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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.68515 

Artigos de Demanda Contínua

QUEM NOS OLHA PELOS ESPELHOS? A educação das relações étnico-raciais e o regime de visualidades

WHO LOOKS AT US IN THE MIRRORS? The education of ethnic-racial relations and the regime of visualities

¿QUIÉN NOS MIRA EM LOS ESPEJOS? La educación de las relaciones étnico-raciales y el régimen de las visualidades

José Valter Pereira Valter Filé1 
http://orcid.org/0000-0002-1765-5930; lattes: 730950011897290

Leidiane dos Santos Aguiar Macambira2 
http://orcid.org/0000-0001-9073-2448; lattes: 3966779203035543

Ana Luísa dos Santos Aguiar3 
http://orcid.org/0000-0001-5042-5398; lattes: 5310605765782810

1Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense/PPGEDU

2Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho / PPGEDU-UERJ-FFP / PPGEDU-UFF

3Colégio Ágora / PPGEDU-UFF


Resumo

Como nós negros e negras temos sido representados historicamente nas mídias, nos livros didáticos, nas propagandas e em outras narrativas que sustentam o racismo? Seriam tais representações os espelhos com os quais temos aprendido a ver o mundo e a nós mesmos? Estas e outras questões nos impulsionam a problematizar como os chamados regimes de visualidades presentes em nossa sociedade influem na educação do preconceito. Este texto, portanto, nasce na encruzilhada em que três pesquisas se encontram para refletir sobre o racismo, os projetos de embranquecimento e as consequentes dificuldades de pessoas negras identificarem-se como negras. Neste sentido, trabalhamos com autoras e autores como Gonzalo Curto, Stuart Hall para entendermos os conceitos de regime de visualidades e representação do povo negro. Buscamos também, a partir de leituras de Carlos Skliar e Grada Kilomba, compreender melhor como se dá a invenção do outro, os diferentes que deverão ser excluídos, bem como as produções de Patrícia Collins a fim de nos ajudar com seu conceito de imagens de controle para a manutenção da matriz de dominação. Com estes autores e autoras, dentre outros, articulamos narrativas fílmicas, dispositivos e recursos orais e imagéticos a fim de refletir sobre as imagens que permeiam o imaginário social e que atuam na produção, manutenção e atualização do racismo em nossa sociedade.

Palavras-chave: regimes de visualidade; imagens de controle; racismo

Abstract

How have black men and women been historically represented in the media, textbooks, advertisements, and other narratives that sustain racism? Are these representations the mirrors with which we have learned to see the world and ourselves? These and other questions drive us to problematize how the so-called regimes of visualities present in our society influence the education of prejudice. This text, therefore, is born at the crossroads where three research meet to reflect on racism, whitening projects, and the consequent difficulties for black people to identify themselves as black. In this sense, we collaborate with authors such as Gonzalo Curto and Stuart Hall to understand the concepts of visuality regime and representation of black people. We also sought, reading Carlos Skliar and Grada Kilomba, to better understand how the invention of the other takes place, the different ones who should be excluded, takes place. As well as Patricia Collins who helps us with her concept of images of control for the maintenance of the matrix of domination. With these authors, among others, we articulate filmic narratives, oral and imagetic devices and resources to reflect on the images that permeate the social imaginary and that act in the production, maintenance, and actualization of racism in our society.

Keywords: regimes of visuality; images of control; racism

Resumen

¿Cómo se ha representado históricamente a los hombres y mujeres negros en los medios de comunicación, en los libros de texto, en los anuncios y en otros relatos que sostienen el racismo? ¿Son estas representaciones los espejos con los que hemos aprendido a ver el mundo y a nosotros mismos? Estas y otras cuestiones nos llevan a problematizar cómo los llamados regímenes de visualidades presentes en nuestra sociedad influyen en la educación de los prejuicios. Este texto, por tanto, nace en la encrucijada en la que se encuentran tres investigaciones para reflexionar sobre el racismo, los proyectos de blanqueamiento y las consiguientes dificultades de los negros para identificarse como tales. En este sentido, trabajamos con autores como Gonzalo Curto, Stuart Hall para entender los conceptos de régimen de visualidades y representación de los negros. También buscamos, a partir de las lecturas de Carlos Skliar y Grada Kilomba, entender mejor cómo se produce la invención del otro, los diferentes que deberían ser excluidos. Así como las producciones de Patricia Collins para ayudarnos con su concepto de imágenes de control para el mantenimiento de la matriz de dominación. Con estos autores, entre otros, articulamos narrativas fílmicas, dispositivos y recursos orales e imaginarios para reflexionar sobre las imágenes que permean el imaginario social y que actúan en la producción, mantenimiento y actualización del racismo en nuestra sociedad.

Palabras clave regímenes de visualidad; imágenes de control; racismo

É preciso que haja um modelo a partir do qual o indivíduo possa se constituir...

(Neusa Santos Souza, 1983)

Considerando o que nos oferece Neuza Santos Sousa (1983) na epígrafe, poderíamos nos perguntar: que modelos têm sido oferecidos a nós, negros e negras, para nos constituirmos?

Este texto nasce na encruzilhada em que três pesquisas se encontram para problematizar o racismo, os projetos de embranquecimento e as consequentes dificuldades de pessoas negras identificarem-se como negras. Vamos tentar enfrentar algumas questões que nos trouxeram até aqui e que nos conectam. Questões referentes a uma cultura visual que assegura um tipo de representação de negros e negras na sociedade brasileira. Questões que podem ser enunciadas, por enquanto, da seguinte forma: como as imagens têm contribuído para a educação do preconceito? Como nós negros e negras temos sido representados historicamente nas mídias, nos livros didáticos, nas propagandas e em outras narrativas que sustentam o racismo? Seriam tais representações os espelhos com os quais temos aprendido a nos ver? De que forma ganhamos visibilidade e em que lugares nos tornamos invisíveis? Para que lugares temos sido ensinados/as a olhar e identificar como nossos? Mais do que tentar responder a estas e outras questões que se assomam quando estamos tratando das nossas imagens, dos lugares nos quais podemos nos movimentar, enfim, o nosso objetivo aqui é oferecer algumas possibilidades para pensarmos as imagens racializadas e a articulação da dimensão cultural e política agindo sobre imaginários e sobre as possibilidades de ocupação/interdição dos espaços públicos. Vamos tentar buscar elementos para compreendermos melhor essa cultura visual, os regimes de representação e os efeitos na vida cotidiana.

O racismo pode ser mais bem compreendido se buscarmos a nossa herança colonial que, se transforma e se atualiza de acordo com os contextos atuais, principalmente para produzir outras formas que burlem a luta dos movimentos sociais negros e as suas lutas por criminalização do racismo. Ou seja, o racismo persiste e no final das contas, para negros e negras, os efeitos seguem sendo terríveis. Segundo Mbembe (2018, p. 38), “A ocupação colonial era uma questão de apreensão, demarcação e afirmação do controle físico e geográfico - inscrever sobre o terreno um novo conjunto de relações sociais e espaciais”. A inscrição destas relações sociais e espaciais obviamente precisavam perdurar no tempo, produzindo uma estrutura que estaria assente nas relações de poder, principalmente no poder de vida e de morte sobre aqueles que, pelas suas condições, eram considerados propriedade e, portanto, despojados de qualquer condição que pudesse gerar constrangimento, pena ou sentimento de injustiça quanto aos seus destinos.

Esta ordem perversa precisou criar dispositivos para a sua manutenção, para garantir a sua continuidade. A naturalização da visibilidade da violência pública - os pelourinhos, os enforcamentos, os assassinatos de toda ordem - foi importante para produzir uma espécie de indiferença a esta inscrição nas relações entre senhores brancos proprietários de negros e negras. Dentre todos os dispositivos que foram empenhados na inscrição das relações coloniais, um deles, citado por Mbembe (2018, p. 39), nos interessa aqui. O autor fala sobre “[...] a produção de uma ampla reserva de imaginários culturais. [Elas] deram sentido à instituição de direitos diferentes, para diferentes categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço”. Interessanos pensar a importância da instituição de uma cultura visual como condição de possibilidade de esta contribuir para a produção e circulação do acervo desta reserva de imaginários culturais. Acervo que contou e conta com a curadoria de diversas e diferentes instituições que se articulam envolvendo o poder econômico, o poder político e as possibilidades de produção de subjetividades. E, neste sentido, produzir nestes imaginários uma determinada forma de ver os negros e negras - e destes verem a si próprios - e as suas condições (e interditos) de aparência/invisibilidade no espaço público e movimentação/controle nestes espaços.

Poderíamos chamar no mínimo de anomalia uma das peculiaridades do nosso racismo. Temos dificuldade em nos admitirmos como um povo racista, ou seja, ninguém no Brasil é racista. Mas ao mesmo tempo em que nos afirmamos como não racistas, sempre conhecemos um caso de racismo ou alguém racista. Portanto, sabemos da dificuldade para se falar da questão racial por aqui. Muitos acreditam ainda que todo o processo de hierarquização racial, que distinguia europeus dos demais grupos humanos, sustentados por uma ciência, nunca existiu, ou tal hierarquização era definida pelas supostas qualidades intrínsecas dos grupos apontados como os outros. Raça e etnia serviram para a criação de estigmas: os índios com sua preguiça e os negros com a sua incompletude humana seriam responsáveis por sua própria sorte ou azar e pelos seus destinos. Assim, muitos ainda negam as repercussões da construção social da raça. Para Schucman, Nunes e Costa (2017, p. 2):

A construção social da raça e do racismo são os principais organizadores das desigualdades materiais e simbólicas vividas pelo povo brasileiro. Perpassam os modos de subjetivação e socialização dos sujeitos negros, brancos, mestiços/pardos e indígenas, nos mais variados espaços públicos e privados, estruturando as condições e possibilidades de trabalho, de estudo, de vínculo (incluindo o casamento e as relações amistosas), de liberdade, de lugar onde morar e a forma de morrer.

E as imagens têm um papel importantíssimo nos processos de subjetivação e socialização da população, sugerindo modelos de representação para cada grupo da sociedade. Modelos que produzem uma certa naturalização das articulações de tais modelos com as marcações de lugar e de possibilidades de vida e de morte. Muitos deles são como uma espécie de recuperação ou atualização daquela reserva de imaginários culturais de que falava Mbembe (2018) acima.

Neste sentido, nossas pesquisas têm colocado acento nas imagens, ou melhor, numa determinada cultura visual e como esta tem atuado nos processos de construção da nossa autoimagem e a correlação da autoidentificação com a chamada reserva de imaginários culturais reformados, atualizados ou permanentes. Sabemos da complexidade que envolve pensar a cultura visual no singular e o papel das imagens na educação do preconceito, portanto, alertamos que este artigo deve ser compreendido como uma exploração e experimentação de algumas possibilidades para pensar nas relações entre imagem, imaginário e racismo.

Mesmo com a biologia certificando a não existência de diferenças genéticas significativas entre negros e não negros, as desigualdades entre a população negra e a branca não se desfizeram. Tampouco conseguimos eliminar as formas de representação estereotipadas e pejorativas atribuídas à população negra. Ainda paira no imaginário o/a negro/a como sujeito de segunda classe, para dizer o mínimo.

Hall (2016, p. 10) chama a nossa atenção para o uso das imagens como um dos códigos da linguagem que procura produzir determinados efeitos de sentido em favor de uma cultura hegemônica, fomentando uma certa concepção de verdade sobre o mundo, sobre os sujeitos e as suas posições sociais.

[...] as imagens que vemos constantemente a nossa volta nos ajudam a entender como funciona o mundo em que vivemos, como essas imagens apresentam realidades, valores, identidades, e o que podem acarretar, isto é, quem ganha e quem perde com elas, quem ascende, quem descende, quem é incluído e quem é excluído, como fica a situação particular dos negros nesse processo.

Ainda de acordo com Hall (2016), representação - nos estudos culturais, nas ciências humanas - é um processo longo e bem complexo que age na produção e no compartilhamento dos significados estabelecidos entre os membros de uma cultura, no objetivo de expressar, de maneira a ser compreendido, algo que está na dimensão do pensar e sentir, das emoções.

A representação sugere a importância do seu “caráter constitutivo” (HALL, 2016, p. 13). Um caráter que se encontra para além de construir identidade, mas sim “[...] a própria qualidade existencial, ou realidade (ontologia), da comunidade política sendo representada em seus valores, interesses, posicionamentos, prioridades, com seus membros (e não membros), suas regras e instituições”. O autor afirma que aqueles que não possuem voz política ou uma representação podem estar sendo dominados por uma opressão existencial.

O autor jamaicano compreende que na contemporaneidade “[...] a mídia produz amplos efeitos na sociedade, relacionados a um determinado tipo de poder que se exerce no processo de administração da visibilidade pública midiático-imagética” (HALL, 2016, p. 11). Para pensar sobre tal administração da visibilidade pública vamos nos valer da ideia de regimes de visualidade. Mas o que seriam regimes de visualidade?

Gonzalo Curto (2010, p. 21), de quem estamos tomando a ideia de regimes de visualidade, nos alerta que nunca existiu uma ordem política que não tenha se sustentado e se expressado através de um determinado regime de visão. Ou seja, os regimes políticos ocupam-se:

[...] tanto de uma certa administração da visibilidade e da invisibilidade, quanto da aplicação de procedimentos específicos de tornar visível [determinadas coisas] (e, portanto, de não tornar visível, de tornar invisível [outras]) e do seu controle. e da administração do olhar aceitável ou legítimo. (Trad. nossa).

Ocupam-se, em última instância, da administração do olhar. Ocupam-se, com o apoio das diferentes instituições que alimentam tais regimes de visualidade, da administração do que é aceitável ou legítimo para ser visto. Portanto os olhares são objetos de regulação. Pretende-se que o olhar possa ser organizado a partir de uma visualidade, de uma cultura visual que, pela circulação aprovada de imagens no espaço público (e o desaparecimento ou a produção de invisibilidade de outras), possa ser referência para a organização das condutas, para a organização dos tidos como diferentes e do que pode circular no espaço público. Para a organização de quem e como pode circular no espaço público, uma vez que as imagens sempre produzem representações aceitáveis e de referência, tendo determinados grupos como modelos e imagens que são modelos e referências do que deve ser aceitável, do que deve ser evitável, do que deve ser eliminável.

O nosso olhar passa por uma orientação e uma delimitação que acontece por intermédio de inúmeras instituições e meios atuantes na sociedade, que não fazem produções de imagens desconexas de sentidos. Ao contrário disso, essas instituições e meios reproduzem uma ordem mais favorável a um determinado modelo de mundo. Sérvio (2014, p. 201) confirma essa concepção, ao dizer da importância - em especial, para os que trabalham com cultura visual - da nossa relação com as imagens, pois estas impactam e constroem “[...] percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos, influenciando nossas ações. Portanto, as imagens estão intrinsecamente conectadas à política e à relação de poder”.

Concordamos com Hall (2016), Curto (2010) e com Marques e Campos (2017, p. 5), quando estes afirmam que as imagens estão articuladas sempre a um desejo de poder, sendo elas um dispositivo determinante para expressar uma concepção de mundo para as pessoas e sobre as mesmas.

A dimensão política está, desde logo, presente no facto de considerarmos que a imagem tem poder, é uma arma determinante para influenciar pessoas. Mais relevante se torna esta questão no caso particular dos circuitos de difusão de imagens em massa, com capacidade para alcançar um número elevado de pessoas.

Desta forma, as imagens são controladas por instituições (Estado, igreja e grandes empresas) através de dispositivos específicos. Igualmente, a perspectiva do termo matriz de dominação que Collins (2019, p. 368) trata como uma “[...] organização social geral dentro da qual as opressões interseccionais se originam, se desenvolvem e estão inseridas” e que nos Estados Unidos “[...] essa dominação se concretizou por meio da escola, moradia, emprego, políticas governamentais e outras instituições sociais que regulam os padrões de opressão interseccional”, o que também não difere do Brasil e de outros países ex-colônias.

Por esta razão, entendemos a importância de problematizar como se dá a administração das produções imagéticas e quais os mecanismos usados por essas instituições para a propagação das lógicas que orientam o olhar dos membros da sociedade, tendo em conta, mais especificamente para este ensaio, o olhar da população negra. Tal administração abrange a linguagem pelos signos imagéticos na intencionalidade de reproduzir estereótipos e reafirmar as desigualdades. Daí a importância em reconhecer as imagens, e suas vinculações com os valores dos seus respectivos campos de produção, como expressões de poder que transportam/sugerem sentidos.

Por esta lógica, as imagens racializadas, por vezes, são usadas para negar/ocultar que existe a lógica racial (LAMBORGHINI, GELER, 2016). O que nos faz pensar em como o processo de produção de uma autoimagem é continuamente influenciado pelos regimes de visualidades vigentes. Regimes que colocam em circulação, como imagens possíveis e desejáveis, as imagens de pessoas brancas e aquilo que em seus cotidianos revelam de sucesso, de beleza, de fetiche. São dispositivos importantes para o funcionamento do projeto de branqueamento.

Poderíamos exemplificar o que estamos tentando argumentar com exemplos inesgotáveis. Tanto exemplos cotidianos nossos, como exemplos que pululam na sociedade como um todo. Vejamos alguns que selecionamos.

Em 2020, por meio de uma reportagem do Jornal Metrópoles, tivemos acesso ao seguinte caso de racismo denunciado pelos pais de uma menina. Uma escola privada de São Paulo, produziu uma propaganda, antes da pandemia de COVID-19, com uma sequência de duas imagens: a primeira mostrava quatro meninas vestidas com o uniforme da escola. Dentre elas, uma era negra; Na segunda imagem, adicionou-se uma frase de Paulo Freire que dizia: “O importante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade e convivência”. Na imagem 2 vemos as três meninas brancas e a frase oculta parte do corpo da menina negra, deixando à mostra, apenas, parte inferior do uniforme com o nome da escola.

Fonte: Metrópoles, 2020.

Figura 1 Imagem 1 

Fonte: Metrópoles, 2020.

Figura 2 Imagem 2 

Cabe enfatizar que após esse ato discriminatório, a aluna apresentou danos psicológicos, como medo do ambiente escolar. Além disso, a foto foi publicada nas redes sociais da escola no dia 20 de novembro, que segundo o calendário nacional é o Dia da Consciência Negra, criado em 2003 como efeméride incluída no calendário escolar1, o que torna perceptível a contradição no discurso proferido pela escola, ao vermos essa produção publicitária.

Estes e inúmeros outros relatos nos possibilitam pensar sobre os significados e as interpretações que existem através do uso das imagens, no objetivo de comunicar certas lógicas ao mundo. As imagens têm o papel de educar nossa visão, de maneira que a sua produção nos faz naturalizar determinados modos de ver o mundo, as pessoas, os acontecimentos sócio-históricos.

Naturalizamos certas imagens apenas pela presença de determinados personagens, de determinada raça, de determinada classe social com determinado tipo físico em contextos, paisagens e cenas. Contextos, paisagens e cenas que já aprendemos serem adequados ou inadequados, dependendo da imagem que fazemos dos seus integrantes. E assim vamos nos familiarizando, naturalizando, eliminando outras possibilidades de ver o mundo (FILÉ, 2016, p. 216).

Pensar na produção das imagens contribui no apontamento das mudanças que ainda são necessárias para o alcance de uma sociedade mais democrática. As implicações sócio-históricas do Brasil que se encontram nessa discussão são: o racismo estrutural e/ou institucional (ALMEIDA, 2018), as quais pertencem aos embates extremamente polêmicos da “[...] falácia da democracia racial” (SOUZA, 1983, p. 25) no país.

As imagens que compõem um certo regime de visualidade, sustentam uma determinada cultura visual inflacionando o cotidiano. Como propusemos acima, os regimes de visualidade são produções definidas a partir de um consenso político entre muitas instituições que se articulam em torno da defesa de determinados interesses. Administram o que deve ser visto, o que não deve ganhar visibilidade, como devemos olhar e a forma como determinadas imagens podem ou não pertencer a determinados espaços. Atuam na manutenção de um poder que não se localiza ou circunscreve-se a um poder central ou centralizador, mas espraia-se por todo o cotidiano com desdobramentos múltiplos para a vida social. Apostamos aqui que um determinado regime de visualidade brasileiro é parte importante da manutenção e atualização do racismo. Tal regime faz parte da sustentação do racismo estrutural/institucional em nosso país.

O racismo estrutural, concebido por meio de uma construção ideológica, determina um grupo com privilégios e outro grupo sem privilégios (ALMEIDA, 2018) - este último, sob condições de subalternidade. Essa dimensão influencia diretamente nas relações políticas, econômicas, jurídicas e sociais dos sujeitos. As práticas racistas institucionais são reflexos derivados dessa construção ideológica, a qual percorre impositivamente todas as instâncias sociais.

Sendo assim, colocamos em debate as causas da naturalização do racismo no Brasil a partir da produção das imagens visuais e não visuais. Essas produções imagéticas ainda se encontram atuantes tanto no imaginário social quanto nos materiais utilizados pelos mais variados espaços escolares do cotidiano brasileiro, permitindo a manutenção da lógica racial. Apesar de termos a Lei n. 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor; n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, que dispõem sobre a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira e indígena, bem como as inúmeras ações realizadas pelos movimentos negros, percebemos que os efeitos do racismo continuam se propagando de formas cada vez mais sofisticadas. Percebemos, ainda, que os recursos comunicacionais são um dos meios que favorecem isto, além das formas mais escancaradas de declaração do racismo nas mídias, ocorridas cotidianamente em programas televisivos de reality show como o BBB2, A Fazenda3, bem como o caso do apresentador do Studio Flow Podcast, dentre outros.

Há ainda os racismos que acontecem sorrateiramente na calada da noite há muitas décadas. Eles se espalham pelos materiais utilizados em espaços escolares, sendo os livros didáticos e paradidáticos seus mais fortes aliados. Esses livros produzem e reproduzem conteúdos de contextos históricos ensinando, através de imagens visuais e não visuais (ou seja, aquilo que dos textos nos sugerem imaginar, recuperando imagens que já temos como referência e com as quais podemos compreendê-los, exemplificá-los, dar-lhes materialidade), e oferecendo ideias racistas.

A população negra brasileira historicamente viveu/vive ainda uma destituição de representatividade positiva de suas subjetividades e modos de vida na sociedade. Cabe ressaltar aqui que o livro didático (e paradidático) está no foco de inúmeras pesquisas no campo da educação que buscam compreender as implicações dos sentidos construídos referentes às imagens de negros e negras, de acordo com pesquisas realizadas (2020) no repositório de teses e dissertações da Capes, no portal Scielo e Google Acadêmico. A justificativa principal dessas pesquisas está em torno da naturalização/banalização das problemáticas raciais que os livros oferecem às professoras e professores, estudantes e demais agentes educacionais e seus usos. Mesmo que esta situação esteja mudando, ainda estamos longe de revertermos um determinado modo de representação da população negra, de sua história e de suas expressões culturais, sociais e políticas.

Como nos diz Silvio Almeida (2018, p. 41-42) sobre a lógica racial que tem permeado o imaginário nas diferentes instâncias sociais:

O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações. E a escola reforça todas essas percepções ao apresentar um mundo em que negros e negras não têm muitas contribuições importantes para a história, literatura, ciência e afins, resumindo-se a comemorar a própria libertação graças à bondade de brancos conscientes.

Confirmamos o que escreve Almeida (2018) ao encontrarmos a repercussão do caso de Luiz Carlos Justino, um jovem negro de 23 anos, preso em Niterói, cidade localizada na região metropolitana do Rio de Janeiro, acusado de participar de um assalto à mão armada ocorrido em 2017. Os seus familiares negam o envolvimento do jovem com o crime. Luiz Carlos foi solto por decisão do plantão judiciário. O mesmo, acusado de assalto, foi reconhecido pela vítima por meio de uma foto que estava na delegacia, mas a família afirma que, na hora do crime, ele tocava em um comércio local. A decisão de soltura foi do juiz André Luiz Nicolitt, que criticou o uso do reconhecimento fotográfico.

O juiz responsável pelo caso diz: “Precisamente sobre o caso, causa perplexidade como a foto de alguém primário, de bons antecedentes, sem qualquer passagem policial vai integrar álbuns de fotografias em sede policial como suspeito”. Trazemos novamente ao destaque o pronunciamento do juiz, mas agora em formato de pergunta: como a foto de alguém primário, de bons antecedentes, sem qualquer passagem policial vai integrar álbuns de fotografias em sede policial como suspeito? Que elementos formativos foram postos em jogo para que determinado sistema judicial naturalize que já existe um corpo submetido ao lugar de suspeição no imaginário social brasileiro?

E o que dizer sobre o filme Cidade de Deus (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, por exemplo, que mostra a maior parte do elenco constituído por atrizes e atores negros (pardos e pretos, segundo o IBGE), identificados como os infratores da lei, desde os adolescentes e jovens até os adultos? Em um documentário sobre este mesmo filme, chamado Cidade de Deus - 10 Anos Depois (2013), entrevistando o elenco, os diretores Cavi Borges e Luciano Vidigal mostram as transformações vividas por eles ao longo da década. Relatam a dificuldade por parte das atrizes e atores negros de continuar a carreira artística após o grande sucesso do filme, que recebeu quatro indicações ao Oscar. Quando muito, os atores e as atrizes eram chamados apenas para representar personagens em posição de subalternidade e/ou pejorativa. Ou seja, aqueles atores e atrizes que para alguns apenas retrataram suas vidas e seus destinos, ao pretenderem dar continuidade às suas carreiras só conseguiam espaço para representar a confirmação da imagem do negro, para continuar alimentando o tal regime de visualidade que vai sustentando o racismo.

Fonte: Divulgação Rede Globo, 20174.

Figura 3 Elenco do filme 

Continuando neste mesmo movimento, invocamos, também, as provocações levantadas por Filé (2016, p. 216):

Talvez devêssemos nos perguntar o que já naturalizamos e quais imagens e pontos de vista são reforçados nestas naturalizações? Podemos pensar na propaganda, em muitos livros didáticos, nas imagens das mídias hegemônicas, nas imagens que enfeitam nossas casas, o que essas imagens nos ajudam a naturalizar?

Na tentativa de nos demorarmos um pouco mais com as perguntas levantadas acima, e principalmente com o questionamento sobre como as imagens que estão à nossa volta, nas mídias, ajudam a naturalizar determinados conceitos em relação a outras pessoas, trazemos duas narrativas para este diálogo. Tratam-se de histórias singulares, mas que dão a ver, ouvir e falar sobre as complexidades existentes nas relações raciais à brasileira, as quais fazem do racismo um crime perfeito, como disse Kabengele Munanga.

A primeira narrativa foi ouvida e contada várias vezes em nossos encontros de estudos. Seguimos persistindo nas inquietações que ela nos propõe.

O personagem principal é o diretor de uma escola pública de uma cidade do Vale do Paraíba, região que fica no caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro. Negro, viveu várias vezes a mesma situação: alguém chega na escola para falar com o diretor e, sem conhecê-lo, dirige-se até o local onde informam que ele estaria. Sempre acontece de ele estar com o secretário da escola, que é branco. Invariavelmente as pessoas se dirigem, sem titubear, ao secretário, certas de estarem falando com o diretor da escola. Muitos, nem ao menos percebem a sua presença. Depois, tentam esconder o desapontamento quando o secretário desfaz o equívoco (FILÉ, 2016, p. 211).

Esta história pode fazer parte do dia a dia de muitas pessoas negras que ocupam cargos de liderança… sermos confundidas/os com as secretárias, balconistas, como empregadas domésticas no mercado, como prostitutas ao andarmos nas ruas, como seguranças de shopping se estamos com roupas sociais etc. Sem desmerecer tais funções, o que desejamos problematizar é o enclausuramento a que estamos submetidas/os em determinados papéis sociais. Como nossa visão empreende tamanhas certezas? Como as adquirimos? Como aprendemos a ver desse modo? Como, pelo olhar, elegemos determinados personagens como possíveis para determinados espaços tempos e como se cria a impossibilidade e a invisibilidade de outros?

A segunda narrativa foi oferecida por uma das integrantes do nosso grupo de pesquisa:

Ao final da rua morava uma família de pessoas negras. Em sua casa havia um terreiro e todas as semanas tocavam-se tambores. As crianças da vizinhança ouviam o som do atabaque que vinha daquele quintal ao mesmo tempo que ouviam as histórias de terror que seus familiares - cristãos, assumidamente nãonegros - lhes contavam. As histórias envolviam o céu e o inferno, deus e o diabo. Diziam que as pessoas daquele quintal estavam invocando o inferno. Exu transfigurado em belzebu.

Nessa mesma casa, morava uma menina que tinha a mesma idade das meninas daquela rua. Mas ela não brincava com as demais. Nunca foi convidada para as festinhas de aniversário, ou para os jogos de queimada ou quaisquer outras brincadeiras. Parecia até que ela não existia. Tempos mais tarde, já na adolescência, as histórias inventadas sobre aquela menina foram ganhando conotações sexuais. Da menina estranha, cuja família invocava o diabo com seus tambores, passou a ser a menina vulgarizada, sobre a qual muitas mentiras eram compartilhadas indiscriminadamente. As outras meninas a tomavam como exemplo do que não poderiam se tornar. Empreenderam então, esforços contínuos para não serem confundidas com aquela menina negra. (Narrativa da integrante do LEAM)

A narrativa acima nos aponta elementos que estão presentes em nossa cultura e que contribuem para a confirmação de um imaginário social sobre a população negra. As histórias ouvidas pelas meninas daquela rua fazem parte do imenso repertório que atua na manutenção da matriz de dominação branca, eurocêntrica e judaico-cristã.

Nos dois trechos acima podemos perceber que há referência a uma matriz de dominação, na qual ser negra/o é ser o oposto ao ser branca/o. Duas raças que compõem, como chamado por Neusa Santos Souza (1983, p. 22), dois extremos de um contínuo de cor no qual “[...] às diferentes nuances de cor se adscreviam significados diversos, segundo o critério de que quanto maior a brancura, maiores as possibilidades de êxito e aceitação”. Em contrapartida, na direção oposta, a ser negro acrescentam-se todos os sentidos opostos à bondade, beleza, aceitação, ética, cidadania, humanidade etc.

Nessa lógica binária ocidental moderna, a população negra encarna o outro radical, mitificado, objetificado. Um outro inventado para cumprir a função de delimitação das fronteiras da mesmidade, da norma, da branquidade. Sobre estas ideologias racistas estão estruturados o modo de funcionamento ocidental e os regimes de visualidades operantes, porque elas “[...] permeiam a estrutura social a tal ponto que se tornam hegemônicas, ou seja, são vistas como naturais, normais, inevitáveis” (COLLINS, 2019, p. 35).

Nesse imaginário, as religiões de matrizes africanas são equiparadas à imagem do inimigo do deus das religiões de matrizes judaico-cristãs. Um pensamento que tem gerado inúmeros crimes de intolerância como depredações de terreiros em nome de deus, assassinatos de lideranças religiosas e discriminação das/os praticantes da fé. Com esse mesmo pensamento, a população negra das periferias espalhadas em nosso país foi a que mais sofreu e morreu durante a pandemia de COVID-19. Junto a isso, temos visto, nos noticiários, os números cada vez maiores de assassinato de meninos negros que, pela aparência, são determinados como pessoas criminosas.

Há ainda, na história narrada acima, as imagens produzidas sobre a menina negra. Collins (2019) com seu conceito de imagens de controle nos ajuda a compreender que existem imagens que cumprem o papel de moldar o olhar do outro sobre as mulheres negras, e das mulheres negras sobre si mesmas. São imagens visuais e não visuais, pois articulam-se não somente por mecanismos imagéticos, mas também por palavras e outros dispositivos linguísticos a serviço da objetificação do corpo das mulheres negras.

Um exemplo disso, podemos perceber na história de Sarah Baartman, nascida “[...] em 1789 nas proximidades do rio Gamtoos, na atual província sul-africana de Cabo Oriental. A jovem pertencia ao povo Khoikhoi”. Sua popularidade no mundo ocidental deu-se pelo motivo de seu corpo ter servido como espetáculo circense para europeus. A chamavam de Vênus de Hotentote, fazendo alusão às suas partes íntimas, consideradas grandes em relação aos padrões de beleza da época. Seu corpo serviu como objeto de especulação para a comunidade científica europeia. Segundo relatos históricos, mesmo após sua morte, partes do seu corpo - cérebro e genitálias - foram dissecadas e deixadas em exposição no Museu do Homem de Paris até 1974.

Fonte: Columnists, 20185.

Figura 4 A Vênus de Hotentote 

Muitas foram as fotografias encontradas em pesquisas nos bancos de imagens que circulam pelo mundo. Escolhemos essa gravura pois traz, com ela, não somente o desenho da mulher, que já fora demasiadamente explorada pelos voyeuristas de sua época, mas também por aqueles que foram os autores da exploração. A imagem, portanto, revela a intenção de produção de um discurso que põe em problematização aqueles que ficaram no anonimato da pseudo objetividade científica.

Sarah não se reduzia à Vênus de Hotentote, assim como a menina presente na narrativa anterior não se reduzia àquela imagem produzida sobre ela. Elas eram muito mais, tinham história, subjetividades, desejos e relações sociais. São imagens a serviço da produção do outro, “[...] mas desse outro que é transformado, inventado e fabricado exclusivamente como um alvo de todas e cada uma das modalidades de racismo” (SKLIAR, 2016, p. 16).

Grada Kilomba (2018, p. 75) diz que uma das características presentes no racismo é a produção da diferença em relação ao que é, também, construído como norma. Essa diferença construída gera outras características, “[...] inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos”. Contudo, tais valores necessitam, para sua eficácia, que sejam naturalizados, tanto entre aqueles que serão subjugados como os outros nessa relação, quanto entre aqueles cujas vidas se beneficiarão de privilégios. As imagens, portanto, não agem isoladamente, elas estão em articulação com os diferentes aparelhos sociais que, juntos, atuam na formação do olhar e no regime de visualidades presente em nossa sociedade.

Tais questionamentos mostram a relevância de refletir sobre os modos como as imagens têm educado o nosso olhar para, então, entendermos as engrenagens institucionais e estruturais que se articulam nos regimes de visualidades presentes em nossa sociedade. Um exercício que nos força a olhar através dos espelhos que nos circundam, para darmos visibilidade às mãos que os distorcem e os sustentam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É uma perda de tempo odiar um espelho ou seu reflexo. Em vez de interromper a mão que constrói o vidro de distorções discretas o suficiente para passarem despercebidas.

(Audre Lorde, 2000)

As narrativas com as quais dialogamos nesse artigo nos oferecem elementos para percebermos os regimes de visualidades que nos circundam como espelhos, pelos quais vemos o mundo e a nós mesmas/os. Espelhos que refletem imagens distorcidas, que tentam assumir poder de verdade por meio dos muitos discursos dos quais nos nutrimos e somos formadas/os: pessoas negras e brancas. Audre Lorde, em sua poesia, cujo trecho usamos na epígrafe, nos ajuda a desviar o foco da nossa atenção para as forças que fazem a sustentação e que orientam os regimes de visualidades presentes na atualidade.

Os regimes de visualidade em sua ação de controlar o que pode e o que não pode ser visto, contribuem para a educação do olhar, agindo na manutenção do racismo, da misoginia e da branquitude. Na mesma poesia, Audre Lorde (2000. p. 73) diz: “Até que um dia você examina seu rosto sob uma luz alva impiedosa e o defeito em um espelho te atinge se tornando o que você acredita ser o formato da sua falha”. As imagens à nossa volta tentam educar não somente o modo como vemos o mundo, ou como os outros nos veem. Mas também os modos como percebemos a nossa própria existência, orientando a produção das nossas subjetividades.

Ser negro é tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar a posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro (SOUZA, 1983, p. 77).

Tornar-se negro/a é uma tarefa dolorida, árdua e constante. Lutamos contra tudo aquilo que depreendemos do conceito de racismo estrutural que organiza a sociedade e as oportunidades de trabalho, lazer, educação, moradia e movimentação, tanto espacial quanto social. Lutamos (e sofremos) contra aquilo que sempre achamos que era nosso, como marca definitiva estabelecida pela nossa origem. Tentamos (e sofremos) negar, escamotear a nossa pertença, as nossas origens. Tentamos (e sofremos) nos identificar definitivamente e exclusivamente com as referências de uma cultura eurocêntrica e, muitas vezes, fazemos alianças com tais culturas supondo que essas alianças nos colocariam em outras condições de consideração.

Como então enfrentarmos os regimes de visualidades engendrados em nossa sociedade? Nutrindo-nos de outros saberes, de outras visualidades. Conceição Evaristo, ao falar sobre o seu conceito de escrevivências negras, diz sobre o espelho de Narciso, imagem emblemática de uma sociedade ocidental de base judaico-cristã. Um espelho que só reflete a si mesmo e que o conduz a uma eterna autocontemplação. Um espelho que não reflete os corpos negros.

A autora propõe uma outra possibilidade de existência: o espelho de Oxum. Diferente de Narciso, a experiência de contemplação pelo espelho de Oxum nos remete à possibilidade de reflexão, de retomada da dignidade, da nossa potência comunitária. E assim muitos/as de nós começam seus inventários, começam a realizar o trabalho de politizar aquilo que supúnhamos, na nossa solidão, que era da ordem do pessoal.

Cremos que em diferentes dimensões da vida estes inventários vão avolumando-se. Avolumando-se para que sejam usados como documentos que testemunham um grupo social que vai cada vez mais assumindo as suas condições de autoria. Autoria de histórias que recuperam uma memória que sempre será social e coletiva. Que recuperam histórias que são importantes, mesmo que às vezes pareçam simples. Elas ao mesmo tempo são testemunhos e inspirações para a busca de outros caminhos para nos pensarmos, para pensarmos lutas coletivas contra o racismo, em favor de uma educação das relações raciais, contra todos os tipos de desigualdades, de preconceitos e de discriminações.

2BBB, é a abreviatura do Reality Show Big Brother Brasil exibido pela TV Globo. Sua primeira edição ocorreu em 2002.

3Reality Show A Fazenda, exibido pela TV Record. Sua primeira exibição ocorreu em 2009.

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Recebido: Junho de 2022; Aceito: Novembro de 2022

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