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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.23 no.71 Rio de Janeiro Oct./Dec 2022  Epub Feb 28, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2022.64896 

Artigos de Demanda Contínua

RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: discussão a partir da obra Anne de Avonlea

TEACHER-STUDENT RELATIONSHIP: discussion from the work Anne de Avonlea

RELACIÓN PROFESOR-ALUMNO: discusión a partir de la obra Anne de Avonlea

Viviane Aparecida Bagio1 
http://orcid.org/0000-0003-0001-1546; lattes: 8224728506281139

1Universidade Estadual de Ponta Grossa


Resumo

O contexto escolar é permeado de relações humanas, especialmente a que ocorre entre professor e aluno ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Ela estabelece bases para a relação entre os próprios alunos e com o conhecimento, assim como contribui na formação social dos indivíduos. Tomando como referência a obra Anne de Avonlea, nos dispusemos a discutir a relação entre professor e aluno em uma perspectiva histórico-temporal. O estudo, de natureza teórico-analítica, estabelece relação com os diversos conceitos relativos à relação entre professor e aluno, bem como ao ensino, além de seus conceitos: autoridade e autoritarismo; disciplina, indisciplina e autodisciplina; diálogo; percepção, expectativas e estratégias e gestão da sala de aula. Concluímos que, assim como exposto na obra, várias situações podem ocorrer e facilitar/dificultar a relação entre professor e aluno, bem como instigar o desenvolvimento de possibilidades para superar possíveis percalços. Anne nos ensina que há espaço entre o instituído e a instituição, desde que o instituinte encontre as estratégias que o possibilitem trabalhar.

Palavras-chave: relação professor-aluno; processo de ensino e aprendizagem; Anne de Avonlea

Abstract

The school context is permeated by human relationships, especially between teacher and student throughout the teaching-learning process. It establishes the basis for the relationship between the students themselves and with knowledge, as well as contributing to the social formation of individuals. Taking Anne de Avonlea as a reference, we set out to discuss the relationship between teacher and student in a historical-temporal perspective. The study, of a theoretical-analytical nature, establishes a relationship with the various concepts related to the relationship between teacher and student, as well as to teaching, in addition to its concepts: authority and authoritarianism; discipline, indiscipline and self-discipline; dialogue; perception, expectations and strategies and classroom management. We conclude that, as exposed in the work, several situations can occur and facilitate/difficult the relationship between teacher and student, as well as instigate the development of possibilities to overcome possible mishaps. Anne teaches us that there is space between the instituted and the institution, as long as the instituting finds the strategies that allow it to work.

Keywords: teacher-student relationship; teaching and learning process; Anne de Avonlea

Resumen

El contexto escolar está permeado por las relaciones humanas, especialmente entre docente y alumno a lo largo del proceso de enseñanza-aprendizaje. Establece las bases para la relación entre los propios estudiantes y con el conocimiento, además de contribuir a la formación social de los individuos. Tomando como referencia a Anne de Avonlea, nos propusimos discutir la relación entre profesor y alumno en una perspectiva histórico-temporal. El estudio, de carácter teórico-analítico, establece relación con los diversos conceptos relacionados con la relación docente y alumno, así como con la docencia, además de sus conceptos: autoridad y autoritarismo; disciplina, indisciplina y autodisciplina; diálogo; percepción, expectativas y estrategias y manejo del aula. Concluimos que, como se expone en el trabajo, varias situaciones pueden ocurrir y facilitar/dificultar la relación entre profesor y alumno, así como instigar el desarrollo de posibilidades para superar posibles percances. Anne nos enseña que hay espacio entre lo instituido y la institución, en la medida en que el instituyente encuentra las estrategias que le permiten funcionar.

Palabras clave: relación profesor-alumno; proceso de enseñanza y aprendizaje; Anne de Avonlea

INTRODUÇÃO

As questões relacionadas ao modus operandi de uma sala de aula estão presentes desde os primórdios da constituição do processo de ensino-aprendizagem. Com a adoção de um ensino simultâneo, em que muitos alunos se reuniam para aprender com um professor, a relação entre os sujeitos foi estreitando laços ou ampliando distâncias, dependendo do espaço-tempo em que ela acontecia ou da postura dos partícipes.

Esse estudo de natureza teórica-analítica se dedica a discutir a relação entre professor e aluno tomando com fundamento a obra Anne de Avonlea (MONTGOMERY, 2020). A obra foi escolhida por retratar as distintas percepções de duas personagens sobre a relação entre elas e seus alunos ao serem confrontadas. O objetivo derivou da seguinte indagação: Como as diferentes ações e atitudes sobre a relação professor-aluno, presentes em Anne de Avonlea, refletem abordagens de ensino sistematizadas?

A metodologia engloba um estudo exploratório-bibliográfico em textos sobre o objeto de estudo (relação entre professor e aluno) e sua correlação aos excertos da obra que versam sobre a discussão empreendida. Os fragmentos foram escolhidos a partir da seleção do corpus teórico tomando como categoria, as atitudes da professora em situações descritas no contexto da história.

O estudo se estrutura em duas seções: uma, com aspectos bibliográficos versando sobre o tema em tela e, outra, com a discussão a partir da obra selecionada.

RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: UM ESPAÇO PARA (COM)VIVER

O processo de ensino, sistematizado a partir do vínculo estabelecido por professor, aluno e conhecimento é, em geral, desenvolvido num espaço-tempo denominado aula. Das suas diversas definições, a de Masetto (2003) pondera que ela é o espaço para se (com)viver, ou seja, estabelecer relações com os outros e com a realidade, integrando-se a ela. Ao integrar-se à realidade é possível, discutir, analisar, pesquisar, compreender e criar relacionando o mundo presente com conhecimento científico. Esse espaço de convivência com professores e colegas aprimora as capacidades humanas, afetivas, emocionais e psicológicas do ser.

É por meio da aula, que a etimologia do ensino (derivada de signum e significa marca) se faz presente. Lembramos do professor que tomou alguma atitude que nos chamou incrivelmente a atenção, de alguma situação com um colega ou de uma atividade que nos foi significativa. Pode ser aquele professor mal-humorado, o piadista, o colega que sempre chegava atrasado ou o com o caderno mais bonito, uma atividade de maquete ou ainda a produção de uma paródia. Essas marcas de (con)vivência são reflexo das relações desenvolvidas nesse espaço-tempo.

Ao discutir sobre o ensino na escola Camilloni et al. (2007, p.137, tradução nossa, grifo nosso) afirmam que “A função de professor e de aprendiz é anterior à escola, mas no ambiente escolar o desempenho dessas funções e a relação entre elas é regida por um quadro institucional que antecede aqueles que as exercem e lhes confere autonomia limitada”.

Qual seria o quadro institucional citado pelas autoras? Nadal (2011) destaca que a escola é uma organização complexa com um objetivo específico: a educação. Constituem-na duas dimensões: instituída e instituinte.

A dimensão instituída pode ser identificada com normas sociais e sistemas de valores convencionados em relação ao que se espera que a educação seja. A dimensão instituinte, por sua vez, caracteriza-se pelo movimento e vida dos sujeitos e grupos nas instituições, pois, movidos por suas necessidades, convicções e objetivos, eles constroem uma realidade específica e alteram parte do que está instituído. (NADAL, 2011, p. 144).

Para Nadal (2011), a dimensão instituída tende a ser mais forte na constituição dessa instituição já que ela delimita os fins educativos, bem como os meios econômicos para que ela se estabeleça. Enquanto ela firma a realidade concreta e estabelecida, a dimensão instituinte retrata o processo e o movimento oriundo da ação dos sujeitos e grupos que fazem a escola.

Esse movimento de ação-reação entre o posto e a subjetividade do sujeito se constitui nos diversos processos de tomadas de decisão, mas no processo de ensino, especialmente na relação pedagógica: como se dará a transposição do conteúdo, a mediação e o processo de estudo do estudante. Esses elementos nos aproximam das duas dimensões: qual abordagem de ensino o sistema preconiza? Qual será o papel do professor e do aluno no processo? Quais ações e atitudes esse profissional terá frente ao aluno, no processo de ensino-aprendizagem? E ao sistema: confronto ou validação?

Respostas para essas questões nos encaminham para a compreensão teórica sobre a educação e o ensino e as duas correntes predominantes, para Saviani (2012): não-críticas e críticas ou, para Libâneo (2013): liberais e progressistas, respectivamente. Esse primeiro grupo de abordagens liberais/não críticas engloba o tradicionalismo, o escolanovismo e o tecnicismo sendo que há um protagonismo do professor, do aluno ou dos recursos, nessa ordem e, as relações são estabelecidas a partir dessa perspectiva.

O viés tradicional, a título de exemplo, tem o docente como detentor e transmissor do conhecimento e, todas as “[...] iniciativas cabiam ao professor [...] que expunha as lições que os alunos seguiam atentamente e, aplicava os exercícios, que os alunos deveriam realizar disciplinarmente” (SAVIANI, 2012, p. 6). Assim, a relação entre eles era verticalizada, sendo o aluno executor passivo de instruções fornecidas, o qual deveria imitar modelos para acumular o conhecimento humano existente. Além disso, o docente se entendia como alguém acima do discente nesse modelo vertical, “[...]num tipo mais extremado, as relações sociais são quase que praticamente suprimidas e a classe, como consequência, permanece intelectual e afetivamente dependente do professor” (MIZUKAMI, 1986, p. 15). A noção disciplinarmente pontuada por Saviani (2012) se articula ao distanciamento apontado por Mizukami (1986), os quais retratam uma noção valorizada nessa abordagem: a disciplina em sala de aula. Essa é reduzida ao cumprimento integral das ordens e atividades e, caso isso não ocorra integralmente e de modo passivo e obediente, o aluno é chamado de indisciplinado.

As teorias críticas/progressistas procuram intercalar o conhecimento historicamente acumulado à realidade social dos sujeitos do ensino e suas experiências. O conhecimento não está acumulado e é transmitido e o professor age como mediador e orientador num processo que engloba sua construção coletiva incluindo discussões, questionamentos e compartilhamentos para que juntos ensinem e aprendam. Para Saviani (2012, p.68 ) “[...]parte-se da crítica à pedagogia tradicional (pedagogia bancária) caracterizada pela passividade, transmissão de conteúdos, memorização, verbalismo, etc. e advoga-se uma pedagogia ativa, centrada na iniciativa dos alunos, no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos”.

Para o estabelecimento da relação entre o professor e os alunos, cabe uma perspectiva horizontal, uma vez que “[...]o diálogo é desenvolvido, ao mesmo tempo em que são oportunizadas a cooperação, a união, a organização, a solução comum dos problemas” (MIZUKAMI, 1986, p. 99). Logo, professor e alunos possuem papéis ativos e interativos no processo, sendo que essa interação é o centro do ensino na construção de conhecimento.

Filosoficamente, relação significa o “[...]modo de ser ou de comportar-se dos objetos entre si” (ABBAGNANO, 2007, p. 841). No caso da que ocorre entre seres humanos ela envolve interação ou alguma dinâmica entre eles, seja com um indivíduo ou com o grupo todo. Schwartz (2014) chama a atenção de que ela advém tanto daquilo que é verbalizado como do que não é (um olhar um trejeito, tom de voz, etc.) uma vez que a neutralidade inexiste e numa relação entre pessoas tudo fala. Do comportamento dos sujeitos derivam alguns conceitos que se fazem presentes, de modo geral, quando se trata da relação entre professor e alunos: autoridade, autoritarismo, disciplina, indisciplina e gestão da sala de aula. Para discuti-los, utilizaremos os excertos da obra literária Anne de Avonlea, na próxima seção.

ANNE DE AVONLEA: POSIÇÕES SOBRE A RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO

A história, ambientada no final do século XIX, foi publicada no Brasil em 8 volumes (que retratam o período entre os 11 e os 53 anos da personagem principal) sendo que estes foram complementados por outros 5 livros que retomam e detalham alguns pontos do romance entre Anne e Gilbert. O primeiro livro da série, Anne de Green Gables foi publicado originalmente, em 1908 quando, na história, Anne tinha 11 anos e foi adotada por um casal de irmãos. Consideramona uma obra revolucionária porque, mesmo lançada no início do século XX, aborda questões sobre as mulheres, como o fato de uma menina órfã ser dedicada às leituras, o papel da mulher na sociedade como dona da casa e serviu ao homem, bem como às realidades da época, sendo que existiam poucas opções de atuação, restando a carreira de professora.

Com base no segundo volume (Anne de Avonlea) nos propusemos a destacar as situações da relação professor-aluno. Essa produção, lançada em 1909, no Canadá, retrata a fase entre os 16 e 18 anos. A personagem acabara de finalizar o curso para professora (em nível médio, equivalente ao atual curso de magistério ofertado em algumas escolas estaduais até os dias de hoje), sendo que ao final do volume ela se prepara para o ingresso na universidade. Dos 29 capítulos, cinco (Opiniões diferentes; Uma verdadeira professora; O senso do dever; Fatos e fantasias; Um dia de cão) versam diretamente a respeito da docência ou da relação entre a professora e os alunos. (MONTGOMERY, 2020).

O período histórico retratado na obra literária é fortemente marcado pela perspectiva tradicional de ensino, discutida anteriormente. Àquela época, havia uso da punição. No Brasil, a punição física foi oficialmente abolida em 1827 sendo substituída pelo castigo “[...] de cunho moral, baseando-se no método lancasteriano. Dessa forma, o sentimento de medo cederia espaço ao sentimento de vergonha” (ARAGÃO; FREITAS, 2012, p. 20). Entretanto, até pelo menos a década de 1970/80, relatos destacam que, de alguma maneira, essas punições ainda se faziam estratégias didáticas, como no exemplo: “Sobre a tabuada tinha cobrança. Quem não estudava ia de castigo e, quem não sabia a tabuada de cor era punido, ficava sem recreio, ficava depois da aula fazendo as tarefas para ver se melhorava” (GALHART; BAGIO, 2014, p. 90).

Em Anne de Avonlea, numa conversa entre Anne e (sua amiga e colega de classe) Jane, elas discutem quanto suas opiniões sobre o castigo. Jane anuncia: “O mais importante é manter a ordem, e um professor tem que ser um pouco severo para isso. Se meus alunos não fizerem o que eu digo, eu os castigarei. [...] Eu usarei a palmatória em meus alunos quando forem desobedientes” (MONTGOMERY, 2020, p. 36-37).

O castigo, na vertente tradicional, até a década de 1990, com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases (Lei no. 9394-96) e elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, era uma forma de manter o ordenamento da sala de aula e a constituição da autoridade docente com base no conceito de autoritarismo.

A noção de disciplina está, segundo Vasconcellos (2009), associada à manutenção da ordem do ambiente em geral, pautada na submissão, derivada historicamente do serviço escravo e dos exércitos, por exemplo. É a partir dessa premissa que se constitui uma noção de disciplina escolar associada à doxa do que seria um bom aluno: obediente, cumpridor dos deveres, silencioso e bom ouvinte. No caso da deturpação desse ambiente ou representação de aluno, o professor utiliza de sua capacidade de autoridade autoritária para punir. Para D’Antola (1989, p. 51), a punição não resolve o problema do aluno, mas para que ele

[...] não incomode mais. [...] O lema adotado em tais casos é [...]ou o aluno se adapta às condições da escola ou.... Nessas reticências vamos encontrar todo tipo de ameaças, desde repreensões, retirada do aluno da sala de aula, diminuição da nota de aproveitamento, realização de exercícios escolares como castigo, até mesmo a expulsão do aluno. (D’ANTOLA, 1989, p.51).

Percebamos que essa punição advém de uma autoridade autoritária. Regis de Morais (1989) citado por Haydt (2006, p. 63) destaca que o autoritarismo, ou seja, a decisão e ordenamento ser definida exclusivamente por uma pessoa, sem informar previamente os demais, apenas distribuindo e orientando as tarefas, esconde alguma incompetência. Qual poderia ser? Ousamos dizer que o desenvolvimento da capacidade humana e relacional, ou ainda, da ausência de estratégias para o ensino e a aprendizagem que envolvam os questionamentos e a adaptação de linguagem, todas resumindo-se à capacidade dialógica e incentivadora da profissão docente. A personagem Anne, na sequência do diálogo com Jane posiciona-se da seguinte maneira:

Eu jamais conseguiria bater em uma criança [...]. Não acredito de forma alguma nesse método. A senhorita Stacy nunca surrou nenhum de nós, e ela mantinha a ordem perfeitamente; e o senhor Phillips estava sempre fazendo isso e não tinha nenhum controle sobre a classe. Não, se eu não conseguir dar aulas sem palmatória, desistirei de tentar lecionar. Há formas melhores de lidar com a situação. Eu tentarei conquistar a afeição de meus pupilos, e eles vão querer fazer o que eu mandar. (MONTGOMERY, 2020, p.36).

La Taille (1996, p. 19-20) salienta que toda formação pede disciplina, pois ela engloba a moral, mas não se refere somente a isso:

Toda moral pede disciplina, mas toda disciplina não é moral. O que há de moral em permanecer em silêncio horas a fio, ou em fazer fila? Nada, evidentemente. Portanto, ao abordar a questão da disciplina pela dimensão da moralidade, não estou pensando que toda indisciplina seja condenável moralmente falando, nem que o aluno que segue as normas escolares de comportamento seja necessariamente um amante das [...]. Mais ainda, certos atos de indisciplina podem ser genuinamente morais: por exemplo, quando um aluno é humilhado, injustiçado e se revolta contra as autoridades que o vitimizam. Portanto, tenhamos cuidado em condenar a indisciplina sem ter examinado a razão de ser das normas impostas e dos comportamentos esperados [...].

À vista disso, o relato de Anne sobre a violência praticada pelo professor Phillips não indica necessariamente que os alunos eram indisciplinados, mas que reagiam ao clima da sala de aula: ambiente de medo e situações de violência enfrentadas. A análise proposta por La Taille (1996) evidencia que assim como a disciplina é um conceito denso, a indisciplina também envolve múltiplas variáveis e, não exclusivamente, a comportamental.

Nesse excerto ainda, além de questionar os caminhos do processo de ensino-aprendizagem da colega, Anne relata as memórias de dois professores que tiveram: Phillips um professor autoritário e que os punia e Stacy uma professora com a capacidade pedagógica de autoridade docente utilizada. Segundo D’Antola (1989, p. 53), para dirigir a classe: “[...] quanto mais confiança os alunos tiverem no professor, enquanto autoridade que dirige um curso produtivo, que pode manter a disciplina, que tem bom domínio de conhecimento, mais confiança os alunos terão nas intervenções do professor”.

Nessa perspectiva, enquanto no autoritarismo de Jane, a relação é constituída a partir do medo da punição, no viés da autoridade, o clima é de confiança e na noção de que se pode educar, corrigir ou orientar um estudante utilizando de outras estratégias, como as exemplificadas por Anne, quando questionada sobre se um menino respondesse com atrevimento em sala de aula: “Eu o manterei na sala após a aula e conversarei com bondade e firmeza com ele. Existe algo bom em cada pessoa, é só uma questão de saber encontrá-lo”. (MONTOGMERY, 2020, p.37). Novamente, se reforça a necessidade do diálogo na relação entre professor e aluno, uma vez que esse horizontaliza a relação entre ele para construir juntos o conhecimento ou propor uma reflexão sobre alguma noção, atitude, valor, etc. (HAYDT, 2006). Piletti (2018, p. 151) ratifica que “[...]um sorriso, um abraço, uma palavra amiga costumam ter efeitos positivos mais expressivos sobre a aprendizagem do que inúmeros conselhos e ordens”.

A perspectiva de Anne, enquanto instituinte já se mostrava diferente da prática instituída no sistema escolar àquela época (NADAL, 2011). Entretanto, quando pressionada ainda sobre a punição ela reafirma como o instituído pode ter maior força sobre o instituinte: “Nesse caso, precisarei puni-los eu suponho, apesar de saber que odiarei fazer isso! Mas posso mantê-las na sala de aula durante o recreio, ou colocá-las de pé em um canto da sala ou mandar que copiem frases”. (MONTGOMERY, 2020, p.37).

O castigo citado não se refere exatamente ao medo da violência física para o respeito como quando no mesmo capítulo (Opiniões diferentes) o senhor Harrison questiona se Anne já havia recolhido muitas varas finas para o primeiro dia de aula e ela afirma que não. Ele então pergunta se ela utilizaria um cinto, e a protagonista responde que jamais açoitaria os seus alunos: “Os métodos mudaram desde os seus dias na escola, senhor Harrison”. (MONTGOMERY, 2021, p.39). A professora, prestes a iniciar seu primeiro dia de aula, apresenta a essência da noção de método que, derivada do latim methodos¸ e significa caminho. Outros caminhos podem ser tomados sem a violência e o medo gerando um clima e ambiente para a aprendizagem que sejam motivadores. A disciplina é necessária, porém sem que um ou outro seja submisso (quando um é passivo) no processo e nem que um ou outro esteja à parte esperando (quando ele se isola) que outrem o desenvolva.

Mais adiante na obra, já transcorridos dias de aula, no capítulo O senso do dever, Anne relata as atitudes de um aluno:

Anthony Pye não gosta de mim e nem irá. E pior, ele não me respeita... não, de jeito nenhum. [...] Não é que ele seja tão mau... ele só é um pouco arteiro, mas não pior do que os outros. Ele raramente me desobedece, mas acata minhas ordens com um desdenhoso ar de tolerância, como se não valesse a pena discutir a questão... isso influencia os outros de forma negativa. Já tentei conquistá-lo de todas as maneiras [...] ele é um garotinho muito fofo, apesar de ser um Pye; mas eu poderia gostar dele, se me permitisse. (MONTOGMERY, 2020, p.62).

As características do aluno podem até indicar indisciplina, mas qual? Passos (1996, p. 118) argumenta que ela é “[...] um fogo que atravessa a calmaria e faz nascer novos movimentos [...] [e] adquirir um significado de ousadia, de criatividade, de inconformismo e de resistência”. Nesse caso, Anthony poderia estar resistindo à perspectiva inovadora da professora iniciante e, inconformado desafiá-la a puni-lo com a violência que ela não desejava praticar.

O relato de Anne sobre Anthony retrata também uma expectativa sobre a família, como se suas características fossem um problema oriundo da educação familiar, ainda que isso não importe para ela. Situações como essa são semelhantes àquelas que, na sala dos professores são realizados comentários sobre os alunos que afetam não somente a percepção dos outros como podem influenciar as relações que serão constituídas. Anne procura minimizar as impressões já formuladas sobre a família do garoto.

As primeiras impressões, do ponto de vista do aluno ou do professor, em geral retratam avaliações prévias/diagnósticas e que exprimem opiniões e preconceitos e que podem dificultar o desenvolvimento da relação pedagógica. Morales (2006, p. 68, grifo do autor) chama a atenção quanto ao cuidado que devemos ter: “Às vezes, a primeira impressão não fica apenas na primeira. Quase sempre, o que vemos depois está distorcido para confirmar essa primeira impressão [....] provocado por condutas nossas derivadas dessas primeiras impressões [...]”. Fato é, que a primeira impressão sempre existirá, o alerta está em ser ela um juízo negativo que se torne uma barreira no desenvolvimento cognitivo e humano.

As questões relacionadas à percepção e expectativa devem ser cuidadosamente refletidas, como indica Anne em seu raciocínio, sem se importar com o que os demais diziam da família do garoto. Em Pilleti (2018, p. 147) encontramos apoio para essa afirmação quando ele destaca que “[...] se um professor acha que um aluno é incapaz, nada sabe e nada entende, ele pode tender a tratá-lo com essa percepção [...] o julgamento do professor, que é uma pessoa que tem influência sobre ele, pode levá-lo a ter os comportamentos de incapaz dele esperados pelo docente”.

Por esse ângulo, uma expectativa negativa seja ela pautada por comportamentos ou percepções desfavoráveis tem peso igual a uma alta expectativa sobre uma situação, como por exemplo, o docente esperar que o aluno tire nota máxima/mínima em uma atividade avaliativa e o aluno o surpreende com o inverso. Nos casos em que se espera o mínimo e o aluno obtém o máximo, o professor pode questionar-se quanto à ética e validade do que foi apresentado. Quando se espera o máximo e o aluno não vai bem e obtém o mínimo, ele questiona o que houve, as razões para aquele resultado. Ambas tendem a gerar desmotivação, uma vez que ele pode desconhecer as causas pessoais e de momento e prejudicar o clima da aprendizagem e a relação com o(s) aluno(s) ao confrontá-lo(s). (HATTIE, 2017; PILETTI, 2018).

No livro, Anne tem vários problemas com o comportamento de Anthony, procurando não se desmotivar com o rumo da relação com ele. O capítulo Um dia de cão retrata Anne no dia em que ela estava com uma grande dor de dente, confirmando o que Nóvoa (1992) nos diz de que não se separa o eu pessoal do eu profissional, já que não estamos isentos de nossas emoções fora da escola. Ele apresenta as situações de sala de aula englobando outras situações com os alunos: barulho, tropeço, derrubar objetos, atrasos e a régua para punir um dos alunos. Ao final da tarde Anne estava entristecida pela situação e por ter errado nos seus métodos de ensino. Marilla, sua mãe adotiva afirma:

Você leva as coisas muito a sério, Anne. Todos nós cometemos erros... Mas as pessoas os esquecem. E todo mundo tem dias de cão. E, quanto ao Anthony Pye [ela bateu com a régua em sua mão], por que se importar se ele não gosta de você? Ele é único! (MONTOMERY, 2020, p.110).

Esse excerto revela três pontos distintos:

  • a naturalização de uma percepção sobre alguém e, por isso, seguir com toda a turma e não se importar com o aluno;

  • as atitudes impulsivas ou enraizadas no pessoal/emocional podem prejudicar a relação pedagógica;

  • a docência é uma construção com acertos e erros, por isso é um continuum de aprendizagem formativa.

O abandono de um (ou mais) discentes porque eles desdenham do professor, não só tensiona ainda mais a relação entre professor e aluno como demonstra a falta de ética profissional: o professor tem como função social ensinar que se finda quando ocorre a aprendizagem, a qual necessita da interação entre os sujeitos. (VEIGA, 2012). Sob esse prisma descrevemos o posicionamento de Morales (2006, p. 43, grifo do autor) de que “[...]com frequência haverá alunos não tão bons, que necessitam de mais ajuda, de motivação, de ganhar confiança em si mesmos... [...] Não há relação humana [...] em que não se dê influência mútua... Influímos, para bem ou para mal, querendo ou não”. Por conseguinte, os alunos que nos desafiam e têm (as mais diversas) dificuldades ou distanciamentos com o conteúdo que ensinamos, necessitam de maior atenção, já que a priori não exprimem motivação intrínseca para tal.

No livro, Anne se vê entristecida por sua ação, aquela que tanto julgou e tece uma autocrítica: “Nunca me perdoarei por ter castigado Anthony”. (MONTOGMERY, 2020, p.140). Além de reconhecer o erro e aprender com a situação, as atitudes e estratégias utilizadas são alicerces na construção dos saberes da experiência, frutos de nossas vivências e, sobretudo, daquilo que experimentamos e refletimos. Por isso, a compreensão de que a docência é uma profissão em que é necessária a formação inicial, mas que ela não é suficiente, evidencia que a formação constante contribui nos processos de reflexão e análise sobre o ensino e suas relações. (PIMENTA, 2012).

É válido ainda, articular esse raciocínio à compreensão freireana de que “[...] quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (FREIRE, 2016, p. 25). Isso significa que, o professor não nasce pronto, mas se forma ao longo do caminho e das experiências que desenvolve e vivencia.

Na sequência da história, a relação de Anne melhora com o aluno, pois ele acreditava que ela não seria capaz de puni-lo, como se ela tivesse cumprido um desafio e a relação entre eles melhora. Entretanto, na sala de aula nem sempre isso ocorre, por isso ressaltamos que não devemos nos precipitar em tomar decisões acaloradas especialmente em momentos de tensão. Ao estar em interação e se relacionar com outras pessoas pode ocasionar algum processo competitivo. Para Maturana (2001, p. 110), a competição “[...]é um fenômeno das relações humanas no qual a emoção central resulta na negação do outro. Para mim, para se ganhar uma competição é essencial que o outro perca”.

Se almejamos um processo de construção crítica do conhecimento, não cabe aqui um processo competitivo, mas sim cooperativo: para que juntos ensinem e aprendam, professor e aluno devem trabalhar como parceiros e não opositores.

Partindo dessa perspectiva, o professor, como mediador, precisa estar atento à gestão da sala de aula (ou direção de classe), a qual é crucial para que a aprendizagem ocorra. Gauthier et al. (1998, p. 240) a definem como o “[...]conjunto de regras e de disposições necessárias para criar e manter um ambiente ordenado favorável tanto ao ensino quanto à aprendizagem”. Vale ressaltar que essas condições não são dadas a priori, mas definidas, elaboradas e discutidas após um processo de avaliação diagnóstica além do conhecimento dos contextos que englobam os sujeitos envolvidos, pois “[...]a definição da ordem muda segundo as atividades propostas, o tempo disponível, a organização material e social, assim como em função do padrão de comunicação privilegiado”. (GAUTHIER et al., 1998, p. 240).

Além de traçar combinados, regras, atitudes, direitos e deveres que organizam os processos que serão desenvolvidos a gestão da sala de aula inclui as estratégias que serão adotadas. A partir dos escritos de Arends (2008), Piletti (1986) e Haydt (2006) podemos citar:

  • utilizar de organização da sala, metodologias e técnicas de ensino diversificadas para que todos possam aprender com diferentes possibilidades e estilos, favorecendo tanto processos teóricos, quanto reflexivos, de aplicação e ativos;

  • organizar os materiais previamente ou levá-los consigo no início da aula;

  • empregar reforços e incentivos afetivos e positivos , sendo que a reorientação ou correção deve ser feita individualmente evitando a exposição do aluno;

  • construir regras e normas coletivamente, possibilitando a discussão dessas e explicitando que tanto professor quanto alunos possuem direitos e deveres;

  • buscar respeitar e conhecer seu aluno, pois assim será possível compreender determinadas atitudes ou buscar a solução para problemas que interferem em sua aprendizagem e, consequentemente, na gestão da sala de aula;

  • cuidar com os tempos mortos ou vazios - espaço de tempo que o aluno está aguardando algo ou alguém -, pois podem gerar conversa paralela ou outras situações que irão interferir em todo processo de ensino-aprendizagem até o professor reorganizar o clima da sala de aula;

  • observar o movimento e conversas dos alunos a fim de regular processos. Ao perceber que se está na iminência de alguma atitude que possa desestabilizar o clima da sala (como uma bolinha de papel que está sendo cuidadosamente amassada) o movimento do professor pela sala, durante a aula, contribui para a prevenção desses comportamentos.

  • buscar a construção de um clima de aprendizagem que motive os alunos a questionarem, errarem e os incentive à curiosidade pelo conhecimento científico.

  • Quando defendemos a existência de alternância à tradicional organização em filas na sala de aula e a adoção de múltiplas estratégias para ensinar, rompemos com a ideia de simetria e possivelmente haverá o arrastar de carteiras, conversas entre os alunos e “[...]certa balbúrdia. Quanto maior sentido de liberdade houver, mais autêntico parecerá o trabalho”. (PILETTI, 1986, p. 245-246).

Retomamos a noção de disciplina em sala de aula: Haydt (2006, p. 67) compreende que ela é consequência da organização global da escola (instituído e instituinte) bem como da relação entre professor e aluno. Wallon (1979, p. 376) citado por Vasconcellos (1994, p. 37), destaca que ela é entendida de acordo com a tarefa e orientação dada pelo professor enquanto uma regra de vida, e ela “[...] significa a consciência da necessidade livremente aceita, na medida em que é reconhecida como necessária para que um organismo social qualquer atinja o fim proposto” (FRANCO, 1986, p. 40 apud VASCONCELLOS, 1994, p. 40). Em outras palavras, esse conceito complexo, será determinado pela abordagem teórica docente articulada às realidades exprimidas pelos estudantes. Ou seja, a disciplina para um professor de perspectiva tradicional é completamente diferente daquele da ativa. Do mesmo modo, ela também varia de acordo com a relação entre os atores, pois o aluno pode demonstrar se indisciplinado cognitivamente ao não aceitar as orientações e atividades propostas ou simplesmente estar no mundo da Lua mesmo permanecendo em silêncio em sua carteira.

Dessa reflexão sobre a temática empreendida, podemos articular a afirmação de Anne quando destaca que “[...] lecionar tem seus deleites, assim como seus pesares” (MONTGOMERY, 2020, p.97): a profissão docente possui recompensas imateriais no que se refere à formação de um cidadão e à possibilidade da construção de um mundo melhor. No entanto, por se tratar de uma relação humana e cultural dependente de esforços e personalidades distintas, em cada contexto apresentado, o professor (com suas compreensões pessoais e profissionais) estabelecerá uma determinada relação com um grupo de alunos e suas realidades. E, conjuntamente darão a tônica para todo o processo que engloba a relação entre eles e as estratégias para ensinar e aprender.

Concordamos com Vasconcellos (1994) quando afirma que a disciplina longe de apontar apenas problemas e limites também possibilita conhecer e sistematizar novas possibilidades para o desenvolvimento do processo de ensino aprendizagem como um todo. Aquino (1996) reitera que ela é o coração da relação professor-aluno, pois exprime como estão os vínculos cotidianos e os posicionamentos dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem.

Ao final do livro, a protagonista e alguns amigos estão prestes a ingressar na universidade, porém, há uma ponderação sobre o período como professora:

Seu coração ficou tão apertado depois a despedida dos alunos [...]. Por dois anos ela trabalhara com honestidade e dedicação, cometendo vários erros e aprendendo com eles. E recebera sua recompensa. Ela havia ensinado algumas coisas aos alunos, mas sentia que esses lhe haviam ensinado muito mais: lições de ternura, autocontrole, sabedoria inocente, o conhecimento dos corações infantis. Talvez não tenha tido êxito em inspirar alguma maravilhosa ambição em seus pupilos, mas ensinou-lhes, mais por sua doce personalidade do que por todos os seus cuidadosos preceitos, que era bom e necessário aos anos que estavam à frente que vivessem de maneira gentil e graciosa, agindo na verdade, cortesia e gentileza mantendo-se distantes de tudo o que cheirasse à falsidade, maldade e vulgaridade. Talvez estivessem de todo inconscientes de terem aprendido tais lições, mas se lembrariam delas e as colocariam em prática até muito tempo depois de terem esquecido a capital do Afeganistão e as datas da Guerra das Rosas.(MONTGOMERY, 2020, p.265, grifo nosso).

A reflexão sobre o período que Anne lecionou apresenta sua construção profissional: aprendeu, errou, e buscou melhorar, o que indica nossa incompletude e necessidade de formação constante. Ademais, ela não se coloca na posição de detentora do saber, mas se permitiu aprender com os alunos ao longo do processo, o que exprime que, mesmo no final do século XIX poderia ser possível romper com o dogma estandardizado de uma relação vertical entre professor e aluno, uma vez que, a senhorita Stacy já havia mostrado ser possível e, com resultados melhores que os do professor Phillips.

As lições destacadas que a personagem anuncia ter ensinado, não estão essencialmente ligadas ao conhecimento científico, contudo podem ser articuladas à noção de autodisciplina. Haydt (2006, p. 67) afirma que ela diz respeito ao fato de que “[...]o aluno só introjeta normas de comportamento se ele as pratica no seu dia a dia. Por isso, deve-se cultivar e dar condições para que o aluno possa praticar e vivenciar a autodisciplina na rotina diária da sala de aula”. Ou seja, a autodisciplina é aprendida quando vivenciada e, para tal, também necessitamos desenvolver e ensinar valores, normas, condutas e atitudes, denominados por Zabala (1998) de conteúdos atitudinais, uma vez que pela mera imposição eles serão seguidos apenas autoritariamente e não como formação para a cidadania.

Para Carvalho (1996), a aprendizagem de atitudes por meio de objetivos afetivos contribui para a formação humana e cidadã do indivíduo fazendo uso da autodisciplina a partir de situações reguladoras (normas, regras, combinados, etc.) e que também são constitutivas do processo porque a partir delas é possível criar e construir conhecimento. O autor exemplifica com base nas regras do futebol: elas não somente regulamentam como possibilitam a existência da ação de jogar.

Finalmente, a ponderação sobre o período docente, no trecho acima, revela que nem sempre os alunos podem se dar conta dos valores que aprenderam, mas que esse processo de autodisciplina ainda se faria presente mesmo depois de esquecerem muitos dos conceitos praticados nas listas de exercícios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de Carvalho (1996, p. 137, grifo nosso) findamos essa compreensão sobre a disciplina: ela “[...] não se identifica com uma boa ordem, mas com práticas que exigem diversas disposições e diferentes tipos de exigência”. Ou seja: não rechaçamos aqui a perspectiva tradicional ou crítica, nem desprezamos que deva existir uma disciplina no processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, a chave desse processo é a percepção da articulação entre o contexto e a necessidade que exige a relação conteúdo-forma-sujeitos.

O que destacamos não é se prender a um método ou ao outro, mas a reflexão das situações que podem ocorrer e facilitar/dificultar o a relação entre professor e aluno, bem como instigar ao desenvolvimento de possibilidades para superar possíveis percalços. Ratificamos, no entanto, a necessidade de uma formação humana pautada no diálogo, desenvolvimento coletivo e atitudinal.

Ao retomarmos o questionamento expresso na introdução, inferimos que a obra perpassa uma reflexão que articula um posicionamento pessoal, profissional e de formação das gerações. Por vezes, podemos possuir a autonomia para aproximar essas três perspectivas, em outras, a abordagem instituída é tão forte que autoritariamente cessa qualquer possibilidade. A partir dessa problemática e do objetivo de discutir a relação entre professor e aluno tomando com fundamento na obra analisada, destacamos que Anne nos ensina que há espaço entre o instituído e a instituição, desde que o instituinte encontre as estratégias que o possibilitem trabalhar.

Ainda que, como pondere Guirado (1996), a relação professor-aluno seja abalada pelos problemas que afetam o cotidiano escolar (precarização das escolas, baixos salários, falta de investimento em formação docente, problemas sociais e de segurança, falta de insumos e materiais, entre outros) os docentes buscam superar todas essas armadilhas para o aprisionamento e reprodução do conhecimento científico na busca da liberdade e emancipação que a sociedade atual necessita.

Observamos, de modo geral, que um problema de disciplina é uma desordem na relação entre professor e aluno a qual deve ser, especialmente neste século, espaço para ouvir e ser ouvido, ensinar e aprender, mas sobretudo, formar seres humanos. Limites e problemas nas relações que teremos a cada novo ano, a cada nova turma, sempre existirão. Cabe a nós, a formação constante para aprender com eles e criar possibilidades para superá-los ou estratégias para, apesar deles, desenvolver um processo de ensino-aprendizagem crítico.

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Recebido: 1 de Janeiro de 2022; Aceito: 1 de Junho de 2022

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