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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro out./dez 2022  Epub 28-Fev-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.70243 

É sobre ser professor(a): poéticas/pruridos de anunciação da formação docente nas políticas curriculares

SOBRE SER PROFESSOR NA EDUCAÇÃO INFANTIL: caminhos, concepções e perspectivas

ON BEING A TEACHER IN CHILD EDUCATION: paths, concepts and perspectives

SOBRE SER DOCENTE EN EDUCACIÓN INFANTIL: caminos, conceptos y perspectivas:

Geuciane Felipe Guerim Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0002-8033-6561; lattes: 1609923783080279

Estéfani Dutra Ramos2 
http://orcid.org/0000-0001-7160-8521; lattes: 7843571024677722

1Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/CCP)

2Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/CCP)


Resumo

Esse artigo tem como objetivo refletir acerca de algumas particularidades e delinear algumas discussões necessárias à formação de professores que atuam na educação infantil, destacando caminhos, concepções e perspectivas. Em razão do exposto, ao olharmos para o processo de institucionalização da infância e para a natureza do trabalho docente na educação infantil, algumas inquietações são oportunas, entre elas, uma questão norteadora para o artigo proposto: Quais as concepções e perspectivas que norteiam o trabalho docente na educação infantil? O estudo foi realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica, em diálogo com os principais autores da infância, com a legislação pertinente a esta etapa da educação básica e com as experiências vivenciadas como professoras no curso de Pedagogia. O artigo contribui para pensar as concepções de atendimento às crianças ao longo da história, bem como suas influências na formação e atuação de professores até os dias de hoje, enfatizando a necessidade de um processo formativo que envolva reflexão e ação, no qual se constitui a práxis docente.

Palavras-chave: formação de professores; educação infantil; docência na educação infantil

Abstract

This article aims to reflect on some particularities and outline some discussions necessary for the training of teachers who work in Early Childhood Education, highlighting paths, concepts and perspectives. Due to the above, when looking at the process of institutionalization of childhood and the nature of teaching work in Early Childhood Education, some concerns are opportune, among them, a guiding question for the proposed article: What are the conceptions and perspectives that guide the work teacher in Early Childhood Education? The study was carried out based on a bibliographical research, in dialogue with the main authors of childhood, with the legislation pertinent to this stage of basic education and with the experiences lived as teachers in the Pedagogy course. The article contributes to thinking about the conceptions of assistance to children throughout history, as well as their influences on the training and performance of teachers up to the present day, emphasizing the need for a training process that involves reflection and action, in which the teaching praxis.

Keywords: teacher training; child education; teaching in early childhood education

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre algunas particularidades y esbozar algunas discusiones necesarias para la formación de docentes que actúan en educación infantil, destacando caminos, conceptos y perspectivas. Por lo anterior, al mirar el proceso de institucionalización de la infancia y la naturaleza del trabajo docente en educación infantil, se hacen oportunas algunas inquietudes, entre ellas, una pregunta orientadora para el artículo propuesto: ¿Cuáles son las concepciones y perspectivas que orientan el trabajo docente en educación infantil? El estudio se realizó a partir de una investigación bibliográfica, en diálogo con los principales autores de la infancia, con la legislación pertinente a esta etapa de la educación básica y con las experiencias vividas como docentes en la carrera de Pedagogía. El artículo contribuye a reflexionar sobre las concepciones de la atención a los niños a lo largo de la historia, así como sus influencias en la formación y actuación de los docentes hasta el día de hoy, enfatizando la necesidad de un proceso formativo que involucre reflexión y acción, en el que la enseñanza práctica.

Palabras clave formación de profesores; educación infantil; docencia en educación infantil

INTRODUÇÃO

Ao caminhar pela generosidade das palavras e memórias, Manoel de Barros nos alerta que “A maior riqueza do homem é a sua incompletude” (BARROS, 2010, p. 374). Estar em construção, em um constante vir a ser, diz muito do “ser professor”, de sua incompletude, do desafio de aprender para se constituir. Assim, ao reconhecer essa inconclusão e nos inserir nesse processo constante de busca, objetivamos refletir acerca de algumas particularidades da formação de professores que atuam na educação infantil, destacando caminhos, concepções e perspectivas.

O estudo foi realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica e em diálogo com as experiências vivenciadas como professoras no curso de Pedagogia, em especial na orientação de estudantes de graduação no componente de estágio supervisionado em instituições de educação infantil. Para isso, nos debruçamos, em um primeiro momento, sobre a análise do referencial teórico, retomando os aspectos históricos da educação infantil, a partir de autores da infância e da legislação pertinente a esta etapa da educação. Destacamos, ainda, os avanços necessários no âmbito do reconhecimento, da natureza indissociável entre o cuidar e o educar e das exigências da qualificação profissional dos educadores que atuam na Educação infantil vislumbrados a partir da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988.

Feito isso, na busca por compreender as especificidades da formação docente e do trabalho pedagógico na educação infantil, destacamos a necessidade de romper com concepções assistencialistas e/ou engessadas que ora convertem a docência apenas em prática de cuidado, ora em prática preparatória para o ensino fundamental. Por meio das experiências como professoras no curso de formação inicial de professores, e mais especificamente no curso de Pedagogia, bem como na orientação e acompanhamento de estágio na educação infantil nesse mesmo curso, observamos muitas vezes, práticas e propostas estereotipadas sendo implementadas nas escolas da infância. Nesse caminho, no processo formativo de professores (as), torna-se necessário revisitar concepções e práticas acerca do trabalho pedagógico na educação infantil, a fim de que possamos caminhar, superar, avançar e construir um caminho que potencialize a infância e respeite as crianças desde a mais tenra idade.

CAMINHOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL: O CENÁRIO HISTÓRICO DE DIFERENTES CONCEPÇÕES E PRÁTICAS

As discussões sobre o processo histórico da institucionalização do atendimento à infância, sobre a educação da criança e sobre o trabalho docente na educação infantil encontram ressonância no pensamento de autores como Kramer (1987; 2012), Kuhlmann Junior (1998), Kuhlmann Junior e Freitas (2002), Oliveira (2011) Craidy e Kaercher (2001), Bujes (2001), além das próprias políticas públicas para a educação infantil e para a formação de docentes das quais podemos destacar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2013) e a Base Nacional Comum Curricular (2017).

A educação infantil constitui a primeira etapa da educação básica e tem como finalidade promover o desenvolvimento integral das crianças de zero a cinco anos em creches e pré-escolas em seus aspectos físico, cognitivo, afetivo e sociocultural, por meio de experiências de aprendizagem que envolvam as brincadeiras e as interações as quais constituem os modos como as crianças aprendem e atribuem significado ao vivido (BRASIL, 2013; 2017). O atendimento em creches e pré-escolas como direito social das crianças tem como marco histórico e legal a Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, os documentos oficiais ora mencionados, os quais constituem importantes bases legais para a reafirmação de tal direito.

O processo que resultou em sua garantia, bem como no reconhecimento da criança como sujeito histórico e de direitos advém, segundo Oliveira (2011) de um amplo debate e luta dos movimentos sociais, dos movimentos de mulheres, de trabalhadores e de profissionais da educação preocupados em romper com a natureza assistencialista do atendimento às crianças no Brasil e com a sua fragmentação que, por ora, imputavam a elas e às famílias pobres o cuidado e a assistência ao corpo físico expressos em iniciativas emergenciais as quais não exigiam formação, planejamento ou qualquer intencionalidade educativa.

Todo esse panorama histórico, ampliado ao nosso presente educativo, nos propõe como desafio a superação dessa fragmentação que ainda expressa a centralidade do cuidado, ao menos em seu caráter assistencialista, em detrimento das práticas educativas que são delineadas quando problematizamos a formação e o trabalho docente. Desse modo, não é exagero afirmar que a conquista da educação infantil como direito das crianças, das mulheres e de suas famílias constitui um processo ainda em construção e lança luz às práticas educativas que são promovidas nas instituições que se ocupam com o cuidado e com a educação das crianças em nosso país. Isso significa que o olhar sobre as concepções da educação da criança e de sua aprendizagem, as quais foram social e historicamente determinadas, constituem uma urgência ao nosso presente educativo, sobretudo porque elas incidem diretamente sobre a docência na educação infantil.

Em razão do exposto, ao olharmos para o processo de institucionalização da infância e para a natureza do trabalho docente na Educação infantil, algumas inquietações são oportunas. Nesse caso, qual é a natureza desse atendimento? Qual é a função da educação infantil prevista nos documentos oficiais? E, mais, em que medida a formação de professores incide diretamente sobre as experiências de aprendizagem e sobre a docência na educação infantil? Todas essas inquietações perfazem as reflexões sobre a docência e têm como finalidade problematizar as tradicionais concepções arraigadas no atendimento educativo ofertado às crianças em nosso país.

No rol dessas concepções, os impasses ainda atuais entre as indissociáveis funções de cuidado e educação revelam que a gênese assistencialista do cuidado das crianças no Brasil ainda está presente nas representações coletivas sobre a educação infantil, pois a própria história da criação das instituições e a ausência de formação profissional para atuação e atendimento à infância têm natureza caritativa e assistencialista. Assim, conforme aponta Oliveira (2011, p. 91), “[...] até meados do século XIX o atendimento de crianças pequenas longe da mãe em instituições como creches ou parques infantis praticamente não existia no Brasil”. Nas Rodas dos Expostos dedicadas ao cuidado e à guarda das crianças abandonadas, o atendimento assistencialista tem seus vínculos estreitos com as práticas caritativas destinadas às crianças enjeitadas. Não por acaso, às crianças desvalidas caberiam a proteção e as medidas emergenciais que, de certo modo, auxiliariam a conter os altos índices de mortalidade infantil (MARCÍLIO, 1999).

Na mudança do século e chegando à segunda metade do século XIX e início do século XX, expressivas transformações econômicas e sociais, das quais podemos destacar a migração para as áreas urbanas e, por conseguinte, a urbanização; a industrialização e a inserção da mulher do mercado de trabalho, modificaram o cenário laboral e o cuidado das famílias com os filhos colocando em cena a real necessidade do atendimento institucionalizado para crianças pequenas e a preocupação com a urgência de criar espaços para que o cuidado fosse garantido.

Como recurso paliativo à guarda e à proteção das crianças cujas mães precisavam trabalhar nas grandes indústrias, o atendimento em creches e pré-escolas delineou-se como um serviço de assistência pautado em discursos higienistas que fundamentaram a fragmentação entre aquilo que se compreenderia como cuidado em detrimento do que hoje entendemos como trabalho educativo na educação infantil e a formação docente exigida para tal. É desse registro que extraímos a compreensão de que em boa parte da história das instituições educativas dedicadas à infância, o cuidado com as crianças concretizou-se por meio de iniciativas estreitamente vinculadas ao campo da saúde, não exigindo daqueles que se dedicavam a ele qualquer formação profissional.

Não por acaso, todo o discurso da assistência científica destinado à infância previa um atendimento centrado na garantia da saúde e do bem-estar expresso por meio da guarda, da nutrição, do cuidado com o corpo, da higiene e da proteção. Assim, conforme aponta Oliveira (2011, p. 100-101):

O higienismo, a filantropia e a puericultura dominaram, na época, a perspectiva de educação das crianças pequenas. O atendimento fora da família aos filhos que ainda não frequentassem o ensino primário era vinculado a questões de saúde. Entendidas como “mal necessário”, as creches eram planejadas como instituição de saúde, com rotinas de triagem, lactário, pessoal auxiliar de enfermagem, preocupados com a higiene do ambiente físico. (...) O trabalho com as crianças nas creches tinha assim um caráter assistencial-protetoral. A preocupação era alimentar, cuidar da higiene e da segurança física, sendo pouco valorizado um trabalho orientado à educação e ao desenvolvimento intelectual e afetivo das crianças.

Nas memórias que dão narratividade à criação das instituições de educação infantil, sobretudo no que compete às creches, portanto, a precariedade e a ausência da formação docente demarcam a própria natureza do atendimento. Isso significa que o cuidado oriundo de seu caráter assistencialista e caritativo prefiguram a precarização do trabalho com as crianças pequenas, já que os arranjos informais constituíam um risco à própria saúde dos infantes. Nessa esfera, não há espaço para o debate sobre o trabalho ou sobre a formação docente, pois ele ainda inexistia.

Em suma, nas creches e pré-escolas criadas como locais de guarda e proteção, o assistencialismo demarcou a concepção de cuidado exercido pelo caráter filantrópico desse atendimento. Essa noção de cuidado, entretanto, se espraia também para o nosso presente educativo quando visitamos as concepções sobre a educação infantil e o imaginário social de que, sobretudo as creches, se ocupam apenas com o cuidado e não propriamente com as práticas que são cotidianamente planejadas e dedicadas às experiências de aprendizagem legalmente instituídas como direito das crianças.

Em meio aos avanços históricos, e à medida em que fomos nos aproximando da década de 1960, a preocupação com o fracasso escolar das crianças incidiu sobre o trabalho na educação infantil na medida em que a educação compensatória estava ocupada em suprir as supostas defasagens percebidas entre crianças provenientes de famílias pobres, as quais careciam de habilidades linguísticas, afetivas, culturais e comportamentais quando comparadas a crianças provenientes da classe média, por exemplo. Nesse caso, a problemática da compensação das defasagens recai sobre a educação infantil na medida em que a educação é percebida como prática de alfabetização precoce necessária ao sucesso escolar das crianças (OLIVEIRA, 2011). Estranho modo de se conceber a educação da infância, mas ainda atual quando problematizamos o nosso presente educativo e a preocupação dos professores com os conteúdos que são próprios dos anos iniciais do ensino fundamental, mas que deixam de lado a ludicidade e as interações tão necessárias à própria compreensão das experiências vividas.

Nesse cenário, pouca exigência foi transposta à formação de professores ocupados com o cuidado e com a educação das crianças em nosso país, sobretudo em razão da própria dificuldade de se fundamentar a compreensão acerca da natureza do trabalho docente. Assim, no rol de memórias que perfazem a história do atendimento à infância, o assistencialismo praticado por instituições filantrópicas e as habilidades supostamente maternais realizadas por mulheres que não possuíam formação ou habilitação para atuarem com crianças pequenas, demarcaram o atendimento dedicado às crianças brasileiras.

A modificação desse cenário só se torna possível a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual possibilitou alguns avanços sentidos no âmbito do reconhecimento da educação infantil como a primeira etapa da educação básica, da natureza indissociável entre o cuidar e o educar e das exigências da qualificação profissional dos educadores que atuam na educação infantil. Nesses marcos, importa considerar, aqui, a natureza do trabalho docente ocupado com o cuidar e com o educar, funções essas indissociáveis, e a formação docente dos profissionais da educação infantil, que auxilia na construção da identidade e da docência em nossa contemporaneidade.

A FORMAÇÃO DOCENTE E AS ESPECIFICIDADES DO TRABALHO PEDAGÓGICO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

O debate sobre a exigência e sobre a defesa da valorização do trabalho docente tem como pontapé inicial a Constituição Federal (1988) e posteriormente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e a Base Nacional Comum Curricular (2017), por exemplo.

Isso fica evidente no capítulo V do artigo 206 da Constituição Federal (1998), o qual prevê que um dos princípios que permeiam o ensino é a “[...] valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas”. (BRASIL, 1988). A Lei de Diretrizes e Bases (1996), nessa mesma linha de raciocínio, reafirma esse princípio em seu artigo 3º e, mais que isso, nos indica que são considerados profissionais da educação aqueles que, em efetivo exercício, foram formados para tal.

Para além disso, no artigo 61 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996), a formação dos profissionais da educação é fundamentada na sólida formação tendo como aporte os conhecimentos científicos e sociais para atuação, na articulação entre teorias e práticas e na exigência de titulações específicas que os habilitem para a atuação na educação infantil e nas outras etapas da educação básica (BRASIL, 1996). Esses são avanços expressivos quando revisitamos a história das instituições de educação infantil e, sobretudo, o cenário de inexistência das exigências de formação docente para atuar na primeira etapa da educação básica, a qual solidificou as concepções caritativas de trabalho e de cuidado com as crianças, conforme evidenciamos anteriormente.

Nesse sentido, se até o final da década de 1980 as crianças brasileiras eram protegidas e cuidadas por mulheres cujas habilidades maternais eram suficientes para atender às crianças, hoje não é mais possível vislumbrar uma docência que não considere o compromisso com a educação, com o cuidado, com a formação integral de crianças de até cinco anos de idade, com a organização dos tempos, dos espaços e das rotinas que estruturam as práticas, com o planejamento, com a avaliação e com a garantia dos direitos de aprendizagem cujas crianças, sujeitos históricos e de direitos, precisam vivenciar na educação infantil.

Face ao exposto, a formação docente para atuação na educação infantil exige de nós a clareza de suas funções indissociáveis, quais sejam, cuidar e educar a fim de que sejam rompidas as fragmentações entre essas duas esferas as quais constituem a natureza do próprio trabalho docente nessa etapa da educação. Nesse caso, cuidar e educar, conforme explicita Bujes (2001) significa reconhecer que as crianças de 0 a 5 anos possuem necessidades de atenção, afeto, segurança, cuidados e experiências educativas sem os quais dificilmente conseguiriam sobreviver e se desenvolver. Simultaneamente, elas estão inseridas em um mundo repleto de descobertas, possibilidades, interações e estímulos que se ofertam à sua percepção, assimilação e compreensão da realidade.

O contato com o entorno, portanto, dá-se por meio da experiência direta com outras crianças, adultos, objetos e formas de expressão (BUJES, 2001). A inserção da criança nas práticas sociais e no mundo, desse modo, não seria possível sem que atividades voltadas ao cuidado e à educação estivessem presentes nos espaços e nas rotinas da educação infantil.

Nesses espaços, o trabalho docente, ao contrário do tradicional exercício assistencialista e caritativo, significa atender às práticas de cuidado entendidas como o cuidado com a higiene e com a alimentação, por exemplo, mas também com a oferta de ambientes que sejam seguros, que acolham, que sejam alegres e convidativos à exploração; e de experiências de aprendizagem que permitam à criança descobrir, conhecer, brincar e se desenvolver. Assim sendo, cuidar significa reconhecer que a base do cuidado é compreender como ajudar o outro a se desenvolver como ser humano e a desenvolver suas capacidades. (BRASIL, 1998). Educar, ao mesmo tempo, significa compreender que as experiências de aprendizagem possibilitam as interações, as brincadeiras, a aprendizagem, o desenvolvimento, a socialização e a inserção no universo da cultura. Dito de outro modo:

Cuidar tem significado, na maioria das vezes, realizar as atividades voltadas para os cuidados primários: higiene, sono, alimentação. Quando uma sociedade faz exigências de trabalho às mães e aos pais de crianças pequenas (ou a outros adultos que sejam responsáveis por elas), tem a obrigação de prover ambientes acolhedores, seguros, alegres, instigadores, com adultos bem preparados, organizados para oferecer experiências desafiadoras e aprendizagens adequadas às crianças de cada idade. [...] Por outro lado, a criança vive um momento fecundo, em que a interação com outras pessoas e as coisas do mundo vai levando-a atribuir significados àquilo que a cerca. Esse processo que faz com que a criança passe a participar de uma experiência cultural que é própria do seu grupo social, é o que chamamos de educação. (BUJES, 2001, p. 16).

Em razão do exposto, é possível depreendermos que o trabalho docente e a compreensão da função indissociável entre cuidar e educar nos auxiliam a romper com as tradicionais formas, ainda muito presentes, de se conceber a educação de nossas crianças como atendimento centrado apenas no cuidado. Os impasses entre o cuidar e o educar, e, portanto, a fragmentação entre essas duas esferas, impõem riscos ao acesso das crianças a práticas de cuidado e de educação comprometidas com o seu desenvolvimento integral e com a vivência das experiências que lhes possibilitam atribuir significado ao vivido.

Cuidar e educar, em suma, nos remetem a práticas docentes e a experiências de aprendizagem que são intencionalmente planejadas, permanentemente avaliadas e atentas às vivências da infância e de suas expressões, para além da mera escolarização precoce, tão praticada nos espaços de educação infantil. Nessa ótica, conforme aponta Bujes (2001, p. 16-17):

De outro lado, mas de forma igualmente perversa, também ocorrem experiências voltadas para o que chamo de “escolarização precoce”, igualmente disciplinadoras, no seu pior sentido. Refiro-me a experiências que trazem para a pré-escola, especialmente, o modelo da escola fundamental, as atividades com lápis e papel, os jogos ou atividades realizadas na mesa, a alfabetização ou a numeralização precoce, o cerceamento do corpo, a rigidez dos horários e da distribuição das atividades, as rotinas repetitivas, pobres e empobrecedoras. Assim, na prática, a dimensão educativa, como acabei de descrever, tem desconhecido um modo atual de ver as crianças: como sujeitos que vivem um momento em que predominam o sonho, a fantasia, a afetividade, a brincadeira, as manifestações de caráter subjetivo. A infância passa a ser nada mais do que um momento de passagem, que precisa ser apressado [...].

Em razão do que expusemos até aqui, e considerando as concepções acerca do trabalho docente na educação infantil, tais reflexões nos convidam a olhá-las como desafios bastante urgentes, sobretudo quando problematizamos a educação da infância, a formação docente e as práticas contemporâneas na educação infantil. Quando as revisitamos, é bastante comum nos depararmos com concepções assistencialistas e engessadas que ora convertem a docência apenas em prática de cuidado, ora em prática preparatória para o ensino fundamental. Em todos esses casos, a definição de currículos, a obrigatoriedade do uso de livros didáticos e as práticas estereotipadas têm expropriado o direito das crianças à vivência de brincadeiras, interações, aprendizagens e desenvolvimento.

As práticas pedagógicas centradas na repetição, na cópia e na educação precoce, conforme nos lembra Bujes (2001) apressa os tempos da infância, ou seja, os tempos em que se é possível imaginar, criar, inventar, fantasiar e significar o mundo à própria maneira. Problematizar tais práticas e as concepções de professores acerca da docência constitui um caminho profícuo e possível à reelaboração daquilo que fazemos na educação infantil, sobretudo quando pensamos na formação de professores.

Nesse caso, não é exagero afirmar que as representações coletivas acerca da educação infantil ainda orbitam em torno do cuidado, mesmo quando os futuros professores ainda estão em formação. Para além disso, costumeiramente se confunde o trabalho educativo com práticas de escolarização de modo a se exigir das crianças o domínio dos conteúdos que estão presente nos currículos dos anos iniciais do ensino fundamental. A problematização dessas concepções, portanto, exige de nós a reflexão acerca daquilo que se compreende como ação docente na educação infantil, sobretudo se quisermos construir uma educação cujo território da infância não seja o território de passagem.

REVISITANDO CONCEPÇÕES NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SEUS IMPACTOS NA FORMAÇÃO DOCENTE NA CONTEMPORANEIDADE

No aeroporto o menino perguntou: - E se o avião tropicar num passarinho?

O pai ficou torto e não respondeu.

O menino perguntou de novo: - E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu:

Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.

E ficou sendo.

(Manoel de Barros, 2010, p. 469)

O poeta Manoel de Barros, brilhante em captar as sutilezas da vida pulsante, convida-nos mais uma vez, em sua poesia, a pensarmos a infância, a criança, e sua forma tão sutil de ver e viver o mundo à sua volta. Nos versos em que o poema é tecido, a infância que neles desponta nos remete ao tempo da imaginação e da inventividade que possibilitam à criança atribuir outras narratividades e descobrir novos sentidos à realidade. No ser criança e na vivência dessa infância, podemos afirmar que os espaços formativos estão repletos de possibilidades. Mais que isso, as práticas docentes que neles acontecem dão testemunho das aprendizagens e das potencialidades infantis quando elas respeitam os tempos da infância, da criança, do brincar e da construção dos sentidos sobre o mundo. Com o convite em forma de poesia, revisitar algumas concepções presentes na educação infantil e refletir acerca de seus reflexos e impactos na formação docente torna-se necessário, se queremos pensar as práticas pedagógicas para além do mero cuidado, isto é, centradas no desenvolvimento das potencialidades infantis.

Inicialmente direcionamos o nosso olhar para a educação infantil e para a riqueza de possibilidades entre as experiências das crianças e os conhecimentos historicamente produzidos e acumulados ao longo da história da humanidade. A fim de nos aproximarmos de concepções que respeitam a infância e as suas especificidades, retomamos o Parecer CNE/CEB n. 20/2009 das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil que traz de forma clara uma concepção de criança e de currículo para a infância:

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico. Tais práticas são efetivadas por meio de relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de suas identidades. Intencionalmente planejadas e permanentemente avaliadas, as práticas que estruturam o cotidiano das instituições de Educação Infantil devem considerar a integralidade e indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural das crianças[...] (BRASIL, 2009, p. 2, grifos nossos).

Observamos, a partir do referido documento, uma concepção de criança alinhada à nossa compreensão, qual seja, uma criança capaz, ativa, pensante, que aprende e se desenvolve nas relações sociais que estabelece com o outro e com o mundo ao seu redor. Ao mesmo tempo, notamos a fundamentação de um projeto de currículo que considera as produções e interações das crianças e professores com a vida à sua volta. Assim, acreditamos que toda criança pode aprender e se desenvolver, desde que lhes sejam ofertadas condições adequadas de aprendizagem e desenvolvimento.

Nossas concepções, como sociedade, professores, futuros professores e instituição escolar como um todo, dizem muito da proposta pedagógica que será construída com e para as crianças. Seguindo essa lógica de raciocínio, conforme aponta Barbosa (2006, p. 188):

[...] diferentes discursos deram origem às propostas pedagógicas que articularam essas ideias de diferentes modos. Eles não são unívocos e são concretizados pelas práticas pedagógicas. [...] essa contradição pesa sobre a cabeça dos educadores. Por um lado, eles defendem a concepção de que é preciso assumir, por sua condição, o papel de exercer sobre as crianças e os jovens a transmissão das ideias, dos usos e dos costumes que lhes permitam adaptar-se melhor à sociedade e, por outro, a ideia de que é melhor desenvolver as potencialidades e as aptidões dos indivíduos para que eles tenham êxito no seu futuro, desenvolvendo-se pessoalmente e criativamente. De cada uma dessas concepções, vão surgir diferentes projetos pedagógicos.

Dessa forma, lutar pelos direitos das crianças como sujeitos de aprendizagem, pressupõe relembrar algumas visões que nortearam o processo educativo das crianças pequenas ao longo da história e que, por ora, ainda estão presentes e enraizadas nos discursos e nas práticas docentes atuais (BARBOSA, 2006). Para além de todos os avanços conquistados e já mencionados nas seções anteriores, precisamos nos atentar para os resquícios de representações e evidentes contradições, sobretudo quando se trata dos encaminhamentos oriundos das políticas nacionais voltadas à educação da infância e ao entendimento acerca do que significa cuidar e educar os sujeitos infantis.

Nas experiências vivenciadas como professoras no curso de formação inicial de professores, e mais especificamente no curso de Pedagogia, bem como na orientação e acompanhamento de estágio na educação infantil nesse mesmo curso, temos observado um equívoco de concepções sobre o cuidar e o educar, além de uma busca por práticas estereotipadas ou atos mecânicos que não contribuem para o desenvolvimento pleno da criança que pensa, imagina e se constrói.

Muitas práticas pedagógicas pautadas na repetição, na cópia ou restritas às velhas formas de ensinar, contradizem-se àquelas propostas, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil. Na contramão desses princípios, sabemos que a criança pequena tem como direito de aprendizagem conhecer e se apropriar do mundo por meio de linguagens próprias da infância em que os aspectos físicos, afetivos e cognitivos se imbricam. Entretanto, conforme poeticamente nos lembra Malaguzzi (1999, s. p.):

A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove.

A escola e a cultura separam-lhe a cabeça do corpo.

Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de escutar e de não falar,

De compreender sem alegrias, de amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe: de descobrir o mundo que já existe e, de cem, roubaram-lhe noventa e nove.

Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação,

O céu e a terra, a razão e o sonho, são coisas que não estão juntas.

O poema de Malaguzzi (1999) apresenta uma concepção de criança que tem múltiplas formas de se comunicar com o mundo, porém, ao mesmo tempo, denuncia concepções fragmentadas, que separam “a cabeça do corpo” ou seja, que fragmentam o trabalho da educação infantil e não viabilizam tempos, espaços, materiais e situações adequadas para que a criança se desenvolva em sua integralidade. Dito de outro modo, “[...] enfatizam prioritariamente um dos aspectos de duplas como a natureza e a cultura, o espírito e o corpo, o intelectual e o manual, a passividade e a atividade, a liberdade e a submissão, a iniciativa e a disciplina, a dependência e a autonomia, a teoria e prática, o sujeito e o objeto [...]”. (BARBOSA, 2006, p. 188-189).

Nesse caminho, conforme observamos nos cursos de formação de professores, é necessário repensar discursos e desconstruir determinadas representações e equívocos acerca do trabalho pedagógico na educação infantil. Um desses equívocos se refere à herança assistencialista dos atendimentos realizados para as crianças ao longo da história, que acabou engendrando a cisão entre cuidar e educar. Ao separar essas duas concepções temos observado reducionismos quanto às práticas pedagógicas. Mesmo com o crescimento dos referenciais para a infância e a defesa da integração desses dois elementos, observamos que ainda temos um longo caminho a percorrer no alcance da superação efetiva dessa indissociabilidade (KRAMER, 2005).

À guisa de exemplo, durante a orientação e o acompanhamento de estágios no curso de Pedagogia, presenciamos relatos de professores da educação infantil afirmando que o aluno estagiário deveria ir em determinado período para realização do estágio, pois no outro período seriam realizadas as rotinas de trocas, alimentação e brincadeiras. Aqui fica bastante evidente que a cisão entre o cuidar e educar é reforçada pelas concepções que se tem sobre criança, infância e prática pedagógica.

Se consideramos a criança como frágil, no sentido de minimizar sua capacidade para aprender, concebendo a escola da infância como um espaço somente de assistência, nossa proposta pedagógica acaba por fragmentar e reduzir o conhecimento humano e prejudicar as relações e trocas possíveis em um momento tão rico da vida (COSTA, 2017).

Ao olharmos para a história, observamos que o cuidar sempre esteve relacionado ao atendimento das necessidades físicas da criança, alimentação, higiene, ou sono, enquanto que o educar se relacionava à construção do próprio conhecimento. Porém, ao analisarmos situações corriqueiras vivenciadas nas relações entre crianças e professores nos espaços dos centros de educação infantil e pré-escola, podemos perceber claramente a integração desses elementos. Durante o banho, no diálogo com a professora, o bebê tem suas necessidades de higiene atendidas e, ao mesmo tempo, interage com o universo da linguagem, dos sentidos e significados.

Do mesmo modo, ao brincar com potes, encher, esvaziar ou ao movimentar braços e pernas, oportunizamos a compreensão, a imitação, a descoberta e a expressão da criança. Durante a alimentação, a criança pequena satisfaz a necessidade do seu corpo, mas, ao mesmo tempo, descobre cores, cheiros, sabores, texturas, desenvolve sensações e percepções que perpassam pelo ato educativo, pela proposta pedagógica mediadora do professor que a respeita como sujeito ativo e apresenta essas e outras possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento.

Outro equívoco percebido na outra ponta do iceberg, consiste na importância exacerbada dada às tarefas e folhas impressas. Durante o acompanhamento dos estágios, e por diversas vezes, presenciamos os alunos procurando tarefas prontas para imprimir para as crianças, pois essa seria uma recomendação da professora da sala para o registro dos alunos. Nessa outra ponta do Iceberg, concepções de infância também têm sido reveladas nas intenções políticas e econômicas, por trás das legislações atuais para a educação infantil.

Em uma leitura crítica da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, BRASIL, 2017), documento norteador mais recente dessa etapa da educação básica e relacionando com o contexto histórico já apresentado, observamos que ao se tornar referência para o trabalho pedagógico, a BNCC concretizou-se como um documento prescritor e de controle pelo Estado, empobrecendo a autonomia do professor, suas práticas pedagógicas e, consequentemente, o desenvolvimento pleno da criança, o qual as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) indicam que acontece por meios de dois eixos estruturantes, quais sejam, as “interações e as brincadeiras”.

Assim, ao mesmo tempo em que o “cuidar”, desvinculado do “educar” engendra equívocos de práticas pedagógicas e implica diretamente no processo de formação humana, a partir da implantação da BNCC pelo viés da competência, vimos ser evidenciada, também, uma concepção empresarial para a educação da infância. Com essa concepção, a proposta de escolha de livros didáticos do edital Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2020/2022, pautando-se na Política Nacional de Alfabetização (PNA, BRASIL, 2020), explora exclusivamente a literacia e a numeracia, de forma a antecipar o processo de aprendizagem para a alfabetização, o que destoa do papel dessa etapa explicitado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), da concepção de currículo vivo abordada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) e dos direitos de aprendizagem explorados pela própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC, BRASIL, 2017).

Com a inserção de livros didáticos para a educação infantil, vemos uma proposta de currículo centrada em tarefas limitadoras e pouco desenvolventes, práticas preparatórias para o ensino fundamental, dando enfoque à exposição passiva das crianças e ao uso de folhas impressas com letras soltas, números, formas, figuras, isto é, a práticas herdadas de uma concepção preparatória das pré-escolas dos anos 1970 e 1980, que se contradiz à concepção de criança e de infância defendidas nas Diretrizes (2009), bem como nos eixos articuladores do trabalho pedagógico na educação infantil.

Propostas como a inserção de livros didáticos na educação infantil, reforçam a fragmentação entre o “cuidar e o educar”, além de que, ao padronizarem materiais para todas as crianças, impulsionam interesses mercantilistas e políticas neoliberais. Dessa forma, ao analisar as experiências vivenciadas e relacioná-las ao contexto histórico das concepções apresentadas, enfatizamos a necessidade de um processo formativo que envolva a reflexão e ação, no qual se constitui a práxis docente. O olhar consciente para a realidade social permite questionar e compreender os determinantes econômicos, sociais e históricos, realizar uma análise crítica da realidade e a efetivação da práxis. Dito de outro modo, trata-se da “[...] reflexão e ação sobre uma realidade buscando sua transformação; transformação orientada para a consecução de maiores níveis de liberdade do indivíduo e da humanidade em seu trajeto histórico (interesse crítico)”. (GAMBOA, 2011, s. p.). Nessa esfera, o espaço de formação docente para a educação infantil se constitui em uma rica possibilidade para se constituir:

O conjunto de conhecimentos vivenciados nas diferentes disciplinas na universidade atrelados ao contato com a escola, nas diferentes etapas do estágio (observação, registro escrito no diário de campo, planejamento, estar com as crianças, diálogo com a equipe pedagógica), cria as condições necessárias para a docência na Educação Infantil (PITELLI, MAGALHÃES, FARIAS, 2021, p. 237).

Além disso, o processo formativo de professores(as), em especial, da educação infantil, necessita considerar o percurso histórico dessa etapa, conquistas, contradições, bem como compreender as concepções de infância, de criança, que nortearam cada momento da história, levando em consideração as condições em que cada professor se apropria dos sentidos produzidos. Para isso, é necessário contrapor-se a modelos prescritivos e meramente expositivos de formação. Professores em formação e professores que já estão atuando na educação infantil não precisam de receitas, manuais ou métodos perfeitos, mas, pensar, encantar-se, refletir, reconhecer e conscientizar-se da sua grande responsabilidade com a formação humana desde o começo da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo nos dedicamos a refletir acerca de algumas concepções e perspectivas acerca do trabalho docente na educação infantil, cuja herança advém da historicidade do atendimento às crianças no Brasil e às perspectivas assistencialistas e caritativas praticadas durante boa parte das memórias das instituições que, até então, cuidavam das crianças.

Com o intuito de retomarmos essa historicidade e problematizarmos a formação docente, sobretudo no que compete à compreensão da natureza das práticas quando tratamos da função indissociável entre o cuidar e o educar e do modo como as representações persistem em fragmentála, mesmo entre futuros pedagogos em processo de formação, essas reflexões se mostram como um caminho possível acerca do que significa educar e ser educador na educação infantil.

Para além disso, indicam-nos a urgência de pensarmos uma educação da infância que não exproprie os tempos da criança, que não enrede o fazer infantil às folhas de papel e aos livros didáticos, que não apressem o cultivo da imaginação, da criatividade, da inventividade e das formas tão singulares com que as crianças atribuem sentido ao vivido.

Pensar a educação infantil para além das práticas engessadas e dos ritmos cronológicos que insistem em roteirizar o fazer infantil, é uma urgência de nosso presente educativo, sobretudo quando se trata da falta de clareza acerca das práticas pedagógicas que ora podem contribuir à aprendizagem e ao desenvolvimento das crianças, ora podem tolher todo o potencial da própria infância.

A história das instituições de educação infantil e do processo formativo dos docentes que atuam na primeira etapa da educação básica evidenciam as contradições e a precariedade do atendimento, indicando-nos que a educação infantil, em si, é uma luta constante e necessária, não só para garantir o direito das crianças ao acesso e a uma educação de qualidade, mas, sobretudo, a práticas que efetivamente lhes permitam explorar e desenvolver todas as potencialidades infantis.

Assim, a educação infantil se perfaz na singeleza do próprio ato educativo sensível e comprometido com a temporalidade e com o território dessa infância, para além de espaços que sejam apenas os de passagem ou cujos tempos precisam ser apressados em razão das supostas demandas as quais as crianças precisam dar conta em um futuro breve. Nas linhas nas quais este artigo é tecido, retomamos outro poema de Manoel de Barros, o qual nos recorda brilhantemente toda a potência da infância. Com essa potência da infância, a formação de professores e as práticas pedagógicas têm o compromisso de se ocupar.

Foi na fazenda do meu pai antigamente.

Eu teria dois anos; meu irmão, nove.

Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada.

A gente ia viajar.

As rodas ficavam cambaias debaixo do caixote:

Uma olhava para a outra. Na hora de caminhar

as rodas se abriam para o lado de fora.

De forma que o carro se arrastava no chão.

Eu ia pousada dentro do caixote com as perninhas encolhidas.

Imitava estar viajando.

Meu irmão puxava o caixote por uma corda de embira.

Mas o carro era diz-que puxado por dois bois.

Eu comandava os bois:

- Puxa, Maravilha!

- Avança, Redomão!

Meu irmão falava que eu tomasse cuidado porque Redomão era coiceiro.

As cigarras derretiam a tarde com seus cantos.

[...] No caminho, antes, a gente precisava de atravessar um rio inventado. Na travessia o carro afundou e os bois morreram afogados.

Eu não morri porque o rio era inventado.

(Manoel de Barros, 1999, p. 35-41)

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Recebido: 1 de Setembro de 2022; Aceito: 1 de Novembro de 2022

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