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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro out./dez 2022  Epub 28-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.70227 

É sobre ser professor(a): poéticas/pruridos de anunciação da formação docente nas políticas curriculares

BASE NACIONAL COMUM - FORMAÇÃO E CUIDADO DE SI: a (im)possibilidade de professorar

THE BRAZILIAN NATIONAL BASE DOCUMENT FOR INITIAL TEACHER EDUCATION: the (im)possibility of teaching

BASE NACIONAL COMÚN-FORMACIÓN Y CUIDADO DE SÍ MISMO: la (im)posibilidad de profesar

Mônica de Oliveira Costa1 
http://orcid.org/0000-0003-3771-3955; lattes: 0219564272293424

Caroline Barroncas de Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0001-8430-2855; lattes: 7898558694581023

Monica Silva Aikawa3 
http://orcid.org/0000-0003-4695-9762; lattes: 1717750077563228

1Universidade do Estado do Amazonas

2Universidade do Estado do Amazonas

3Universidade do Estado do Amazonas


Resumo

Este trabalho é um recorte de um projeto de produtividade acadêmica intitulado Do cais à deriva: escritas de um professorar no ensino superior durante pandemia de Covid-19, da Universidade do Estado do Amazonas. Tem como objetivo central problematizar a proposta formativa presente na Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), a partir do cuidado de si foucaultiano, destacando modos de recusa e (de)formação docente. Alinhados a uma vertente pósestruturalista, centrada sobretudo na figura de Michel Foucault, mobilizaremos os conceitos de cuidado de si e de governamentalidade (governo de si e dos outros), em conjunto com a ideia do homem de lata, personagem descrita no famoso poema de Manoel de Barros. Dos resultados obtidos, destaca-se o viés neoconservador disperso ao longo do documento, materializado no caráter prescritivo, homogeneizador e uniformizador que atua na padronização de uma suposta proposta de forma(ta)ção de professores. Desse modo, buscamos aqui problematizar estas subjetivações impostas por um documento regulador da forma(ta)ção docente no Brasil. Por meio do cuidado de si, aventamos uma forma-ação que possa suscitar deslocamentos, mobilizações, desnaturalizações de coisas cristalizadas por gerações, falas e gestos visíveis e automatizados sobre o ser professor e o ato de professorar no Ensino Superior. Destacamos, por fim, a inventividade do homem de lata enquanto recusa à imobilidade e elemento inaugural para a (de)formação docente.

Palavras-chave BNC-Formação; política curricular; professorar; cuidado de si; governamentalidade

Abstract

Our paper was originated in a project for academic productivity entitled Writings on Scholarship during Covid19 and sponsored by the State University of Amazonas. The main object is to discuss and oppose the educational policy recently proposed by the Brazilian National Base Document for Initial Teacher Education. Based on Michel Foucault’s postcritical concepts, we make use of the care of the self and the governmentality to suggest alternatives to face the threat that this document represents to the Brazilian Education. Additionally, we explore the Canned Man, a character created by the Brazilian poet Manoel de Barros, to confront the neoconservatism and the standardization promoted by the current teacher training policy. For we believe that the Canned Man’ ingenuity as well as the Foucault’s care of the self can be important elements to refuse and reformulate that detraining manual. Having said that, we propose and support a training that promotes changings, challenges, and mobilizations in favor of the teacher and his work.

Keywords: Brazilian National Base Document for Initial Teacher Education; curriculum policy; care of the self; governmentality

Resumen

Este trabajo es un recorte de un proyecto de productividad académica titulado Del muelle a la deriva: escrituras de un profesar en la enseñanza superior durante la pandemia de Covid-19, de la Universidad del Estado del Amazonas. Tiene como objetivo central problematizar la propuesta formativa presente en la Base Nacional Común para la Formación Inicial de Profesores de la Educación Primaria (BNC-Formación) hacia del cuidado de sí, según Foucault, destacando modos de denegación y (de)formación docente. Alineados a una vertiente postestructuralista, centrada sobre todo en la figura de Michel Foucault, movilizaremos los conceptos de cuidado de sí e de gubernamentalidad (gobierno de sí y de los otros), en conjunto con la idea del hombre de hojalata, personaje descripto en el famoso poema de Manoel de Barros. De los resultados obtenidos, se destacan el sesgo neoconservador disperso a lo largo del documento, materializado en el carácter prescriptivo, homogeneizador y uniformador que actúa en la estandarización de una supuesta propuesta de formateo/formación de profesores. Así, buscamos acá problematizar estas subjetividades impuestas por un documento regulador del formateo/formación docente en el Brasil. Por medio del cuidado de sí, aportamos una forma-acción que pueda despertar desplazamientos, movilizaciones, desnaturalizaciones de cosas estancadas por generaciones, hablas y gestos visibles y automatizados sobre ser docente y el acto de enseñar en la enseñanza superior. Destacamos, finalmente, la capacidad inventiva del hombre de hojalata mientras rechaza a la inmovilidad y el elemento inaugural para la (de)formación docente.

Palabras clave BNC-Formación; política curricular; profesar; cuidado de sí; mismo; gubernamentabilidad

ENLATANDO O PROFESSOR

Acusações, demandas, posições, ou seriam regulações, controles, padrões os elementoschave materializados na Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (doravante BNC-Formação)? Ao serem nomeados como os documentos norteadores da formação de professores no Brasil, eles delineiam e fixam as bordas teórico-práticas do que cabe ou não na fabricação de um (suposto) ideal de professor, ainda visto como alguém comum, normal, necessário, nem sempre, contudo, invariável e unidirecional.

Afetadas pelas leituras e discussões pós-estruturalistas que olham com desconfiança para tudo aquilo que é tido como naturalizado ou invisibilizado, colocamos em tensionamento tais fabricações ditas para atender a realidade atual da educação brasileira e consideradas verdadeiras. Dessa forma, elegemos a seguinte pergunta mobilizadora: como pensar uma política curricular nacional de formação docente a partir do cuidado de si, pautada na recusa à imobilidade e (de)formação docente? Esperançadas por esta indagação, ousamos problematizar a formação enquanto processo de atendimento às exigências econômicas, especialmente de órgãos internacionais, cuja pretensão é a mera preparação para o mercado de trabalho.

Nesse sentido, assumimos como pressuposto que a BNC-Formação atua na proliferação, ampliação e/ou mesmo confere um status/verniz ao velho discurso neoliberal de enunciados que delineiam os modos de pensar o conhecimento, a prática e o engajamento profissionais do professor, bem como determina o aceitável em nossa concepção de professor por meio de um viés meramente técnico. Examinar tal artefato como pedagogia possibilita compreender:

Gosto de estórias porque elas dizem com poucas palavras aquilo que as análises dizem de forma complicada. Todo mundo reclama do fracasso da educação no Brasil. [...] Que dizer do aprendizado de ciência, esta coisa tão importante para o Brasil, uma grande potência? E eu fico a me perguntar se o problema não está justamente aqui. Um bem-te-vi que consiga ser aprovado com distinção na escola dos urubus pode ser muito inteligente para os urubus. Bem-te-vi que ele não é (ALVES, 2000, p. 71).

As discussões empreendidas neste trabalho nos permitiram estranhar a BNC-Formação e nos alinhar a Manoel de Barros para pensarmos possibilidades de multiplicar modos mais abertos de existir enquanto professor e assumir a inventividade docente de um homem de lata, múltiplo, aberto. Professorar também é devir. O homem de lata docente é tudo que é vivo e não está terminado. Ele é fruto de uma história incompleta, feita por gente e por isso “[...] é, em todo tempo, ainda nascente” (COUTO, 2013, p. 26). Um professorar que está sempre em estado inaugural.

POLÍTICAS CURRICULARES E O CUIDADO DE SI

O homem de lata é armado de pregos e tem natureza de enguia O homem de lata está na boca de espera de enferrujar O homem de lata se relva nos cantos e morre de não ter um pássaro em seus joelhos (O homem de lata, Manoel de Barros)

A lata é um objeto por vezes descartado como resíduo, mas que pode também se transmutar em ser humano e em poesia. Com a humanização da lata, com o homem de lata de Barros, iniciamos essa escrita sobre políticas curriculares e BNC-Formação pela constituição do próprio ser humano personificado no objeto inanimado. Este ser humano, conhecido como o homem moderno, que destrói e, ao mesmo tempo, (re)constrói a si mesmo com o mundo, é um e é multidão. Esse mesmo homem em construção está à espera de enferrujar e morre sem o pássaro nos joelhos. Este homem de lata é um pretexto para tratarmos de uma política curricular que traça/trata de um projeto de homem, de ser humano, de sujeito-multidão.

Refletindo acerca das políticas curriculares, nosso pássaro no joelho faz-se presente numa lembrança com Rubem Alves quando este traduz em fábulas uma nuance de currículo não raro presente nos documentos norteadores de uma certa educação, neste caso, a dos urubus:

Parece que havia um acordo entre os participantes do grupo de trabalho, todos urubus, é claro: os pensamentos dos urubus eram mais verdadeiros; o andar dos urubus era o mais elegante; as preferências de nariz e de língua dos urubus eram as mais adequadas para uma saúde perfeita; a cor dos urubus era a mais tranquilizante; o canto dos urubus era o mais bonito. Em suma: o que é bom para os urubus é bom para o resto dos bichos. E assim se organizaram os currículos […] (ALVES, 2000, p. 71).

De modo algum, pretendemos desqualificar os urubus e suas funções no ciclo de vida planetária, entretanto reconhecemos como necessária a metáfora e a atenção a políticas curriculares fundadas em intenções de enquadramento de todos os bichos ao currículo dos urubus. Projetar seres humanos, a partir de um único ponto, limitante de sentidos-vida, traduz um enraizamento curricular. Pensamos, sim, em currículo(s) (trans)formadores de homens de lata, em fluxo, único e, simultaneamente, múltiplo, urubus e todos os bichos.

Lopes (2004, p. 26) nos chama atenção quanto ao discurso presente em propostas curriculares da formação de sujeitos. Falam de “[...] um sujeito autônomo, crítico e criativo”, mas, ao mesmo tempo, posto “[...] a serviço da inserção desse sujeito no mundo globalizado, mantendo, com isso, a submissão da educação ao mundo produtivo”. Um discurso híbrido, maturado nas perspectivas crítica, construtivista, escolanovista e num certo eficientismo social, que busca recontextualizar ideias contemporâneas de educação numa bricolagem legitimadora dos discursos oficiais.

Historicamente o currículo vem se modificando a cada espaço-tempo conforme as visões de homem na sociedade. A partir disso, Silva (2010) nos apresentou três teorias curriculares: a) Tradicionais: fundantes de modelos curriculares restritos a questões técnicas, baseada em padrões industriais como organização, eficiência, eficácia, burocracia, transmissão e repetição; b) Críticas: buscam uma compreensão do que o currículo faz, indicam-no como reprodutor e legitimador das desigualdades sociais na sociedade do capital e funcionam como um aparelho ideológico fundado nos interesses das classes dominantes; e c) Pós-Críticas: inspiradas em princípios fenomenológicos, pós-estruturalistas e ideais multiculturais, atenta a conceitos como sujeito e identidade, diferença, subjetividade, saber-poder, sexualidade, gênero, raça e etnia e propagadoras de currículos multifacetados. Estas últimas aproximam-se de multidões.

Neste artigo, nos ocupamos dos sujeitos-multidões e do(s) seu(s) currículo(s), que decerto não é um, é vário (isso ficou bem estranho), é temporal, é geográfico, é histórico, é cultural, é fundado em cotidiano(s). É dos bem-te-vis, é dos urubus, é dos homens de lata, é do(s) sujeito(s), é transitório, é desterritorializado. Um currículo não se constitui apenas de um encadeamento de conteúdos, diretrizes, competências e habilidades a serem implementados pela escola, mas da desconfiança deles. (Trans)forma-se a cada dia na relação com os sujeitos em seu(s) contexto(s). Buscamos rotas de fuga de currículo fixo em “[...] estabelecer as coisas sobre as quais os mestres iriam falar e os discípulos iriam aprender” (ALVES, 2000, p. 71).

Aos poucos, apresentamos pistas de nossa intenção quanto à elucidação da BNC-Formação e o cuidado de si, trilhando uma problematização da proposta formativa presente no documento em questão a partir de ferramentas foucaultianas de cuidado de si e governamentalidade, destacando modos de recusa e (de)formação docente. A trajetória que assumimos enquanto perspectiva de pesquisa, social, política, pessoal e docente se apoia na posição pós-estruturalista de lançar lentes aos discursos da dita política curricular para formação de professores da atualidade, trazendo o contexto de vida, o levante de recusas, fugas, contradições e as (im)possibilidades do professorar em territórios de ressignificação com o cuidado de si.

O cuidado de si foucaultiano nos põe no lugar de um sujeito que se compõe, se constrói, (re)cria sua ética da existência. É uma atitude, uma ação, fundada nas práticas e técnicas de si. Reflexão, meditação, conhecimento do si, autorregulação, a relação consigo mesmo, a escrita de si são técnicas que levam a um poder-saber sobre si mesmo. Esses movimentos individuais, sempre vigilantes de si frente às suas representações, são atravessados pelo outro, constituindo uma prática social (FOUCAULT, 2010). Em nossa natureza de enguia e nessa trilha de uma prática de si como prática social da existência, discutimos as políticas curriculares e homem de lata.

Em geral, políticas curriculares são aventadas como estabelecimento de aparato legislativo para distribuição de subsídios financeiros ao Ministério da Educação (MEC) e regulam as ações escolares, vistas como “[...] produtoras de homogeneidades” (LOPES, 2004, p. 111). De outra forma, em sua obra sobre planejamento educacional, Vasconcellos (2002) aponta os três níveis de abrangência do planejamento dos Sistemas de Educação que podem ser federal, estadual ou municipal. Neste ponto, localizam-se os documentos prescritivos de currículo tais como: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs); os Referenciais Curriculares Nacionais; o Plano Nacional de Educação (PNE); as Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica (DCNEB); a Base Nacional Comum Curricular de Educação Infantil; Ensino Fundamental e Médio (BNCCEducação Básica); BNC-Formação, entre outros marcos legais.

E em consonância com Lopes (2004, p. 111), compreendemos que “[...] as políticas curriculares não se resumem apenas aos documentos escritos, mas incluem os processos de planejamento, vivenciados e reconstruídos em múltiplos espaços e por múltiplos sujeitos no corpo social da educação”, uma vez que também implicam política cultural.

Todavia, a política curricular corriqueiramente assume seu espaço nas relações de poder impostas e se apoia entre seus dispositivos legais, aparatos de controle, preso em resultados de avaliações externas e financiamento da educação pública, normatizadores do ato de educar. E o cuidado de si nos faz olhá-la a partir desse lugar e como um espaço de resistência, tomando brechas e fissuras nessas políticas por meio do domínio de si, dos elementos da própria vida e da existência desse professorar em sua maneira de ser-estar no mundo (FOUCAULT, 2010).

Esse estar no mundo descortina olhares sobre essas políticas curriculares como os marcos legais, regulatórios e de monitoramento do fazer da e na educação, em especial da pública, sob a égide do panóptico de Foucault (1987), em que todos devem ser observados a qualquer momento. Segundo essa lógica, escolas e universidades são disciplinadas, reguladas e medidas pelos resultados de suas ações e mantém-se sob uma sensação contínua de vigilância.

Frente a isso, trazemos para nossas lentes a Resolução n. 2 de 20 de dezembro de 2019, do Conselho Nacional de Educação, definidora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica. Em especial, discorremos sobre as questões da BNCFormação a qual, tanto quanto a BNCC-Educação Básica, reveste-se da pedagogia das competências para tradução do sujeito a ser formado e das habilidades a que tem direito.

A leitura desse documento representou inúmeros momentos de espantos, citamos um dos primeiros, em razão de indicação prescrita logo em seu artigo 1º declarando que a BNC-Formação “[...] deve ser implementada em todas as modalidades dos cursos e programas destinados à formação docente” (BRASIL, 2019, p. 1). Destacamos o caráter prescritivo, transmissivo e imediato a ser implementado pelo professor universitário. Igualmente, cabe o destaque ao anexo destinado à BNC na Resolução citada, que demonstra, em sua estrutura textual, um ar de acessório, um complemento, algo remetendo à falta.

Contudo, Lopes (2004, p. 110) nos alerta que para criticar políticas curriculares, precisa-se “[...] entender as modificações sociais, políticas, econômicas e culturais pelas quais passamos e ser capaz de dar respostas a essas modificações, empreender novas interpretações sobre as questões de nosso tempo”. Hoje, um desgoverno à frente do Brasil empreende seu projeto de regulação e planificação da educação pública expressos nas BNCC-Educação Básica e BNC-Formação, com discursos explícitos de competências e habilidades, frente à sublimação dos sujeitos, embora saiba das multiplicidades e singularidades de um país com dimensões continentais e suas miscigenações. Há muitos bem-te-vis, urubus e homem-multidões.

Primordialmente, focamos nossa discussão no anexo em pauta (BNC-Formação), sem cair no espaço de minoração do debate pelo termo concedido à BNC-Formação e nem por suas características limitadoras enquanto política curricular de educação. Minorar não nos é problema, é solução, pois, em nossa posição filosófico-epistemológica, usamos lentes para percepção das miudezas e minúcias das colocações, neste caso, das legais destinadas ao professorar mesmo que, em diferentes momentos, isso nos cause vertigens.

De posse da ética da existência, armadas de pregos, nessa coerência interna de sujeito do professorar, levantamos essas questões para lançar olhares acerca da BNC-Formação. Olhares, degenerados, desviantes e disruptivos que recusam essa ideia curricular de planificação e normalização, aplicada por demanda e em cadeia de relações transmissivas, de políticas curriculares que projetam a transformação de bem-te-vis em urubus. Todavia, transitamos naquelas de (trans)formações do homem de lata.

IDEIAS DE (IM)POSSIBILIDADES DE PROFESSORAR NA BNC-FORMAÇÃO

O homem de lata traz para a terra o que seu avô era de lagarto o que sua mãe era de pedra e o que sua casa estava debaixo de uma pedra O homem de lata é uma condição de luta e morre de lata O homem de lata tem beirais de rosa e está todo remendado de sol (O homem de lata, Manoel de Barros)

A história da educação brasileira, no que tange às políticas públicas, é preenchida por inúmeras descontinuidades. Ainda é comum a lógica partidária de que os programas, os projetos, dentre outras iniciativas, devam atender as meras exigências de cada governo e de que seu desenvolvimento tenha o mesmo tempo cronológico do mandato de seu feitor.

A ideia da invenção de um homem de lata docente ou de uma formação docente que traga para a terra o que sua avó era de lagarto ou sua mãe era de pedra e o que sua casa estava debaixo de uma pedra é o que buscamos ao pensar em processos formativos que se pautem no atrevimento ao pensar, ao imaginar, ao errar e ao acertar. Exigimos ainda que seja garantida a sua continuidade de acordo com a promoção de uma sociedade pela via da singularidade e do periférico e com o compromisso político de (des)formar professores.

É nesse sentido que enxergamos a condição do professorar dos homens de lata, de luta e de lida. É nesse sentido que enxergamos a ousadia de experimentar o inventar, o infiltrar e o (des)identificar. Como afirma Brum (2019, p. 11): “[...] o maior desafio do Brasil de hoje é voltar a reencarnar (sic) a palavra e ser capaz de tecer o ‘comum’, de colaborar para o esforço coletivo de descolonizar o pensamento e de recolocar as periferias no lugar ao qual pertencem: o de centro”.

Aparentemente, isso não tem sido aceitável em nosso país, sobremaneira após o golpe de estado que destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Optamos em usar o termo golpe de estado e não impeachment porque concordamos com Braz (2017, p. 88) quando afirma que se trata de um golpe forjado por uma farsa parlamentar-judicial. A farsa evidenciou-se na peça jurídica que “[...] embasou o processo de impedimento da presidente, claramente forjada para tornar ‘crime de responsabilidade’ alguns atos de governo (créditos suplementares envolvendo instituições do Estado) praticados na gestão”.

Os desdobramentos desses fatos possibilitaram o surgimento do bolsonarismo, que representa um risco para a democracia e para sua base, que em nosso caso, são as instituições republicanas. O bolsonarismo condena grande parte da população a uma educação na qual não se aprende, a subempregos que permitem apenas o ter o que comer. Sujeita-se uma população inteira à morte precoce diante da precária situação da saúde pública e tantas outras mazelas.

A Base Nacional Comum Curricular está alinhada a esse tipo de projeto de sociedade. Engana-se quem pensa que o perigo que ela representa está restrito apenas ao campo educacional. Sua finalidade e periculosidade ultrapassam a dimensão escolar e estabelecem-se numa política de governamento que tenta conduzir corpos para competências, habilidades e qualidades do ensino. Na tentativa de preparar professores para a tão propalada coerência, a BNC-Formação também corrobora para o afundamento e o desmonte da educação brasileira ao preconizar a formação de professores por linhas neoliberais como padronização, homogeneização e racionalização. Em outras palavras, um governamento que mantém a população aceitando docilmente os dispositivos de poder-saber, enquanto ocorre o apagamento da ideia de que cada peça neste tabuleiro é pensada para formar determinado tipo de professor:

As aprendizagens essenciais, previstas na BNCC-Educação Básica, a serem garantidas aos estudantes, para o alcance do seu pleno desenvolvimento, nos termos do art. 205 da Constituição Federal, reiterado pelo art. 2º da LDB, requerem o estabelecimento das pertinentes competências profissionais dos professores. (BRASIL, 2019, p. 1).

Art. 29. As competências gerais docentes, as competências específicas e as respectivas habilidades da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, previstas nesta Resolução, deverão ser revisadas pelo CNE, sempre que houver revisão da Base Nacional Comum Curricular. (BRASIL, 2019, p. 12).

Vale ressaltar que Foucault (2008) não fecha um conceito sobre o que seria a governamentalidade. Tece seus pensamentos sob os acontecimentos históricos, analisando como, em cada um deles, as formas de governo agiram sobre as populações e como esses processos foram se modificando ao longo do tempo e dos interesses de quem estava na ordem do discurso.

Castro (2016) apresenta-nos a visão foucaultiana de governo dividida em dois eixos, como um governo entre sujeitos e como uma relação consigo mesmo. O primeiro se apresenta no coletivo, como conjunto de ações sobre ações possíveis, conduzindo condutas de outro indivíduo ou de um grupo. Já o segundo parte para uma perspectiva mais ligada ao cuidado de si, aos modos com os quais o sujeito se constrói a partir daquilo que o atravessa. Foucault (2008) lança seu olhar exatamente para essa encruzilhada entre as formas de governo de si e as formas de governos dos outros.

Partindo deste entendimento, apresentamos as formas de governo explanadas por Foucault (2008, p. 8), na instituição dos mecanismos de segurança. A primeira seria o mecanismo legal ou jurídico que consiste no “[...] acoplamento entre um tipo de ação proibida e um tipo de punição”, ou seja, um sistema binário baseado no permitido e no proibido. Essa lógica continua presente nos dias de hoje, como no caso do nosso sistema penal, que encarcera e pune todos aqueles que desobedecem às regras da sociedade. Trata-se de um sistema que delimita o aceitável proibido para se viver em sociedade. Aqui, podemos citar a própria BNC-Formação que, ao prever uma padronização dos currículos dos cursos de formação de professores da educação básica, enviesa possibilidades outras de se pensar o professor fora de uma ordem preestabelecida, de vê-lo como, a exemplo de Masschelein e Simons (2017, p. 133), “[...] aquele que sempre desestabiliza a ordem estabelecida - ou melhor - sempre suspende ou a torna inoperante de alguma forma”.

Art. 3º Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes.

Parágrafo único. As competências gerais docentes, bem como as competências específicas e as habilidades correspondentes a elas, indicadas no Anexo que integra esta Resolução, compõem a BNC-Formação. (BRASIL, 2019, p. 2).

O segundo seria o mecanismo disciplinar que se baseia no mecanismo de vigilância e correção. Dentro dessa lógica binária, “[...] aparece toda uma série de técnicas adjacentes, policiais, médicas, psicológicas que são do domínio da vigilância, do diagnóstico, da transformação dos indivíduos” (FOUCAULT, 2008, p. 8). Ou seja, não basta apenas demarcar o que é permitido e proibido é preciso disciplinar a sociedade para se viver dessa forma. Então, criam-se várias estruturas, hospitais, escolas e manicômios para atuar como reguladores sociais sobre os indivíduos de modo a direcionar seus comportamentos individuais e coletivos.

Em termos da BNC-Formação, podemos citar as instituições regulamentadoras e avaliadoras em relação a formação de professores. É o caso do próprio MEC que institui a lei nacional e dispara um efeito dominó nos estados e municípios para adequação de suas propostas curriculares. No Amazonas, temos como resultado dessa política o Referencial Curricular Amazonense (RCA) e, na sua capital, o Currículo Escolar Municipal de Manaus (CEM) e, consequentemente, a formação dos professores para o atendimento de tais determinações. Esse movimento desemboca nos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC), avaliados pelos conselhos de educação que passam a exigir a adequação à legislação vigente:

Art. 27 Fica fixado o prazo limite de até 2 (dois) anos, a partir da publicação desta Resolução, para a implantação, por parte das Instituições de Ensino Superior (IES), das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e da BNC-Formação, definidas e instituídas pela presente Resolução. (BRASIL, 2019, p. 12).

Art. 6º A política de formação de professores para a Educação Básica, em consonância com os marcos regulatórios, em especial com a BNCC, tem como princípios relevantes:

III - A colaboração constante entre os entes federados para a consecução dos objetivos previstos na política nacional de formação de professores para a Educação Básica; (BRASIL, 2019, p. 3).

Podemos pensar as universidades como essa ferramenta de governo quando ela é pensada como este cenário favorável para a individualização dos corpos docentes a partir das organizações do tempo e espaço, instituição de teorias, competências gerais e específicas e objetivos que favorecem o governamento das populações que ensinam e, que por não se saberem feitos de lata e remendados pelo sol, são subjetivados a partir de uma natureza prescritiva que nega a ideia de uma educação entendida “[...] como uma viagem através da vida. Sobre o viajar em nome da educação, para transformar o mundo da vida”. (KOHAN, 2013, p. 17)

Por fim, temos os dispositivos de segurança que vai inserir os fenômenos dentro de acontecimentos prováveis, estabelecendo o limite do aceitável, “[...] vai-se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais as coisas não devem ir”. (FOUCAULT, 2008, p. 9). Nesta lógica não basta apenas demarcar o permitido e/ou o proibido, ou disciplinar os corpos para se viver dentro de um sistema legal, é preciso entender que haverá os desvios, que não se pode controlar tudo, por isso, os dispositivos de segurança permitem que as coisas aconteçam, mas estabelecendo o limite do aceitável. Sendo assim, não se pode impedir que as crises econômicas, que as doenças, que os crimes aconteçam, mas pode-se criar mecanismos controle dentro de cada uma desses acontecimentos para que se consiga conviver com eles.

Art. 7º A organização curricular dos cursos destinados à Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, em consonância com as aprendizagens prescritas na BNCC da Educação Básica, tem como princípios norteadores: VIII - Centralidade da prática por meio de estágios que enfoquem o planejamento, a regência e a avaliação de aula, sob a mentoria de professores ou coordenadores experientes da escola campo do estágio, de acordo com o Projeto Pedagógico do Curso.

X - Engajamento de toda a equipe docente do curso no planejamento e no acompanhamento das atividades de estágio obrigatório;

XI - Estabelecimento de parcerias formalizadas entre as escolas, as redes ou os sistemas de ensino e as instituições locais para o planejamento, a execução e a avaliação conjunta das atividades práticas previstas na formação do licenciando; (PPC). (BRASIL, 2019, p. 4).

No mesmo passo da lepra, da peste e da epidemia da varíola estudados por Foucault (2008), a BNC-Formação se materializa em um sistema legal que possibilita a existência de mecanismos disciplinares atuantes em espaços determinados e hierarquizados, onde se encaixam perfeitamente universidades e escolas para exercer uma ação que forma. Isso vai desde sistemas de vigilância sofisticados a sanções disciplinadoras para aqueles que burlam as regras, como, por exemplo, a reprovação dos projetos de cursos de licenciatura que não atendem o previsto. A disciplina, assim como a legalidade, é o que lhes diz, a cada instante, o que vocês devem fazer. (FOUCAULT, 2008, p. 60). Em outras palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança anula, de modo que anule a situação indesejada - anule, ou limite, ou freie, ou regule.

A governamentalidade apresenta-se a partir de toda a dimensão burocrática que estipula um parâmetro para enquadrar os professores, nos quais são estipuladas notas de cursos, comportamentos, competências e habilidades, bem como níveis aceitáveis para cada uma dessas categorias. Por exemplo, a instituição das três dimensões fundamentais, que supostamente, integram e complementam a ação docente (o conhecimento profissional; a prática profissional e o engajamento profissional) é um mecanismo articulador neste processo de condução das vidas dos professores, que, por sua vez, é resultado de uma lógica pautada na ideologia de mercado e estimulada e patrocinada por grandes conglomerados financeiros. A BNC-Formação é a materialização das pressões políticas e econômicas globais que, atualmente ditam o perfil de qualificação da mão-de-obra e determinam um tempo curto e com baixo custo para os processos formativos dos professores.

O conhecimento profissional é um tecnicismo (re)visto, pois se resume ao conhecimento do conteúdo e das técnicas de como ensiná-lo. A prática profissional é concebida como planejamento, organização dos espaços, avaliação e condução de práticas para atendimento das ditas aprendizagens. O engajamento profissional é a autorresponsibilização do professor por todo o sucesso ou não da aprendizagem dos estudantes, além de apontar as necessidades de medidas para a superação das realidades encontradas.

Outros vieses vão fazendo parte dessa racionalidade neoliberal, que antes propalava uma urgência na qualificação dos trabalhadores e neste documento, acrescenta a ideia de autorresponsabilização ou empreendedores de si (SANTOS, 2022). A BNC-Formação, inteiramente afinada com a racionalidade política moderna, totaliza ao mesmo tempo em que individualiza. Isto é, se, por um lado, a universidade e outros centros de formação continuada constituem individualidades e fabricam subjetividades que se pensam únicas e indivisíveis, ela, por outro, também cria posições de sujeito subordinadas a um todo social, fora das quais cada sujeito não faz sentido e dentro das quais precisa se formar para adequar-se. É nesse sentido que podemos afirmar que “[...] a governamentalidade é a dobradiça que nos permite mostrar uma articulação entre a genealogia do estado e a genealogia do sujeito moderno”. (VEIGA-NETO, SARAIVA, 2011, p. 9). Ou seja, desacomodando o cogito cartesiano de que o pensamento precede a tudo (penso, logo existo) e de que, por meio dele, o homem-professor cria línguas/linguagens para tornar comunicável o mundo, poderíamos formular foucaultianamente o cogito, dizendo: ensino, logo sou pensado.

Sendo assim, o professor é dito como aquele responsável por seus processos formativos, sendo estes entendidos como mera aprendizagem e domínio dos conteúdos previstos na BNCC, à revelia da matéria contida nas latas que fabricam os homens que ensinam: a loucura no professorar. A loucura do artista não está na sua obra. Esta é o que há de mais racional nele. Sua presença se encontra no fazer artístico. É ali que enlouquecemos de verdade. Da obra, se quisermos, podemos nos livrar. Da experiência de fazê-la, não (LEANDRO, 2020, p. 56).

O CUIDADO DE SI COMO RECUSA DA IMOBILIDADE: (DE)FORMAÇÃO DOCENTE NA BNC-FORMAÇÃO

O homem de lata é um iniciado em abrolhos e usa desvio de pássaro nos olhos Para ouvir o sussurro do mar o homem de lata se inscreve no mar O homem de lata se faz um corte na boca para escorrer todo o silêncio dele. (O homem de lata, Manoel de Barros)

O que constitui um docente? O que faz um docente ser o que é? O que faz um docente ser descritível ao invés de ser definido? O que faz um docente ser um iniciado em abrolhos e usar desvio de pássaro nos olhos, como o homem de lata? Esta e outras inquietações nos fazem dialogar com Foucault em sua fase ética, pois possibilitam-nos assumir a prática docente no ensino superior a partir do seu caráter discursivo e de autoconstituição. Neste sentido, problematizar uma antiprática docente, ou seja, aplicar o cuidado de si como ferramenta para professorar em tempos de alinhamento com uma ideia de docência única imposta pela BNC-Formação nos provoca fissuras outras. Tomamos a ideia do professor enquanto produtor de sua própria subjetividade na qual a inventividade é o fio condutor. Aventamos uma ideia de docência como homem de lata que se faz corte na boca para escorrer todo o silêncio dele.

A docência colocada pela BNC-Formação mobiliza uma característica central do sujeito moderno, que é a ideia de que o sujeito é tomado com um ente desde sempre aí, como um ator e agente a ocupar o centro da cena social e capaz de uma racionalidade soberana e transcendental a essa cena (VEIGA-NETO, 2014, p. 110). Um sujeito professor que pensa e age conforme a descrição formativa demarcando-o como um sujeito único, fixado, amordaçado, enlatado por definição de uma essência fabricada.

Assim, é produtivo afirmar que não há uma subjetividade transcendental formada por valores universais para qualquer tempo e lugar. Não há uma ideia de professor que valha para qualquer época, uma vez que a entendemos como produzida a partir de diferentes regras que se articulam em momentos históricos específicos. A ideia de professor antes da pandemia não se sustenta durante a própria. Mudam-se os momentos e as regras, mudam as sujeições, as transgressões, os processos de subjetivação. Fazer corte na boca do homem de lata (o professorar) é necessário para que se escorra todo o silêncio constituído por uma ideia de professor moderno, isto é, rasgar, criar furos/brechas é urgente para outras (com)posições professorais. A imobilidade fabricada pelo professor da BNC-Formação nos amordaça frente aos acontecimentos que a vida nos traz. É urgente sermos outros para sairmos do silêncio imposto e rompermos com o que é imóvel.

A previsibilidade, a autorresponsabilidade, a qualidade, a normatividade configuram uma docência rígida, fria, programada e calculista. Contra todas essas ideias, emolduramos um professorar que ao ousar a contestar, a indignar-se, a rasgar suas vestes fabricadas e exigidas em seu uso diário por uma relação do saber-poder, tendo punições e controles para que se cumpra o determinado. Perguntamo-nos com Saramago (1995, p. 47): “Que faço eu aqui, perguntou-me, mas não quis responder, teve medo de que o motivo que tinha trazido a este lugar posto assim a descoberto, lhe aparecesse absurdo, disparato, coisa de louco”. A cegueira expressa no documento normativo de forma(ta)ção docente, quando questionada, deixando-o perene é coisa de louco, é coisa que deve ser retirada do convívio escolar, silenciados em manicômios (práticas de si enlatadas) para abafar os que proferem o incontrolável e o imprevisível da vida, ao invés do produto vendido o controlável ensino de qualidade que a BNC-Formação vende.

É coisa de louco! Qual professor não deseja um ensino de qualidade? Qual professor não sonha com o sucesso da aprendizagem, o certo na educação? “Sou bugre mesmo, me explica mesmo, me ensina modos de gente, me ensina a acompanhar um enterro de cabeça baixa, me explica por que um olhar de piedade cravado na condição humana não brilha mais que um anúncio luminoso?” (BARROS, 1990, p. 15). A captura do texto de um professor certo e controlável faz brilharem os olhos de muitos, convencendo-os de que a multiplicidade se faz existência em um caminho reto e sem curvas:

O próprio texto político produz a significação de sua impossibilidade de uma leitura e interpretação única diante de tantas, múltiplas e complexas experiências nas escolas e das subjetividades docentes. Como podem ser contidos, em processos de revisão conduzidos pelo CNE, o imponderável e o imprevisível do percurso curricular? (DIAS, 2021, p. 9).

Práticas de si enlatadas capturadas por professores de qualidade são as ideias fundantes de um múltiplo que não é diverso, mas, sim, de uma dita sociedade justa e igualitária. Uma sociedade que fabrica um sujeito que, ao ousar sair do caminho estabelecido e certo, colocará todos em risco.

Então, para a sociedade ser justa e igualitária, precisamos deixar que a BNC-Formação saia do papel, em vários enunciados dispersos pela mídia, com o pedido de que “[...] deixemo-nos guiar pela Base!” (SANTOS, 2022, p. 209). O apelo de condução de condutas, pelas práticas de si enlatadas, do “[...] exercício de si e da transformação de si” (FOUCAULT, 1997, p. 13). Ela exige que se diga: “[...] eis aquilo que eu sou, eu que obedeço; eis o que eu sou, eis o que eu quero, eis o que eu faço” (FOUCAULT, 2011, p. 76).

Em contraposição, o objetivo de obter o cuidado de si é a busca de alcançar um eu ético, ou seja, um sujeito que é capaz de refletir sobre o seu modo de ver e dizer. Isso faz com que seja levantada a questão da estética da existência (ou arte da existência) visando, por meio das técnicas de si, o sujeito e o seu constante exercício de suspeição, que permitam novas maneiras de subjetivação acontecerem:

Desta forma, a estética da existência pensada como uma ética do cuidado de si, que se efetua em atos e ações para consigo e para com os outros, está implicada diretamente na produção inventiva de si (novas formas de subjetivação), fazendo da sua própria vida uma obra de arte, assim como também está implicada na capacidade de transformação do mundo que o cerca (VENTURA, 2008, p. 65).

Em nossa sociedade, fomos condicionados a acreditar que a arte só acontece por meio de objetos. Logo, quando se fala em arte como um estilo de vida, há um impacto e muitos nem se lançam a tentar entender sobre o que isso quer dizer. Segundo Silva (2007, p. 198), Foucault sentese “[...] impressionado pelo fato de que em nossa sociedade, a arte seja relacionada aos objetos, e não aos indivíduos ou à vida”. O cuidado de si põe o homem de lata em uma posição para ouvir o sussurro do mar, e, para isso, ele se inscreve no mar. Assim é o professorar que é capturado pela ideia do cuidado de si. É nesse processo de tentar entender que os sujeitos começam a se perceber, tentam fazer em si mesmos mudanças, começando a acontecer a arte da existência na vida daqueles que a buscam. Mas dar esse primeiro passo não é algo tão simples. É preciso lançar-se inteiramente a isso. É no lançar-se ao professorar no cuidado de si que se vê docente iniciante de abrolhos, com espinhos e asperezas. Com dificuldades, movimenta-se e inscrevendo-se no mar criando assim uma constituição docente (de)formativa pelo cuidado de si como recusa à imobilidade imposta.

Essa recusa que assumimos nestas escrituras em nosso professorar é da mesma linguagem de bugre de Manoel de Barros. Não podendo ser das estradas, do caminho reto, pavimentado, de qualquer outro caminho usual, ele segue por desvios, os caminhos tortos e agramaticais. Abrange ainda uma sintaxe torta da promiscuidade e do movimento das coisas e dos seres, como a abrangência das fontes do mundo inaugural, “Temos de botar um olho virgem nas coisas. Temos que ver o mundo a partir de suas fontes. Preciso do auxílio de uma criança para me desconhecer. Criar começa no desconhecer” (MULLER, 2010, p. 126).

Desse modo, buscamos aqui problematizar estas subjetivações impostas por um documento regulador da forma(ta)ção docente no Brasil. Por meio do cuidado de si, apostamos em uma forma-ação que possa vivenciar inusitados deslocamentos, mobilizações, desnaturalizações de coisas cristalizadas e automatizadas por gerações sobre o ser professor e seu professorar no ensino superior. Aventamos, por fim, a criação de outros modos dele ser e existir em múltiplas posições na sociedade.

Com o acontecimento da pandemia de Covid-19, o ato de professorar “[...] inventa modos de existência segundo regras facultativas capazes de resistir ao poder, bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles” (DELEUZE, 1992, p. 116). Portanto, acreditamos na existência do professorar aliado a experiências integrativas com a ciência, a espiritualidade, a maternidade, a paternidade entre outras posições como a principal chance de liberdade para a formação e transformação de sujeitos éticos pelo cuidado de si.

(DES)ENLATANDO O PROFESSORAR

O homem de lata está a fim de árvore

[...]

O homem de lata foi marcado a ferro e fogo pela água.

(O homem de lata, Manoel de Barros)

Na tentativa de marcarem o professorar, igual ao homem de lata, a ferro e fogo, esquecem que ele é feito de água e que está a fim de árvore, de vida, de cotidiano. Ele estremece ao ser atravessado por acontecimentos. Ele é devir, devir-professorar, que move e se move a cada tentativa de capturar quem queira capturá-lo, pois é feito de resistência e de luta. De alegrias e tristezas, de esperanças mobilizadoras de rasgaduras que o tornem sempre outros.

Abaixo a BNC-Formação que regula, estrangula a formação.

Abaixo a qualquer posição formativa de vidas e docências.

Abaixo as latas fechadas, iguais a homens sem desvios.

Abaixo a docência sem múltiplos devires.

Abaixo a imobilidade, a autorresponsabilidade e a qualidade formatada de via única.

A favor de um professorar vibrante, contagiante, alegre.

A favor de uma docência potente em esperançares outros de vida.

A favor de um professorar que cuida de si como uma obra de arte em nome de estética da existência.

A favor de uma docência que tem como armadura a rasgadura de um eu único.

A favor de um professorar da des-forma-ação.

A favor de uma docência mobilizadora e transgressora.

Em meio às constituições de homens de lata professorais mais sensíveis e que falem a língua do (des)fazer, montar, enlatar. Que possamos (des)enlatar muitas reformas curriculares que proponham um sujeito único de ser e estar professor, um sujeito asfixiado com um único modo de existência. Que possamos resistir e lutar para sermos vários, outros, desviantes e (des)enlatadores de infâncias, de gentes e de docências outras.

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Recebido: 1 de Setembro de 2022; Aceito: 1 de Novembro de 2022

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