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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro Oct./Dec 2022  Epub Feb 28, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.70247 

É sobre ser professor(a): poéticas/pruridos de anunciação da formação docente nas políticas curriculares

O DESPERTAR PARA A DOCÊNCIA COMO PROFISSÃO: o que revelam as narrativas autobiográficas digitais

AWAKENING TO TEACHING AS A PROFESSION: what do digital autobiographical narratives reveal?

DESPERTAR A LA DOCENCIA COMO PROFESIÓN: ¿qué revelan las narrativas autobiográficas digitales?

Késsia Mileny de Paulo Moura1 
http://orcid.org/0000-0002-5124-1432; lattes: 4399361929829646

Sergio Roberto Kieling Franco2 
http://orcid.org/0000-0002-1221-1310; lattes: 6389325869865024

Herli de Sousa Carvalho3 
http://orcid.org/0000-0003-1503-4468; lattes: 642708838650667

1Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

3Universidade Federal do Maranhão (UFMA)


Resumo

Este texto tem como objetivo investigar a escolha da profissão docente por dois estudantes de pedagogia de uma universidade pública do nordeste brasileiro, utilizando a produção pelos participantes de narrativa autobiográfica em formato audiovisual como instrumento de geração e análise de dados, adentrando-se nas trajetórias de vida relatadas por esses sujeitos que contam seus encontros com a docência. Para fundamentar este estudo discute-se a narrativa autobiográfica em Delory-Momberger (2004, 2016) e Dominicé (2006); a narrativa digital no formato audiovisual em Maddalena (2018); e o narrar como um instrumento formativo, ancorando nossa discussão em Josso (2007) e Nóvoa (1992). Como resultado, os sujeitos despertaram para a profissão docente nos interstícios da vida, nas situações, lugares e, principalmente, pessoas (professores) que passaram e marcaram suas trajetórias. Também o narrar digital pelos atributos audiovisuais foi uma experiência que os colocou em diálogo metacognitivo para situar a questão disparadora lançada, produzida na mistura das substâncias das linguagens digitais que incrementaram o relato.

Palavras-chave narrativa autobiográfica; narrativa audiovisual; profissão docente

Abstract

This text aims to investigate the choice of teaching profession by two pedagogy students from a public university in northeastern Brazil, using the production by the participants of the autobiographical narrative in digital format as an instrument for generating and analyzing data, entering into the trajectories of life reported by these subjects who recount their encounters with teaching. To support this study, the autobiographical narrative is discussed in Delory-Momberger (2004, 2016) and Dominicé (2006); the digital narrative audiovisual in Maddalena (2018); and narrating as a formative instrument, anchoring our discussion in Josso (2007) and Nóvoa (1992). As a result, the subjects woke up to the teaching profession in the interstices of life, in situations, places and, mainly, people (teachers) who passed and marked their trajectories. Narrating through the attribute of the audiovisual was also an experience that put them in a metacognitive dialogue to situate the triggering question, produced in the mixture of substances of digital languages that enhanced the report.

Keywords autobiographical narrative; audiovisual Narrative; teaching profession

Resumen

Este texto tiene como objetivo investigar la elección de la profesión docente por parte de dos estudiantes de pedagogía de una universidad pública en el noreste de Brasil, utilizando la producción por los participantes de la narrativa autobiográfica en formato digital como instrumento para generar y analizar datos, entrando en las trayectorias de vida relatada por estos sujetos que relatan sus encuentros con la enseñanza. Para apoyar este estudio, la narrativa autobiográfica se discute en Delory-Momberger (2004, 2016) y Dominicé (2006); la narrativa digital no audiovisual en Maddalena (2018); y la narración como instrumento formativo, anclando nuestra discusión en Josso (2007) y Nóvoa (1992). Como resultado, los sujetos despertaron para la profesión docente en los intersticios de la vida, en situaciones, lugares y, principalmente, personas (docentes) que transitaron y marcaron sus trayectorias. Narrar a través del atributo de lo audiovisual también fue una experiencia que los puso en un diálogo metacognitivo para situar la pregunta desencadenante, producida en la mezcla de sustancias de los lenguajes digitales que potenciaron el relato.

Palabras clave narrativa autobiográfica; narrativa audiovisual; profesión docente

INTRODUÇÃO

Os possíveis formatos que uma narrativa digital pode adquirir, escrito, falado ou ainda o audiovisual, para além de uma composição textual, são uma construção e desvelamento de si, que tem sido investigado no campo educativo nas perspectivas de construção de conhecimentos e habilidades, de identidade e de desenvolvimento da profissionalidade docente.

Não se trata simplesmente de uma forma de representação do mundo, mas de criação inventiva e estruturação da realidade vivida pelos sujeitos, que utiliza a narrativa para humanizar e materializar a realidade através do discurso (PASSEGGI, 2011). As textualidades produzidas ao narrar a vida são compostas, dentre outras proposições, de memórias e trajetórias pessoais e profissionais, pequenas biografias educativas que deixam transparecer concepções, ações, experiências.

Este texto tem como objetivo investigar como se deu a escolha da docência como profissão por dois estudantes de pedagogia de uma universidade pública do nordeste brasileiro. Trata-se de pesquisa com narrativas audiobiográficas, que utilizou a produção de narrativa digital audiovisual como instrumento de geração de dados1, pensando que ao narrarem nesse formato suas histórias os sujeitos podem também nos fornecer como entendem e constroem a sua profissionalidade, suas escolhas de vida desenhadas nos percursos e suas apropriações de recursos digitais para essa produção, relevante para direcionamentos de políticas cognitivas de formação de professores.

Para a análise trazemos a perspectiva de Bolívar (2002), tendo como pretensão revelar fragmentos e compelir reflexões sobre as maneiras de os sujeitos em formação apreender e construir sua história na docência, adotando a prerrogativa de que ao narrar suas vivências o sujeito também permuta e metamorfoseia sua trajetória pessoal e profissional, tendo seus encontros constituidores que vislumbram a escolha da profissão. Vale interpor que, ao nos referirmos a encontros aqui, buscamos caracterizar as descobertas que ocorrem nos percursos de vida dos sujeitos, aqueles momentos em que o sujeito se depara com algo que aguça a sua percepção, que o atravessa e, por conseguinte, o modifica.

BIOGRAFIZAÇÃO, NARRATIVAS DIGITAIS AUDIOVISUAIS E FORMAÇÃO: ALGUNS ENTRELAÇAMENTOS TEÓRICOS

Por biografização compreende-se um processo constituidor dos sujeitos que, por meio de relatos e narrativas, dão forma e horizonte às próprias histórias de vida, um processo que favorece, por meio da contação/narração, a construção de nós mesmos e de nossas subjetivações, nos encontros e diálogos que estabelecemos conosco, e nas interações com os outros, o mundo social, a identidade profissional.

[...] na e pela narrativa, o sujeito executa um trabalho de configuração e interpretação - de dar forma e sentido - da experiência vivida. A trama narrativa tem então uma dimensão performativa: ela age, ela produz a ação, e a ação que ela produz interfere no texto enquanto forma, mas também interfere no agir humano a que se refere no texto. As duas dimensões da formatação textual e de configuração da ação são consubstanciais. (DELORY-MOMBERGER, 2016, p. 140)

Assim, entendemos as narrativas autobiográficas como construções que tecemos a partir de nossas vivências, um meio de deixar emergir como decorremos, evoluímos e nos modificamos diante dos acontecimentos da vida, considerando os momentos, espaços, pessoas com quem nos relacionamos. Pelas narrativas autobiográficas damos acesso à forma como somos, pensamos e agimos, funcionando como um mecanismo de mediação na produção de significados sobre as circunstâncias e situações vivenciadas por nós.

De acordo com Oliveira et al. (2006, p. 552), na narrativa autobiográfica trazemos à tona a face interna de nossas experiências, o conhecimento, rearranjos e apropriações de nós, do outro e do mundo do qual fazemos parte, além das aprendizagens, continuidades e rupturas pelos quais nos permitimos elaborar, visto que narrar nossa história é “[...]um meio de cada pessoa atribuir um sentido à sua experiência, dar um significado a quem ela é e perceber como este é construído no mundo social”.

Não obstante, as formas de contar a vida já não seguem mais os modelos tradicionais, podemos dizer que emergiram outros modos e formatos para esse exercício. Referimo-nos aqui à narrativa digital, que se trata de um gênero produzido na combinação ou mesmo interseção do contar histórias e dos recursos digitais, que por sua vez produzem uma linguagem própria referente e formada a partir dos atributos técnicos e estéticos que cada aparato tecnológico oferece. São narrativas produzidas no contexto da cibercultura, que aglomeram as mais diversas organizações e formatações para as histórias e discursos dos atores sociais, podendo ser construída como narrativa digital visual, escrita e/ou audiovisual, conforme nos aponta Maddalena (2018).

Sobre a narrativa digital em formato audiovisual, Maddalena (2018, p. 27) diz ser “[...] uma maneira potente de produzir, mediar e interpretar sentidos e autorias na formação de professores no contexto da cibercultura”. Desse modo, as narrativas importam uma negociação mais profunda com o sujeito em formação, sendo mais um processo ontológico que se concretiza nas contações e nos relatos trazidos acerca das experiências. As histórias contadas expõem o sujeito aos outros e a si mesmos, como um recurso importante de construção, transformação e reconstrução de sua identidade.

Nos contextos interativos e imersivos das tecnologias, e ainda nas conexões que estabelecemos, é possível gerar um movimento de tomada de consciência da própria formação, com alterações nas percepções de si e do mundo, na forma como cada um se constrói e constrói o mundo. Nessa perspectiva, a narrativa digital, aqui especificamente no audiovisual, carrega dimensão formativa, uma vez que é permeada e movida por reflexão biográfica, que medeia o conhecimento de nós mesmos, oferecendo “[...] oportunidades de tomada de consciência sobre diferentes registros de expressão e de representações de si, assim como sobre as dinâmicas que orientam sua formação” (JOSSO, 2007, p. 7).

É importante também lembrar em Josso (2007, p. 7) que na narrativa da história de cada um existe uma trama original singular plural, que configura a existencialidade do autor-ator, ao exprimir nas experiências relatadas a forma como aprendeu, “[...]sua maneira de operar escolhas, de se situar em suas pertenças e de definir seus interesses, valores, aspirações”, produzida nas experiências vividas e passíveis de serem rememoradas, captadas, registradas e ressignificadas pela biografização, que refletem seu agir e pensar organizados por uma lógica narrativa.

As experiências são formadas e emergem como categorias do conhecimento que permitem concreticidade à existencialidade, que se constrói em movimentos dialéticos. Para Josso (2010, p. 54):

É neste movimento dialético que nos formamos como humanos, quer dizer: no polo da autointerpretação, como seres capazes de originalidade, de criatividade, de responsabilidade, de autonomização; mas, ao mesmo tempo, no polo da cointerpretação, partilhando um destino comum devido ao nosso pertencer a uma comunidade. É nessa polaridade que vivemos plenamente a nossa humanidade, nas suas dimensões individuais e coletivas.

Os construtos dialéticos de que os sujeitos são resultantes, como pontuado pela autora, são processos de reflexão individuais e coletivos que permitem aclarar as dinâmicas de formação da sua existencialidade, que orientam sua trajetória e se concretiza em processo dinâmico; por consequência, traz as incertezas em que a existencialidade se elabora. Tornando-nos uma espécie de ateliê que se formata no percurso ou, no dizer de Dominicé (2006, p. 347), “[...] toma formas inéditas”, que se elaboram no enfrentamento das novas condições de existência que se colocam.

Assim, a narrativa digital, aqui colocada no formato audiovisual, é tecida pelos significados da experiência, que somente podem ser acessadas pelo próprio sujeito que narra, ou seja, converge em uma viragem por permitir que as representações sobre a docência sejam reveladas pelos próprios professores ou aprendizes da docência, o que em si já significa uma grande contribuição, ao estimular um processo reflexivo que funciona como mecanismo de autoformação. Por elas os sujeitos se colocam em processo, em formação, o que implica um emprego pessoal sobre seus trajetos e projetos, com vistas à construção de sua forma de atuar, de sua identidade pessoal, logo, também profissional (NÓVOA, 1992, p. 13).

Viabilizar esse reencontro entre pessoal e profissional urge como indispensável, uma vez que o professor é pessoa, e os espaços de interação dessas dimensões permite-lhe apropriar-se dos seus processos e dar-lhes um sentido no quadro de sua história de vida, de maneira formativa, porque os sujeitos se encontram nessas dimensões e atribuem significado às experiências e aos saberes produzidos por elas. A narrativa favorece então um dar-se conta de maneira significativa da forma que a vida pessoal e profissional adquiriu substância nas experiências de vida desse sujeito.

Essa experiência que mobiliza uma pedagogia não se refere a um saber-fazer, mas à “[...] capacidade de integrar uma experiência reflectida, que não pertence apenas ao indivíduo, mas ao colectivo profissional, e dar-lhe um sentido pedagógico” (NÓVOA, 2017, p. 22). Nesse viés pode ser um fio condutor de formação que, alicerçado na perspectiva da reflexividade, enriquece a trajetória dos sujeitos.

As composições narrativas são marcadas pelas diferenças que perfazem as condições em que os professores se constituem, sendo assim um elemento que permite o desenvolvimento profissional e que realiza pelas narrativas um projeto formativo e transformador, que resulta em saberes da experiências ou, como Finger (1986, p. 125) nos aponta, um saber hermenêutico de “[...] uma reflexão pessoal, ou seja, a passagem de uma consciência imediata que é das sensações, das vivências e das experiências, a uma consciência refletida”. A rigor, o que está em relevância aqui não são as ações dos indivíduos puramente, mas as interpretações e significados que ele possa estabelecer sobre os fenômenos vividos na constituição de sua profissionalidade.

Dito isto, na seção a seguir clarificamos os aspectos metodológicos deste trabalho.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Este trabalho traz nuances do corpus de análise dos dados que compuseram a tese de doutorado que versa sobre narrativas digitais na formação de professores. É de natureza qualitativa, sendo justaposto na possibilidade de, através das narrativas autobiográficas em formato digital audiovisual produzidas pelos dois participantes, desvelar a “[...] história da formação de cada um, da narração das experiências com as quais o autor-ator aprendeu, da sua maneira de operar escolhas, de se situar em suas pertenças e de definir seus interesses, valores, aspirações” (JOSSO, 2007, p. 420).

Trazê-las como instrumento metodológico de geração de dados pode nos fazer avançar na forma de pensar a docência, na caracterização das mudanças e investiduras das formações empreendidas exitosamente, sobretudo na possibilidade de exploração de outras linguagens que hoje temos disponíveis para as nossas enunciações, fruto das combinações midiáticas que possibilitaram outras proporções ao contar histórias.

Os sujeitos e locus de nossa pesquisa são dois estudantes do curso de pedagogia, que integraram o quadro de participantes de nossa pesquisa de doutorado. A escolha por esses dois deveu-se, fundamentalmente, por terem trazido mais elementos constitutivos de uma autobiografia, na ocasião em que lançamos o desafio de que elaborassem uma produção audiovisual respondendo à seguinte questão exmanente: como resolveu ser/se tornar docente? Vale destacar que cada participante gravou e editou sua produção audiovisual no aplicativo de edição de vídeo FilmoraGo. As produções compuseram o corpus de dados analisados, mediante o consentimento dos entrevistados, que assinaram um termo autorizando os trâmites de utilização para os fins da pesquisa, respeitando-se os princípios éticos do fazer ciência. Essa geração de dados ocorreu no ano de 2020, com alunos de um curso de pedagogia, através de um minicurso de 75 horas, desenvolvido de forma remota e que se mostrou bastante copioso e estimulante das criatividades e inventividades desses sujeitos.

Para análise das produções trazemos a perspectiva de Bolívar (2002), para quem a investigação narrativa resulta em um relatório de pesquisa, que preza pela fala do sujeito e tem a vantagem de “[...] não violar ou expropriar as vozes dos sujeitos investigados ao não impor análise categórica muito distante de suas palavras”. Por esse prisma inicial, partimos à toma das palavras dos participantes como são e, numa postura hermenêutica, buscamos tematizações que nos permita a compreensão dos apontamentos destacados (BOLÍVAR, 2002, p. 15, tradução nossa). Assim procedemos em nosso plano de análise dos dados, que apresentamos a seguir.

A DOCÊNCIA COMO PROFISSÃO: O QUE CONTAM NAS PRODUÇÕES DIGITAIS?

Nos relatos dos dois sujeitos, as histórias de escolha da profissão que eles têm construído partiram de contextos diferentes conforme veremos a seguir. Vale apontar ainda que a identidade dos sujeitos foi mantida em sigilo, com a adoção das iniciais dos nomes para identificá-los, sendo JH e W.

O sujeito JH é do sexo masculino e possui entre 36 e 40 anos. Já possui bacharelado em teologia. No momento da coleta de dados estava no sétimo período do curso de pedagogia, sua segunda formação. Atua como docente há nove anos. Quando solicitado, intitula sua história como Os caminhos percorridos que me fazem.

Ao lançarmos a questão exmanente disparadora, o sujeito, em uma produção de pouco mais de seis minutos, de forma bem eloquente e bem-posicionado diante da câmera do dispositivo, começa por afirmar que o tornar-se docente tem referência direta à sua própria história de vida, e que parou para refletir sobre sua escolha pela profissão docente a partir de sua participação nesta pesquisa. Logo, a questão lançada foi bastante provocativa para esse sujeito. Colocou-lhe em um processo de biografização de suas experiências, de sua vida, pelo que se vê. Nesse sentido, concordamos com Delory-Momberger (2004) quando afirma que esse processo se expressa no registro de um evento, um acontecimento de vida, que é tornado objeto de representação que o sujeito confecciona.

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 1 Produção de JH 

Respondendo diretamente à questão, diz que “[...]os seus professores sempre lhe chamaram atenção”, desde a infância, sobretudo os da escola de formação religiosa que frequentou. Em continuação, relata que nasceu em um pequeno município localizado na região amazônica do Estado do Maranhão; quando tinha 2 anos de idade, sua família mudou-se para uma cidade no interior do Pará, onde ele iniciou sua trajetória escolar aos 6 anos, cursando todo o ensino fundamental e médio em uma escola pública da cidade. Faz alusão às suas educadoras, afirmando que de modo geral durante toda caminhada escolar sempre nutriu apreço por suas professoras e recorda-se dos nomes de todas elas.

Na adolescência, conta ele, precisou trabalhar e largar a escola para ajudar na manutenção da família, retornando anos mais tarde na modalidade EJA. Nesse período, ajudava outros alunos de mais idade nas tarefas escolares e aquilo lhe encantava, sentia alegria com a aprendizagem daquelas pessoas e o agradecimento que manifestavam para ele. Aqui conclui: “[...] se pode dizer que foi ali que foi nascendo essa chama de ensinar”, transfigurada na possibilidade de ajudar outras pessoas em suas trajetórias de aprendizagem e nos resultados positivos que isso desencadeava.

Se podemos dizer assim, tratava-se de um exercício não formal do ato educativo, mas que gerava em JH o gosto que sentem educadores ao ver seus alunos conquistando níveis mais elevados de seus processos de aprendizagem. Para nós, essa chama que se acendeu, esse entusiasmo que desenvolveu pode estar próximo daquilo que Nóvoa (2013) e Tardif (2014) tratam como a fase de entrada na carreira, aquele momento das descobertas e do entusiasmo inicial, da experimentação disso ou daquilo como professor. Acreditamos que ali o sujeito começa a desenvolver sua tomada consciência e identidade na profissão, na prática, lugar onde se depara com situações de ensino e de aprendizagem - e a forma como as trata vai delineando os conhecimentos e saberes da profissão.

De volta a narrativa: anos mais tarde, já no ensino médio, torna-se aspirante da vida religiosa. A convite de um amigo entra em uma casa de formação no Rio Grande do Sul, instituição religiosa que tinha como perfil todos os educadores serem por mesma via religiosos. Disse ter sido nessa instituição que leu outras obras além dos livros didáticos, aprendeu a escrever, se expressar e observava com bastante interesse a forma como seus professores conduziam as atividades em sala de aula, sentindo vontade de se tornar como eles, tamanha provocação que esses docentes causaram. Ali, observando com afinco seus professores, aquela chama que já existia dentro de si, se consolidou no desejo de se tornar educador: “[...]a partir dali eu via outra possibilidade de profissão no futuro, e ser professor até pareceu ser uma possibilidade”.

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 2 Na escola de formação com seus mestres 

No processo de se tornar religioso educador passou por muitos desafios, assumindo inclusive aulas de reforço, posteriormente professor titular de turmas; também coordenador e diretor de escola, antes mesmo de formação na área específica. Nesse momento, destaca que, embora os estudos que realizasse naquela instituição fossem de natureza essencialmente religiosa, ultrapassava as fronteiras disciplinares e buscava refletir o viés pedagógico naquilo que aprendia e na forma como ensinava. Essas falas até aqui nos fizeram acreditar que o sujeito constrói uma concepção sobre docência envolta no binômio ensinar-aprender no contexto em que participava.

Sua prática em sala de aula se dava no contexto de uma instituição religiosa e esse foi elemento definidor de sua ideia do ser professor, pois foi através dela que se encontrou educador, foi aprendendo a planejar, a colocar-se no papel dos alunos, a buscar propor o melhor em sua atuação. A partir desse ponto, pareceu-nos que o sujeito compreendeu que os processos de ensino e aprendizagem envolvem outros elementos além do conteúdo que precisava transmitir. Por isso, mesmo já possuindo a formação em teologia e mestrado, nutriu o desejo de cursar pedagogia, lugar onde considerava encontrar os conhecimentos que tanto buscava no desvelamento dos processos educativos. Assim, conseguiu efetivar sua entrada na pedagogia no ano de 2016, após ter deixado a instituição religiosa em que se formou e atuou como docente. Vejamos o que diz diretamente:

[...] ficou apenas uma certeza: eu iria estudar pedagogia para pode pensar a educação de dentro! Em 2016 estudei, ainda, duas disciplinas no curso, na Faculdade privada. Optei por realizar o ENEM, naquele ano e consegui ingressar no curso de pedagogia da Universidade pública. O que para uns, como se escuta, foi o que deu, Pedagogia era que realmente eu buscava.

Chama atenção essa afirmação sobre o cursar pedagogia para pensar o fenômeno educativo de dentro. Ousamos aqui inferir duas questões. Primeira, a separação de sua prática educativa da teoria pode indicar que o sujeito as concebe em lugares diferentes, o que pode comprometer seu conhecimento sobre a educação e os processos de ensino e de aprendizagem. Mas também, como segunda observação que fazemos, o que foi colocado pelo sujeito, o pensar a educação de dentro, está legitimando o movimento necessário à sua práxis educativa, que envolve não só a prática, mas também submetê-la a articulações teóricas e reflexões que a formação em pedagogia poderia favorecer no pensar do sujeito.

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 3 Como estudante no curso de pedagogia 

Hoje, já com nove anos de atuação no magistério, entre ensino fundamental e superior, de professor de reforço, religião e disciplinas específicas, JH está em vias de concluir pedagogia e diz ter “[...]encontrado no curso alguns fundamentos para ancorar sua prática” de forma mais consistente. Assim caracterizada, podemos conjecturar que a narrativa da biografia escolar que apresenta foi construída como uma série de juízos que o sujeito JH tem de sua vida, de sua história, que se transfigura como substância em direção a sua autocompreensão, logo tornando-se domínio de formação (DELORY-MOMBERGER, 2004).

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 4 Com seus alunos 

A atuação em determinado campo, nível ou modalidade de ensino formata nossos encontros ou desencontros com a profissão docente. Pelo que descreve, o participante obteve um encontro que estruturou e motivou sua busca por mais conhecimentos sobre a profissão. A narrativa aqui obedeceu ao grau de importância que o narrador atribuiu a sua existencialidade, na historicização de sua vida. Ao descrevê-la o sujeito dimensiona os acontecimentos e articula suas vivências refletidas, englobando posições, escolhas. competências e estratégias mobilizadas nas emergências da vida (JOSSO, 2007).

Objeto de representação aqui se justifica quando discutimos a lógica biográfica, que, no dizer de Josso (2007), está mais próxima dos processos que implementam uma experiência cognitiva e uma experiência emocional na vida do sujeito. Ressaltamos, pois, que o potencial formativo da narrativa aqui proposta está, entre outros movimentos, na integração que o sujeito faz das suas experiências de aprendizagens, momentos vivenciados e figuras marcantes em momentos distintos na representação de si.

No mesmo sentido de dimensionar e articular vivências, o sujeito W conta as motivações de sua escolha pela profissão docente, também emprenhada e impregnada de sua história de vida, sujeitos, circunstâncias e aprendizagens. Em uma produção mais longa, de cerca de 26 minutos, carismático e bem sentado diante da câmera de seu dispositivo móvel, conta sua história e traz elementos de imagem para subsidiar seu relato, além de uma melodia suave ao fundo. Tratemos agora do que nos colocou.

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 5 Painel produção de W 

Intitulando sua história como Um professor em construção, o participante está na faixa etária entre 21 e 25 anos. Na ocasião da entrevista, estava no oitavo período de sua segunda graduação, visto que já possui formação em enfermagem. Informa que atuou na educação infantil e no ensino fundamental por quase dois anos. Essa experiência na docência caracteriza-se por dois tempos e espaços distintos, como professor na escola dominical da igreja da qual faz parte e, também, no âmbito do curso de pedagogia no projeto de residência pedagógica e no estágio em docência cumprido.

Logo de início diz que a resposta à questão disparadora de como escolheu se tornar/ser docente “[...]engloba suas trajetórias de vida e de formação. Trajetórias de um pedagogo em construção que buscou fazer nesse exercício uma reflexão sobre o que entende por ser professor, como pode contribuir na escola e para a aprendizagem dos alunos”. De forma bem sensível nos relata:

Quando nós somos crianças jamais podemos prever o nosso futuro: se tornar uma pessoa, a mesma pessoa que o recebe na sala de aula, o acolhe, ensina e ao mesmo tempo aprende com você, essa pessoa é o ser professor. Jamais poderia imaginar que era essa a profissão que um dia iria querer seguir, ao qual estou em formação, para tocar corações, assim como fui tocado, e por que não dizer, marcado.

A resposta à questão é colocada novamente como um processo no curso da vida, em que as experiências rememoradas agora dão pistas a si mesmo sobre essa construção que está posta. Acessar essas experiências pelo atributo da narrativa posta faz o sujeito perceber, representar e dar forma a sua história, sua vida (DELORY-MOMBERGER, 2004). Assim, acrescenta a seu relato:

[...] os professores que me marcaram, de uma certa forma me influenciaram a respeitar os meus futuros alunos e vê-los não somente como um ser pronto para receber conteúdos, mas perceber a vontade de aprender. E mesmo se houver alunos problemáticos no meu percurso, reconhecer suas necessidades, pois reconheço hoje que meu gosto pelo ensino foi através do vínculo da boa relação professor-aluno que foi amadurecendo na minha trajetória.

As atitudes e formas de ensinar dos professores que passaram pela vida desse sujeito são apropriadas e tornam-se componentes inseparáveis das memórias de sua trajetória escolar e formativa. São essas lembranças que o conduzem a conceber a docência como a profissão que marca a vida dos alunos e que o respeito e o reconhecimento das capacidades de aprender do aluno devem ser preceitos condutores da prática educativa. É assim que acredita e quer se formar professor.

Além disso, para esse sujeito o professor deve ter uma postura democrática que permita a participação de todos, acrescentando que isso contribui para a construção de uma nova escola, que tenha como eixo norteador a emancipação dos alunos e a concretização do processo de aprendizagem. Ao mesmo tempo que reflete sobre isso, se coloca nesse processo autoconstitutivo, quer dizer, assim quer se tornar, como se produzisse uma autoimagem de si, de um futuro professor que pauta sua prática na emancipação de seus alunos. Esse parece ser o primeiro traço da imagem social que esse sujeito elabora do seu eu professor. Já são posicionamentos e concepções que esse sujeito elabora, tornando-se dispositivos de identidade profissional, segundo Arroyo (2013).

De volta ao relato, W afirma que escolheu ser docente na própria trajetória e rememora dizendo que já na infância, nas brincadeiras de escolinha, figurava no papel de professor; aos seis e sete anos de idade, mesmo sem saber ler e escrever, tentava imitar algum professor que admirava na época. Descreve o ambiente e objetos da sua primeira escola, o gosto do suco, o cricri dos grilos. Lembra da primeira professora, que admirava e que o inspirou a ver o docente como aquele que acolhe o aluno.

Mesmo sendo formado em enfermagem, não se identificou com o campo de atuação na saúde. Percebeu certa afinidade com a educação ao chegar à pós-graduação em docência no ensino superior - sentiu que os conhecimentos técnicos e quantitativos que havia obtido em enfermagem davam lugar a conhecimentos sobre a docência. Diz que aqui despertou e vislumbrou a área da educação como seu local de atuação profissional.

Credita essa decisão ao fato de querer tocar/marcar vidas, como foi marcado. E acrescenta, citando o teórico Arroyo, que as lembranças dos mestres que teve podem ter sido sua primeira aprendizagem como professor. Diante dessa reflexão se ressignifica, e se encontra em processo de se tornar um profissional como os que tanto admira. Credita sua primeira aproximação com a docência como carreira na oportunidade de trabalhar no curso de pedagogia do Programa Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica do Plano de Ações Articuladas (PARFOR) e ter maior contato com os professores e coordenadores do programa. Atento a cada conversa sobre autores, teorias, dificuldades e desafios em sala de aula, construiu influências na sua decisão de cursar pedagogia e querer seguir a carreira docente.

Contudo, esse vislumbramento, de fato, foi consolidado ao entrar no estágio obrigatório e também em sua participação no Programa Residência Pedagógica. Ao estar imerso em sala de aula e ser professor, W aumentou e fortaleceu sua vontade de ser docente, fazer diferente, não ser mais um que se acomoda. Quer fazer a diferença e ser uma das pessoas que ajudam a construir saberes.

Fonte: elaborada pela autora (2020).

Figura 6 Nos estágios do curso e na residência pedagógica 

Diante de seus repertórios relevados, a dimensão do aprender e ensinar pareceu-nos ser o Norte pelo qual tem construído a profissão. Esses eixos não se contrapõem, se complementam, e vislumbram a docência como processo, alimentado e construído pelo conhecimento sobre a profissão, pela criatividade e inventividade nas ações educativas, pela interação com os alunos. Todos esses elementos são importantes à prática educativa e indicam que o sujeito está aberto à inovação e se preocupa em dinamizar suas ações em função das necessidades de aprendizagem dos alunos, que acabam também sendo suas.

Os processos de subjetivação nesses relatos revelaram como JH e W se entendem e se estruturam em relação a sua autoconstrução e, também, do mundo social do qual fazem parte. As imagens que constroem da profissão e de si, as apropriações mentais, os roteiros de ação e de diálogos que apresentaram, enfim, as histórias, no dizer de Delory-Momberger (2004), resultam compreensão e prática social situada em seu tempo e espaço, pressupondo uma operacionalização constante de nós mesmos. Debruçamo-nos a seguir em aprofundar aspectos que nos pareceram latentes diante dessas histórias de vida.

ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS, REFLEXÕES E APRENDIZAGENS NAS APROPRIAÇÕES DA DOCÊNCIA

Ao narrar sobre si, os sujeitos fizeram um exercício de autoconstrução, estabelecendo conexões, refletindo e aprendendo na sua trajetória de vida. Contudo, gostaríamos de destacar aspectos que a nosso ver estão entrelaçados na apropriação dessa história em que reverbera e intercepta a escolha da profissão: a experiência do estar em sala de aula; o papel das relações/interações na escolha da profissão docente; e a reverberação do exercício de narrar digitalmente em formato audiovisual para (auto)formação docente desses participantes.

A experiência do estar em sala de aula. Os sujeitos não só estão em sala de aula: foi o estar no ambiente de sala de aula que provocou os encontros e experiências com a docência. No trabalho em sala, esses sujeitos foram despertados, modificados, visto que exercício profissional acarreta uma mudança, não só no objeto ou ambiente em que intervimos com nosso trabalho, mas principalmente em quem o realiza. Tardif (2015) fala de mudança na identidade do trabalhador, que faz alguma coisa e alguma coisa de si mesmo ao desenvolver sua atividade. Essa experiência em sala de aula, conforme nos sugerem, lhes atravessou e permitiu tomarem consciência, ou ao menos um dar-se conta da profissão docente, e abraçar o ser professor como carreira (JOSSO, 2007). Ao narrarem as experiências, parece-nos que os sujeitos reconstruíram e ressignificaram suas próprias vivências escolares, universitárias, seus percursos formativos, uma vez que fazemos algo a mais que registrar um acontecimento, modificamos nossa forma de pensar e agir sobre um fenômeno, uma realidade. Vislumbramos, pois, a partir dos dados diálogos e intervenções consigo e com os outros, aquilo que Frison e Simão (2011) destacam como um diálogo metacognitivo, refletindo as ações vivenciadas, reorganizando as aprendizagens e estabelecendo objetivos e maneiras de conquistá-los, que poderão levá-los a caminhos para construção de outros novos conhecimentos.

O papel das relações/interações na escolha da profissão. Pelo exposto nos relatos encontramos a docência a partir da figura do outro, outro professor, aquele ou aqueles que em relação interpessoal os transformaram, fez ver a eles e aos outros de forma diferente. Através do outro, exterior a nós, confrontamos e enxergamos a nós mesmos. Nos encontros com o outros validamos a nós mesmos, por conseguinte, a nossa existência (PASSEGGI, 2011).

Seus encontros com a docência partem das lembranças do fazer de professores e avança nas leituras que elaboram sobre o trabalho docente, atravessado por questões subjetivas que consideram pertinentes. Os professores que marcaram suas vidas não serviram como mero espelhamento ou fonte de imitação, não nos parece ser essa a acepção do sujeito, mas sim elementos fundadores de um olhar à prática educativa como ação que expande horizontes e que procura desenvolver o melhor em cada um dos alunos. Percepção e assunção indispensáveis à carreira. Assim, pensamos que sua identidade docente está sendo erigida como uma síntese histórica e de significação que constroem ao longo das vivências com os professores que passaram por sua vida.

Contudo, a influência da interação entre sujeitos em um processo educativo e formativo nos lembra Tardif (2015), ao ancorar a profissão docente nessa premissa. Para o autor, a docência é desenvolvida nas teias de relações e interações que envolvem pessoas, com isso, situa-se em um contexto de elementos eminentemente humanos, como sentimentos, valores e ações.

Ao evocar as pessoas, tempos e espaços transparecem os quadros de referência que ancoram e dão sentido à história de sua vida (DOMINICÉ, 2006). Embora muito importantes aqui para o relato, são sobretudo imprescindíveis para a forma como o sujeito se compreende, sendo esse o prisma pelo qual navega na busca de responder a questão. A docência para esses sujeitos está imbricada, portanto, nas relações interpessoais. A relação que estabelecem com os outros alicerça sua concepção de mundo e orienta suas práticas sociais. Assim, como nos lembra Freire (2011), é no diálogo com os outros que nos fazemos gente, aprendendo e ensinando vamos nos construindo nesse processo dialógico e dialético que é a nossa construção e a construção do mundo ao qual pertencemos.

Ressonâncias do narrar digitalmente em formato audiovisual para a formação. O terceiro aspecto diante das histórias narradas refere-se às ressonâncias desse exercício de narrar para a formação considerando os aportes audiovisuais digitais nos quais essas produções são publicadas como mais um canal de comunicação, mais um espaço para contar sobre seus processos na dinâmica que as mídias permitem narrar a si. Representaram uma oportunidade de produção de enunciações digitais, em que revelam aspectos culturais, sociais e históricos. É um veículo de atribuição de sentidos às experiências vividas como aluno, como estagiário, como docente e com os usos de tecnologias.

O que trazem nas produções representa a organização de seus discursos imbricados nas significações que formam, nos embates e interlocutores, nas concepções e expectativas em que compreendem a profissão e sua relação com a realidade social (OLIVEIRA, 2006). No exercício de rememorar as experiências vividas, os sujeitos buscam no passado o fio que os conduziu até o momento formativo atual.

Nesse mecanismo de busca, que é retrospectivo e prospectivo ao mesmo tempo, os sujeitos refletem o vivido e vislumbram sua autoformação, como nos lembra Rodrigues (2018). Ao escrever sobre o lugar da educação/formação na vida, a história de vida e seus encontros com docência, os sujeitos definem este espaço como o de reflexão teórica sobre a profissão (DOMINICÉ, 2006).

Assim, consideramos que essas narrativas digitais carregam um potencial formativo por evidenciarem as modelagens e sentidos da existência do sujeito, que de maneira criativa e inventiva no pensar, agir e conviver com os outros vai se transformando. Deram formatação e foram voz de acesso aos sentidos que permeiam a vida das pessoas, traduzindo-se num forte estímulo “[...]a fazerem um trabalho reflexivo sobre elas mesmas: realizando um balanço de seus percursos e de suas competências, inscrevendo sua formação num projeto pessoal e profissional e atestando, desse modo, sua formabilidade e sua empregabilidade” (DELORY-MOMBERGER 2008, p. 89).

Pelas narrativas digitais em formato audiovisual conjugamos os professores em formação como construtores de si e de seus saberes, que incluem aí conhecimentos e competências com o digital. Deixam eles de ser receptores e ganham visibilidade sobre e nas telas e dispositivos multimodais. Logo, sua formação no paradigma da cibercultura deve consubstanciar o pressuposto de colocá-los como centro de sua aprendizagem, para experimentar, narrar e refletir seus construtos no e sobre o contexto digital (MADALLENA, 2018). A dinâmica que contempla o processo de comunicação ganha nova significação, que precisa ser apropriada pelo docente ou aprendiz da docência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perguntar sobre a escolha da profissão foi uma forma de fazer aflorar o processo como foram construídos nas experiências, interações e relações estabelecidas, continuamente se reconstruindo nesse ato de narrar digitalmente. A potencialidade desse exercício, portanto, esteve em situar e delinear os interlocutores (os outros, os professores), lugares e circunstâncias na história de cada um que ajudam a compor suas respostas, e mais, a si, suas identidades social e profissional. Essa tomada de consciência os colocou como seres históricos, autores e fazedores de sua própria história.

O fato de termos proposto a produção de uma narrativa digital audiovisual circunscreveu os processos formativos dos sujeitos ao status de experiência, podendo oferecer maiores condições de alicerçá-la não apenas na acumulação de conhecimentos e técnicas arrojadas do viver em sociedade, sobretudo, nas reflexões tecidas sobre suas vivências, inclusive com o uso do digital, conjugadas nos esforços individuais e também dialogadas nas relações sociais, nas ações e contextos, nos encontros e situações de vida consideradas formadoras e por vezes fundantes.

Por fim, embora composições simples em que tentam trazer mais de um tipo de linguagem para essa trama-texto, apresentam fotografias, pequenas frases, música de fundo etc. Pensamos que cada narrativa é uma maneira pessoal, baseando-se nas experiências com os recursos trabalhados, de apresentar seus saberes e a realidade da qual fazem parte e constroem, através principalmente dos fragmentos das memórias que têm de suas trajetórias educativas. Logo, esse espaço oportunizou socialização, produção e negociação de sentidos no digital, sendo também lugar onde vislumbramos conexões e elos necessários para levantar ainda mais conversações sobre a formação e o mundo da docência, por meio das narrativas digitais produzidas.

Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por oportunizar o desenvolvimento da pesquisa de doutorado, da qual este texto se faz recorte.

1Os dados que compõem o corpus de análise deste texto obedeceram às normas do Comitê de Ética, tendo sido esclarecido aos participantes os objetivos da pesquisa e sua confidencialidade, bem como obtido autorização para utilização dos dados, através de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ainda do Termo de Autorização de Voz e Imagem.

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Recebido: 1 de Setembro de 2022; Aceito: 1 de Novembro de 2022

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