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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.67146 

Artigos de Demanda Contínua

PROJETO IMAGENS QUE ME ENCANTAM: autoria e protagonismo de crianças em tratamento oncológico

PROJECT IMAGES THAT I AM ENCHANTED BY: authorship and protagonism of children undergoing cancer treatment

PROYECTO IMÁGENES QUE ME ENCANTAN: la autoría y el protagonismo de niños en tratamiento oncológico

1Universidade Federal do Espírito Santo

2Universidade Federal do Espírito Santo


Resumo

O objetivo desse artigo é analisar o processo de produção de fotos e de vídeos no Projeto, que teve o propósito de oferecer uma experiência brincante de ser cineasta e fotógrafo como forma de valorização e reconhecimento das agências e das autorias das crianças. Utiliza como método investigativo a pesquisa-ação existencial, por exigir dos pesquisadores a atuação com uma escuta sensível e pelo fato do projeto lidar com a transformação de realidades dos envolvidos. A iniciativa envolveu 60 pessoas, entre crianças, familiares, membros de equipe e os colaboradores da instituição acolhedora. Para além da perspectiva de adesão ao tratamento oncológico, a possibilidade de brincarem de fazer fotos e vídeos valorizou a criatividade e as agências das crianças, restituiu parte da autonomia dos sujeitos que estavam sob tratamento oncológico, bem como propiciou momentos de afeto entre os familiares.

Palavras-chave: crianças; mídia-educação; tratamento oncológico

Abstract

The study analyzes the process of photo and video production carried out by children undergoing oncologic care admitted at an institution in Vitória/Espírito Santo (ES). As investigative method, it uses the existential research-action, by demanding from the researchers, their performance with sensitive listening and the fact that the project deals with changing the reality of the ones involved. The initiative involved 60 people, between children, family members, team members and the institution employees. Apart from the perspective to participate in the cancer treatment, the possibility of taking pictures and footages valued creativity and the children’s agencies restored part of the authorship of those who were undergoing oncologic treatment, as well as provided moments of affection among the families.

Keywords children; media-education; cancer treatment

Resumen

Analiza el proceso de producción de fotos y de vídeos por niños en tratamiento oncológico acogidos por una institución en Vitória/Espírito Santo (ES). Utiliza como método investigativo la búsqueda-acción existencial, y exige de los investigadores la actuación con una escucha sensible, una vez que el proyecto trata de la transformación de la realidad de los involucrados. La iniciativa ha envuelto 60 personas, entre niños, parientes, miembros del equipo y colaboradores de la institución acogedora. Más allá de la perspectiva de adhesión al tratamiento oncológico, la posibilidad de jugar de hacer fotos y vídeos ha valorado la creatividad y las agencias de los niños, así como ha restaurado parte de la autonomía de los sujetos que estaban bajo el tratamiento. Ha propiciado, también, momentos de afecto entre los parientes.

Palabras clave niños; medios-educación; tratamiento oncológico

INTRODUÇÃO

Os jogos e as brincadeiras têm-se constituído fator relevante para crianças que enfrentam o tratamento oncológico, por possibilitar que promovam suas inventividades, além de colaborar para desviar o foco da doença, mesmo que temporariamente. As adversidades impostas nesse processo costumam acarretar a perda do controle e da autonomia da vida das crianças. Diante desse cenário restritivo, o brincar é uma das dimensões da vida infantil mais afetada, tanto pelo caráter emocional e psicológico, como pelo estrutural, pois, em muitos casos, as crianças adaptam as brincadeiras de acordo com o contexto e a situação em que estão inseridas. Vários estudos, em diferentes perspectivas teóricas, apontam a importância das brincadeiras como uma possibilidade lúdica que traz benefícios às crianças em tratamento oncológico (TRINDADE, 2018, 2020, 2021; MOTTA, ENUMO, 2004; BARBOSA JUNIOR, GOMES, 2007; BORGES, NASCIMENTO, MOTTA et al., 2010).

De acordo com Tolocka et al. (2019), o brincar, para as crianças na vigência de terapia anticâncer, não deve ser perspectivado apenas pelo viés utilitarista e funcionalista, visando à adesão ao tratamento. Além do brincar se caracterizar como um direito inalienável e assegurado a todas as crianças, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), também se configura como uma possibilidade para que se expressem, produzam cultura e restituam suas subjetividades, muitas vezes afetadas pelas circunstâncias impostas pelas asperezas do tratamento oncológico. Nessa esteira que compreende o brincar como um direito das crianças, mesmo diante de um tratamento oncológico severo, apontamos os estudos de Mello et al. (2019, 2021), Trindade (2018, 2020) e Galvão (2019).

Embora, invariavelmente, o tratamento oncológico seja agressivo e provoque vulnerabilidade física e emocional, o Projeto Imagens que me encantam buscou restituir, pela via da brincadeira, a autonomia às crianças atendidas por uma instituição em Vitória - Espírito Santo (ES). A referida experiência envolveu 60 sujeitos, entre crianças atendidas, familiares que participaram da ação, colaboradores da instituição acolhedora e membros do Projeto Brincar é o melhor remédio.

As mediações pedagógicas propostas pela referida instituição se inserem dentro de um campo de educação não formal. Segundo Trindade et al. (2020, p. 53-54), a educação não formal se caracteriza pela

[...] formação dos sujeitos para a vida, contribuindo para as relações dialógicas entre os pares, trocas de saberes, possibilitando diferentes modos de pensar e agir, colaborando, desse modo, para a expressão dos diferentes usos da linguagem, além de promover valores e crenças.

O propósito do Projeto Imagens que me encantam (doravante denominado de Projeto) foi estimular o uso das tecnologias para que, ao assumirem a condição de tecnoatores, as crianças atendidas pela instituição pudessem brincar de produzir vídeos e fotos.

O Projeto foi idealizado pelo Núcleo de Aprendizagens das Infâncias e seus Fazeres (NAIF), grupo de pesquisa do Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) da Universidade Federal do Espírito Santo, e se constitui como um subprojeto do Projeto Brincar é o melhor remédio (PBMR)1, cuja atuação ocorre na instituição desde 2017 por meio da mediação de jogos e de brincadeiras com as crianças em tratamento oncológico.

Para as ações empreendidas no Projeto, não pensamos no ato de brincar de ser fotógrafos e cineastas como um recurso didático-pedagógico para ocupar os tempos livres de crianças acolhidas, tampouco investimos nas brincadeiras com o intuito de avaliar o material produzido para a mostra de forma crítica, a partir de orientações baseadas em questões estéticas. A proposta do Projeto foi resgatar o direito à brincadeira, por entendermos que o ato de brincar valoriza a agência das crianças, retirando-as, assim, de uma situação de anomia e invisibilidade social. Nessa iniciativa não enxergamos as crianças como pacientes, e, sim, como crianças.

Nesse sentido, o objetivo desse artigo é analisar o processo de produção de fotos e de vídeos no Projeto, que teve o propósito de oferecer uma experiência brincante de ser cineasta e fotógrafo como forma de valorização e reconhecimento das agências e das autorias das crianças. Também destacamos a participação ativa dos atores implicados no cotidiano, que, além de terem proposto alterações na ideia original do Projeto, exigiu que a equipe do PBMR atuasse com uma escuta sensível e com flexibilidade a fim de promover modificações que atendessem as solicitações dos participantes.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: PREPARANDO O CENÁRIO PARA OS TECNOATORES

O Projeto foi orientado pelos pressupostos da Sociologia da Infância (SARMENTO, 2005), que concebe as crianças como sujeitos de direitos, dotadas de pleno potencial inventivo e cujos mundos de vida devem ser consultados. Recorremos também aos estudos de Michel de Certeau (2014), para quem o cotidiano é vivo, móvel e dinâmico e se configura como um campo criativo de mudanças em relação ao que as pessoas recebem e como um dado cultural é transformado.

Utilizamos o conceito de tecnoator, desenvolvido por Massimo Di Felice (2011), com o intuito de compreender como os dispositivos eletrônicos, em especial, smartphones e câmeras digitais, favorecem a produção autoral e criativa de indivíduos, bem como colaboram para a sua posterior circulação em redes informacionais.

O Projeto também se alinhou aos pressupostos da mídia-educação, que segundo Fantin (2012), tem como propósito educar para, com e por meio das mídias, com o objetivo de formar cidadãos mais críticos para avaliar e para interagir significativamente como que está sendo transmitido pelos meios de comunicação, bem como propiciar situações que favoreçam uma atitude criadora diante das possibilidades de produção de conteúdo.

De uma maneira sintética, Fantin (2011) nos apresenta os quatro Cs que enredam uma perspectiva inserida na mídia-educação e que balizaram a elaboração do Projeto: a) criatividade (de quem cria e constrói conhecimentos); b) criticidade (capacidade de refletir e avaliar o que é ofertado pelas mídias); c) cultura (ampliação dos repertórios); d) cidadania (ao envolver inclusão e desenvolvimento das identidades).

Devido ao fato de o Projeto exigir sensibilidade e reflexão dos pesquisadores em relação às crianças em tratamento oncológico, como também pela imprevisibilidade diante do que encontrávamos no percurso da investigação, utilizamos a pesquisa-ação existencial como método de mediação pedagógica e de investigação científica. Segundo Barbier (2002, p. 73), o objeto final da pesquisa-ação existencial é a inequívoca mudança de atitude dos envolvidos por meio da transformação da realidade.

A pesquisa-ação existencial (P-AE) é, sem dúvida, levada a favorecer bastante o imaginário criador, a afetividade, a escuta das minorias em situação problemática, a complexidade humana admitida, o tempo da maturação e o instante da descoberta.

A pesquisa-ação existencial se justifica por promover mediações lúdicas que restituam aos envolvidos um grau maior de autonomia e controle sobre a própria vida, superando, assim, modelos que utilizam os jogos e as brincadeiras apenas como fator de adesão ao tratamento. Dessa forma, o rigor das investigações vai além de questões quantificáveis, pois o pesquisador "[...] está ao mesmo tempo presente com todo seu ser emocional, sensitivo, axiológico, na pesquisa-ação e presente com todo seu ser dubitativo, metódico, crítico, mediador enquanto pesquisador profissional” (BARBIER, 2002, p. 69).

A pesquisa-ação existencial pressupõe a transformação da realidade dos envolvidos, na qual o cotidiano dos sujeitos é contemplado no processo de construção do conhecimento. No caso do Projeto, levou em consideração uma dupla condição de exclusão: a primeira, pelo fato de lidarmos com crianças, que, segundo Soares, Sarmento & Tomás (2005), tendem a ser percebidas como seres quase invisíveis, cuja participação social costuma ser desconsiderada; em segundo, por se tratar de crianças enfermas.

Em relação à produção de materiais, o Projeto estabeleceu, em um primeiro momento, que as peças elaboradas poderiam ser enviadas em formato de fotos e/ou de vídeos de até 3 minutos. As categorias previamente estabelecidas foram as seguintes, a começar pelas de vídeo: a) vídeos divertidos; b) vídeos de talentos e de habilidade c) vídeos de paisagens/natureza; d) vídeos de animais e de brinquedos; e) vídeos de dramatização. Já as categorias para as fotos foram: a) gente bacana; b) paisagens que me encantam; c) animais e brinquedos.

Os dados que subsidiam esse estudo foram inventariados em um diário de campo. As falas e as enunciações das crianças e dos familiares, bem como as fotografias e os vídeos produzidos durante a nossa inserção no campo, foram registrados - esse material nos serviu como dados para esta pesquisa.

Por meio dos dados produzidos, discutiremos o processo de apresentação, de recepção, de produção e de exibição de vídeos e de fotos do Projeto, buscando contemplar e registrar as relações estabelecidas e as ações táticas empreendidas pelas crianças e pelos familiares envolvidos nessa pesquisa no cotidiano da instituição.

O Projeto foi apresentado em julho de 2019 aos responsáveis da instituição e teve início somente após sua aprovação. A primeira mediação ocorreu no dia 1 de agosto e foi concluído com a exibição das fotos e dos vídeos no dia 30 de setembro de 2019 em uma sala de cinema na cidade de Vitória/ES. As mediações propostas pelos membros do PBMR ocorreram durante 6 semanas, de segunda a sexta-feira, sendo que em um sábado também houve um encontro, devido a uma visita que foi feita a um ponto turístico localizado em Vila Velha, município vizinho ao que sedia a instituição. Ao todo, 60 pessoas participaram das ações do Projeto, produzindo filmes e fotos.

O Projeto e seguiu as seguintes etapas: a) Luz, câmera, ação: que diz respeito ao início de nossa inserção na instituição; b) Mão na massa: fase relativa à entrega dos vídeos e das fotos; c) Tá chegando a hora: etapa referente à preparação e edição do material e d) O grande dia: momento em que as fotos e os vídeos foram exibidos no cinema.

LUZ, CÂMERA, AÇÃO!

Iniciamos o processo de inserção na instituição, adotando a entrada reativa (CORSARO, 2009) para nos aproximarmos das crianças, dos familiares e dos profissionais da instituição. Nesse primeiro momento, embora estivéssemos na brinquedoteca, aguardávamos que as crianças iniciassem o processo de interação para brincadeiras e, conforme as reações deles, avançávamos ou recuávamos na tentativa de estabelecer relações baseadas no respeito.

Essa estratégia cautelosa se mostrou válida para conhecer as práticas desenvolvidas e serviu para conquistar a confiança dos profissionais da própria instituição. Também colaborou para percebermos que havia resistências à nossa presença entre os familiares das crianças atendidas.

Essa etapa de inserção no campo de pesquisa se estendeu por cinco dias. Embora a presença das na instituição seja incerta no cotidiano em virtude da imprevisibilidade do tratamento e dos seus impactos físico-emocionais, esse período serviu para nos aproximarmos do universo delas e tentarmos compreender os sentimentos dos familiares, que renunciam suas vidas particulares e profissionais para acompanhar os seus entes queridos.

Após esta etapa, partimos para a fase referente à divulgação e à sensibilização do Projeto. Por meio de cartazes, o Projeto foi apresentado aos pais e aos responsáveis, acompanhado de uma fala que ressaltava a importância da participação das crianças na produção de vídeos e de fotos.

Foi decidido, em diálogo com os profissionais da instituição, que o momento do lanche seria o apropriado para fazer essa abordagem. Acreditávamos que a comunicação naquele instante poderia instante de contato com a família poderia esclarecer dúvidas tanto das crianças como dos responsáveis.

Porém, após sermos anunciados por uma responsável da instituição, percebemos que, das 12 pessoas presentes, apenas uma família prestava atenção na fala dos integrantes do Projeto. As demais estavam mais concentradas nos cuidados com as crianças, de forma que não despertamos a atenção como imaginávamos.

Apesar da nossa frustração, decidimos manter a mesma estratégia para o dia posterior. O resultado foi semelhante, contudo, com um agravante. Dessa vez, as responsáveis pela cozinha reclamaram de nossa presença, alegando que estávamos atrapalhando o momento do lanche. Fomos surpreendidos com essa atitude, uma vez que todas as nossas ações eram previamente alinhadas com a instituição. Compreendemos, então, que naqueles 15 minutos de lanche as famílias estabelecem novos afetos entre filhos, irmãos, mães e pais. Realmente, precisávamos respeitar aquele momento e repensar nossas ações.

Certeau (2014) nos informa que os sujeitos não consomem passivamente os bens que lhes são ofertados. As pessoas, por meio de uma estética da recepção, apropriam-se e lançam mão, de maneira distinta, dos bens disponíveis. Esse fenômeno, nomeado por Certeau (2014) de consumo produtivo, foi visualizado na forma como os familiares e as crianças compreendem e praticam o momento do lanche. Mais do que um tempo para se alimentar, aquele instante permitia que se reconectassem, ficassem juntos e estabelecessem diálogos.

Orientados pela pesquisa-ação existencial (BARBIER, 2002), percebemos a importância de agirmos de forma sensível e com escuta ativa, uma vez que o pesquisador implica-se na estrutura social em que empreende a pesquisa.

Com base nessa observação, decidimos mudar a abordagem nos dias seguintes e estar ainda mais alertas em relação aos fatos não previstos que surgissem, pois, além de não estarmos fazendo uma comunicação que entusiasmasse os presentes, também estávamos incomodando os profissionais da instituição.

Para o dia seguinte, adotamos novamente a entrada reativa para nos comunicarmos com crianças, responsáveis e profissionais da instituição. Munidos do cartaz de divulgação e de um tablet contendo vídeos divertidos, decidimos nos acomodar nos bancos do pátio que antecede a entrada do refeitório. Para nossa surpresa, as crianças é que acabaram buscando aproximação conosco, querendo saber o porquê daquele tablet. Após essa deixa, mostrávamos vídeos divertidos e, em seguida, entregávamos os cartazes explicando que as crianças também poderiam produzir materiais como aqueles vistos.

Essa mudança na abordagem serviu para nos indicar que a proposta do Projeto gozava da simpatia das crianças, todavia, enfrentava resistência de algumas mães. Compreendemos essa reação das mães, uma vez que elas tinham receio de que os vídeos e as fotos do Projeto pudessem expor suas filhas e seus filhos. Comunicávamos, então, que o material produzido seria exibido apenas uma vez em uma sala de cinema e que não circularia na internet. Ademais, redigimos, em parceria com a instituição, dois documentos para assegurar que os materiais não fossem expostos além da finalidade do Projeto. Um desses documentos era um termo de consentimento de que o responsável autorizava a participação da criança no Projeto. O outro documento, que também devia ser assinado pelos responsáveis, era um termo de autorização do uso de imagem e som em nome da instituição tendo em vista a exibição dos vídeos e das fotos na sala de cinema. Apenas com a assinatura de ambos é que o material poderia ser exibido.

Com o êxito nessa abordagem, decidimos repetir o método de entrada reativa no momento do lanche, esperando que as crianças e os familiares nos procurassem. Percebemos que essa iniciativa foi provocando maior aderência entre as crianças.

De acordo com o nosso cronograma, na etapa seguinte, as crianças dariam início à produção dos vídeos e das fotos. Di Felice (2011) nomeia de tecnoator o sujeito que, com o conhecimento mínimo de um dispositivo tecnológico, produz seus conteúdos autorais. Algumas tecnologias trazem a possibilidade de que cada um produza seu conteúdo autoral. Por meio das tecnologias digitais, o sujeito, até então excluído no processo informativo, é “[...] chamado a recriar e a significar, através de interfaces, o próprio social e o seu mesmo território” (DI FELICE, 2011, p. 117).

De acordo com Di Felice (2011), as interações entre os sujeitos mediadas pelas tecnologias digitais, ao oportunizarem maiores possibilidades comunicativas e de acessos, permitiram novas formas de produção de conteúdo que assumem, desse modo, um caráter mais individualizado. Rompe-se, assim, com um modelo informativo que separava quem produzia de quem recebia as informações. Isso resulta em produções culturais que dialogam com os contextos sociais e culturais dos seus autores.

Logo que começaram as produções, pudemos perceber a constante colaboração e a atmosfera brincante entre as crianças. Tornou-se recorrente se juntarem para pensar em uma ideia criativa que pudesse ser fotografada ou filmada.

A capacidade inventiva das crianças da instituição estava sendo potencializada por meio da cultura de pares, que, para William Corsaro (2009, p. 32), caracteriza-se por ser “[...] um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares”.

Percebemos que as crianças criam e participam ativamente da sociedade por meio da apropriação das informações transmitidas pelos adultos e pelas próprias. O aspecto inovador da produção das crianças vai além da imitação dos mais velhos, uma vez que elas reelaboram e enriquecem de sentidos as ações dos adultos para atender a seus próprios desejos. “As crianças apreendem criativamente informações do mundo adulto para produzir suas culturas próprias e singulares” (CORSARO, 2009, p. 31). A essa ação, Corsaro (2009) nomeia de reprodução interpretativa.

No terceiro dia dedicado à produção dos vídeos e das fotos, Nara2 chegou à instituição. Ela era tímida e contida na fala; sua comunicação se dava mais no âmbito não verbal, como pelo aceno da cabeça, assentindo ou não com uma situação.

Um dos componentes do PBMR reparou que a criança olhava com interesse para a produção de um vídeo conduzido por duas crianças. Estas faziam vozes para os bonecos que eram filmados. Então um convite foi feito para que Nara se juntasse àquele grupo para acompanhar e, posteriormente, filmar. Ela se sentou e, aos poucos, foi se soltando e rindo das falas de uma das crianças: “Aí, o Super Homem voa e bate assim no Hulk, que cai com tudo no chão” (DIÁRIO DE CAMPO, 28/08/2019). A narrativa a seguir, extraída do Diário de Campo, demonstra essa situação:

Diante do interesse, pedimos para que Nara filmasse aquela história criada pelas crianças. Ao pegar a câmera, demonstrou que não conhecia aquele dispositivo. Um dos membros do PBMR a ensinou de forma sucinta sobre algumas funcionalidades do equipamento. Para nossa surpresa e alegria, Nara não só se familiarizou rapidamente com a câmera, como explorou outros recursos que não haviam sido informados a ela, como o uso do flash e o enquadramento de tela (DIÁRIO DE CAMPO, 28/8/2019).

Decidimos nos afastar um pouco para deixá-los conduzir a criação daqueles vídeos. Após cerca de 10 minutos, vimos Nara mais à vontade e falando para as outras crianças: “Corta! Você está aparecendo na câmera. Só pode aparecer o boneco e sua mão” (DIÁRIO DE CAMPO, 28/08/2019).

O uso daquela tecnologia não só favoreceu a produção autoral, como contribuiu para a inserção de Nara em um ambiente novo para ela. A Figura 1 é um registro da participação de Nara filmando a cena.

Fonte: os autores.

Figura 1 Cena filmada por Nara 

As crianças assumem papéis sociais imaginários, muitas vezes inspirados no comportamento adulto, porém distintos de uma realidade objetiva. Ao mencionar Corta!, Nara assumiu provisoriamente o papel de diretor de cinema, tendo como base informações que absorveu durante sua trajetória de vida.

O comportamento de Nara ao agir conforme um adulto pode ser refletido a partir do conceito de mimesis, segundo Benjamin (1994). Para o autor, a mimese não corresponde a uma mera imitação. Para além, configura-se no talento das crianças recriarem e ressignificarem suas realidades sociais, imprimindo a elas suas subjetividades e seus olhares. No ato de brincar, por exemplo, é momento autoral em que expõem seus traços pessoais, levando em consideração suas relações sociais e suas leituras de mundo.

Embasados em Certeau (1985), entendemos que a prática de Nara, ao se assumir autora/tecnoatora e atuar na condução das produções de vídeos, configura-se como uma dimensão ética e estética da prática do cotidiano. Por dimensão estética, compreende-se a prática que se notabiliza pela sua singularidade; sua originalidade revela uma perspectiva estilística e que é elaborada a partir dos materiais disponíveis em um tempo e espaço. Nesse aspecto, nota-se essa dimensão na ação de Nara ao assumir a condição de diretora daquelas cenas, dando a elas traços próprios de seu olhar, como o fato de enquadrar a imagem de forma que os braços da criança não aparecessem.

Já a dimensão ética se caracteriza por se relacionar a aspectos ligados à autoria, sobre a necessidade histórica de existir e de se revelar. Verificamos essa dimensão na ação de Nara de se juntar ao grupo que produzia filmes. Não obstante o acanhamento diante de um cenário novo, ela decidiu participar a fim de tentar se colocar como mais uma autora das cenas que estavam em curso.

Outra experiência marcante ocorreu a partir de uma relação entre pai e filha. Em conversas de alinhamento entre a equipe do PBMR e a instituição, havíamos previsto que algumas crianças poderiam não estar familiarizadas com smartphones e tablets; desse modo, poderiam receber ajuda dos responsáveis para produzir seus materiais. Contudo, o Sr. Alberto, pai de Isa, uma criança acolhida na instituição, nos fez um pedido inusitado: “Eu posso participar sozinho?” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2019).

Comunicamos a ele que, embora situação não havia sido prevista, a participação dos pais no Projeto seria bem-vinda, uma vez que poderia favorecer a restituição da autoria, do protagonismo e da autoestima também dos adultos. Amparados na pesquisa-ação existencial como uma metodologia que prevê a transformação da realidade e por também valorizar dimensão afetiva e criativa dos envolvidos (BARBIER, 2002), a nossa decisão também levou em consideração a importância de se acolher os familiares presentes no processo de acompanhamento de seus entes.

O Sr. Alberto, assim que soube que também poderia produzir vídeos e fotos se tornou uma espécie de embaixador do Projeto. Em todos os encontros que se sucederam, ele, além informar aos membros do PBMR sobre as suas intenções para a produção das fotos, também convidava os demais responsáveis a aderir ao Projeto.

Essa situação reforçou a importância de nos pautarmos pela utilização da pesquisa-açãoexistencial como método, pois, segundo Barbier (2002), estávamos diante de uma solicitação que exigia uma mudança de atitude dos pesquisadores a fim de valorizar as escutas das minorias, as dimensões afetivas e criativas da nossa pesquisa. Havia a necessidade de se fazer uma adequação que envolvesse também os desejos, os interesses e os valores dos familiares.

MÃO NA MASSA

Na proposta original do Projeto, havíamos reservado um período para o recebimento dos materiais. Contudo, tivemos de lidar com situações que aconteciam simultaneamente: a) as crianças e os familiares continuavam a produzir vídeos e fotos, mesmo que o período estabelecido pela proposta no cartaz já estivesse expirado; b) soubemos que havia alguns pais não queriam assinar o termo de consentimento, embora as crianças já tivessem produzido seus materiais.

Em relação ao primeiro tópico (a), tivemos que estender o prazo de recebimento até o início da edição dos materiais. Diante dessa mudança, a data de exibição no cinema foi ampliada em 14 dias, passando do dia 16 para o 30 de setembro.

O tópico (b) nos parecia o mais complexo. Como convencer os responsáveis a assinar os termos de consentimento para liberar o uso dos materiais produzidos? A resolução para essa situação se deu no chão da instituição. Com a proximidade da exibição do evento e com os convites para a mostra sendo distribuídos, o burburinho foi aumentando, as crianças se mostravam ansiosas para ver suas criações em uma grande tela. Entretanto, sempre que nos perguntavam se havíamos visto a criação delas, respondíamos que sim, porém, como os responsáveis não tinham assinado os termos, os materiais não poderiam ser apresentados na sala de cinema.

O que ocorreu a seguir nos surpreendeu, uma vez que o movimento de assinatura dos termos passou a ter como condutores as crianças tecnoatoras. Estes é que passaram a pedir para que os documentos fossem assinados, pois não queriam ficar de fora do evento.

Nara, aquela que no primeiro dia de instituição começou a produzir vídeos, não obstante sua notória timidez, pediu para que a mãe assinasse os termos. Essa mesma mãe havia sido indagada várias vezes, porém sempre se esquivava falando que assinaria na semana seguinte. Após o pedido da filha, assinou imediatamente os termos. Naquele momento, a criança, na condição de tecnoatora, requisitou que a sua responsável assinasse os termos, pois queria ver seus materiais na grande tela.

Para Certeau (2014, p. 46), as ações táticas são aquelas que fogem das operações do poder que tentam controlar um espaço social. São astúcias e golpes que os mais fracos buscam tirar espaço do mais forte.

Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos, mas sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião.

Relacionamos a iniciativa de Nara em pedir a assinatura da mãe aos pressupostos desenvolvidos por Certeau (2014), uma vez que a criança percebeu que sua responsável ignorava as solicitações da equipe do PBMR e da instituição. De maneira tática, Nara aguardou o momento em que a mãe fora indagada sobre a assinatura dos termos de assentimento e consentimento do uso das imagens para demonstrar e tornar pública a sua vontade de ver suas produções expostas no cinema.

TÁ CHEGANDO A HORA

Nesse momento, tínhamos aproximadamente 240 materiais, número bem acima dos 40 que estimávamos no período de idealização do Projeto. A seguir, fizemos uma triagem para selecionar quais seriam exibidos na sala de cinema e acabamos utilizando 85 peças.

Reunimo-nos, novamente, dessa vez, para separar os materiais nas categorias propostas. Nesse momento, percebemos que muitas produções enviadas não se enquadravam nas categorias imaginadas originalmente no Projeto.

Em virtude da diversidade temática apresentada nos vídeos e nas fotos, decidimos reelaborar as categorias a partir dos materiais produzidos. Assim, as novas categorias (Figura 2) passaram a ser: 1) minha terra, minhas raízes; 2) brincadeiras; 3) natureza; 4) passeio; 5) talentos e 6) família.

Fonte: os autores.

Figura 2 Mosaico com as categorias 

Muitos materiais nos chamaram a atenção e permitiram com que conhecêssemos as perspectivas de vida dos tecnoatores envolvidos no Projeto. O que apresentamos a seguir são as fotos produzidas pelo Sr. Alberto. Ele nos enviou um vídeo composto com várias fotos de suas plantações, das flores e dos gados que cria em Nova Venécia/ES. De acordo com ele, é naquele lugar que é realmente feliz (Figura 3).

Fonte: os autores.

Figura 3 Imagens das flores, dos gados e plantações do Sr. Alberto 

Sob a perspectiva da singularidade e do protagonismo, destacamos também, para este artigo, as fotos produzidas pela criança Nair. De aproximadamente sete anos, Nair foi uma das crianças que mais circularam e exploraram os ambientes da instituição. Era comum vê-la, de maneira concentrada e solitária, fazendo fotos no pátio que antecede o refeitório.

Ao visualizarmos o material produzido por Nair, verificamos que o objeto de suas fotos eram detalhes da jardinagem que passavam despercebidos para grande parte daqueles que utilizam usualmente o espaço da instituição (Figura 4).

Fonte: os autores.

Figura 4 Imagens produzidas por Nair 

As produções de Nair nos levam a discutir os conceitos de lugar e espaço. Para Certeau (2014, p. 184), no lugar está a ordem, o estabelecido e indica a estabilidade. “Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições”. Já o espaço é fruto dos movimentos que se desdobram nele. O espaço é o lugar praticado e o campo do vivido. Os espaços são especificados “[...] pelas ações de sujeitos históricos” (CERTEAU, 2014, p. 185).

Também consideramos válido relacionar as imagens produzidas por Nair com os conceitos de lugar e espaço propostos por Milton Santos (2007, p. 107). Para este autor, o lugar diz respeito a sua própria história, fruto das relações do passado e do presente. Nesse aspecto, cada sujeito ocupa um lugar específico a partir de sua posição social. “Enquanto um lugar vem ser a condição de sua pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhe são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam”.

Por sua vez, espaço, para Santos (2007), diz respeito ao resultado das relações sociais, construído historicamente e que pode ser modificado pelas movimentações da própria sociedade. O espaço se caracteriza a partir das relações entre a produção e o consumo em uma sociedade.

Com base em Certeau (2014) e Santos (2007), o olhar de Nair mostra novos significados daquele ambiente que compõe a instituição. Grande parte dos materiais produzidos pelas crianças envolviam brincadeiras e pessoas. No entanto, as fotos de Nair davam visibilidade ao quase invisível, levando-nos a refletir sobre o significado da instituição como lugar e, ao assumir a condição de tecnoatora, revelou-nos os sentidos daquele espaço praticado, vivido e cotidiano para ela.

Produções, como as de Nair e do Sr. Alberto, nos trouxeram uma grande diversidade temática, abarcando, assim, os 4 C´s da mídia-educação (FANTIN, 2011), em especial, no tocante à criatividade dos materiais, à cidadania, por permitir que se assumissem como produtores de conteúdo, à criticidade na elaboração de suas peças e pela ampliação de cultura entre os envolvidos no Projeto.

O GRANDE DIA

Havia chegado o grande dia da exibição das fotos e dos vídeos produzidos para o Projeto na sala do Cine Metrópolis, localizado na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, capital do estado. Tudo foi preparado para que os tecnoatores e seus familiares se sentissem em um festival de cinema: cartaz na entrada (Figura 5) apresentadores, paparazzis, tapete vermelho, carrinho de pipoca, vinhetas antecedendo a apresentação de cada categoria (Figura 6) e certificados para aqueles que produziram materiais. Para muitas famílias era a primeira vez que estavam em um cinema.

Fonte: os autores.

Figura 5 Cartaz na entrada do Cine Metrópolis 

Fonte: os autores.

Figura 6 Logo do Projeto e vinheta que anunciava a categoria Minha terra, minhas raízes. 

O evento teve duração de 45 minutos. Ao término, houve muitas palmas e, tão logo as luzes se acenderam, vimos sorrisos e pessoas emocionadas. Um fato marcante ocorreu assim que um dos apresentadores se despediu e agradeceu a presença de todos que estavam ali. Nair, a criança que fotografou detalhes de plantas na instituição, de maneira espontânea, saiu rapidamente de sua poltrona e foi abraçar o apresentador. Ela disse: “Muito obrigado. Muito obrigado” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/09/2019).

Em seguida, a mãe de Nair também foi abraçar o mestre de cerimônias. “Obrigado pelo que fizeram por minha filha” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/09/2019). Nair e sua mãe, com aquela atitude, revelaram, com aquele abraço apertado, a alegria de ter participado do evento e de ver a filha ser reconhecida como autora e como protagonista diante de uma audiência de cerca de 60 pessoas.

Vale retomar que as crianças que participaram do Projeto se notabilizam pela sua dupla condição de exclusão: pelo fato de serem crianças e por estarem enfermas. Nesse sentido, auscultando os pressupostos da pesquisa-ação existencial (BARBIER, 2002), compreendemos que o abraço no pesquisador simboliza o êxito do Projeto ao valorizar as autorias e as agências das crianças acolhidas pela instituição.

Outro fato marcante após a exibição ocorreu, novamente, com o mestre de cerimônias, quando ele estava a caminho do NAIF para o lanche com todos os envolvidos no Projeto. Sr. Leno, pai de uma das crianças atendidas pela ACACCI, questionou o apresentador do evento de forma séria e pouco amigável: “Por que vocês mostraram só um pouco do que mandamos?” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/09/2019).

Embora a abordagem do Sr. Leno tenha se dado de maneira incisiva, a equipe do PBMR havia se preparado para esse tipo de questionamento. O que nos surpreendeu é que foram exibidos seis materiais enviados por ele, sendo cinco fotos e um vídeo, ou seja, essa família foi uma das que teve mais produções exibidas na tela de cinema. Explicamos a ele que foram enviadas mais de duzentas peças e que foi necessário fazer uma triagem para que democraticamente mais famílias pudessem participar.

Tomando por base Barbier (2004), consideramos válido e digno de registro o questionamento feito pelo Sr. Leno, apesar de desagradável, pois também é papel do pesquisador refletir e compreender o valor do afeto, da empatia e da sensibilidade durante uma pesquisa-ação existencial.

DIÁLOGOS DO PROJETO COM A MÍDIA-EDUCAÇÃO

A seguir apresentamos um infográfico que tangibiliza e que sintetiza nossa proposta de se pensar no uso das imagens e das tecnologias com o objetivo de favorecer as autorias das crianças em uma perspectiva de inserção pedagógica como mídia-educação. Nesse gráfico (Figura 5), adotamos as propostas dos quatro Cs (FANTIN, 2011) como elementos norteadores para uma produção cultural responsável e cidadã em diálogo com o Projeto Imagens que me encantam.

Fonte: os autores.

Figura 5 Projeto Imagens que me encantam sob a ótica dos quatro Cs (FANTIN, 2011

Fundamentado em Fantin (2011, 2012), o Projeto se configurou em uma iniciativa que buscou educar para, com e por meio das tecnologias ao contemplar os quatro eixos orientadores de uma perspectiva de mídia-educação: a) criatividade das crianças e familiares envolvidos; b) cultura, ao propiciar a ampliação de repertório dos participantes e daqueles que assistiram as produções; c) criticidade, por permitir analisar e refletir acerca das produções; d) cidadania, por assegurar a participação livre de todos os participantes e, em especial, por restituir o direito ao brincar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de sua inserção como uma proposta de mídia-educação, o Projeto Imagens que me encantam foi elaborado com o intuito de favorecer o protagonismo e a autoria das crianças em tratamento oncológico que são atendidas por uma instituição em Vitória-ES. Por meio de tecnologias, como smartphones, tablets e câmeras digitais, elas foram convidadas a assumirem a condição de tecnoatoras, a fim de elaborar produções imagéticas.

O brincar de ser diretor de cinema ou de ser fotógrafo não somente favoreceu para tirar o foco do tratamento, como também restituiu o sentimento de agir como criança, além de exercitar a inventividade, a cultura de pares e potencializou momentos de cooperação e de afeto entre os familiares.

Nesse processo, pudemos vislumbrar quão dinâmico e pulsante é o movimento do cotidiano, uma vez que tivemos de nos deparar com muitas situações que nos impuseram reconstruir a proposta original do Projeto, como a inserção dos familiares nas produções, a dificuldade de categorizar os materiais audiovisuais produzidos e ter de lidar com a resistência de alguns pais para que assinassem os termos de consentimento.

O emprego da pesquisa-ação existencial como método de mediação pedagógica foi fundamental no processo ao potencializar as possibilidades inventivas e criativas dos tecnoatores no próprio chão da instituição. A pesquisa-ação existencial favoreceu a sensibilidade e a escuta ativa dos pesquisadores, bem como implicou na transformação de todos os envolvidos no Projeto, em especial, as crianças que viviam que estavam submetidas ao uma terapia anticâncer.

O investimento nas brincadeiras de filmar e de fotografar não se fundou somente em uma tentativa de buscar a aderência das crianças ao tratamento a que estavam submetidos. Para além dessa perspectiva, o brincar é um direito inalienável das crianças de utilizarem suas agências, por permitir que tenham experiências e vivências prazerosas, bem como por também favorecer que se revelem como produtores de culturas próprias. Isso foi percebido em produções audiovisuais de temáticas diversificadas, cujos conteúdos foram elaborados pelos próprios tecnoatores, valorizando, assim, a criatividade, a criticidade, a inserção com cidadãos e a ampliação de cultura dos envolvidos, conforme nos orienta os 4 C´s, da mídia-educação.

A criatividade dos sujeitos participantes atendidos pela instituição, ao rejeitar a suposta invisibilidade e vulnerabilidade, foi notada em produções que, por sua vez, traziam seus modos particulares de enxergar o mundo. Nesse sentido, o Projeto, ao possibilitar que crianças e familiares brincassem de serem tecnoatores, favoreceu que se estabelecesse relações de afeto, de autonomia e de inventividade entre as pessoas envolvidas, bem como trouxe a elas o reconhecimento das suas produções mediante a exibição dos materiais na sala do cinema.

1 Por meio de uma parceria entre a instituição e o grupo de pesquisa NAIF, foi desenvolvido o projeto de extensão Brincar é o melhor remédio (PBMR), cujo objetivo é oferecer momentos de ludicidade às crianças em tratamento oncológico por meio de práticas pedagógicas que valorizem os jogos e as brincadeiras. O PBMR conta, na sua equipe, com seis componentes, sendo dois professores e quatro estagiários, todos do CEFD/UFES. O Projeto Brincar é o melhor remédio é um projeto de extensão da UFES/PROEX, sob no número 584.

2 Neste artigo, os nomes utilizados são fictícios, a fim de se preservar a identidade dos envolvidos na ação.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Julho de 2022

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