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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro Oct./Dec 2022  Epub Feb 28, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.70217 

É sobre ser professor(a): poéticas/pruridos de anunciação da formação docente nas políticas curriculares

POLÍTICA CURRICULAR DO NOVO ENSINO MÉDIO: tecnologias da governamentalidade neoliberal1

CURRICULUM POLICY IN THE NEW HIGH SCHOOL: technologies of neoliberal governmentality

POLÍTICA DEL CURRÍCULO DE ESCUELA SECUNDARIA NUEVA: tecnologías de la gubernamentalidad neoliberal

Glhebia Gonçalves de Oliveira Dourado1 
http://orcid.org/0000-0002-0158-5755; lattes: 7082258412807929

Shirlei Rezende Sales2 
lattes: 4103701137389818

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Resumo

Este artigo tematiza como as tecnologias da governamentalidade neoliberal se movimentam em função do controle das práticas docentes. Argumenta-se que as políticas educacionais funcionam como mecanismos dessa governamentalidade e que esses mecanismos produzem aceitabilidade entre os indivíduos quando algumas táticas são acionadas. Esse argumento se desdobra no entendimento de que o funcionamento desses mecanismos está atrelado ao campo jurídico de modo que se elabora todo um conjunto alinhado de normativas, oficializando o discurso neoliberal no campo da educação. A política focalizada no currículo nacional (Base Nacional Comum Curricular - BNCC) se desdobra no campo de outras políticas educacionais, tais como a da gestão e do financiamento da educação, da formação docente, da aquisição e distribuição de livros e materiais didáticos e da avaliação do sistema educacional. Argumentamos que o foco no currículo tem por objetivo conduzir a conduta docente. Partimos da análise de documentos que regulamentam a reforma do ensino médio imposta pela Lei n. 13.415/2017. A leitura e a análise dos documentos seguiram a linha de pensamento do filósofo Michel Foucault, especificamente, no entendimento que este faz das noções de discurso, relação de saber/poder, governo e governamentalidade.

Palavras-chave governamentalidade; neoliberalismo; currículo; docência; novo ensino médio

Abstract

This article discusses how the technologies of neoliberal governmentality move according to the control of teaching practices. It is argued that educational policies work as mechanisms of this governmentality and that these mechanisms produce acceptability among individuals when some tactics are activated. This argument unfolds in the understanding that the functioning of these mechanisms is linked to the legal field, so that an entire set of regulations is elaborated, making the neoliberal discourse official in the field of education. The policy focused on the national curriculum (BNCC) unfolds in the field of other educational policies, such as the management and financing of education, teacher training, the acquisition and distribution of books and teaching materials and the evaluation of the educational system. We argue that the focus on the curriculum aims to guide teaching behavior. We start from the analysis of documents that regulate the high school reform imposed by Law n. 13.415/2017. The reading and analysis of the documents followed the line of thought of the philosopher Michel Foucault, specifically, in his understanding of the notions of discourse, knowledge/power relationship, government and governmentality.

Keywords: governmentality; neoliberalism; curriculum; teaching; new high school

Resumen

Este artículo discute cómo las tecnologías de la gubernamentalidad neoliberal se mueven en función del control de las prácticas docentes. Se argumenta que las políticas educativas funcionan como mecanismos de esta gubernamentalidad y que estos mecanismos producen aceptabilidad entre los individuos cuando se activan algunas tácticas. Este argumento se despliega en el entendido de que el funcionamiento de estos mecanismos está ligado al campo legal, por lo que se elabora todo un conjunto de normas, oficializando el discurso neoliberal en el campo de la educación. La política centrada en el currículo nacional (BNCC) se despliega en el campo de otras políticas educativas, como la gestión y financiación de la educación, la formación docente, la adquisición y distribución de libros y material didáctico y la evaluación del sistema educativo. Argumentamos que el enfoque en el currículo pretende orientar el comportamiento docente. Partimos del análisis de los documentos que reglamentan la reforma de la Enseñanza Media impuesta por la Ley 13.415/2017. La lectura y análisis de los documentos siguió la línea de pensamiento del filósofo Michel Foucault, específicamente, en su comprensión de las nociones de discurso, relación saber/poder, gobierno y gubernamentalidad.

Palabras clave gubernamentalidad; neoliberalismo; currículo; enseñando; nueva escuela secundaria

DAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde 2016, quando a presidenta Dilma Rousseff foi afastada do cargo por meio de um golpe jurídico-parlamentar-midiático (NUNES, 2019), o ensino médio brasileiro vem passando por uma ampla e emergencial reforma que os/as reformistas nomearam de novo ensino médio. A primeira investida veio por meio da Medida Provisória n. 746/16 que meses depois foi convertida na Lei n. 13.415/17, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/1996). O novo ensino médio vem sendo subsidiado por uma série de documentos, elaborados para regulamentar toda uma política educacional focalizada no currículo e na docência.

O foco no currículo pode ser verificado no investimento na elaboração e na aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC-ensino médio). Esse documento é considerado como eixo norteador2 de uma política educacional mais ampla. Neste artigo, discutimos como essa política focalizada no currículo se desdobra no campo de outras políticas educacionais, tais como a da gestão e do financiamento da educação, da formação docente, da aquisição e distribuição de livros e materiais didáticos e da avaliação do sistema educacional. Argumentamos que o foco no currículo tem por objetivo conduzir a conduta docente. Concordamos com Marlucy Alves Paraíso (2007) que o currículo ensina o sujeito docente não somente as habilidades consideradas adequadas a esse/a profissional, mas também os procedimentos que esse sujeito deve ter na vida, como deve ser a sua conduta e que tipo de pessoa deve ser.

A discussão aqui proposta parte do entendimento de que as políticas públicas funcionam como parte de um conjunto de tecnologias de governamentalização. Inspirado em Foucault, Nikolas Rose (2001, p. 37) define tecnologias como “[...] meios inventados para governar o ser humano, para moldar ou orientar a conduta nas direções desejadas”. Elas operam discursivamente, utilizando-se das funções pelas quais o discurso se encarrega no que diz respeito à produção de sujeitos e objetos por meio da incitação, indução, sedução, condução, regulação, enfim, da sua possibilidade de governar condutas. Também na perspectiva foucaultiana, Thomas Lemke (2017) define governo como os modos de poder sistematizados, regulados e refletidos que vão além do exercício espontâneo de poder sobre outros/as, seguindo uma forma específica de raciocínio que administra a ação ou os meios adequados para realizá-la. Nesse sentido, governo diz respeito ao modo como as condutas dos indivíduos são gerenciadas e à forma como esse gerenciamento regulador é utilizado na gestão de um Estado, na gestão do sujeito pelos outros e por eles mesmos (FOUCAULT, 2008). Assim, pode-se afirmar que o governo corresponde ao funcionamento de um conjunto de tecnologias condicionadas a uma racionalidade mais ampla e mais difusa.

Considerando a história do presente, entendemos que a finalidade dessas tecnologias é fazer com que a conduta dos indivíduos siga os princípios e a lógica da racionalidade neoliberal. Sendo assim, o neoliberalismo é visto como uma prática governamental que constrói novas percepções de Estado, de mercado, de propriedade, do mundo do trabalho e do controle do corpo, criando novas formas de existências (LAGASNERIE, 2013). Ele opera por meio de tecnologias que governam a mentalidade dos indivíduos dando-lhes condições de aceitabilidade. Esse entendimento nos levou ao conceito foucaultiano de governamentalidade (FOUCAULT, 2008; 2021). Nessa perspectiva, estamos entendendo que o neoliberalismo funciona como uma governamentalidade, acionando, discursivamente, tecnologias capazes de engendrar sua lógica nas práticas docentes, investindo na produção de objetos e sujeitos docentes do tipo neoliberal.

A pesquisa que subsidia este artigo investigou as tecnologias de governo da docência no novo ensino médio, identificando que elas são constituídas por mecanismos, táticas, estratégias e técnicas. Este artigo traz parte dos resultados dessa pesquisa e analisa algumas tecnologias de governo do Estado, ficando a análise de outras tecnologias para artigo futuro. Aqui, vamos tratar dos mecanismos e táticas de regulação da conduta. Mecanismo foi entendido com o meio que liga o geral ao particular, funcionando como uma linha criada para unir os princípios da racionalidade mais geral, que é o neoliberalismo, às práticas mais específicas, localizadas e concretas que, nesse caso, são as práticas docentes. Nesse sentido, as atuais políticas públicas educacionais foram entendidas como mecanismos da governamentalidade neoliberal que fazem parte de um conjunto de outras tecnologias. Entende-se que cada política corresponde a um mecanismo com objetivos específicos que se convergem para objetivos mais gerais. Listamos aqui o mecanismo de controle do currículo, da gestão e do financiamento, da formação docente, da compra e distribuição de livros e materiais didáticos e da avaliação.

Pensando nessas políticas educacionais como mecanismos, entendemos que estes são constituídos por discursos que, por sua vez, são formados por um conjunto de saberes, verdades, conceitos e ditos que se articulam em um movimento tático. A articulação, o alinhamento, a unidade e a coerência entre os mecanismos por meio de normativas regulatórias são entendidas como tática, uma combinação calculada (FOUCAULT, 2014, p. 165).

A metodologia da pesquisa foi desenvolvida na análise dos seguintes documentos: Lei n. 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que alterou a LDB n. 9.394/1996 regulamentando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e instituindo a política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral; a Base Nacional Curricular Comum (BNCC-ensino médio); o Parecer CNE/CP n. 14/2020 e a Resolução CNE/CP n. 1 que define e dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação continuada de professores da educação básica e a Base Nacional Comum para a Formação Continuada da Educação Básica (BNC-formação continuada); a Lei n. 14.113/20 que regulamenta o FUNDEB; o Decreto n. 9.099 que dispõe sobre o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD); o Edital 03/2021 de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas, literárias e recursos digitais para PNLD 202; e o Parecer CNE/CP n. 5/2022 que trata do novo Exame Nacional do ensino médio (ENEM), ainda em processo de análise.

Partimos da perspectiva de que os documentos normativos são elaborados no âmbito das relações de poder/saber e que, dentre uma série de funções, eles servem para legitimar saberes ou fazer perpetuar aqueles que já estão no plano do verdadeiro. Sendo assim, levamos em consideração o contexto da reforma do ensino médio e a urgência em que as normativas foram homologadas, haja vista que a produção desses documentos faz parte das relações de poder/saber que envolvem o governo do Estado, articuladamente, com instituições privadas, organizações não-governamentais, organismos multilaterais e supranacionais.

A análise dos textos oficiais foi inspirada na metodologia dos trabalhos já produzidos sobre a noção foucaultiana de governamentalidade como ferramenta conceitual e metodológica (FIMYAR; 2009; Ó, 2009; CASTRO-GÓMEZ, 2010; LEMKE, 2017). Segundo Jorge Ramos do Ó (2009), essa ferramenta incita e desafia a identificar os mecanismos de operacionalização, as redes de circulação da verdade e as modalidades de constituição do sujeito moderno (Ó, 2009). Sendo assim, investimos em um “[...] tipo de estudo que visa examinar as condições particulares em que diferentes práticas de governança surgem e são transformadas, olhando mais além para o tipo específico de racionalidade mobilizada para cada uma dessas práticas” (CASTRO-GÓMEZ 2010, p. 44-45).

Nesse sentido, a pesquisa foi realizada levando em conta conceitos-chaves na analítica da governamentalidade: a razão política e as tecnologias de governo (FIMYAR, 2009). Esses conceitos foram utilizados, articuladamente, de modo a criar uma metodologia própria, fazendo experimentações. Primeiro, considerou-se a “[...] razão política” (Ó, 2009, p. 37). Esta diz respeito a um discurso que teve sua emergência como reposta a algum problema em um determinado período histórico. Seguindo essa pista, entendemos que o governo do Estado se orienta por meio de uma racionalidade específica e que seus mecanismos de governos operam em conformidade com essa racionalidade. Assim, enfatizamos, neste artigo, como a governamentalidade neoliberal funciona na educação, investindo, sobretudo no currículo e na docência.

DA GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E SUAS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO

Entendem-se políticas públicas governamentais como mecanismos de governo que fazem parte de um conjunto amplo de tecnologias que compõem prática a governamental. Criadas para regular e ordenar práticas sociais específicas, articulando-as a uma racionalidade política global, as políticas públicas são, especificamente, os mecanismos utilizados pelos governos dos Estados para governar a população. Sendo assim, no que tange às políticas públicas educacionais, pode-se dizer que elas funcionam como mecanismos de articulação através dos quais múltiplos atores, como o Estado, instituições privadas, organizações não-governamentais, organismos multilaterais e supranacionais, desencadeariam processos de ordenamento e regulação das práticas sociais.

Essas políticas são capazes de conjugar e ordenar diferentes práticas nas instituições escolares, o que nos permite entender que as elas funcionam como mecanismos que fazem parte de um conjunto amplo de tecnologias de condução das condutas, conceituado por Foucault (2008; 2021) como governamentalidade.

Orientada por uma governamentalidade neoliberal, as políticas educacionais funcionam como mecanismos de governamentalização condicionados por uma lógica que “[...] emprega técnicas de poder [governo] inéditas sobre as condutas e as subjetividades” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 21). Nesse modelo, esses mecanismos são linhas que buscam articular as práticas escolares a uma razão econômica mais ampla. Entendendo que, desde meados do século XX, a razão econômica que orienta os Estados capitalistas é o neoliberalismo, logo, serão os princípios neoliberais que vão orientar a criação ou a reformulação dos mecanismos de governo destinados ao campo da educação. Esses princípios consistem na “[...] generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 17). Com base nesses princípios, a instituição escolar só tem sentido se estiver a serviço do mercado.

Para adequar a escola aos princípios do mercado neoliberal, foram criados inúmeros meios, instrumentos, mecanismos, táticas, estratégias, técnicas, enfim, múltiplas tecnologias. Podemos falar, então, em mecanismos educacionais para tratarmos daquilo que conhecemos como políticas públicas educacionais. Quando falamos de políticas educacionais no plural, estamos entendendo que elas funcionam como mecanismos distintos em relação a seus objetivos específicos, mas encontram-se, taticamente, alinhadas em relação às suas funções de regular e governar as práticas escolares como um todo. Nesse sentido, estamos nos referindo à política curricular, gestão e financiamento da educação, compra e distribuição de livros e materiais didáticos, formação docente e avaliação. Ao contextualizarmos esse entendimento teórico com a atual política para o Ensino Médio, como tentamos expressar por meio da Figura 1, percebe-se uma enorme articulação entre essas políticas cujo foco está no governo daqueles/as que governam outros/as, ou seja, os/as professores/as.

Fonte: elaborado pelas autoras.

Figura 1 Mecanismos de Controle 

Nessa linha de entendimento, as práticas docentes no Novo Ensino Médio constituem o foco da governamentalidade neoliberal que, para funcionar, utiliza-se de mecanismos de regulação e controle, tais como as políticas públicas educacionais. São essas políticas que vinculam a racionalidade geral aos indivíduos em suas práticas docentes específicas. Nesse caso, a conquanto a política de currículo ganhe centralidade em relação às outras, o entrelaçamento entre elas é fundamental para que os mecanismos funcionem. O currículo sempre teve grande centralidade nas decisões educacionais. A reforma do Ensino Médio o colocou ainda mais no centro, com a instituição de um currículo nacional obrigatório, a BNCC.

Acreditamos haver uma centralidade em torno da política de currículo, pois ele funciona como um dos elementos mais rígidos, talvez por ser dotado de maior instrumentalidade, por ser o ponto de apoio das práticas e articular-se às outros mecanismos. Conforme Cury, Reis e Zanardi (2018), o currículo é o cerne da educação e por meio dele outras ações são tomadas, criadas, recriadas, incrementadas, extintas ou modificadas. Ele funciona como um instrumento que serve como uma espécie de programa, de guia, de caminho, trajetória ou percurso tal como aparece no significado etimológico da palavra, pista de corrida (SILVA, 2019).

Na perspectiva dos estudos pós-críticos do campo curricular, essa centralidade em torno do currículo pode ser explicada, de acordo com Sandra Corazza e Tomaz Tadeu (2003), com base em quatro pressupostos: a questão do conhecimento e da verdade; a questão do sujeito e da subjetividade; a questão do poder e a questão dos valores. Segundo Corazza e Tadeu (2003), o componente mais óbvio tem a ver com o conhecimento e a verdade, uma vez que o problema central do currículo é saber o que deve ser ensinado ou, de forma mais ampla, o que constitui conhecimento válido ou verdadeiro.

Pensando na dimensão subjetivante do currículo pelo prisma da governamentalidade em Foucault (2021), entendemos que, como o currículo implica intencionalidade, ele consiste no instrumento principal da governamentalidade no âmbito dos mecanismos de controle e regulação da educação. É ele que vai levar um determinado discurso às práticas docentes. Portanto, em um governo orientado pela racionalidade neoliberal, os mecanismos utilizados nesse governo estarão, consequentemente, pautados no discurso em que essa racionalidade se constitui. Sendo assim, a política curricular na educação é um mecanismo da governamentalidade neoliberal. Isso explica o fato de o currículo ser um objeto tensamente disputado por grupos com interesses diversos que querem decidir sobre os conhecimentos e verdades que serão selecionados e quais devem ser interditados. O currículo é território (SILVA, 2019) e os territórios são contestados.

Assim, poder e valores são componentes centrais no currículo, em torno dos quais estão os critérios para a seleção do que ensinar e de qual conhecimento é válido ou verdadeiro e de que tipo de sujeito e subjetividade é preferível para uma sociedade. Por isso, o controle do mecanismo curricular é tensamente disputado. A disputa designa o interesse pelo controle das estruturas políticas de gestão do Estado, pois esse controle designa, por sua vez, o modo como vai ser dirigida a conduta de indivíduos no interior de determinadas instituições (FOUCAULT, 2021). Nesse sentido, o interesse pelo controle do mecanismo curricular se deve ao fato de que, por meio dele, criam-se possibilidades de ação e autorreflexão entre os indivíduos, uma vez que os mecanismos utilizam linguagens que incidem nos modos como avaliamos a nós mesmos/as e os/as outros/as e na forma como interagimos com as pessoas. Isso nos leva a entender o porquê de a política curricular ser o mecanismo central pelo qual perpassam os outros mecanismos.

Com a reforma do Ensino Médio, o foco no currículo tornou-se ainda mais evidente a pensar na própria BNCC que, por sua vez, apresenta-se, simplesmente, como um documento de caráter normativo que organiza os direitos de aprendizagem (BRASIL, 2018). Pelo menos, desde 2012, já se suscitavam discussões relativas à construção de base nacional curricular. Desde aquele momento, já se formularam diversas críticas, por meio de publicações acadêmicas, em relação aos procedimentos de construção de um documento tão significativo para a educação (CURY, REIS, ZANARDI, 2018). Já era possível observar o interesse de certos grupos políticos e empresariais em dar prioridade a um projeto que instituísse um currículo nacional para a Educação Básica. Contudo, antes do golpe de 2016, segundo Aguiar e Dourado (2019), as ações para a elaboração do currículo nacional contaram com a participação, em seu processo de formulação, de comissões constituídas por profissionais e especialistas de universidades e do campo educacional, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), bem como de representantes da classe empresarial, organizados no Movimento Pela Base Nacional Comum. Dessa mobilização foram divulgadas para consulta pública duas versões da BNCC entre 2015 e 2016 para todas as etapas da Educação Básica. No pós-golpe, alguns grupos e associações de pesquisas vinculadas às universidades públicas, principalmente, as comissões constituídas por profissionais e especialistas de universidades e do campo educacional foram excluídas dos debates e as versões anteriores da BNCC foram completamente modificadas (AGUIAR, DOURADO, 2019), homologando, em 2017, uma versão que não contemplava a etapa do Ensino Médio. A versão final contendo essa etapa só foi aprovada em 2018 com base na n. Lei 13.415/17, diferenciando-a das versões anteriores.

A reforma do Ensino Médio está articulada a múltiplas trajetórias históricas e a uma construção muito eficaz, investida de fenômenos mais globais, com poderes mais gerais ou lucros macroeconômicos que se inserem num jogo de disputas pelo controle dos mecanismos de governo das condutas. Esse entendimento tem por referência a análise de um poder que funciona e se exerce em cadeia, em rede (FOUCAULT, 2014).

Nesse sentido, consideramos que a reforma do Ensino Médio consiste numa mudança nos mecanismos de governo. De tempos em tempos, eles mudam ou são reprogramados, traduzindo-se em reformas que surgem como promessas para resolver problemas em situações de crises, ou muitas vezes, propícias, favoráveis ou oportunistas. Sendo assim, a reforma consiste na modificação de um ou mais mecanismos. Ao mudar os mecanismos, mudam-se também as táticas. Aqui, tática refere-se aos instrumentos normativos, aos textos oficiais como leis, pareceres, resoluções, decretos, diretrizes etc. Por meio desses instrumentos, os mecanismos ganham credibilidade para funcionar. Estes consistem em instrumentos jurídicos constituídos de verbetes, conceitos, ditos, verdades, saberes ou expressões que são muitas vezes criadas, outras vezes reutilizadas, dando aparência de novo. Isso se deve porque esses instrumentos passam por aquilo que Foucault (2002) chamou de formas jurídicas.

Na perspectiva foucaultiana, as formas jurídicas constituem parte das tecnologias de poder, nomeadas de “[...] tecnologias jurídicas” (FOUCAULT, 2021, p. 69). Nessa linha de pensamento, Tiago Mota (2021) entende as formas jurídicas, em Foucault, como práticas desempenhadas não somente nas instituições judiciárias, mas também no interior de diversos outros tipos de instituições e até mesmo fora delas, podendo se efetuar isoladamente ou em conexão com outras práticas sociais ou de poder. Sendo assim, as formas jurídicas não representam somente as práticas penais, mas também os procedimentos, as regras quase empíricas, o conjunto das técnicas dos jogos de controle (MOTA, 2021).

Neste trabalho, categorizamos as normativas que regulamentam no Novo Ensino Médio, juridicamente, aprovadas e interligadas. O procedimento jurídico foi considerado uma tática de regulamentar aquilo que interessa ser divulgado como verdadeiro sobre educação. Isso não significa que o poder esteja localizado exclusivamente nas formas jurídicas, estas são somente mais um elemento do conjunto de tecnologias da governamentalidade. Sendo assim, a elaboração e a oficialização das normativas que dizem de um Novo Ensino Médio são táticas que regulamentam determinadas verdades e saberes sobre essa etapa de ensino.

Para que as verdades e os saberes ali selecionados e divulgados produzam certo nível de aceitabilidade entre os indivíduos, é importante que cada mecanismo tenha sua própria normativa de modo que todas elas estejam alinhadas. O alinhamento e a unidade entre elas se dão por meio da verossimilhança e da concomitância. No campo do direito, verossimilhança relaciona-se a um poder de convencimento elevado pelo fato de ter a lei vinculada à persuasão. Nesse sentido, entende-se que a coerência entre os ditos, as expressões, os conceitos, enfim, os saberes e as verdades, entre as normativas tenham um efeito persuasivo. Sendo assim, o nexo e a harmonia entre elas foram considerados como uma tática de governo das condutas, isto é, uma “[...] combinação calculada” (FOUCAULT, 2014, p. 165).

Em relação à concomitância, o alinhamento e a unidade entre as normativas podem ser verificados no fato de os documentos, respectivos a cada mecanismo, ou seja, a cada política educacional, terem vindo a lume quase que no mesmo contexto de tempo. Essa simultaneidade e urgência na elaboração das normativas são formas de aproveitar o momento oportuno e propício. Foi considerando o acionamento das formas jurídicas, a astúcia da verossimilhança e da concomitância entre as normativas que a noção de tática foi utilizada na pesquisa.

Assim se deu a publicação das normativas do Novo Ensino Médio. Esse conjunto de documentos aparece em um cenário de enormes dificuldades e incertezas, de crises econômicas e políticas. Por isso, não é possível desvincular a aprovação desse conjunto de normativas do contexto brasileiro em que grupos de direita e extrema direita retornam ao controle do governo do Estado, por meio de um “golpe jurídico-parlamentar-midiático” (NUNES, 2019, p. 9). Esses grupos, guiados pela racionalidade neoliberal, vêm comandando as propostas de políticas públicas educacionais atuais, elaborando e aprovando, com caráter urgente e emergencial, o conjunto de textos oficiais, impondo uma reforma travestida de Novo Ensino Médio.

Desse modo, houve a aprovação da primeira normativa que regulamentou a reforma do Ensino Médio: a Medida Provisória n. 746 de 2016. Apesar dos diversos questionamentos suscitados acerca da legitimidade e do imediatismo de se fazer uma reforma educacional por meio do instrumento de Medida Provisória, ela foi aprovada e depois convertida na Lei n. 13.415 de 2017.

DOS MECANISMOS E TÁTICAS DE GOVERNO NO NOVO ENSINO MÉDIO

A Lei n. 13.415/17 imprime uma série de mudanças na principal referência legal da educação brasileira, a LDB n. 9.394/1996. Por ser a lei que serve de base para diretrizes e outras regulamentações, qualquer mudança na LDB, culminará em alterações em outras normativas ou na criação de novas. Ao entender que o Novo Ensino Médio representa algumas mudanças nos mecanismos de controle e regulação propostos pelo governo do Estado em parceria com outras entidades e organizações, entende-se também que essas mudanças implicam alterar, adaptar, atualizar ou criar documentos regulatórios.

Tendo o mecanismo curricular como centro, este foi o foco dos investimentos no processo de reforma do Ensino Médio. Lembrando-se das disputas em torno desse mecanismo, é válido dizer que a seleção dos conhecimentos que irão compor a política curricular nacional depende da gestão da nacional da educação.

A mudança no mecanismo da gestão começa com as alterações ministeriais que acontecem na transição entre os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer. Essa troca de representantes foi crucial para a promulgação da Lei n. 13.415/17. Com essa nova legislação, o próximo passo foi atualizar as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) por meio da publicação da Resolução n. 3/2018. As DCNEM orientam as políticas públicas educacionais na elaboração quanto ao planejamento, implementação e avaliação das propostas curriculares das instituições ou redes de ensino públicas e privadas que ofertam o Ensino Médio (BRASIL; 2018a). As diretrizes curriculares nacionais são um conjunto de princípios e fundamentos para a educação, sendo analisadas e fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

Além das mudanças específicas produzidas no mecanismo curricular, têm ocorrido outras transformações discursivas que reconfiguram o saber escolar e as instituições escolares, estabelecendo, em grande medida, como a BNCC deve ser recebida, compreendida e implementada nas escolas. É o que pode ser dito, por exemplo, de ações como o novo FUNDEB, a proposta de uma Base Nacional Curricular para formação docente (BNCformação), a ampliação do PNLD e a proposta de um novo ENEM. Sendo assim, entendemos que, com o novo currículo, o procedimento tático foi e continua sendo a criação de normativas específicas a cada mecanismo de modo articulado e alinhado.

No que se refere ao mecanismo da gestão e do financiamento, Dourado, Marques e Silva (2021) observaram que esta tem capilaridade sobre múltiplas dimensões: valorização dos/as profissionais da educação; construção e manutenção de prédios escolares; provimento de materiais didáticos; programas suplementares - transporte escolar, merenda escolar, livro didático etc. O funcionamento do Novo Ensino Médio implica destinar recursos financeiros a todas essas dimensões, exigindo, portanto, a atualização do FUNDEB.

É certo que o FUNDEB, principal mecanismo de redistribuição de recursos vinculados à educação no país, tinha vigência estabelecida para o período 2007-2020. Em vista disso, não se pode afirmar que a aprovação da Emenda Constitucional (EC) n. 108/2020 e a Lei n. 14.113/2020 incidem, exclusivamente, sobre o Novo Ensino Médio. Além disso, é válido acrescentar que, em função do tempo de vigência, houve uma grande movimentação para que a Emenda Constitucional n. 108/2020 fosse aprovada. Esta EC estabelece critérios de distribuição da cota municipal do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), para disciplinar a disponibilização de dados contábeis pelos entes federados, tratar do planejamento na ordem social e dispor sobre o FUNDEB (BRASIL, 2020).

Ainda assim, o nosso entendimento é de que o funcionamento do novo ensino médio requer uma modificação no mecanismo do financiamento. E tal modificação está, inteiramente, relacionada à questão curricular. Isso se verifica no próprio § 1º do Art. 43 da Lei n. 14.113/2020 que dispõe sobre o novo FUNDEB, estabelecendo que, nos exercícios financeiros de 2021, 2022 e 2023, serão atribuídos recursos específicos para estudantes do ensino médio em tempo integral e ensino médio articulado à educação profissional. tendo em vista os termos em itálico, verifica-se que estes, além de outros, são conceitos que fundamentam e sustentam a proposta do novo ensino médio, conforme as DCNEM e a BNCC, aparecendo, portanto, na nova legislação do FUNDEB. Dito de outro modo, as mudanças no mecanismo da gestão e financiamento previstas na Lei n. 13.415/17 encontram-se diretamente relacionadas às alterações que foram impostas ao mecanismo curricular.

Ao focalizar na política de currículo, uma série de mudanças se desdobrará sobre o mecanismo da formação docente. Para alinhar o mecanismo da formação docente à política de currículo nacional, o CNE/CP emitiu dois Pareceres que fundamentam duas Resoluções: o primeiro Parecer foi de novembro de 2019 (CNE/CP n. 22/2019) fundamentando a Resolução CNE/CP n. 2, homologada em 20 de dezembro de 2019 que definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNCFormação). Esse documento substitui a Resolução CNE/CP n. 2, de 1º de julho de 2015, a partir da qual os cursos de formação inicial e continuada de professores/as já estavam sendo reestruturados. O segundo Parecer (CNE/CP n. 14/2020) trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e de uma Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNCFormação Continuada), fundamentando a Resolução CNE/CP n. 1/2020. Tais instrumentos têm como referência a implantação da BNCC, conforme excerto abaixo:

A definição das Diretrizes Curriculares Nacionais e da Base Nacional Comum, para a formação continuada de professores, se configura como eixo norteador para todas as políticas e programas educacionais voltados ao efetivo aprimoramento e fortalecimento da profissão docente no país. Pretende-se estabelecer o que se espera do exercício profissional do professor, ou seja, quais conhecimentos e saberes práticos o integram (BRASIL, 2020, p 1).

A BNCC como “[...] eixo norteador para todas as políticas e programas educacionais”, conforme Parecer CNE/CP n. 14/2020 também aparece no Decreto n. 9.099, de 18 de julho de 2017, que dispõe sobre o PNLD. Um dos objetivos desse documento é “[...] apoiar a implementação da Base Nacional Comum Curricular” (BRASIL, 2017). Informações no site do MEC definem o PNLD como um programa destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa às escolas públicas e instituições conveniadas com o poder público. O Decreto n. 9.099 ampliou o PNLD, que até então significava Programa Nacional do Livro Didático, mudando a nomenclatura para Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), estendendo a possibilidade de inclusão de outros materiais de apoio à prática educativa para além das obras didáticas e literárias: obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros (BRASIL, 2017a).

Em razão dessa ampliação focada na BNCC e na reforma do ensino médio como um todo, tornou-se público o Edital 03/2021. Esse edital é uma convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas, literárias e recursos digitais para PNLD 2021. Ele orienta às editoras interessadas em concorrer ao edital no processo de aquisição de obras e materiais e como adequar o conteúdo das obras com a pedagogia das competências que fundamentam a BNCC. Esse edital organiza as obras que serão adquiridas no PNLD 2021 para o ensino médio em cinco objetos, conforme abaixo:

2. Das Características das Obras

2.1 As obras que serão adquiridas no PNLD 2021 (ensino médio) estão divididas em cinco objetos, conforme especificado a seguir.

2.2 Obras Didáticas de Projetos Integradores e de Projeto de Vida destinadas aos estudantes e professores do ensino médio (Objeto 1)

2.3 Obras Didáticas por Áreas do Conhecimento e Obras Didáticas Específicas destinadas aos estudantes e professores do ensino médio (Objeto 2)

2.4 Obras de Formação Continuada destinadas aos professores e à equipe gestora das escolas públicas de ensino médio (Objeto 3)

2.5 Recursos Digitais (Objeto 4)

2.6 Obras Literárias (Objeto 5)

A explicação da classificação das obras e materiais utilizando o termo objeto não aparece no edital. A sigla BNCC aparece 49 vezes, estabelecendo que as obras devem estar de acordo com o currículo oficial. No anexo III do documento, constam os critérios para avaliação das obras, exigindo, em diversas passagens, que o conteúdo das obras deve estar em conformidade com a BNCC. Um dos objetos que chama mais atenção é o Objeto 3 que visa apoiar a atualização, a autonomia e o desenvolvimento profissional do/a professor/a, conforme objetivo V disposto no Art. 2 do Decreto n. 9.099/2017 do PNLD. Esse objeto é, particularmente, voltado para Formação Continuada de professores/as e à equipe gestora das escolas públicas de ensino médio. As obras destinadas aos/às professores/as são compostas por livro impresso e por videotutorial, bem como a obra de formação continuada, destinadas à equipe gestora das escolas.

A leitura e a análise dos documentos permitiram observar também que as mudanças dos mecanismos estiveram focalizadas numa política de currículo nacional que declara interesse em garantir os chamados “[...] direitos de aprendizagens” (BRASIL, 2018, p. 8). Foi com base nos resultados de aferimento da aprendizagem, analisados por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que a reforma do ensino médio foi justificada conforme os argumentos de que “[...] os resultados do ensino médio perante o IDEB são ruins, demonstrando uma redução na proficiência média em Português e Matemática desde 1994” (BRASIL, 2016a). Esses resultados constam no Parecer do CNE/CP n. 22/2019 sobre formação inicial de professores/as. Além dos baixos resultados do ensino médio nos exames nacionais e internacionais, a proposta é justificada pela importância da atuação do/a professor/a na determinação do desempenho dos/as estudantes e pela necessidade da implantação de uma BNC-formação.

Ou seja, a atualização dos mecanismos de controle é justificada pelos resultados tidos como negativos, cujo aferimento é feito com base em um desenho criado por organismos internacionais que, reconhecidamente, elenca os parâmetros a serem alcançados e o ideal de uma educação de qualidade. Sendo assim, para compreender a política de currículo e de avalição, é preciso considerar as articulações desses mecanismos com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A partir do Programa da OCDE para Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) e de pesquisas comparativas, os mecanismos educacionais se articulam com as diretrizes da OCDE.

No site da OCDE divulga-se que essa organização trabalha com os países da América Latina e Caribe para melhorar os sistemas de educação, treinamento e habilidades para ajudar a impulsionar o crescimento econômico, a inclusão social e maior igualdade na região. No Parecer CNE/CP n. 5/2022, que trata das Recomendações de Diretrizes Nacionais para a avaliação da Educação Básica: Novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ainda em processo de análise para eventual homologação, consta o seguinte título: “Lições Do PISA: inspiração para a primeira etapa do Enem (OCDE, 2018)” o que nos permite afirmar que as determinações da OCDE constam textualmente nas normativas. A opção de usar os resultados do PISA como referência é justificada no seguinte trecho do Parecer: “o Pisa focaliza a capacidade dos estudantes de utilizar seus conhecimentos e suas habilidades para enfrentar os desafios da vida real”. Sendo assim, o mesmo documento reafirma a necessidade de uma mudança nas metas e objetivos dos currículos.

De acordo com Cury, Reis; Zanardi (2018, p. 79),

Seguir as determinações da OCDE se constitui em referência para a qualidade da educação mundial, trazendo um fenômeno de “ranqueamento3 de países que acabou por estabelecer os padrões curriculares necessários para o alcance de um desempenho comparativamente satisfatório sob [uma] perspectiva globalizante e mensurável da educação. A OCDE, assim, passa a ocupar, para muitos países seguidores desse receituário, o lugar de “Ministro da Educação Mundial”.

Os/a autores/a afirmam ainda que da OCDE partem discursos privatistas sobre educação corroborando a perspectiva meritocrática e deixando de lado algumas pautas como a das desigualdades sociais. Nessa linha de pensamento, Silva e Sheibe (2017) mostram que o conjunto de argumentos utilizado pelos propositores e defensores da atual reforma do ensino médio compõe uma linha de alegações reiterada nos últimos 20 anos. Trata-se do mesmo período em que começam a emergir “[...] movimentos empresariais capitaneados por fundações privadas dedicadas ao desenvolvimento de uma educação de qualidade” (CURY, REIS, ZANARDI, 2018, p. 79). Interessado em lucrar com os investimentos em cursos de formação docente, em livros e materiais didáticos, o setor privado se mostra engajado na formação do/da professor/a e na luta por uma escola pública que garanta as aprendizagens essenciais aos/às estudantes. Para Foucault (2021, p. 109), o Estado não é um universal, não é em si mesmo uma fonte autônoma de poder. Assim, o setor privado também se vê responsável pelos mecanismos de governo como importantes meios para o governo dos indivíduos.

Nesse sentido, a racionalidade política que orienta as práticas governamentais do Estado vai definir se e como o setor privado pode participar do controle dos mecanismos. E essa definição nem sempre é feita pelos gestores que estão à frente do Estado num determinado período, haja vista que há uma lógica econômica internacional mais ampla e mais difusa. Sendo essa lógica o neoliberalismo, as políticas públicas estarão condicionadas a ela. Portanto, o neoliberalismo é uma maneira de repensar o papel do Estado e o modo de intervenção estatal. Ele tem como procedimento a adoção de práticas do mercado autorregulado como modelo para a formalização analítica e para a normalização do comportamento dos indivíduos. Como tais processos devem ser continuamente ensinados, governados, regulados, dirigidos, controlados, o neoliberalismo tem sua centralidade no indivíduo e desmerece o coletivo, incentivando a autogestão e o empreendedorismo.

DO RETORNO ÀS CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Diante do exposto, conclui-se que a reforma do ensino médio parece uma mudança nos mecanismos de governo para fazer com que as escolas, especificamente as práticas que nelas acontecem, sejam guiadas pela racionalidade neoliberal. Para isso, alguns mecanismos são centrais, como o curricular. Para que ele funcione conforme planejado, é fundamental o acionamento de táticas alinhando e unificando outros mecanismos. Nesse sentido, o Estado, por meio do MEC, seus órgãos e o CNE, articulou-se com organismos e organizações empresariais privadas, seguindo a lógica neoliberal na elaboração de um conjunto de normativas que regulamentam a reforma do ensino médio.

Aqueles/as que trabalham nas escolas de ensino médio são conduzidos/as a seguir o disposto nessas normativas. Essa condução não garante que os indivíduos sigam o que está na lei. Segundo Foucault (2014), não se trata de impor uma lei, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar diversos meios para que as leis sejam seguidas. Ele diz que “[...] a lei não é certamente o instrumento principal” (FOUCAULT, 2014), pois as normativas são somente alguns, entre diversos outros instrumentos disponibilizados pelo Estado, para que os indivíduos aceitem ser conduzidos. Além das normas jurídicas, há um conjunto de outras tecnologias acionadas para essa condução, ou seja, para que aquilo que está na lei produza uma certa aceitabilidade entre os indivíduos. Assim, entendemos o conjunto das políticas públicas educacionais como mecanismos e táticas da governamentalidade atual.

1A pesquisa que subsidia este artigo conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

2O termo eixo norteador encontra-se no texto do Parecer n° 14/2020 do Conselho Nacional de Educação que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e da Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada).

3Os destaques em aspas em itálico foram feitos pelos autores.

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Recebido: 1 de Setembro de 2022; Aceito: 1 de Outubro de 2022

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