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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro oct./dic 2022  Epub 28-Feb-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.69362 

É sobre ser professor(a): poéticas/pruridos de anunciação da formação docente nas políticas curriculares

O IMPACTO DAS POLÍTICAS CURRICULARES NA FORMAÇÃO DOCENTE E A QUEBRA DA AUTONOMIA DO(A) EDUCADOR(A): uma análise crítica à luz da perspectiva freiriana

THE IMPACT OF CURRICULUM POLICIES ON TEACHER EDUCATION AND THE BREACH OF THE EDUCATOR'S AUTONOMY: a critical analysis in the light of the Freirean perspective

EL IMPACTO DE LAS POLÍTICAS CURRICULARES EN LA FORMACIÓN DOCENTE Y LA VIOLACIÓN DE LA AUTONOMÍA DEL EDUCADOR: un análisis crítico a la luz de la perspectiva freiriana

Camilla Souza Ferreira Rubim de Assis1 
http://orcid.org/0000-0002-3978-6923; lattes: 6940977322995486

Marcio Antonio Raiol dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-4723-1231; lattes: 5442731812982365

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica - UFPA. Pedagoga da Universidade do Estado do Pará. Membro do Grupo de Pesquisa em Práticas Pedagógicas para o Ensino na Educação Básica - GPRAPE.

2Professor Titular da Universidade Federal do Pará. Docente do Núcleo de Estudos Transdisciplinares da Educação Básica - NEB UFPA e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica - UFPA. Líder do Grupo de Pesquisa em Práticas Pedagógicas para o Ensino na Educação Básica - GPRAPE.


Resumo

Este artigo intenta analisar criticamente, a partir de uma perspectiva freiriana, o ser professor(a) no contexto atual da formação e do trabalho docente, com o objetivo de compreender de que forma a autonomia docente pode ser influenciada ou até mesmo subvertida pelas políticas curriculares, tomando-se como exemplo a implantação da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica - BNCC e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Para isso, realizamos um levantamento bibliográfico, de abordagem qualitativa, com base em produções acadêmicas que versam sobre essa temática. Ao pensar em políticas educacionais, observamos que o currículo é peça-chave de fomento e legitimação de mudanças educacionais, cujos discursos e elementos ideológicos atuam na forma de pensar da sociedade. Assim, acreditamos na(s) possibilidade(s) de transgressões, de ousadias, de resistências a partir de recontextualizações e reinterpretações das políticas curriculares, visando ao fortalecimento da atuação do(a) professor(a) da educação básica e ao resgate de sua identidade e autonomia em um cenário cada vez mais desafiador.

Palavras-chave: políticas curriculares; formação docente; autonomia docente

Abstract

This article intends to critically analyze, from a Freirean perspective, being a teacher in the current context of training and teaching work, with the aim of understanding how teaching autonomy can be influenced or even subverted by curricular policies, taking as an example the implementation of the National Curricular Common Base for Basic Education - BNCC and the Common National Base for the Initial Training of Basic Education Teachers (BNC-Formação). For this, we carried out a bibliographic survey, with a qualitative approach, based on academic productions that deal with this theme. When thinking about educational policies, we observe that the curriculum is a key element in promoting and legitimizing educational changes, whose discourses and ideological elements act in the way of thinking in society. We believe in the possibility(s) of transgressions, of daring, of resistance from the recontextualizations and reinterpretations of curricular policies, aiming at strengthening the performance of the basic education teacher and the rescue of their identity and autonomy in an increasingly challenging scenario.

Keywords: curricular policies; teacher training; teacher autonomy

Resumen

Este artículo se propone analizar críticamente, desde una perspectiva freiriana, el ser docente en el contexto actual de la formación y del trabajo docente, con el objetivo de comprender cómo la autonomía docente puede ser influenciada o incluso subvertida por las políticas curriculares, tomando como ejemplo la implementación de la Base Común Nacional Curricular para la Educación Básica - BNCC y la Base Común Nacional para la Formación Inicial de Profesores de Educación Básica (BNC-Formação). Para ello, realizamos un levantamiento bibliográfico, con abordaje cualitativo, a partir de producciones académicas que abordan esta temática. Al pensar en políticas educativas, observamos que el currículo es un elemento clave para promover y legitimar los cambios educativos, cuyos discursos y elementos ideológicos actúan en la forma de pensar de la sociedad. Creemos en la(s) posibilidad(es) de transgresiones, de osadías, de resistencias a partir de las recontextualizaciones y reinterpretaciones de las políticas curriculares, visando el fortalecimiento de la actuación del docente de educación básica y el rescate de su identidad y autonomía en un escenario cada vez más desafiante.

Palabras clave políticas curriculares; formación de profesores; autonomía docente

Creio que um dos caminhos táticos para professoras competentes, politicamente claras, críticas, que, recusando ser tias, se afirmam profissionalmente como professoras, é desmitificar o autoritarismo dos pacotes e das administrações pacoteiras, na intimidade de seu mundo, que é também o de seus alunos. Na sua sala de aula, fechada a porta, dificilmente seu mundo é desvelado. (FREIRE, 2015, p.24). incursões iniciais

Nas últimas décadas, de forma mais acentuada a partir dos anos de 1990, sob influência de organismos multilaterais, fundações e grupos empresariais, caracterizando o receituário neoliberal, o Estado brasileiro passou a implementar e reorganizar políticas públicas nos diferentes setores. No campo da Educação, verificamos a aprovação de resoluções, diretrizes, entre outros documentos que, no bojo das (contra)reformas que caracterizam políticas curriculares recentes, vem delineando tal processo. Para efeito desta análise, devemos compreender a educação como um processo amplo de socialização da cultura, que foi historicamente produzida pelo homem, e a escola, como local privilegiado de produção e apropriação do saber, cujas políticas, gestão e processos podem se organizar coletivamente ou não, de acordo com os objetivos de formação (DOURADO, 2007).

Ao assumirmos a perspectiva freiriana na discussão sobre políticas curriculares e suas relações com a formação e trabalho docente, não podemos deixar de salientar a compreensão de professor(a) (ou formando) enquanto sujeito da produção do saber, imbuído(a) da crença de que “[...]ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 2014, p.24, grifo do autor), o que nos remete diretamente à questão da autonomia tanto do docente quanto do discente. Na crítica e na recusa ao ensino bancário, tanto um como outro trazem em si a força criadora do aprender, como seres humanos capazes de “[...]ir mais além de seus condicionantes”.

Desta forma, cabe a nós, pesquisadores e estudiosos do campo da educação, ressaltar a seguinte reflexão: Qual o impacto das políticas curriculares na formação docente para a educação básica e no trabalho docente, sobretudo nas questões relacionadas à autonomia do(a) professor(a)? Pretendemos, neste estudo teórico, analisar criticamente, a partir de uma perspectiva freiriana, o ser professor(a) no contexto atual da formação e do trabalho docente, com o objetivo de compreender de que forma a autonomia docente pode ser influenciada ou até mesmo subvertida pelas políticas curriculares, tomando-se como exemplo a implantação da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica - BNCC (BRASIL, 2017) e a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BRASIL, 2019) - Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNCFormação).

Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa caracteriza-se como um estudo teórico, de abordagem qualitativa, no qual realizamos levantamento bibliográfico com base em produções acadêmicas - artigos e livros - de autores que discutem a temática das políticas curriculares; formação de professores (historicidade e reflexões epistemológicas); e autonomia docente, com destaque, respectivamente, para Lopes (2004); Ball (1994); Saviani (2005); Dourado (2007); Freire (2014; 2015); Cury; Reis; Zanardi (2018); Moreira (2012), produções estas que tomamos como caminhos exploratórios a fim de nos conduzir à produção de novos conhecimentos e perspectivas de compreensão. Os periódicos utilizados foram, dentre outros, Educação & Sociedade, e Teias, devido ao teor e aprofundamento das discussões abordadas e rigorosidade do aporte teóricoepistemológico, inclusive este último, com publicação de dossiês temáticos, desde 2012, acerca das discussões sobre a implantação de uma base nacional curricular e suas relações com a prática docente. Os achados da pesquisa foram discutidos e examinados com base numa abordagem interdisciplinar, a partir do diálogo com a perspectiva crítica, pela abrangência que possui no campo de formação de professores, prática docente, e principalmente, pela abordagem freiriana do estudo.

O CURRÍCULO COMO PEÇA-CHAVE DAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS

Ao tratarmos de políticas curriculares na educação, no contexto atual de mundo globalizado, é relevante reconhecermos que o currículo vem assumindo cada vez mais um papel central nas políticas voltadas para a educação e, no Brasil, é notório que as reformas educacionais ocorridas nas últimas décadas compreendem diversas ações de cunho reducionista, com intenções de padronizar e homogeneizar o currículo, dentre elas a implementação de dispositivos de controle da formação profissional, especialmente a formação docente, e a instituição de processos de avaliação centralizada nos resultados (LOPES, 2004), ações estas mediadas por organismos internacionais, que visam sobretudo a perpetuação do modo de produção capitalista neoliberal.

A definição de Lopes e Macedo (2011) para currículo abrange, dentre outras coisas, o conjunto de disciplinas/atividades e cargas horárias, suas ementas e programas, os planos de ensino dos docentes e as experiências propostas e vivenciadas pelos discentes, o que remete à ideia de organização de experiências ou situações de aprendizagem realizadas por docentes ou redes de ensino, de forma a levar a cabo um processo educativo. Esta definição implicitamente engloba ainda aspectos e questões que levam a várias reflexões, como por exemplo, o porquê de determinadas organizações curriculares, as questões sociais, filosóficas, psicológicas e ideológicas presentes no processo educativo, a seleção de conteúdos trabalhados nos programas das disciplinas, as abordagens metodológicas utilizadas, a formação e o trabalho docente, qualidade e avaliação, dentre outros.

Desta feita, ao pensar em políticas educacionais, a partir da concepção de que estas perpassam pela complexidade de interrelações contextuais de ordem social, econômica, ideológica, cultural e institucional de sujeitos que pensam a educação e outros que fazem a educação, observamos que o currículo é peça-chave de fomento e legitimação de mudanças, cujos discursos e elementos ideológicos atuam na forma de pensar da sociedade, fazendo com que as práticas educativas instituídas antes de qualquer reforma, passem a ser consideradas como obsoletas a partir da assimilação das novas proposições. Não obstante, concordamos com Ball (1994) quando este autor argumenta que as políticas devem ser compreendidas como um processo em constante (re)construção, considerando-se a diversidade das possibilidades de leituras de uma mesma política e o seu constante processo de reinterpretação (CIPRIANI; MOREIRA; CORRÊA, 2020) nas práticas escolares, caracterizadas que podem ser pelos sujeitos por meio de insubmissões e subversões aos discursos neoconservadores dos textos oficiais.

Segundo Lopes (2004, p.111), toda política curricular constitui-se numa política de edificação do conhecimento escolar: “[...]um conhecimento construído simultaneamente para a escola (em ações externas à escola) e pela escola (em suas práticas institucionais cotidianas)”, não se resumindo apenas aos documentos escritos, mas incluindo também “[...]os processos de planejamento, vivenciados e reconstruídos em múltiplos espaços e por múltiplos sujeitos no corpo social da educação”. Ressaltamos que, ao falar de conhecimento escolar, não são meramente palavras que estão em jogo, mas significados teóricos e práticos em disputa (LOPES; MACEDO, 2011), nos quais reconhecemos como discurso de significação esse conhecimento que vem de fora da escola através das políticas curriculares recém-implementadas no Brasil. Conforme explicitamos anteriormente, trataremos neste estudo de dois documentos atuais, norteadores da educação básica: a BNCC e a BNC-Formação.

Considerando a homologação, em 2017, da Base Nacional Comum Curricular para a Educação Básica - BNCC (BRASIL, 2017), houve a necessidade de revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação docente inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada, o que foi realizado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) ao elaborar e instituir a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 (BRASIL, 2019) - Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), com a finalidade de contemplar os aspectos definidos para o primeiro documento, justificando-se, conforme descrito em seu artigo 3º: “Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes” (BRASIL, 2019, p.2).

A BNCC, com seu caráter normativo, centralizador e prescritivo de competências, configura-se como documento oficial que serve de base, como o nome já diz, para os conhecimentos e supostos direitos de aprendizagem que os estudantes brasileiros devem adquirir ao longo da educação básica, situando-se na lógica do capital e trazendo “[...]uma determinação curricular tecnicista, individualista e meritocrática, que responsabiliza os sujeitos da escola pública pela qualidade da educação” (CURY; REIS; ZANARDI, 2018, p.119). Seu direcionamento à formação de professores é realizado por meio da BNC-Formação (BRASIL, 2019), e aqui buscamos analisar como as políticas implementadas por estes documentos legais, os quais já estão sendo implantados na realidade das escolas de educação básica e de formação de docentes em todo o país, afastam-se da perspectiva progressista e emancipatória de Freire, trazendo verdadeira ruptura com os ideais de uma prática educativa crítica e libertadora. É nossa proposta no presente estudo refletir sobre as condições de exercício de autonomia docente diante dessas políticas, primeiramente adentrando na história da formação docente, através de um recorte teórico com base em Saviani (2005) e Tanuri (2000) e, em seguida, nas discussões e problematizações sobre as interrelações que existem entre o jogo intrínseco dos discursos trazidos pelas políticas curriculares atuais (especificamente neste estudo, a BNCC e a BNC-Formação) e as reflexões teóricoepistemológicas sobre a identidade e a autonomia docentes frente a esses discursos e, de forma sistemática e mercadológica, suas imposições.

BREVE HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DOCENTE NO BRASIL

Segundo Tanuri (2000), o surgimento de escolas destinadas ao preparo específico dos professores para o exercício de suas funções (inicialmente e por muito tempo conhecidas como escolas normais) está relacionado à institucionalização da instrução pública no mundo moderno, ou seja, a partir de ideias liberais de extensão da escolarização - ensino primário - a todas as camadas da população.

No Brasil, a questão do preparo de professores para o ensino primário surgiu após a independência, com a lei das escolas de primeiras letras de outubro de 1827, devendo os professores serem treinados pelo método do ensino mútuo (lancasteriano1), “[...]às expensas dos próprios ordenados” (SAVIANI, 2005, p.12), ficando esta formação sob responsabilidade das províncias a partir de 1834. As primeiras iniciativas de criação das escolas normais coincidem com a hegemonia do grupo conservador - classe senhorial que se encontrava no poder, resultando das ações promovidas para consolidar sua supremacia e impor seu projeto político (TANURI, 2000).

A primeira escola normal do Brasil, criada em 1835 em Niterói, capital da província do Rio de Janeiro, com um currículo que apresentava praticamente o mesmo conteúdo da escola elementar, não durou muito tempo, sendo fechada em 1849. Saviani (2005) explica que a trajetória incerta das escolas normais durou por todo o período imperial, vindo a se consolidar somente no período republicano. A reforma da escola normal do Estado de São Paulo, em 1890, constituiu-se no primeiro movimento decisivo da formação docente no Brasil, destacando, nos termos do Decreto n.º 27 de 12 de março de 1890, a preocupação com a instrução de professores nos processos pedagógicos mais modernos, adequando-se o cabedal científico às necessidades da vida atual, com ênfase nos exercícios práticos de ensino, porém sem qualquer preocupação com uma formação teórica sistemática (SAVIANI, 2005).

Nos primeiros 30 anos da República, conforme salienta Tanuri (2000), a atuação dos reformadores paulistas permitiu que se consolidasse uma estrutura que permaneceu quase que intacta em suas linhas essenciais, a partir da influência de filosofias cientificistas, que começaram a ganhar importância nos currículos, bem como tiveram lugar de destaque os primeiros ensaios de uma renovação pedagógica no ensino público. Já no início do século XX, a formação de professores para o ensino primário veio a adquirir maior estabilidade, a partir do movimento renovador dos anos 1920, que deu início a um amplo processo de organização no campo educacional, buscando corrigir as insuficiências existentes na formação docente de então. Assim, em 1932 no Distrito Federal, e 1933 em São Paulo, as reformas encabeçadas por Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, respectivamente, materializam as escolas-laboratórios, permitindo a formação de professores com base na experimentação pedagógica concebida em bases científicas. (SAVIANI, 2005).

Os Cursos de Pedagogia e de Licenciatura surgiram no Brasil a partir de 1939, sobre as bases da Escola de Professores (antiga Escola Normal), com início na Universidade do Brasil e na Universidade de São Paulo, dispensando a exigência das escolas-laboratórios. “Aos Cursos de Licenciatura coube a tarefa de formar professores para as disciplinas específicas que compunham os currículos das escolas secundárias; e os Cursos de Pedagogia ficaram com o encargo de formar os professores das Escolas Normais.” (SAVIANI, 2005, p.17).

Ainda segundo Saviani (2005), as adequações no campo educacional advindas com o golpe militar de 1964 implicaram em ajustes na legislação, sendo alterados o ensino primário e médio com a Lei n.º 5.692/71 (BRASIL, 1971), os quais passaram a ser denominados ensino de primeiro e segundo grau, respectivamente, gerando assim a substituição das Escolas Normais pela Habilitação Específica de 2º grau para o exercício do magistério de 1º grau (HEM). O Cenafor (1986) aponta algumas deficiências deste novo modelo de formação de professores, dentre as quais destacamos: estrutura curricular pouco específica; a não adequação dos conteúdos ministrados com as reais necessidades de formação do professor; a não existência de integração interdisciplinar; pauperização salarial do professor da habilitação magistério, entre outras.

A partir da década de 1980, desencadeou-se um amplo movimento pela reformulação dos cursos de Pedagogia e Licenciatura, adotando-se o princípio da docência como a base da identidade profissional de todos os profissionais da educação. Finalmente, em 1996, promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), ficou estabelecido no artigo 62, que a formação docente para atuar na educação básica (compreendendo educação infantil, ensino fundamental e médio) passaria a ser feita em nível superior, porém, por uma falha de técnica legislativa na redação do artigo, abriu-se a possibilidade de continuarem existindo e funcionando as escolas de formação do magistério em nível médio. Para corrigir a falha, portanto, foram introduzidos no texto do mesmo artigo 62 os Institutos Superiores de Educação, que constituiriam uma alternativa mais aligeirada e mais barata aos cursos de Pedagogia e Licenciatura (SAVIANI, 2005).

Assim, nestas últimas três décadas, conforme apontam Cury; Reis; Zanardi (2018), o Brasil vem experimentando um acelerado processo de mudanças na área política e educacional, considerando-se os debates e as lutas sociais em defesa da democracia e da escola como bem social, capaz de conduzir a emancipação dos sujeitos, iniciando-se em 2012 as discussões em torno da construção de um Sistema Nacional de Educação e de uma Base Nacional Comum para o currículo.

Albino; Silva (2019) destacam que a proposta da Base Nacional Comum Curricular começou a ser formulada no governo Dilma Roussef, em 2015, com a participação de representantes de associações científicas de diversas áreas do conhecimento, de universidades públicas, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), da União Nacional do Dirigentes Municipais de Educação (Undime), e ainda representantes da classe empresarial, organizados no Movimento pela Base Nacional Comum. Segundo Neira; Júnior; Almeida (2016), entre junho de 2015 e maio de 2016, o Ministério da Educação empreendeu um grande esforço na produção de uma Base Nacional Comum Curricular, traduzido nas duas primeiras versões do documento. Ela representava uma visão ampliada de mundo, propunha objetivos de aprendizagem que permitiriam à escola organizar-se em direção a uma sociedade mais democrática, enfim, era um documento para ser tomado como objeto de estudo. Não se tratava de uma relação de conteúdos a serem ensinados obrigatoriamente em todas as escolas, nem intencionava indicar atividades de ensino, métodos ou instrumentos de avaliação; seria antes, fonte de inspiração a professores(as) que se coadunaria com as intenções educativas da escola, definidas coletivamente e com a participação da comunidade.

O projeto formativo da BNCC seria de um sujeito que poderia aprender a ler a realidade que o cerca e atuaria fundamentado em conhecimentos variados, que reconheceria sua própria identidade cultural, a fim de lutar para transformar a sociedade atual. Contudo, a BNCC homologada em 2017 revela-se limitadora da participação dos diversos sujeitos escolares na construção do currículo, pois determina previamente em detalhes as competências e os conteúdos (direitos de aprendizagem, segundo o texto oficial) que são obrigatórios em todo o país, desconsiderando ou minimizando os saberes regionais e locais, apresentados como subcurriculares. Desta forma, o documento homologado não representava a concepção de Base Comum Nacional pensada, discutida e construída pelo movimento dos educadores ao longo das lutas por uma educação cidadã. “Temos, nesse percurso, disputas e tensões em torno de projeto de formação humana.” (ALBINO; SILVA, 2019, p.139). A nosso ver, sobressai-se como um grande retrocesso nos rumos da educação brasileira o silenciamento antidemocrático das discussões ampliadas, críticas e debates promovidos ao longo das últimas décadas por diversas entidades do campo educacional, como Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Associação Brasileira de Currículo (ABdC), Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), para a implantação de uma base nacional democrática, federativa e diferenciada (CURY; REIS; ZANARDI, 2018).

Em relação à formação de professores, após a homologação da BNCC, o Conselho Nacional de Educação (CNE) decidiu revisar a Resolução CNE/CP n.º 2/2015, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada, elaborando a Resolução CNE/CP nº2/2019 (BRASIL, 2019), a fim de contemplar os aspectos definidos pela BNCC, sob a justificativa de que é necessário “[...]desenvolver um conjunto de competências profissionais que os qualifiquem para uma docência sintonizada com as demandas educacionais de uma sociedade cada vez mais complexa” (BRASIL, 2019, p.1). Mais uma vez, pontuamos nossa compreensão de que, a partir deste documento balizador da formação docente, estamos diante de um retrocesso decorrente do depauperamento do papel do educador frente ao contexto das políticas neoliberais, com sua ênfase no treinamento e domínio de competências, bem como nas avaliações classificatórias por domínios de resultados (ARROYO, 2013).

Segundo Dourado (2007), para se rever a formação pedagógica, tornar-se-ia necessária a articulação entre as políticas educacionais e as concepções de formação enquanto processos de construção coletiva, bem como o resgate de experiências implementadas por estados e municípios como passos importantes às políticas de formação de professores, considerando-se a riqueza e a diversidade de experiências, as condições e especificidades com as quais devem ser realizados processos formativos para professores e estudantes.

A FORMAÇÃO DOCENTE E O SER PROFESSOR(A): IDENTIDADES SUBTRAÍDAS

Considerando o apanhado histórico aqui delineado sinteticamente, observamos que a formação docente, seja em nível médio ou superior, vem sempre atrelada às questões educacionais desde o início do processo de escolarização no Brasil, sendo por isso influenciada, dirigida, e até mesmo formatada pelas bases políticas e ideológicas traçadas ao longo da história da educação em nosso país. Assim, observamos que essa regulação, ao atravessar a formação de professores em sua historicidade, enraíza-se no trabalho docente, ou seja, nas práticas pedagógicas desenvolvidas por educadores nas relações espaço-temporais da escola, configurando-se como delineadora de identidades e subjetividades docentes que, por muitas vezes, apresentam-se contraditórias, como veremos ao longo das discussões apresentadas.

Para Iza et al (2014, p. 276), a profissão docente, assim como outras profissões, emerge de um contexto de necessidades das sociedades, sendo constituída de um corpo organizado de saberes e um conjunto de normas e valores. “A presença de uma identidade própria para a docência aponta a responsabilidade do professor para a sua função social, emergindo daí a autonomia e o comprometimento com aquilo que faz.”

Em se tratando de identidade docente, corroboramos com a afirmação de Pimenta e Anastasiou (2010) de que ela possui relação direta com o contexto social e político na qual se insere o(a) educador(a), e é construída a partir de elementos diversos, presentes no universo da docência: os discentes, os processos cognitivos, as políticas educacionais, o projeto pedagógico da escola na qual atua, os conhecimentos e habilidades para o exercício da docência, e a si mesmo enquanto docente, compreendendo “[...]as identidades como resultado do encontro entre trajetórias socialmente condicionadas e campos socialmente estruturados” (RODRIGUES; SOUSA; GOMES, 2021, p.286).

Entendemos que a(s) identidade(s) docente(s) são conformadas pela própria docência, nas práticas e no cotidiano da sala de aula (ARROYO, 2013), justamente porque em nossa formação inicial (em licenciatura ou pedagogia) não aprendemos a ser educadores(as), o que nos causa certa incompreensão de nossa própria história. Em Freire (2014), a consciência de que ensinar é “[...]criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (p.47) deve fazer parte da própria identidade do(a) educador(a), como um primeiro saber necessário à formação docente, na ótica progressista. Experimentar-se como um ser “[...]cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento” (p.50) é parte do ser professor, enquanto ser humano capaz de intervir no mundo.

Com base em Freire (2014), podemos afirmar que a dimensão ontológica do “ser professor”, sua identidade própria e social se consolida em uma série de “exigências”, que se traduzem em saberes indispensáveis à formação docente e à prática educativo-crítica, qualquer que seja a opção política do(a) educador(a). Saberes estes tais como: a criticidade, a rigorosidade metódica, a rejeição à qualquer forma de discriminação, a convicção de que a mudança é possível, dentre outros, que segundo o autor, devem integrar os conteúdos obrigatórios à organização programática da formação docente, numa perspectiva progressista, emancipatória e libertadora, de busca da autonomia profissional e do despertar da curiosidade epistemológica, a qual deve ser desenvolvida na formação inicial e continuada do(a) professor(a), como sujeito que é da produção do saber.

Retomando as construções históricas do estudo, segundo Freitas (2002), nos anos 1980, a partir da ruptura com o pensamento tecnicista predominante até então, teve grande destaque o movimento dos educadores, que, em luta pela sua formação e profissionalização, produziram e evidenciaram concepções avançadas, destacando seu caráter sócio-histórico, bem como a necessidade de um profissional de amplo caráter, com pleno domínio e compreensão da realidade de seu tempo, e em cujo desenvolvimento da consciência crítica lhes permitiu interferir e transformar as condições da escola, da educação e da sociedade. Como parte importante desta construção teórica a partir das transformações concretas no campo da educação, a concepção de profissional de educação emerge e passa a ter na docência e no trabalho pedagógico a sua particularidade e especificidade.

Percebemos hoje a necessidade premente de reaprender a nossa identidade educadora (ARROYO, 2013) que, para além do currículo prescrito, nos atravessa a partir de uma identidade profissional mais plural, multifacetada, enriquecedora e rica de sentidos, na medida em que visualizamos a complexa tarefa de ser professor(a) como possibilidade de realização profissional e humana em sua plenitude e inacabamento (FREIRE, 2014), como seres éticos e comprometidos que somos com o ato de educar. Assim, para que a luta por uma educação progressista e emancipadora não esmoreça, consola-nos a afirmação de Cury; Reis; Zanardi (2018, p.119): “Habemus Base, mas Habemus Freire”.

A (RE)CONQUISTA DA AUTONOMIA DOCENTE: SUBVERSÃO À BNCC E BNCFORMAÇÃO

De acordo com Cury; Reis; Zanardi (2018, p. 121), “[...]compreender a BNCC e sua proposta de currículo nacional a partir de Freire é, primeiramente, rejeitar que a escola, os educadores e os educandos são tábulas rasas e serão reprodutores de conhecimentos, habilidades e competências selecionados a priori”. E não se pode reduzir o currículo a uma seleção organizada de conteúdos a aprender, como se tinha nas origens do termo, na Idade Média.

Freire (2014, p. 97) postula que “[...]do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades”, e destaca a importância do exemplo do professor lúcido e engajado na luta por seus direitos e na exigência de condições para o exercício de seus deveres, de sua tarefa docente. Para isso, necessita de “[...]condições favoráveis, higiênicas, espaciais, estéticas, sem as quais se move menos eficazmente no espaço pedagógico” (FREIRE, 2014, p. 64 e 65). A transição da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica defendida por ele não é direcionada somente ao educando, mas ao próprio professor que, enquanto formando, seja em curso de pedagogia, nas licenciaturas ou mesmo na formação continuada, precisa aprender a problematizar a realidade, a desenvolver a aprendizagem ativa e significativa, e inclusive a criticidade necessária para a análise do contexto dito inovador das políticas educacionais vigentes, incorporadas na BNCC e BNC-Formação.

Percebemos, assim, que a implantação destas políticas em todo o território nacional, aliada às políticas de avaliação de larga escala e à contratação cada vez mais frequente de serviços educacionais de empresas pelas redes de ensino estaduais e municipais, os quais direcionam tudo que o estudante deve aprender por meio de sistemas apostilados, elaborados com base em conteúdos considerados como “[...]currículo mínimo e comum” (MARCONDES; MORAES, 2013), acabam por favorecer concepções instrumentais de ensino, submetendo a autonomia docente e reforçando seu papel como mero executor de estratégias que viabilizem a concretização do que foi selecionado previamente para constituir o currículo (PEREIRA; OLIVEIRA, 2014).

Ao tomarmos o termo Autonomia, que vem do grego (Autós, que significa próprio, si mesmo e nomos, que pode ser traduzido como normas, regras) como conceito de base para este estudo, verificamos que existem diversos significados a ela atribuídos nas áreas da Sociologia, Psicologia, Filosofia, dentre outras, como por exemplo: capacidade de autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade própria; liberdade moral ou intelectual do indivíduo; independência pessoal; direito de tomar decisões livremente; liberdade do homem que, pelo esforço de sua própria reflexão, dá a si mesmo os seus princípios de ação, não vivendo sem regras, mas obedecendo às que escolheu depois de examiná-las, sendo-nos interessante trazer ainda o conceito kantiano de autonomia como “a independência da vontade em relação a qualquer desejo e a sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão” (ABBAGNANO, 2000).

Segundo Langhi; Nardi (2016), tratando-se dos atores educacionais - docente e discente - autonomia pressupõe participação, liberdade de escolha, possibilidade de tomar decisões e assumir responsabilidades, bem como uma cooperação crescente entre ideias e entre pessoas. Pereira; Oliveira (2014) afirmam que, muitas vezes na história, em períodos como a ditadura militar, o trabalho docente submetia-se ao intenso controle governamental. A partir dos anos 1980, especialmente após a Constituição de 1988, houve uma consolidação da autonomia escolar com a hegemonização da prática discursiva através de ações, documentos, falas, legislação, entre tantas outras práticas no campo curricular. Na medida em que a escola ganha autonomia, inclusive para manifestar resistências, acomodações, subterfúgios ou conformismo em seu espaço, permite-se a reinterpretação das políticas educacionais por parte dos professores e gestores quando elas chegam às escolas. Segundo as autoras, “[...]a autonomia toma força na medida em que o professor assume o papel de agente de sua prática” (PEREIRA; OLIVEIRA, 2014, p.33).

Porém, o que observamos atualmente é que há um reducionismo promovido pela lógica das políticas de avaliação de larga escala e dos sistemas apostilados, dentre outros elementos, que vêm funcionando como reguladores do currículo e da autonomia docente. Segundo Pereira; Oliveira (2014, p.35), a autonomia docente se enfraquece em um contexto no qual “[..]o currículo é significado como um guia que orienta o professor sobre aquilo que deve ensinar, estabelecendo uma fronteira entre o especialista que elabora o currículo e o professor que o executa”. Este pensamento coaduna a afirmação de Marcondes; Moraes (2013) de que há uma dicotomia profunda entre os processos de concepção e execução do trabalho didático-pedagógico, com base na crença da necessidade de técnicos externos à escola que desenvolvam as atividades de selecionar, organizar e planejar atividades de desenvolvimento das aulas e avaliação para os alunos de diferentes séries, já que o professor não seria capaz de fazê-lo.

Remetendo-nos à concepção tradicional de currículo, a BNCC pré-estabelece objetivos a serem alcançados pelos estudantes e as políticas de avaliação externa fortalecem esses objetivos, visando operar “[...]aprendizagens concretas perfeitamente estipuladas e definidas de antemão” (MARCONDES; MORAES, 2013).

Assim, a partir das definições da BNCC, do estabelecimento das competências profissionais dos professores na BNC-Formação, a ser implementada em todas as modalidades dos cursos e programas destinados à formação docente, bem como da atual visão de gestão educacional ligada ao controle empresarial, o ato de ensinar e a subjetividade do professor como ser ético e autônomo acabam sendo profundamente subtraídos. Como destaca Ball (2002), no âmbito de tudo isto, os professores são tratados como profissionais neoliberais ou sujeitos empresariais, trabalhando na lógica da eficiência, da produtividade e da performatividade.

Segundo Frangella e Dias (2018, p. 13), em relação à significação sobre a docência na BNCC, apesar de implícita, fica visível a responsabilização dos professores sobre os resultados dos alunos, bem como o êxito ou não da escolarização, recai sobre os ombros do professor.

A produção dos discursos sobre a formação docente, mesmo pretendendo controlar todos os sentidos e fixando o que deve ser e fazer o docente, está marcada pelas continuidades e descontinuidades, pelas ambivalências e resistências, revelando toda a multiplicidade e pluralidade que caracteriza a produção dos discursos sobre a formação docente.

A imposição de competências que devem ser desenvolvidas pelos educandos e pelos docentes em formação, por sua vez, é expressa nos referidos documentos de forma tão padronizada e limitante, que se faz pertinente questionarmos, como Freire; Shor (1986, p. 49): “O chamado ‘padrão’ é um conceito profundamente ideológico [...] a questão é a seguinte: sabendo de tudo isso, terá o professor libertador o direito de não ensinar as formas padronizadas?”

Para Cury; Reis; Zanardi (2018), o Educando-Educador, na percepção libertadora de Paulo Freire, é mediado pelo mundo vivido com suas experiências e saberes, não por conhecimentos/competências constituídos em um a priori, como na BNCC e, por conseguinte, na BNC-Formação.

Segundo Moreira (2012), a relação entre as políticas e as práticas curriculares deve ocorrer por meio de uma ação docente autônoma, competente e criativa, atributos que não se harmonizam com o paradigma da cultura da performatividade, pois esta afeta profundamente as subjetividades dos indivíduos, na medida em que devem constantemente atingir padrões de qualidade e produtividade, em meio a confusos sentimentos de incerteza e insegurança que acabam por desnorteá-los, sob pena de responsabilização em caso de fracasso do desempenho do estudante e da própria escola nas avaliações externas.

Assim, na contramão do que está sendo posto atualmente, entendemos que a função do(a) educador(a) é coletiva e individual, e a sua autonomia é o exercício de cooperação e criatividade, práticas de transformação com base na realidade social (LANGHI; NARDI, 2016), e é fundamental que o educador se perceba enquanto intelectual transformador, ativo, crítico e questionador, a serviço do seu próprio processo de emancipação, bem como do educando, conforme salientam Marcondes; Moraes (2013), ao citar Henry Giroux.

Na (re)conquista da autonomia docente, torna-se fundamental o esforço coletivo na construção de uma escola democrática e de qualidade enquanto elemento que levará ao fortalecimento do profissionalismo docente, como forma de favorecer a autonomia dos professores na implementação de políticas curriculares, bem como ao resgate e valorização do(a) educador(a) como profissional intelectual capaz de refletir, decidir e bem agir, em todos os níveis da educação brasileira, em detrimento da imagem negativa socialmente construída e difundida nos últimos anos (MOREIRA, 2012).

Considerações finais

Verificamos, nesse estudo, o impacto causado na formação e no trabalho docente pelas políticas curriculares, especificamente a BNCC e a BNC-Formação, documentos normatizadores da educação básica no país, as quais trazem em seu bojo práticas epistemicidas, que promovem violações nos processos de decisão curricular ao cercear diretamente a identidade e a autonomia do ser professor(a). Esses documentos trazem para a formação docente (Cursos de Pedagogia, Licenciaturas e formação continuada para professores da escola básica) a reponsabilidade de garantir, sob um paradigma fragmentador, simplificador e reducionista, o estabelecimento das competências profissionais que os professores devem ter; paradigma este que acredita na autonomia/responsabilização absoluta dos sujeitos envolvidos (estudante e professor), tornandoos cada vez mais individualistas, como reflexos das políticas curriculares neoliberais na sociedade moderna.

A questão central trazida à baila envolve a decisão e a autonomia do(a) professor(a) sobre a adaptação quase que instantânea ao que prescrevem a BNCC e a BNC-Formação. Como podemos reverter este cenário aniquilador da identidade de milhões de educadores brasileiros e restaurar a cultura da autonomia e da confiança (MOREIRA, 2012) no trabalho docente?

Silva; Martins (2020) evidenciam contribuições teóricas de Stephen Ball e colaboradores, que analisam alternativas de avanço em relação ao esquema analítico linear e vertical das políticas educacionais, a partir da sua implementação pelas escolas e seus profissionais, sustentando que “[...]os embates e acordos travados na produção de políticas educacionais não se encerram nas ações estatais” (p.388). Assim, acreditamos na(s) possibilidade(s) de transgressões, de ousadias, de resistências a partir de recontextualizações e reinterpretações das políticas curriculares (BALL, 1994; CIPRIANI; MOREIRA; CORRÊA, 2020) visando ao fortalecimento da atuação do(a) professor(a) da educação básica e ao resgate de sua identidade e autonomia em um cenário cada vez mais desafiador.

E, resgatando a epígrafe, finalizamos com Paulo Freire (2015), ao destacar que os docentes deste país, indivíduos com formação científica, clareza política, capacidade e curiosidade sempre instigadas, devem recusar o papel de meros seguidores dóceis dos pacotes que sabichões produzem em seus gabinetes, os quais demonstram, de forma inequívoca, primeiro, seu autoritarismo, e segundo, como alongamento do autoritarismo, sua descrença absoluta na possibilidade da aventura do saber e do criar que possuem os(as) educadores(as), em sua autonomia.

1Também conhecido como ensino mútuo ou sistema monitoral, esse método, baseado na obra de Joseph Lancaster, pregava, dentre outros princípios, que um aluno treinado ou mais adiantado (decurião) deveria ensinar um grupo de dez alunos (decúria), sob a orientação e supervisão de um inspetor. Assim, os alunos mais adiantados deveriam ajudar o professor na tarefa de ensino.

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Recebido: 1 de Julho de 2022; Aceito: 1 de Agosto de 2022

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