EXPERIÊNCIAS E SINGULARIDADES NO PENSAMENTO COM IMAGENS
O tripé ensino-pesquisa-extensão tem sido a sustentação para projetos de educação em muitas instituições públicas brasileiras. Não apenas as universidades, neste caso, abrangendo as públicas e as privadas, têm esse princípio de formação, como também os institutos federais, que oferecem uma estrutura verticalizada de formação, dando oportunidades também a estudantes de ensino médio para participarem desses três tipos de ações.
Neste texto, partimos de nossas experiências como coordenadores de projetos de pesquisa e de extensão, a fim de melhor compreender teoricamente alguns de seus desdobramentos. Tanto na pesquisa quanto na extensão, temos coordenado e participado de projetos envolvendo questões indígenas, afro-brasileiras e africanas. Temos ações de experimentação fílmica e escrita, temos estudos com leituras comparadas e que lidam com a memória dos povos que estudamos, oferecemos cine-debates, em um universo de possibilidades enorme de temas e de registros que multiplicam conhecimentos em suas muitas formas de socializá-los.
Inicialmente vale apontar que entendemos as ações de pesquisa e de extensão no âmbito dos estudos de descolonização, sendo centrados em experiências pessoais e observando-se a pertinência dos seus lugares de fala. Djamila Ribeiro, no livro Lugar de fala (2019, p. 28), aponta a relevância de “[...] um projeto de descolonização epistemológica”, que reflita “[...] o fato de que experiências em localizações são distintas e que a localização é importante para o conhecimento”. Nesse sentido, a questão da autoafirmação e, em especial, as palavras do movimento negro e feminista, e do movimento indígena, relacionadas às vozes locais, contribuem para que possamos entender certas experiências como movimentos que funcionam em brechas contra as ideologias hegemônicas, racistas, de gênero etc., dentro de uma perspectiva libertária (hooks1, 2017), por outras individuações. Quando estudantes bolsistas e docentes levam obras audiovisuais e oficinas de criação a estudantes e participantes de escolas parceiras, a ONGs, a eventos com participação da comunidade externa, a eventos de divulgação científica com atividades abertas ao público em geral dentro e fora dos nossos campi e em salas de aulas, estamos atuando nesses espaços de abertura contra hegemônicas. Mas apostamos que algo mais acontece.
As ações docentes em uma instituição de ensino, especialmente as instituições públicas, contribuem com dispositivos de produção de subjetividade e, neste caso, funcionam para ressingularizações individuais e coletivas. Pensando com Félix Guattari (2012, p. 17): “[...] a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros e, se for o caso, francamente discordantes”. Esse filósofo francês também destaca as dimensões evolutivas, criativas e autoposicionantes dos processos de subjetivação, apontando para a relevância de um paradigma de inspiração ético-estética, em que se siga uma lógica singular, que leve em conta o movimento e as intensidades dos processos evolutivos, com práticas micropolíticas e microssociais, novas solidariedades.
Ao encontro desses pensamentos e estendendo-os no diálogo com Gilles Deleuze, Sandra Corazza (2002) incide no campo de estudos de currículo ao indagar se há uma “imagem-Assentada” desenvolvida no pensamento curricular, que parece dilatar-se e deste pensamento receber a sanção de uma forma universal. Quando remete ao par matéria-forma, a imagem “[...] compõe um modelo legal ou legalista, opera individuações por sujeitos e objetos, forma bons cidadãos, bons saberes, bons valores, fazendo com que tudo, no campo do currículo, fique firme, sólido, estável, [...] e se toma A Imagem, com força gravitacional [...]” (CORAZZA, 2002, p. 132).
As reflexões que trazemos a partir de nossas experiências buscam rupturas, breves ou mesmo a-significantes, nos modos próprios de uma metodologia rizomática, perfurando as efetuações de:
[...] imagem-forma [que] captura[ria] os fluxos de todos os currículos do mundo em duas vertentes: uma, que funda e embasa o pensamento curricular em um pensar-verdadeiro, como o Todo do logos ou da política, e faz do currículo assim representado algo seguro e fixo; e a outra, que remete esse pensamento a um pacto ou contrato, expresso numa organização legislativa, e faz do currículo uma criação do Sujeito soberano ou de uma República dos Espíritos Livres. (CORAZZA, 2002, p. 132).
Nessa direção do estudo das criações de “imagens do pensamento” nas práticas curriculares, ou seja, a partir de sua noologia, os projetos de extensão e pesquisa que oferecemos agem com os objetivos de promover e incentivar o contato com obras de escritores indígenas, afrobrasileiros e de países africanos de língua portuguesa, em ações de estímulo à leitura, à escrita, e aos saberes, estabelecendo vínculos com outras linguagens, e produzindo reflexão teórica sobre as experiências realizadas. Também está presente a busca por formas de compartilhar as aproximações realizadas com estudantes de escolas públicas e agentes de leitura de comunidades não escolares: realizamos oficinas e analisamos materiais de pesquisa, dividindo-os entre produções escritas, produções imagéticas, e o intermezzo dos projetos (ou aquilo que escapa); exploramos as potencialidades políticas e estéticas dos encontros; contribuímos para a formação das pessoas que se envolvem com os projetos, bem como expandimos e multiplicamos as possibilidades de pesquisa e produção de todas as pessoas envolvidas. Desejamos promover os universos indígenas, afrobrasileiros e africanos de língua portuguesa, através da sua poesia, da sua prosa, das artes visuais, levando a experimentar povos indígenas e Áfricas que nos atravessam, que ventam por nós2.
Entendemos que isso tem também conotações políticas, pois há algo de máquina de guerra (DELEUZE, GUATTARI, 2002a, 2002b, 2004, 2006; MARQUES, 2009, 2013) na experimentação com a literatura, o cinema, a fotografia, as artes. Essas ações “[t]raçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o dizível, relações entre modos do ser, modos do fazer e modos do dizer.” (RANCIÈRE, 2009, p. 59).
Continuando com Corazza (2002, p. 133), estamos em busca de outras imagens:
[...] imagens intermediárias e transições entre elas, porque uma prepara a outra, de modo que, para passar de uma a outra e entre as duas, vai ser inevitável um pensamento de natureza diferente, que se oculte dessa imagem e ocorra fora dela: um pensamento-acontecimento, um pensamento-problema, ou uma outra espécie de imagem do pensamento, mas que não chega a sê-lo, porque é uma imagem vagamunda, uma ausência de imagem, pode-se dizer, que encaminha uma noologia do pensamento curricular movimentada por uma diversidade tipológica de currículos.
Muitas vezes, tais imagens intermediárias e transicionais des-locam-se a partir das afecções de bolsistas e participantes de projetos de pesquisa, quando sofrem sustos ou assombros com obras mais “difíceis” (diante, por exemplo, diante da violência e do preconceito contra personagens femininas em Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo), mas também quando há encantamentos (com textos como Meu Vô Apolinário, um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel Munduruku) ou pequenas alegrias (com obras como A bicicleta que tinha bigodes, de Ondjaki). E vale ressaltar que, obviamente, apesar de lidarem com o mesmo acervo, são distintas as escolhas e os caminhos tanto para a pesquisa quanto para a extensão. Entre temas estudados na pesquisa, houve questões relativas à narrativa indígena de autoria branca e de autoria indígena (José de Alencar e Daniel Munduruku); a problemática da mulher negra e da mulher indígena na literatura (Conceição Evaristo e Eliane Potiguara); o menino negro e o menino indígena (Ondjaki e Daniel Munduruku); o preconceito contra o indígena (Moacyr Scliar e Daniel Munduruku). E a força dessas descobertas foi sempre compartilhada dentro e fora do campus. Na extensão, são mantidos os objetivos de estudo e de divulgação da pesquisa, com a singularidade de que os projetos de extensão estimulam a troca de saberes da instituição para o fora e da comunidade externa para dentro, ampliando oportunidades de (re)conhecimento do nosso entorno e das conexões com a nossa cidade, o nosso estado, o nosso país. Essa singular característica da extensão são dobras no universo de trocas entre as instituições de ensino e a comunidade.
Todo o processo de pensar e oferecer projetos é um dobrar-se sobre aquilo que nos afeta e todas as ações são movimentos de descoberta e possibilidades de individuação, conforme explicitaremos adiante. São um intermezzo, a dobra e a interrupção que um currículo aciona com suas funções anônimas, impessoais, coletivas.
No projeto de extensão em que se coloca em pauta a questão afro-brasileira e indígena em cine-debates, por exemplo, depois da seleção de bolsistas, temos reuniões com a equipe para planejamento das atividades e momentos de formação, em que bolsistas de outros projetos também participam. A seleção das obras audiovisuais que possibilitem estabelecer o diálogo desejado passa por curadoria, às vezes, mas também há espaço para que participantes tragam suas sugestões do que ver, em um processo de pesquisa e, em seguida, de preparação para as mediações das obras. A exibição dos filmes e debates se dá em eventos com as turmas do campus, em escolas públicas parceiras, nos momentos especiais como a Semana da Consciência Negra ou a Semana de Direitos Humanos.
Destaca-se, em três anos de cine-debates de que participamos, o protagonismo da equipe que lidera os debates e como, com jovens na coordenação das discussões, há maior envolvimento e participação das pessoas que se encontram conosco. Entre nossos registros favoritos desses encontros estão os olhares interessados de estudantes de uma escola municipal parceira, na roda de conversa depois da exibição de filmes.
Um outro projeto, que explora memórias afro-brasileiras e indígenas, busca conhecer e registrar histórias de membros da nossa comunidade (interna e externa) para a produção de novos significados sociais, promovendo encontros com raízes africanas e indígenas. Para tanto, fazemos registros em áudio, vídeo, fotografia e textos, tentando construir um repertório de histórias de herdeiros da cultura africana e indígena na nossa comunidade. Obviamente, nesse caso também se estimula a reflexão sobre temas relevantes para o convívio social e sobre aspectos que fundamentam a nossa percepção sobre a realidade; subsidiam-se ações e estratégias de ler e compreender o mundo contemporâneo; promove-se sensibilidade à causa da cidadania e da democracia, a fim de fortalecer práticas que combatam o preconceito e as discriminações. E tudo isso enquanto se amplia o repertório de referências culturais de participantes.
INTERMEZZOS, ABERTURAS AOS CURRÍCULOS ESCOLARES
Quando realizamos projetos, aprende-se. E a luta das dobras curriculares entre pensamentos, práticas e subjetivações, é por não passar de singularidades não subjetivadas, que ultrapassam as dualidades e as correspondências mais usuais, pois “[...] mantêm relações extrínsecas com aroeiras, pedreiras, bicheiras, poeiras, poedeiras, assobiadeiras, que bordejam, arrebentam, explodem, aniquilam todo um cosmos curricular que se formatou, e são sempre minorias excêntricas, bandos, maltas, massas, que procedem não por referência a centros de poder, mas por difusão móvel de prestígio” (CORAZZA, 2002, p. 139). Em oposição a um entendimento de currículo que indique um desejo naturalizado de um homem pela verdade ou uma boa vontade de aprender, em oposição a movimentos hierarquizados, buscamos caminhos menores (PACHECO, 2020), buscamos outras imagens para pensar os movimentos que nos interessam: os das dobras, dos acontecimentos, dos intermezzos, dos encontros.
Os encontros com o fora, nos eventos que realizamos, levam a um movimento de abertura e protagonismo. No ensino médio, consegue-se até “visualizar” o crescimento físico e intelectual de adolescentes. Bolsistas são jovens que se colocam de maneira contundente contra o racismo e o preconceito que atravessam as nossas relações sociais, compartilhando experiências, ensinando e aprendendo nos intermezzos dos cursos que frequentam. Sendo a pesquisa e a extensão partes integrantes da formação que nossas instituições promovem, chamamos de intermezzos os espaçostempos que atravessam os projetos ou que dilatam o tempo cronológico para tempos intensivos possam ganhar força (MARQUES, 2022).
Assim, apontamos quatro tipos de intermezzos: 1) Da disposição para se candidatar a entrar em um projeto e da formação dessas pessoas; 2) Da preparação e da oferta de oficinas e rodas de conversas; 3) Da criação de respostas e da participação em eventos; 4) Da experimentação e da criação artística dentro e a partir dos projetos.
Aprendemos vivendo, experimentando com aquilo que estudamos, depois de um longo mergulho em muitas obras. O estranhamento, as dúvidas, os questionamentos que surgem a partir da literatura ou de obras audiovisuais levam a um processo de construção de conhecimento que se des-dobra de outros mergulhos.
Com intermezzos em mente, compusemos imagens, com o intuito de sensibilizar para os movimentos percebidos. No Intermezzo 1) Da disposição para entrar em um projeto e da nossa formação, reforçamos o movimento do desejo, que se faz máquina para atender a um chamado e des-dobra-se em agenciamentos outros. Destacamos as saídas e encontros de formação, as sensibilizações das obras e das conversas como parte desses intermezzos.
No Intermezzo 2) Da preparação e da oferta de oficinas e rodas de conversas, a máquina desejante agencia outros fluxos para que sejam oportunizadas as experimentações nos encontros propostos. Selecionar, discutir, mobilizar materiais, tecer toda uma cadeia de formas de afetar e permitir ser afetado - são esses os movimentos que compõem estes espaços-tempos. Trabalhamos em equipes que agrupam gentes de projetos distintos, no sentido de agregar e somar possibilidades de ação.
No Intermezzo 3) Da criação e da participação em eventos, a multiplicidade se faz presente nas propostas inventivas vinculadas às pesquisas e aos projetos de extensão, de acordo com suas características específicas. Entendemos que a pesquisa e a extensão, formando tripé com o ensino, são movimentos criativos que arrastam forças e contaminam as pessoas envolvidas, entre contágios.
Ressaltamos aqui as potências da educação que se des-dobram em criação, com o acontecimento, com um outro possível.
E, antes de apresentar o próximo intermezzo, aproveitamos para ressaltá-lo como o encontro de bolsistas com a comunidade. Cria-se, nas questões e nas ações de pesquisa e de extensão, mas entendemos o Intermezzo 4) Da experimentação e da criação artística - como um outro salto que se concretiza nas ações que se des-dobram como impressões incorpóreas de todo tipo, como individuações daquilo que se experimenta ou que deixam marcas nas pessoas que as experimentam.
Vários dos projetos envolvem exposições de trabalhos artísticos resultantes das nossas atividades. Destacamos, como exemplo, um projeto que, a partir de fotografias de pessoas do campus, fez-se em rostos compostos por rostos diversos, desdobrando-se em seguida em rostos rasurados e recortados, atravessados por imagens outras, que remetiam a memórias e distintas imagens, que desfiguravam os próprios rostos. Em outras palavras, nesse caso, o rosto passou a ser o lugar da marca incorpórea de uma experiência singular, para além da própria face.
Cada experiência, “[t]endo em vista a singularidade existente num bando, [...] é um projétil disparado ao futuro, desengonçado e frágil em seus primeiros passos, insistente e carinhoso em seus percursos erráticos pela vida, obsessivo e orgulhoso naquilo que é sua paixão, poético e sonhador em seu destino.” (OLIVEIRA JR., 2015, p. 9).
Atrelado a uma metodologia de oferta, potlatch3, oferecemos o que temos, uns/umas a outros/outras, para que haja desejo de experimentação (como a uma criança a quem se oferece todo tipo de alimento ou brinquedos). Lidamos com temas de toda seriedade, e o envolvimento de estudantes, especialmente quando se colocam a provocar outras pessoas de sua idade, mais jovens ou mais velhas, fazem uma radical diferença, no espaço liso das nossas instituições, por entre liberdades de afetar e ser afetado e seguir linhas distintas do desejo. E o currículo se faz em acontecimentos de todo tipo.
POR IMEDIAÇÕES E DES-DOBRAMENTOS
Entendemos os acontecimentos de nossas relações com os meios como promotores de novos agenciamentos, de reorientação singular das condições da experiência, com Erin Manning (2019a). Segundo a autora, trata-se de imediação (não de mediação), algo que cresce pelo meio, deixando vestígios que, por sua vez, afetam cada atualização da experiência:
Uma política da imediação nos convida a começar em outro lugar. Ela nos convida a começar não com os termos intactos, mas pelo meio onde as coisas ainda estão se formando e as categorias ainda não-estão. Cortando pelo meio, movidos pela força de futuro da presentificação de passados, de presente de passados. A imediação não procura estrutura, mas composições. Isto envolve improvisação. Não se sabe exatamente como as condições da experiência serão alteradas pelo acontecimento de se instalar no e pelo meio do tempo. (MANNING, 2019a, p. 14).
O conceito de imediação chegou-nos de forma mais contundente com Erin Manning (2019a, 2019b) e Brian Massumi (2019) quando estiveram na Unicamp para participar de uma das edições do Seminário Conexões Deleuze. Em oposição a uma perspectiva de mediação, bastante comum nos movimentos educacionais, que se baseia em conhecimentos preexistentes para organizar a experiência, a imediação, da filosofia do processo defendida por Alfred North Whitehead, não traz suposições a priori e, acontecendo pelos meios, fabrica estados em germe, em gestos mínimos4. Segundo Manning (2019a), a imediação é uma prática que demanda a exploração de uma atmosfera de tom afetivo, requer que as pessoas envolvidas entrem em sintonia com as hecceidades que condicionam a experiência e os acontecimentos, “[...] requer novos gestos, novas posturas, [...] novos modos de narração, novos modos de escrita [...]” (MANNING, 2019a, p. 21).
Experimentar a imediação é uma ação transformadora e deve começar com a consciência de que não somos o centro da experiência e de que outros tempos, o afetivo, o acontecimental, o dos gestos mínimos, compõem-na também. No seu sentido político, trata-se de deixar-se tocar por campos e coletividades, trata-se de compor com aquilo que se experimenta. Para tanto, nossa tarefa, continua a autora, é de nos movermos no ritmo de radicais livres, é de destruir aquilo que nos conforma a determinada imagem previamente concebida (MANNING, 2019b, p. 393-394).
Massumi (2019, p. 27-28) afirma que a imediação caminha junto com a imanência e que esta não é preocupação da mediação nem das teorias do poder. Adverte também que:
[...] as questões filosóficas relativas à imediação são imediatamente políticas. As “implicações” políticas não são complementos: são da urdidura e da trama metafísica. A especulação sobre a imediação, por mais abstrata que seja, carrega por sua própria natureza uma força pragmática. Ela carrega uma sugestão concreta de formas alternativas de negociar as relações de poder, não como uma opção, mas como uma necessidade metafísica, se a mudança e o devir receberem seu direito ao processo. (MASSUMI, 2019, p. 30).
A relações internas dos processos na imediação, esclarece ainda Massumi (2019), não estão confinadas a uma interioridade. As relações internas têm a ver com um envolvimento entre elementos, com a imanência das coisas que saem de si para ficarem juntas. Na filosofia da relação, a imediação tem a ver com as diferenças qualitativas, com temporalidades - de um tempo “[...] não como deslocamento, mas como mudança constitutiva do ser” (MASSUMI, 2019, p. 36). “A imediação é o ilimitado da experiência tomando uma forma determinada. Isto não é um modelo de fluxo contínuo e sem costuras”. (MASSUMI, 2019, p. 39).
Para colocar mais uma vez a questão da mediação de ponta-cabeça:
Na imediação, a transição precede a transmissão. As coisas não estão em transição quando estão sendo transmitidas; há transmissão quando as coisas fazem uma transição. O passado, seletivamente reativado, transiciona para o presente. Ou, para [...] colocá-lo mais precisamente, quando a constituição de dupla dobra do presente atrai potenciais do passado para que se encontrem com potenciais do futuro, a transição ocorre. Uma carga de passeidade, fundida com uma força de futuridade, avança através do entre que é constituído por esse mesmo movimento. Dizer que “a transição precede a transmissão” significa que a transição é, processualmente, primária em relação à transmissão. (MASSUMI, 2019, p. 40-41).
A imediação funciona também para nos ajudar a pensar a individuação deleuze-guattariana. Segundo Anne Sauvagnargues (2016, p. 12), não se trata de um corpo, de um sujeito, de uma forma ou de um órgão. A individuação é um acontecimento, uma hecceidade. A individuação, humana ou não humana, é transitória e se dá em um plano de atualização de um plano virtual de imanência. Nos movimentos do território, nos ritornelos, entre territorializações e desterritorializações, as criaturas fazem-se.
Entendemos que os projetos também se organizam dentro daquilo que temos lido sobre a virada afetiva (ou o giro afetivo)5. De acordo com a linha que mais se aproxima de nosso embasamento teórico, com Massumi (2015), lembramos que não se trata de opor a virada afetiva a uma virada outra, a linguística, por exemplo, como se os movimentos do conhecimento pudessem ser separados. Esse pesquisador, entendendo o afeto com Espinosa, define-o como uma dimensão de qualquer atividade objetiva ou subjetiva. Não se trata de uma coisa ou de outra, ele sustenta. Trata-se, em uma filosofia da imediação, de procurar enfatizar os nódulos geminais das ações, aquelas que se organizam em acontecimentos, que não sejam pré-determinadas, que não se sabe aonde vão chegar. Massumi continua, afirmando que se trata de uma questão relacional, pois se organiza entre “afetar” e “ser afetado”, em um campo ativo e marcado pela abertura. Esse autor, com quem concordamos, afirma que a teoria do afeto tem que ser continuamente reinventada, pensada na singularidade de cada interação.
Ressaltamos a importância, nos estudos curriculares, do conectar, mediar, relacionar, associar, de forma dinâmica, criando regiões de contato, sem imposições, sem representações, em movimentos crianceiros e acontecimentais, em diagramas.
Nesse sentido, os projetos de pesquisa e de extensão constituem espaços-tempos diferenciados para lidar com o conhecimento dos currículos de maneira singular, especialmente quando dizem respeito aos povos indígenas, afro-brasileiros e africanos. Em movimentos nômades, às vezes aberrantes, nos dizeres de David Lapoujade (2015), em máquinas de guerra como máquinas de futuro, somos levados a ver, a falar, a agir, lidando com o intolerável e com a beleza daquilo que nos move dentro dessa linha temática.
Talvez os projetos tenham, nas dobras curriculares, exatamente a potência radical que Sebastian Wiedemann (2021) nos convida a adotar: de experimentar, mantendo o mundo e as coisas abertas, em movimento, em processo. Seriam oportunidades para “[u]na pedagogía moviente y del movimiento [...]. [...] radical, como recusa ante las voluntades de poder, conquista y colonización; como liberación de las fuerzas creadoras que distribuyen la potencia y que descolonizan permanentemente el pensamiento”. (WIEDEMANN, 2021, p. 166-167).
Poderíamos também imaginar que as oficinas que promovemos em nossos projetos sejam espaços de escuta, de uma escuta radical, ainda segundo esse pesquisador. Quando se abrem, as oficinas talvez permitam o que Wiedemann (2021) chama de apreensões, vazamentos, contágios, em co-habitares, em gestos sem privilégios ou hierarquias, em uma perspectiva não antropocêntrica, já que “[...] o humano é um meio mais entre outros para que proliferem aprendizagens mais do que humanas ou para que a aprendizagem das imagens possa acontecer” (WIEDEMANN, 2021, p. 192). Isso o autor chama de instaurar um tecido rico e heterogêneo, para fazer corpo com, para compartilhar potências, novos ritmos, futuridades. Um meio fértil para individuações?
Trabalhamos com objetos, com memórias, mas principalmente com literatura, com obras audiovisuais.
Pela arte, não se traduz o intraduzível da dor - a dor na terceira pessoa é uma ficção. Mas cria-se espaço de manifestação possível ao toque do outro. [...] A educação pela arte deve ser o momento de ligação entre a memória daquele que existenciou a dor e a memória que se cria pela compreensão que nasce da partilha íntima de um sentido através da arte. (VILELA, 2001, p. 249).
Wunder (2011, s. p.), por exemplo, nos lembra que a escravidão estava presente em nossas vidas, nas histórias de nossas famílias e instituições há um pouco mais de um século. Nossas vidas são, portanto, “[...] marcadas pelas ressonâncias desta violência massiva [...]: preconceito velado e explícito, ressentimentos, exclusão social, cisões identitárias entre o ser negro e não ser negro. Há um grito contido que deseja/necessita vazar.” A aposta na arte como mobilizadora de espaços de experimentação pode permitir que as vozes sejam ouvidas, que os gritos sejam compartilhados, que as amarras sejam soltas, continua a pesquisadora. E assim somos atravessados por ecos, fissuras, vibrações, vertigens, multiplicidades. Nos intermezzos das ações, destacamos as potências do acontecimental entre imediações. Também para a questão indígena essa perspectiva é válida.
Nesse sentido, além daquilo que os projetos levam a outras pessoas, quando se divulga um trabalho de pesquisa ou um projeto de extensão em eventos, há uma forte ressignificação das experiências entre as pessoas envolvidas.
Afinal, tudo se mistura. Apostamos “[...] em um agente ou fruto dos agenciamentos heterogêneos e em multiplicidade. [...] No encontro entre os corpos [...], há a elaboração de um campo de forças que age e reage aos signos emitidos por ambos os corpos [...]” (AMORIM, 2018, p. 1040).
O desejo é produtivo, o desejo implica, resulta em encontros intensivos - palavras de Luiz Orlandi, no filme Cintilações. Ao se referir a leituras intensivas, o filósofo lembra que uma leitura intensiva trata de salvarmos o material lido enquanto o mesmo material nos salva. A leitura intensiva nos “[...] ataca de tal maneira que você translada a compreensão para a problemática da existência, para problemas da sua vida. Quaisquer! O simples fato de ficar alegre uma tarde porque está pensando diferentemente. [...] você entrou em nuvens do pensar diferentemente”. Essas ações intensivas que realizamos funcionam, esperamos, assim.
Assinalamos, por fim, que, com projetos de pesquisa e extensão, podemos explorar pragmaticamente esferas da micropolítica dos currículos, com ressonâncias de todo tipo (ROLNIK, 2018). Uma imaginação, que poderíamos entender inicialmente como ação política, pode agora ser pensada como tarefa de abertura de um currículo outro, com outros textos, outras escritas:
Partir um currículo-texto-escrita-vida é tarefa da imaginação, da abertura aos mundos das coisas não ditas ou esboçadas em letras, palavras, frases e linguagem. A experiência do fora pode ser interpretada como uma das formas possíveis de resistência, como luta da escrita menor desde dentro da sua manifestação maior, das minorias contra a maioria, das pequenas tribos contra o Estado. (AMORIM, 2020, p. 409).
Imaginamos brechas e intermezzos nos nossos espaços institucionais para permitir outras com-posições individualizantes, espaços de pequenas percepções, atmosferas aptas a imediações e a outras paisagens em nossas tão regulamentadas vidas. Os projetos de pesquisa e de extensão, práticas liberadoras de diferenças, são como fluxos que nos atravessam e deixam marcas incorpóreas em seus participantes. Entre as potências da educação e do currículo, em instituições de formação diferenciada, outros possíveis são experimentados. O que destacamos aqui, mais do que os resultados, são os deslocamentos individuais acontecendo nos espaços-entre de cada detalhe, por onde vaza a vida.