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 189). Nesta perspectiva pedagógica, essa é uma seara educativa que ascende compreensões ligadas a regeneração daquilo que não está fluindo, regenerando-se no constante reequilíbrio, na construção de um futuro pensado e vivido numa lógica de desenvolvimento mútuo, onde o planeta e seus bens mais naturais – ecossistemas – esteja sempre em pauta de defesa (ecocentrismo).

Em razão da ecologia, enquanto área de conhecimento, lidar com ecossistemas em mudança, tempo e espaço são variáveis determinantes nos descritos fenômenos ecológicos. Assim, a compreensão das relações existentes entre os seres vivos se revela de suma importância, demonstrando o modo como diferentes espécies interagem e como os indivíduos de uma população se comportam. Estudos ecológicos geralmente possibilitam a leitura do ambiente através de indícios maturados e expressos no meio: Os minerais, a qualidade do solo, das águas e do ar, bem como impactos quando alterações causadas pelo homem. É possível visualizar a realidade de espécies que interagem entre si e conseguem coexistir em determinados ambientes. Evidencia-se, por exemplo, motivos que levam uma espécie a viver em uma área e a ausentar-se de outros locais. Ou compreender as influências de uma espécie sobre determinada comunidade.

Para nossa pesquisa, incorporamos o sentido ecológico que abrange a compreensão de um futuro sustentável ao planeta via a herança cultural. E isso depende muito da forma como o Ser Humano – cada vez mais desumanizado – se comporta e interage entre seus semelhantes e o ambiente que conscientemente se compromete cuidar. Em mão contrária, o que vemos atualmente é uma maciça abordagem inconsequente com a natureza, com indústrias, crescimento do buraco de ozônio, exploração de minérios, petróleo, queimas e desmatamentos, contaminação e morte de rios. Consequentemente, o colapso na saúde da Terra. Pesquisas ambientalistas se empenham nas comprovações de que se continuarmos no ritmo que estamos, tão logo estaremos guerreando por água potável. E se estamos em crise ambiental, para alguns pensadores contemporâneos a educação tem um papel preponderante na formação de uma sociedade sustentável.

Incentivando uma pedagogia da terra, Gadotti (2000) propõe a necessidade de uma ecopedagogia e de uma ecoformação, porque sem essa, não podemos falar da Terra como um lar. Sobressai daí indicações em que a educação é um dos pilares para recuperar a harmonia fundamental que não destrói, que não abusa, que não pretende dominar. Mas uma educação que enseja a aceitação e respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar da natureza em que se vive (SCHULZ, 2014). Comunidades antigas Bântu-Kôngo, antes de encaminhar a criança para alguma iniciação social externa ao seio familiar, por exemplo a escola, promove aprendizados acerca de conceitos como roubar, matar, mentir, pecar, rico, pobre, minoria, estrangeiro, meu, seu etc.:

Sociedades, assim como sistemas, preparam seus próprios inimigos e sabotadores. Crimes são inimigos e sabotadores das sociedades e sistemas; são a conduta das sociedades e sistemas. A repetição de um ato criminosos mostra o quão ruim um sistema é. O crime, para os Bântu-Kôngo, é um comportamento aprendido e é possível erradicá-lo da sociedade humana (FU-KIAU apudSANTANA SANTOS, 2019, p. 58).

Ecologia, portanto, nos chega sob uma incumbência ecoeducativa, conscientizando a população no engajamento de causas preocupadas com um futuro sustentável. Gabriela Diaz, pesquisadora idealizadora do projeto Sustentabiliarte: Arte Educação Sustentável, explana num escrito ao Boletim UniFreire, que por Ecoeducação podemos entender o aprofundamento do conceito do eu, em que deixa de ser ego para ser eco, inserindo-se num contexto ecológico amplo, menos pessoal e social para mais planetário. Assim, uma educação ecocentrada consiste em possibilitar aos educandos a liberdade de incorporar o repertório ancestral e as experiências coletivas de toda a humanidade.

A partir de um relatório produzido pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, direcionado à UNESCO em 1996, surge o livro Educação: Um Tesouro a Descobrir, documento referência aos interessados por uma educação mais qualitativa, que abranja educador e educando em níveis de satisfação pessoal e comum. Reeditado em 2010, compartilha convicções diante um contexto em que as políticas educacionais enfrentam acaloradas críticas, descartes e desmontes, por razões outras que retira qualquer possibilidade de atuação qualitativa e permanente, incluindo prioritariamente as camadas menos privilegiadas da sociedade. Reconhecemos neste documento a valoração do ser humano como agente ativo na construção do meio em que se insere. A consciência ecológica enfrenta o paradoxo de ter a consciência dos perigos que ameaçam o meio ambiente sem se valer de medidas efetivas para solucionar problemáticas como a poluição e assassinato de rios e o desmatamento de florestas nativas: “O crescimento econômico a qualquer preço não pode ser considerado como a via mais adequada para permitir a conciliação entre progresso material e equidade, entre respeito pela condição humana e pelo capital natural que temos obrigação de transmitir em bom estado às gerações vindouras” (DELORS, 2010, p. 7).

Agregando ao documento da UNESCO, um quinto capítulo: Aprender a cuidar da Mãe Terra e de todas as formas de vida e de todos os seres, aonde Leonardo Boff nos fala sobre o fato cientificamente reconhecido de que as mudanças climáticas mais atuais vêm do aquecimento global causado sobretudo pela natureza antropogênica, ou seja, com origem em algum tipo de comportamento humano violento face à natureza. A partir do que difunde Boff (2012), é urgente mudanças na estrutura educacional, incluindo nos currículos aspectos mais relevantes ao conhecimento planetário. Isso implica saber também que nos encontramos em momento delicado de nossa própria sobrevivência, sendo fundamental uma educação consciente, engajada, participativa e permanentemente ecológica, usufruindo a vida de forma mais sensitiva, menos gananciosa e em máxima consonância ao bem da Terra: “Os estudantes já não podem aprender apenas dentro das salas de aula ou fechados em suas bibliotecas, em seus laboratórios ou diante dos programas de busca da internet. Devem ser levados a experimentar na pele a natureza” (BOFF, 2012, p. 153).

Boaventura Sousa Santos nos ajuda também a expandir os horizontes críticos, defendendo a universidade pública como espaço-tempo de uma Ecologia de Saberes, espécie de extensão às avessas, na qual o conhecimento é levado não de dentro para fora da universidade, e sim num movimento de identificação e valorização, agregando conhecimentos que circundam fora dos limites acadêmicos, dos muros. O autor destaca as enormes contribuições da América Latina para o desenvolvimento de projetos de extensão, estreitando distanciamentos que persistem em estagnar o fluxo: Comunidades e universidades. O professor formula um pensamento denominado epistemologias do sul, a partir do qual se constata que o domínio desses modelos de desenvolvimento passa também pela ciência, que serve para reforçar todo o processo de invisibilidade e opressão que separa negros, indígenas, mulheres e demais grupos historicamente marginalizados dos ambientes de produção de conhecimento. Como proposta para romper com essa monocultura de um só saber, faz-se necessário a valorização saberes produzidos pela luta dos oprimidos a esse modelo (SOUSA SANTOS, 2004).

A seguir, apresentamos detalhes do projeto Brincando Capoeira, veículo pedagógico na feitura e realização da pesquisa em que estivemos vivendo durante o período de doutoramento. Refletimos sobre a infância e aspectos correlacionados a corporeidade da criança quando brinca capoeira. O brincar é então elencado como centro de investigação para as concepções de matrizes pedagógicas insurgentes. Compartilhamos com elas a metodologia e as dinâmicas de funcionamento, conceituação e processo de aprendizagem. Não obstante, todos os procedimentos formais foram realizados para que estivéssemos de acordo com as exigências do Comitê de Ética vinculado ao Centro de Educação da UFPB, utilizando-se dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido junto as famílias, e Cartas de Anuência, expedidas pelas escolas parceiras.

BRINCANDO CAPOEIRA: UM PROJETO DE ENSINO, PESQUISA E EXPANSÃO

Capoeira é mandinga de escravo em ânsia de liberdade. Seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sagaz capoeirista

Mestre Pastinha

Pintura: Carybé

Bunseki Fu-Kiau1, estudioso em sistemas tradicionais africanos, argumenta ser preciso que encontremos nosso círculo, a fonte, nossa casa. Em casa se está seguro, protegido. Do contrário, vem o medo, em qualquer outro lugar que se esteja, mesmo dentro do prédio mais bonito: Se você não tem o seu centro dentro desse edifício, você não vai estar seguro. Mas se encontramos o nosso centro, podemos seguir a qualquer lugar. Seu poder interior é a chave da sua extensão fora. Não podemos ter medo se acaso a capoeira está se expandindo tão longe. No entanto que esteja ligada ao centro, ao íntimo.

Buscando um modo genuíno de expressar-se ao mundo em espírito de alegria - portanto de finalidade positiva, diria Mestre Pastinha2, o projeto Brincando Capoeira iniciou como desdobramento da pesquisa doutoral intitulado Brincando na Roda dos Saberes, apresentado em 2018 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Paraíba (PPGE/UFPB), sob orientação da professora Dra. Adelaide Dias. A partir da interface lúdica que a Capoeira Angola apresenta, de jogo/brinquedo/brincadeira, o projeto foi formalizado enquanto pesquisa a partir do Grupo de Experimentação Criativa UCA3, idealizado em 2014 como grupo de trabalho vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Corporeidade, Cultura e Educação (LEPEC/UFPB/CNPq). Em 2016 o grupo se remanejou para o Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança (NUPEC/UFPB/CNPq). A despeito, seria impossível escrever o conteúdo deste manuscrito, se, antes das elaborações, não houvesse a vivência: Capoeira na roda, capoeira na vida, dizem os antigos. Por isso nossa imersão e engajamento junto à Escola de Capoeira Angola Comunidade, que com mais de trinta anos de resistência, desenvolve trabalhos culturais tradicionais no Bairro dos Novais, João Pessoa/PB, agindo permanentemente na manutenção da memória e no cuidado de manifestações de tradição popular fundamentais a cultura local, regional e do Brasil.

Desde seu início, no ano de 2015, o projeto Brincando Capoeira foi pensado como pesquisa de campo junto de comunidades em situação desprivilegiada e com contínuas demandas comunitárias. Em 2017, o projeto foi contemplado pelo Programa de Extensão (PROBEX4/UFPB), abrigado formalmente em diferentes escolas, dentre elas, a Escola de Educação Básica da UFPB (EEBas) e a Ong/Oscip Escola Viva Olho do Tempo (EVOT), localizada na zona rural/quilombola da capital paraibana. Após 4 anos de ação/pesquisa, desenvolvemos uma metodologia de ensino onde o ato de brincar capoeira é centro no processo de aprendizagem, culminando a tese de que sua prática aflora de maneira crítica e consciente, uma corporeidade ecoeducativa de presenciar o mundo. Acreditamos que fazer pesquisa é fazer com que o conhecimento se expanda e gere reais melhorias à sociedade, sobretudo ao que tange a esfera da educação e da infância como terreno propício ao viver a vida de modo inteiro, integral.

Infância, Corporeidade e o Brincar

Diante a atual situação que passamos, a educação vem a se reinventar. O momento servenos também a refletir sobre como se articula a estrutura institucional e como podemos não nos abater frente tantas dificuldades. O projeto Brincando Capoeira se ancorou no pensamento de mudança, portanto da impermanência, compreendendo a arte e a cultura na escola como um espaço/tempo de experimentação criativa, de responsabilidade crítica, e de nobre convivência, afetando positivamente crianças, jovens, adultos, famílias e comunidades.

A infância, pensada como terreno fértil de possibilidades e descobertas, é lugar aonde investimos nossas mais sensíveis investigações, considerando sobretudo, as nuances de corporeidades que se configuram no viver do corpo em movimento. Elegemos esse período da vida, por conseguinte a Educação Infantil, como nosso principal campo de atuação, enfatizando a prática pedagógica griot (tradição corpo-oral), o processo de ensino-aprendizagem e a formação docente permanente. O brincar, elemento-chave em nossa perspectiva pedagógica, fundamentouse no projeto tendo como referência a fruição lúdica, ampliando e diversificando o acesso a produções culturais fomentadoras de conhecimentos, imaginação, criatividade, experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais das crianças.

Enquanto veículo e canal de interlocução com a pesquisa que se desenvolvia no doutorado, o projeto abarcou como um dos objetivos mais centrais, a produção de fruições práticas voltadas ao brincar da criança, enaltecendo saberes ligados a Capoeira Angola. Mais tarde, também com a Permacultura, trabalhamos valores éticos da esfera humana e ambiental (fauna, flora, territórios). A respeito da corporeidade, intuíamos momentos no próprio processo de aprendizagem que pudessem se configurar como suspensões refletivas, relacionadas a questões da vida, como por exemplo saber esperar, saber partilhar, saber se expressar, saber respeitar o outro(a). Cuidar da saúde, cuidar das plantas, árvores e outros animais. Valorizar e reconhecer os saberes das culturas africanas e indígenas, despertando-se a responsabilidade de proteção dos recursos da natureza em sua totalidade menos alterada/danificada pela ação humana.

A criatividade, compreendida como fenômeno humano de expressividade, foi investigada a partir de seu peculiar processo de desenvolvimento, considerando, ao que nos aponta Neves-Pereira e Branco (2015), como as dinâmicas de inserção na cultura por meio de reguladores semióticos. Dessa forma, analisar o fenômeno criativo em uma perspectiva de desenvolvimento humano permite o resgate do sujeito que cria em sua trajetória ontogenética, além de considerar a dimensão sociocultural, histórica e temporal como aspectos constitutivos, bem como suas potencialidades, lugar onde se inscreve a capacidade de criar (NEVES-PEREIRA e BRANCO, 2015, p. 162).

Fonte: Arquivos do projeto Brincando Capoeira

Figura 1 Foto escola de Educação Básica da UFPB, 2015 

Na EEBas atendemos crianças na faixa-etária entre 2 e 6 anos, compartilhando vivências periodicamente às quintas-feiras, no turno da manhã. Os combinados foram previamente estabelecidos com a coordenação pedagógica da escola, bem como as respectivas professoras, incluindo os melhores horários. Geralmente as situações lúdico-integrativas aconteciam nos primeiros e/ou últimos horários do turno. No caso da EVOT, os encontros se deram às sextasfeiras, durante todo o período da manhã e da tarde. Com uma excelente área externa, pensamos na EEBas, meios de potencializar essas áreas com ações nos intervalos (recreios) ou em aulas externas à própria escola. Na EVOT atendemos crianças em situação de vulnerabilidade social, estudantes da rede pública, com idade entre 6 e 16 anos, no contra-turno escolar formal. Em termos de espaço físico onde experimentamos as vivências, ocupamos locais preferencialmente abertos, bem arejados, onde o corpo em movimento se liberasse ao máximo ali possível, fluindo na prática e pela própria expressão de si mesmo (BETTI, 2017).

Matrizes Pedagógicas do Projeto

Em 2003 e 2008, promovendo ações efetivas no cenário nacional, foram realizadas alterações na Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB), cujo objetivo consistia em, respectivamente, tornar obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira pela Lei 10.639/03 e, em 2008 alterada pela 11.645, acrescentar a obrigatoriedade de história e cultura indígena. Essas alterações impactaram significativamente o modo como o ensino estava sendo conduzido, visto que se formou uma rede de trabalhos para que educadores tivessem acesso a formação e informação sobre os conteúdos, temáticas e assim fossem instrumentalizados para construir um ambiente escolar capaz de promover visibilidade aos saberes das populações negra e indígena.

A publicação do Livro do Professor (BRASIL, 2014) é um dos exemplos de como podemos potencializar as leis, contribuindo para a inserção de conteúdos que relacionem a história e a cultura da África e dos povos originários indígenas no currículo da Educação Básica, reforçando assim, o compromisso com o fortalecimento e salvaguarda dessas tradições. Ademais, sistematizamos no projeto estruturas de aula considerando tanto a proposta de Aula Laboratório da Pedagogia da Corporeidade, bem como o Modelo de Ação Pedagógica da Pedagogia Griô (GOMES-DA-SILVA, 2014; PACHECO, 2015). O conjunto teórico das duas teorias se entrecruzam no quesito básico de entender que o convívio e o compartilhamento de saberes devam acontecer dentro de uma ambiência favorável ao processo criativo individual e coletivo/comunitário. Isso implica fomentar contextos mais favoráveis à aprendizagem, fazendo com que os aprendizes possam sensibilizar-se em meio aos processos de fruição pedagógica, seja na sala, quadra, quintal ou terreiro.

LIVRO DO PROFESSOR - História e cultura africana e afro-brasileira na educação infantil ./ Fonte: Arquivos do projeto Brincando Capoeira

Figura 2 Foto Escola de Educação Básica da UFPB, 2016 

Dentre outros objetivos do projeto esteve o de experienciar aprendizagens e saberes presentes no processo de assimilação corporal e intelectual da capoeira, privilegiando sua interface lúdica/holística. Acessamos padrões de referência e de identidade no diálogo e no reconhecimento da diversidade cultural, recorrendo para isso, a três elementos da formação humana: Corporeidade; Ludicidade; e Ecológia. Esta é também a tríade conceitual que delineia nossa prática de ensino voltada a perspectiva ecoeducativa, que foca acessar o ser humano em sua inteireza, a partir de uma formação que considera a história de si e a busca pelo que se acredita. São aspectos importantes neste processo, a interação sensível somada a uma comunicação não-violenta5; as emoções presentes na relação de confiança e estranhamentos; e a natureza própria (cósmica) como dispositivo ecológico:

Partindo do pressuposto que a experiência no processo de ensino e aprendizagem se dá sempre de forma dinâmica e interativa, consideramos cada aula um espaço/tempo de experimentação. A aprendizagem, naquilo que lhe é circundante, dar-se em processos fundamentais da vida, haja vista que todo indivíduo aprende e, através da aprendizagem, desenvolve os comportamentos que o possibilitam viver. Assim sendo, todas as atividades e realizações humanas exibem os resultados da aprendizagem. Quando se considera a vida em termos do povo, da comunidade, ou do indivíduo, por todos os lados são encontrados os efeitos da aprendizagem (CAMPOS, 1987, p. 15).

Fonte: ANTÉRIO, 2018

Figura 3 Triagrama Ècoca 

Para que pudéssemos estabelecer uma articulação entre fundamentos antigos e a prática propriamente dita, definimos 6 Saberes Basilares para uma concepção alargada do potencial ecoeducativo da Capoeira Angola. Vale frisar que não se trata de uma receita, manual ou qualquer tipo de estrutura formatadora. Vem apenas organizar fundações conceituais coerentes a ética da Capoeira Angola, sobretudo aquela difundida por Mestre Pastinha, patrono desta arte. Contudo, antes dos saberes propriamente ditos, há 3 Princípios são destacados: (A) Ancestralidade, como potencializador do imaginário afrodescendente a partir da história e cultura de matriz africana; (B) Corporeidade, enquanto uma unidade tensional de engendramento do Ser; e (C) Autoaperfeiçoamento pelo viés de uma Sensibilização Ecológica, considerando o ímpeto da busca do autoconhecimento compreendendo-se como parte da Natureza, por isso inerentemente responsável pela preservação dela.

A Ancestralidade tem a ver com a cosmovisão africana, uma epistemologia ontológica que repousa diferentes concepções de mundo, não deixando de fora os aspectos místicos e metafóricos que a vida nos traz. Um conhecimento marcadamente antirracista para uma ontologia da diversidade, não só da inclusão, mas de heterogeneidade. “De uma semiótica abrangente para uma forma cultural de organizar experiências singulares” (OLIVEIRA, 2012, p. 40; HAMPATÉ BÂ, 2010; KRENAK, 2020). A Corporeidade, que muito se assimila a ancestralidade, é concepção de ser humano como partícipe da circunstância, portanto ambiental. É esse modo como reagimos a circunstância, por vezes em unidade tensional, de experiência profunda, de vida e morte, conhecimento e ignorância, luz e escuridão, consciência e inconsciência (GOMES-DA-SILVA, 2014; PACHECO, 2015). E o Autoaperfeiçoamento, que traz o ímpeto de se autoconhecer sob uma perspectiva filosófica e ecológica, de finalidade sempre a estar aperfeiçoando-se em relação ao que se foi e ao que se pode naturalmente seguir se tornando (PASTINHA, 1981; FREIRE, 1999). Esses princípios ajudaram a edificar uma proposição ecoeducativa de se trabalhar a Capoeira Angola e seus saberes aqui destacados: (1) Respeito/reverência, não esquecendo das pessoas que foram pontes nas travessias do conhecimento e encruzilhadas de saberes, sobretudo os mestres e mestras; (2) Escuta não-violenta com espontaneidade ao processo; (3) Paciência, sem afobação no aprender; (4) Chão é amigo, não se deixando estagnar pelo medo de cair/fracassar/perder; (5) Humildade, reconhecendo e acalmando a vaidade no processo natural de evolução; (6) Generosidade, primando pela prática altruísta e comunitária.

A prática da capoeira em âmbito escolar é pensada no projeto como veículo de implementação das Leis 10.639 e 11.645, devendo estar integrado ao Projeto Político Pedagógico/Curricular da instituição parceira. Fomentando uma consciência crítica, identitária e de visão de mundo (cosmovisão) ancestral, incentivamos uma pedagogia alinhada a perspectiva de educação que enseja aceitação e respeito para que o bem-estar da natureza. Ao que indica a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), na Educação Infantil, as aprendizagens essenciais compreendem tanto comportamentos, habilidades e conhecimentos, quanto vivências promoventes de aprendizagem e desenvolvimento nos diversos campos de experiências, tomando as interações e a brincadeira como eixos estruturantes. Assim, consideramos assertivos trabalharmos no projeto Brincando Capoeira, competências gerais referentes a Educação Infantil, dentre elas os direitos de aprendizagens e o desenvolvimento a partir dos denominados campos de experiência: Conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se (BRASIL, 2017).

Fonte: Arquivos do projeto Brincando Capoeira

Figura 4 Foto escola de Educação Básica da UFPB, 2016 

Em relação ao corpo e seus sentidos, gestos, movimentos impulsivos ou intencionais, coordenados ou espontâneos, norteamo-nos pela compreensão de que as crianças, desde cedo, exploram o mundo, o espaço e os objetos do seu entorno. Estabelecem relações, expressam-se, brincam e produzem conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural, tornando-se, progressivamente, conscientes de suas corporeidades (BRASIL, 2017). Na Educação Infantil, o corpo das crianças ganha centralidade, pois ele é o partícipe privilegiado das práticas pedagógicas de cuidado físico, orientadas para a emancipação e a liberdade, e não para a submissão, promovendo experiências nas quais as crianças possam de fato acessar respostas que anseiam suas curiosidades, indagações e questionamentos. Assim, acreditamos criar oportunidades para que elas ampliem seus conhecimentos do mundo físico e sociocultural.

Metodologia e Processo de Aprendizagem

No projeto, sistematizamos propostas de aulas considerando a criança em sua inteireza. São aspectos importantes neste processo, a disponibilidade de interação, a percepção sensível às virtudes, a escuta não-violenta, as emoções presentes na relação de confiança, e a afetividade pelo brincar junto. As temáticas escolhidas para as vivências assentam-se em saberes da Capoeira Angola e seus princípios de movimento, bem como sua cosmovisão africana e indígena. Conta com o reforço das linguagens artísticas (dança, contação de história, pintura, confecção em madeira) e de brincadeiras populares para potencializar e favorecer ainda mais as situações lúdico-integrativas. Ademais, incorporamos ao processo, práticas de Permacultura, metodologia de trato e vivência de modo sustentável e regenerativo com a Terra.

Os encontros foram estruturados a partir de uma sequência pedagógico-didática que se organiza em três aspectos basilares: (I) Sensibilização Harmonizante, que corresponde ao processo primeiro dentro do movimento interativo, aflorando-se uma percepção do todo, buscando saber se há algo que as crianças queiram expressar, sugerir, questionar. É a fase de encantamento, de ativação da curiosidade, do despertamento lúdico; (II) Desenvolvimento Criativo, que se refere ao processo de experimentação coordenada, sendo este o momento em que eleva-se o grau de interatividade, tomando como referência o que foi pretendido para ser compartilhado (conteúdo/saber); (III) Produção reflexiva e compartilhada do vivido, correspondendo a reflexão acerca das experiências. Pode-se dar por diferentes potencialidades de significação: expressão verbal, escrita, desenho, pintura, quando ainda em grupo, cada participante se expressa a partir da própria percepção, ou seja, daquilo que sentiu e ainda estaria a sentir.

Fonte: Arquivos do projeto Brincando Capoeira

Figura 5 Foto escola Viva Olho do Tempo, 2017 

Os conteúdos variavam de acordo com os saberes tradicionais da Capoeira Angola (movimentação, musicalidade e fundamentos) e práticas de Permacultura (revitalização de solo, manejo, compostagem, plantação e colheita). Os materiais de apoio foram instrumentos musicais e ferramentas de jardinagem, incluindo aquelas que confeccionamos de forma reciclada. As práticas aconteciam geralmente em espaços abertos, com árvores frutíferas e brinquedos rústicos. As turmas foram divididas por faixa-etária. Iniciamos os momentos de aula em roda, perguntando como as crianças estavam, se sonharam, sobre o que comeram no café, e como estavam se sentindo naquele momento. Depois alongávamos ao tempo que agradecíamos ao Sol, ao céu, aos pássaros e a toda Mãe Natureza. Seguimos com atividades específicas do dia até o momento final reservado para as crianças brincarem mais livremente.

Inspirado nos elementos que compõe a atmosfera lúdica da roda da capoeira, campo de aprendizagem múltiplas, pensamos o momento de vivência/aula um espaço-tempo de experimentação criativa, de descobertas e potencialidades. Na roda da capoeira se canta, toca e ginga. A ginga é a dança, o movimento matriz que cada corpo tem. O jogo se dá no mínimo à dois, gerando o terceiro na inter-relação conectiva entre as corporeidades. Quando em estado de brincadeira, tudo se multiplica em signos e sinergia: o brincar é positivo. E se é positivo é bom. No brincar até mesmo o negativo é positivo, pois assimila-se a dor e libera o medo.

Tratando-se da ambiência interativa onde o brincar é núcleo central, brinquedo pivô, a situação lúdico-integrativa emana o aguçar da percepção na ação. Pensada a partir do autoconhecimento na relação aprendiz-ambiente-mestre, desenhamos uma lógica pedagógica não catalizadora de resultado, mas sob uma função análoga a agulha, conduz a linha do saber no costurar do conhecimento. O ato de brincar, compreendido como manifestação genuinamente lúdica, figura nessa leitura como epicentro energético de múltiplas e transversais aprendizagens. É pelo brincar que conectamo-nos de maneira mais alegre a energia da vida, do criativo viver.

Fonte: ANTÉRIO, 2018

Figura 6 Flor de Ècoca 

Organizar as ideias em rabiscos e esquemas diagramáticos, nos vários cadernos de anotações que tivemos neste período de vivência pesquisada, ajudou a criar uma teia de conceitos voltada ao processo de ensino e aprendizagem e a ambiência que pensamos mais favorável ao desenvolvimento de uma educação ecológica. Sua organização não atende exclusivamente à prática da capoeira, mas abrange outras ações em que a corporeidade se atrela a ludicidade como eixo transversal nos processos pedagógicos. A educação ganha ânima, força de vitalidade, potencializando sua dimensão ontológica num prisma de acolhimento e iniciação de jovens no mundo, tornando-os aptos a apreciar, abordar, incorporar e transformar as tradições culturais que formam a herança simbólica comum e pública. Esse acolhimento dos mais novos no mundo pressupõe, segundo o que nos provoca pensar Hannah Arendt, um duplo e paradoxal compromisso por parte do professor.

Por um lado, ajuda-nos compreender Carvalho (2013, p. 83), “[...]cabe ao professor zelar pela durabilidade desse mundo comum de heranças simbólicas, no acolher e iniciar seus alunos”. Por outro, cabe também a ele “[...]cuidar para que os novos possam se inteirar dessa herança pública, integrá-la, fruí-la e, sobretudo, renová-la, posto que ela lhes pertence por direito.”

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsálas de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENT, 1978, p. 247).

A escola é espaço de interação, de convívio, portanto, de afetos correspondidos. Somos no mundo uns com os outros e todos em natureza. Cada dia que experimentamos na escola ações integrativas como é o caso da capoeira, independente do conteúdo previsto, é revelado com as crianças processos criativos de desvendamento de si e de mundo. São elas com elas mesmas as criadoras dessa aprendizagem múltipla e mutável, naturalmente repleta em sentidos, sentimentos e significados. O brincar vem a expandir tudo isso, associando saberes tradicionais de modo a estabelecer uma pedagogia ecológica, que mira o bem viver de forma crítica e ativa ao entendimento de si próprio e o meio em que se vive.

Fonte: Arquivos do projeto Brincando Capoeira

Figura 7 Fotos da escola Viva Olho do Tempo, 2018 

Em se tratando do desenvolvimento das crianças, tivemos avanços correspondentes a capacidade de escuta e atenção, o envolvimento compromissado com o que combinávamos a fazer, e a efetiva aprendizagem relacionada aos saberes compartilhados, dentre eles o de respeitar o outro – não machucando, ferindo ou fazendo sofrer – e partilhar de modo tranquilo os materiais, principalmente os da escola (brinquedos, ferramentas etc.). A desenvoltura corporal também apresentou bons avanços, principalmente em relação ao equilíbrio, lateralidade, coordenação motora fina e grossa, e a percepção de espaço/tempo. Também, o cuidado com as plantas, reconhecendo-as pelo cheiro, o formato e textura das folhas; o zelo com os materiais; e a postura mais cuidadosa/gentil no convívio uns com os outros.

O processo avaliativo no projeto se deu ao longo das aprendizagens, levando em consideração o fluxo e o desenrolar na participação das crianças, levando em conta suas desenvolturas, convivências, relações de amizade, tomadas de decisões e interações relacionadas aos fazeres cotidianos. Além disso, construímos relatórios trimestrais em forma de devolutiva às famílias, dialogando com elas, individual e coletivamente (roda de conversa), sobre o desenvolvimento sensitivo, sensorial, cognitivo e comportamental das crianças. Pelo fato do projeto se embasar no potencial educativo ecológico da Capoeira Angola, nossas ações se expandem em interdisciplinaridades que enaltecem nas crianças, saberes inerentes a sensibilização, amorosidade e respeito, enfatizando a manutenção cultural e a preservação de recursos naturais, incluindo a vida de outros seres vivos. Em caráter mais pessoal, o maior aprendizado que ficou foi a compreensão de que o conhecimento se dá pela troca afetiva de diferentes saberes, rompendo com centralidades sobrepujantes alheias ao processo de uma educabilidade positiva e transformadora.

O projeto Brincando Capoeira representa uma ação ativa, propondo o brincar em consonância às linguagens artísticas e como pivô de aprendizagens múltiplas. Contribuímos no processo de formação e educabilidade de crianças a partir de estratégias pedagógicas favoráveis a aprendizagem e ensino da Capoeira Angola, associando saberes complementares e favoráveis a uma consciência ecológica, emergida da própria corporeidade. Ajudamos a promover ainda, vivências em caráter de formação continuada, envolvendo educadores da escola, a fim de estabelecer maiores aprofundamentos às subjacências da prática educativa comum, bem como a atualização de seus projetos/programas político pedagógicos. Ao que indica a BNCC em relação aos campos de experiências para a Educação Infantil, trabalhamos o aprimoramento de gestos e movimentos da cultura ancestral, desenvolvendo, dentre outros aspectos, a autoexpressão e a capacidade criativa de movimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Brincar é criar, é fazer arte, é experimentar os devaneios em interação com o mundo. Não deve ser estranho pensarmos a escola, sobretudo aquela comprometida com a primeira infância, projetar-se enquanto um território genuinamente lúdico, favorável a situações de aprendizagens integrativas, divertidas e que tragam prazer de viver. A interação na escola pelo brincar representa um contraponto ao que se prega e investe a sociedade globalizada, de alto consumo e excedente competição. Fomentar situações providas em ludicidade em âmbitos preocupados com a educabilidade positiva, potencializa vínculos importantíssimos, incluindo a afetividade e a autoconfiança. A sensibilização ecológica vem como fundação, base consciente de uma corporeidade regida por um senso-de-natureza-comum.

Ao longo dos quase cinco anos de pesquisa, foi possível sentir bem o que proporciona a Capoeira Angola enquanto ferramenta pedagógica, modo de ser e perceber o mundo. Nessa roda dos saberes, do jogo em si, há intrínseco a cosmovisão voltada a reverência a memória viva, que se manifesta na gestualidade da intuição e no experienciar das ações. Ser e se prestar, tal como dizia Mestre Pastinha. Desenvolvemos uma proposição pedagógico-didática assentada em princípios ecológicos que se alia às leis de fomento cultural afro-brasileira e indígena nas escolas. Imprimimos na pesquisa a concepção de uma educação ecológica, com atenção especial a Educação Infantil, considerando a capoeira/lúdico/jogo chave nos processos de aprendizagem.

O brincar é em sua gênese um vasto sistema ecológico, não havendo qualquer concepção ou conceito que não admita a importância do corpo que se expressa pelo movimento e pela diversidade das relações múltiplas deste e seu entorno. Daí a atenção aos contornos pormenores, onde o brincar perpassa esferas de entrega e permissão, dedicação e aventurança. Enaltecemos a ruptura ao mais do mesmo, remando no horizonte de uma pedagogia dos detalhes, das miudezas e aparentes insignificâncias. Cabe fomentarmos a confluência do que de fato se sobressaia ao caos, a rigidez intolerante de imposição e disputa frenética, dando lugar ao que amplamente se propõe plural, democrático e próspero.

Esperamos que este trabalho, além de inspirar crença no ser humano mais integrado a Natureza, possa fortalecer a presença da Capoeira em escolas e outros espaços similares, revolucionando pensamentos e recivilizando pessoas.

1Para melhor acessarmos os estudos de Fu-Kiau, contamos com a tradução de um de seus estudos - Ntangu-Tandu-Kolo: o conceito Bantu Kongo do Tempo - feita por Mo Maiê, artista e pesquisadora sobre o tema e quem tivemos a oportunidade de conhecer no Curso Do Outro Lado de Cá: Filosofia Africana em Terra de Cabôco, realizado no Sítio Malokambo, na cidade de Tracunhaém, Pernambuco/Brasil. Disponível em https://goo.gl/15wKw2

2Reconhecido capoeirista, filósofo, que viveu o início dos anos de 1900 na cidade de Salvador/Bahia. Seus ensinamentos, éticos, humanos e pedagógicos, foram basilares na feitura das proposições aqui apresentadas.

3Iê Inaldo Ferreira de Lima, nosso Mestre Naldinho, e todas a pessoas que lá somam e fortalecem a capoeira viva,

4Por meio do Centro de Comunicação, Ciências e Artes (CCTA), Departamento de Artes Cênicas, na pessoa da professora Dra. Líria de Araújo Morais, que acreditando no projeto, o indicando a concorrer ao edital PROBEX/2017. A conquista foi significativa, ampliando a ação envolvendo estudantes graduandos da UFPB, bolsista e voluntários.

5A comunicação não-violenta compreende enxergar continuidades entre esferas pessoal, interpessoal e social, descobrindo formas práticas de intervir nelas evitando dinâmicas classificatórias, dominatórias e desresponsabilizantes, que rotulem ou enquadrem os interlocutores ou terceiros (ROSENBERG, 2006).

REFERÊNCIAS

ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP: UNICAMP/CMU; Salvador: EDUFBA, 2006. [ Links ]

ANTÉRIO, Djavan. Brincando na Roda dos Saberes: a capoeira angola e seu potencial educativo ecológico. Tese (Doutorado), Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (M. V. Mazzari, trad.). São Paulo, SP: Duas Cidades, 2002. [ Links ]

BETTI, Mauro. Educação Física escolar: ensino e pesquisa-ação. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2013. [ Links ]

BOFF, Leonardo. Ética e Espiritualidade: como cuidar da Casa Comum. Editora Vozes, 2017. [ Links ]

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Julho de 2022

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