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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.63868 

Artigos de Demanda Contínua

DANÇA/EDUCAÇÃO NAS INFÂNCIAS: marcas na constituição docente

DANCE/EDUCATION IN CHILDHOODS: marks in the teaching constitution

DANZA/EDUCACIÓN EN LA INFANCIA: marcas en la constitución docente

Silvia Sell Duarte Pillotto1 
http://orcid.org/0000-0003-4497-2285; lattes: 3787447361829087

Andresa Gonçalves da Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-9429-1977; lattes: 1266560087661514

Rita Buzzi Rausch3 
http://orcid.org/0000-0002-9413-4848; lattes: 1747568551264254

1Universidade da Região de Joinville

2Universidade da Região de Joinville

3Universidade da Região de Joinville


Resumo

O artigo apresenta questões referentes a uma investigação realizada em um núcleo de pesquisa em arte na educação, vinculado a uma universidade comunitária. O objetivo é compreender como as experiências com a dança/educação nas infâncias, estão imbricadas na constituição docente e identitária, uma vez que somos movidos por memórias e atitudes. As ações escolares, por vezes, não dão o devido valor à dança, que geralmente é tratada apenas como meio de competição e entretenimento. A pesquisa tem abordagem narrativa (ABRAHÃO, BRAGANÇA, ARAÚJO, 2014) considerando nossas memórias e experiências, embasadas no imaginário, em estudos e em nossas práticas docentes. A produção e interpretação de dados, foram extraídas de nossas conversas sobre autores estudados e sobre narrativas, memórias, experiências estéticas e docentes (vídeos, cadernos de experiências, portfólios, anotações fotografias). Os resultados indicaram que ao relacionar memórias de infâncias aos aspectos conceituais e metodológicos, reitera-se a ideia de que a dança, tanto na educação formal como nos espaços não formais, são movimentos de pensares e sentires, integrando processos de cognição, crítica e sensibilidades. Além disso, a constituição docente está atrelada as experiências constituídas ao longo do percurso passado e presente, que de algum modo sinalizará também o futuro. É um processo contínuo e cíclico, que integra sobretudo, as sensibilidades, as relações com o outro e o modo de estar no mundo.

Palavras-chave: práticas educativas; experiência; constituição docente; memória; narrativas

Abstract

The article presents questions related to an investigation carried out in a center of research in art in education, linked to a community university. The objective is to understand how the experiences with dance/ education in childhood are intertwined in the teacher constitution and identity, since we are moved by memories and attitudes. School actions sometimes do not give due value to dance, which is usually treated only as a means of competition and entertainment. The research has a narrative approach (ABRAHÃO, BRAGANÇA, ARAÚJO, 2014), considering our memories and experiences, based on the imaginary, studies and our teaching practices. The production and interpretation of data were extracted from our conversations about studied authors and about narratives, memories, aesthetic and teaching experiences (videos, experience notebooks, portfolios, annotations photographs). They indicated that when relating childhood memories to conceptual and methodological aspects, the idea is reiterated that dance, both in formal education and in non-formal spaces, are movements of thinking and feeling, integrating processes of cognition, criticism and sensitivities. In addition, the teaching constitution is linked to the experiences built along the past and present path, which will somehow also signal the future. It is a continuous and cyclical process, which integrates, above all, the sensibilities, the relations with the other and the way of being in the world.

Keywords educational practices; experience; faculty constitution; memory; narratives

Resumen

El artículo presenta cuestiones relacionadas con una investigación que tuvo lugar en un centro de investigación sobre arte en la educación de un colegio comunitario. El objetivo es comprender cómo las experiencias con la danza/educación durante la infancia se entretejen en la constitución de maestros e identidades, ya que nos mueven recuerdos y actitudes. Las acciones escolares a veces no dan a la danza el valor que merece y suele tratarse sólo como un medio de competición y entretenimiento. La investigación tiene un enfoque narrativo (ABRAHÃO, BRAGANÇA, ARAÚJO, 2014) considerando nuestras memorias y experiencias, basadas en el imaginario, en los estudios y en nuestras prácticas de enseñanza. La producción e interpretación de datos, se extrajeron de nuestras conversaciones sobre autores estudiados y sobre narraciones, recuerdos, experiencias estéticas y pedagógicas (vídeos, cuadernos de experiencias, portafolios, apuntes fotografías). Los resultados indicaron que al relacionar recuerdos de la infancia con aspectos conceptuales y metodológicos, se reitera la idea de que la danza, tanto en la educación formal como en espacios no formales, es un movimiento del pensar y del sentir, que integra procesos de cognición, crítica y sensibilidad. Además, la constitución del profesor está ligada a las experiencias del pasado y del presente, que de alguna manera también señalarán el futuro. Es un proceso continuo y cíclico, que integra sobre todo las sensibilidades, las relaciones con el otro y la manera de estar en el mundo.

Palabras clave prácticas educativas; experiencia; constitución docente; memoria; narrativas

INTRODUÇÃO

A investigação Dança/educação nas infâncias: marcas na constituição docente, foi desenvolvida ao núcleo de pesquisa em arte na educação (NUPAE), vinculado a um Programa de Pós-graduação (Mestrado em Educação) de uma universidade comunitária. O referido núcleo é composto por professores da rede pública, egressos dos programas de graduação e pós-graduação, pedagogos, bolsistas e artistas, atuantes em artes visuais, música e dança.

Nossas inquietações são colocadas em pauta no núcleo e a partir delas, as pesquisas vão se formando e tomando corpo, como aconteceu com a que estamos apresentando nesse artigo. Nesta pesquisa, somos três professoras/pesquisadoras, uma atuando na educação básica com dança e as outras duas com a formação inicial em pedagogia e artes visuais, na pós-graduação e na formação continuada. Todas nós de uma forma ou outra tivemos nas infâncias contato com a dança, seja na educação formal (escola), não formal (cursos e ateliê de dança) e informal (nas brincadeiras, reuniões familiares...); por isso a escolha por essa linguagem/expressão como mobilizadora de experiências.

Em nossas práticas docentes a dança continuou potente e as memórias e experiências de criança imbricadas em nosso fazer e refletir a educação. Mesmo em contextos diferentes, nós três vivenciamos a dança, tanto na educação básica quanto no ensino superior. As experiências são singulares, pois enquanto uma é professora de dança, as outras duas se apropriam da linguagem e expressão da dança nas práticas educativas.

O que temos em comum é a experiência como docentes na educação e nossas memórias de infâncias, que mesmo rememoradas de modos individuais, estão conectadas pela estética e pelo fazer docência. As memórias e o fazer docente, pautados nas experiências estéticas potencializaram com o corpo/movimento dançante, seja na educação formal ou não formal, podem ser vetores para as práticas educativas docentes na atualidade.

Para que pudéssemos refletir sobre o (entre)laçamento entre as memórias de infâncias e as experiências estéticas e seus imbricamentos na constituição docente, a primeira sessão, Dança/Educação, aprofunda alguns conceitos relacionados ao tempo/espaço em fragmentos de sensibilidades. Repensa os movimentos dançantes na escola e valoriza o tempo das infâncias como aquele que convive em harmonia com a realidade e o imaginário, liberto de amarras.

A segunda sessão, Abordagem Narrativa, apresenta os percursos de uma pesquisa que destaca as memórias, as experiências e as sensibilidades como possibilidades de escuta reflexiva, construção de sentidos e processos em que tempo e viver caminham juntos. A terceira sessão, Experiência e Memória, trazem nossas memórias de infâncias, destacando as experiências temporais e atemporais como imbricamento de nossas constituições docentes. Na sequência, a quarta sessão, Percursos formativos e a constituição docente, relaciona as trajetórias antecedentes, a formação inicial e a (auto)formação, que nos constitui docentes, definindo nossas escolhas conceituais e metodológicas nas práticas educativas.

DANÇA/EDUCAÇÃO

Importante dizer o porquê de utilizarmos neste artigo o termo dança/educação. Sabemos que tanto a dança quanto a educação têm suas especificidades e podem estar em muitos lugares da educação formal, não formal e até informal. No entanto, nossa intenção aqui é uni-las, por isso não o grifo, mas a barra. Tanto uma como a outra unificam e constroem elos humanos.

A dança nos espaços educacionais, quando destaca a expressividade dos educandos: emoções, desejos, pensamentos, ideias e sentidos por meio dos movimentos, que não necessariamente envolvam a técnica, possibilita que se revelem para o mundo. Constitui-se em uma conexão consigo e com os outros, pois é fundamental que tenhamos consciência dos gestos e como os realizamos. Para Oliveira (2001, p. 96) é necessário que os educandos “[...] tenham a 'sensação de si mesmos', proporcionada pelo nosso sentido cinestésico”.

Portanto, o termo arte/educação, une aprendizagem e sentidos; o conhecimento de si e do outro; as percepções dos espaços temporais; as experiências com o corpo, potencializadas pela cognição e afetividade (NANNI, 2003).

O corpo dançante é o campo das descobertas e da transcendência. O sujeito sente a dança - dançando; movimentando pensamentos e sentires. Para Strazzacappa (2001, p. 12), “[...] o corpo é, ele próprio, um processo”. Nesse sentido, a matéria-força mobiliza a percepção, enquanto a matériaforma impulsiona a totalidade do ser no mundo (STRAZZACAPPA, 2001, p. 12).

Na visão de Rolnik (2007, p. 227) a sensação está “[...] engendrada no encontro entre o corpo e as forças do mundo que o afetam”. Nas relações entre sujeitos-corpos, os efeitos de um corpo sobre o outro constituem uma energia própria, capaz de formar um uno de forças, mesmo que não consiga explicar, apenas sentir.

Somos corpos, corpos/sentimentos, movimentos, desejos, medos e ação. Somos corpos que traduzem subjetividades que não se reduzem em palavras, mas em gestos: um leve sorriso, uma testa franzida pelo incômodo, o suor das mãos, um baixar ou curvar a cabeça, um olhar.... Somos inescapavelmente nosso corpo (MALDONATO, 2012).

É pelo corpo/dança, desde as infâncias “[...] que se inicia o conhecimento dos processos internos; estes estimulam o descobrimento, a compreensão da essência do mundo (o espaço, o outro, o objeto, o mundo e o Universo), o existir é o ver, ver melhor” (NANNI, 2008, p. 153).

Ver/sentir com a pele, com a batida do coração, com as gotas que transpiram sensações e sentidos.

A dança nos espaços formais e/ou não formais da educação, é também uma área de conhecimento, pois “[...] permite uma leitura e uma releitura diferenciada de nós mesmos, dos outros e do mundo. A dança pode ser considerada como a poesia das ações corporais no espaço” (LABAN, 1978, p. 52). Fazer dança é criar circunstâncias para viver.

Talvez esse possa ser o caminho dessa linguagem/expressão na escola e não apenas um recurso pedagógico e espaço de competição, como destaca Marques (2012). A dança é um agente cultural, contribuindo para a constituição de sujeitos críticos e sensíveis, além de exercer importante papel no conhecimento de si e do outro, por meio das ações interacionais. Para a autora “[...] a escola pode, sim, fornecer parâmetros para sistematização e apropriação crítica, consciente e transformadora dos conteúdos específicos da dança e, portanto, da sociedade” (MARQUES, 2012, p. 26).

A escola, com gestores, docentes, estudantes e comunidade, precisa olhar a dança como expressão e conhecimento, de fundamental importância na formação social das crianças e dos profissionais que com elas exercem a docência. Essas relações fortalecem o sensível e o crítico, enfatizando seus papéis como sujeitos partícipes na sociedade. Assim, a dança na escola e fora dela traz consigo um fazer, sentir e pensar, proporcionando às crianças aprendizagens múltiplas, autoconhecimento, interação com os espaços, perceber-se no outro e no seu lugar de pertencimento (MARQUES, 2012).

Portanto, a dança/educação “[...] não é a perfeição ou a criação e execução de danças sensacionais, mas o efeito benéfico que a atividade criativa da dança tem sobre o aluno” (LABAN, 1990, p. 18). Ainda para o autor, o entendimento às diversas possibilidades que a dança/educação pode trazer, como: a construção de um vocabulário próprio, de identidades, o saber conviver com o outro, a ampliação de sensibilidades, são apenas alguns aspectos das contribuições da dança/educação. Além disso, mobiliza nos estudantes os processos de criação, pois a arte de modo geral:

[...] tem a pretensão de capturar a vida onde ela se esconde ou se camufla para o olhar, mesmo nas coisas banais e simples. A proposta estética e artística ao levar em consideração uma filosofia da criação, demanda relacionar arte e vida, onde o conhecer, o fazer, o expressar, o comunicar e o interagir instauram práticas inventivas a partir das vivências de cada um (MEIRA, 2009, p. 122).

Nietzsche (1977) destaca que o pensamento se tornou peça principal da educação e o corpo, por vezes foi esquecido e desvinculado da mente. Esta ideia dicotômica de que a mente é o contrário do corpo e que a razão sempre está na contramão do sentimento, é ilusória, pois corpo e mente são indissociáveis. O corpo, portanto, é uno - pensa, sente, comunica, movimenta; é vida que se transforma em partícula que encontra outras partículas, formando um todo.

E como bem disse Nietzsche (1977, p. 51) “[...] atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido - e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo”. Ou como aponta Laban (1978, p. 49), ao pensar sobre o corpo: “[...] cada fase do movimento, cada mínima transferência de peso, cada simples gesto de qualquer parte do corpo revela um aspecto de nossa vida interior”.

A relevância da dança na constituição humana está pautada nas diversas culturas que se apropriam do corpo em rituais, nas tatuagens, acessórios, indumentárias e tantas outras (MAFFESOLI, 2021). Além disso, temos nas histórias das infâncias, as brincadeiras de roda, de pega-pega, de esconde-esconde, de correr, pular, abraçar. Vamos nos constituindo pessoas de ação, nas marcas deixadas pela memória, que por vezes, são reanimadas pelo imaginário. Um estado de espírito, não exatamente racional, mas imponderável e carregado de criação (MAFFESOLI, 2021).

Em nossas conversas as memórias de infâncias foram potentes, especialmente aquelas em que a experiência estética se fazia presente. Da mesma forma nas ações docentes, as experiências das infâncias estavam imbricadas, especialmente nas escolhas metodológicas, relações com os estudantes e em nossas posturas frente à vida. Nossos corpos são constituídos por experiências, que nos impulsionam a seguir nutridos pelas memórias e abertos ao devir. Como afirmam Martins e Piscosque (2012, p. 34-35) estamos ávidos para viver a vida e...

[...] para roçar o mundo com nossos órgãos dos sentidos transformando essa coleta sensorial em informação para gerar processos cognitivos. Aquilo que é sentido transforma-se na fonte primária da cognição. O corpo é porta de entrada de todo o conhecimento e por isso o entendimento corpóreo se faz fonte para o conhecimento. [...] E pelo reconhecimento dos sentidos, do imaginário é que adentramos nas sutilezas do emaranhado da mente.

Quando revisitamos nossas memórias de infâncias, e posteriormente nossas ações docentes, fica evidente que o corpo, como afirma Sant’Anna (2000, p. 50) além de ser histórico, “[...] funciona como um processador da história, por meio do qual são veiculados e modificados os legados culturais e biológicos”. O corpo, ao longo dos tempos, se transforma fisicamente, influenciado pelas culturas vigentes na sociedade. Portanto, o corpo histórico e social nos mobiliza a pensar nos processos de aprendizagens e sentidos corpóreos, que envolvem modos subjetivos e emocionais, próprios de cada pessoa. Nesta perspectiva estão presentes as habilidades cognitivas e sensíveis, movendo-se em um corpo que expressa, pensa, registra suas percepções de mundo e sente. Para Merleau- Ponty (1997, p. 203):

[...] o corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação [...]

Em nossas conversas, percebemos que o corpo vai-se transformando não apenas fisicamente, mas sobretudo na sua dimensão cognitiva, perceptiva e sensível. As nossas memórias de infâncias surgiam em fragmentos ressignificados. O imaginário tomava uma outra proporção, potencializada pelas experiências estéticas vivenciadas. Ao trazer para o presente imagens e sentidos do passado, damos novos significados, articulados ao presente; em nosso caso, a ação docente. Somos então um corpo constituído de histórias, que se desdobra em tempos diferentes (passado/presente), regados de sensibilidades.

ABORDAGEM NARRATIVA

A abordagem por nós escolhida foi a narrativa, especialmente porque “[...] narrar é enunciar uma experiência particular refletida, sobre a qual construímos um sentido e damos um significado” (SOUZA, 2007, p. 66). Além disso, permite um mergulho em nossas experiências de memórias, atravessadas em subjetividades que proporcionam o autoconhecimento e o melhor entendimento do aqui agora.

Nesse sentido, a memória se tornou um dos principais aspectos da nossa pesquisa, no revisitar fragmentos significativos das experiências estéticas com a dança. Como afirma Souza (2006, p. 102), um processo de recuperação do eu em que “[...] a memória narrativa marca um olhar sobre si em diferentes tempos e espaços, os quais articulam-se com as possibilidades de narrar as experiências”. Tempos atravessados pelo passado e pelo presente de modo singular; tempos marcados por memórias e por esquecimentos. Tempos que, para a pesquisa narrativa, "[...] mobiliza[m] no sujeito uma tomada de consciência, por emergir no conhecimento de si e das dimensões intuitivas, pessoais, sociais e políticas, impostas pelo mergulho interior [...]” (SOUZA, 2006, p. 101).

Portanto, pensar a pesquisa pelo viés narrativo, foi um dispositivo reflexivo e formativo, uma vez que, como afirmam Clandinin e Connely (2015, p. 27), “[...] as histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros”. As experiências rememoradas são processos reflexivos entre o viver, o contar, o reviver e o recontar. Por isso mesmo “[...] os pesquisadores narrativos são sempre fortemente autobiográficos” (CLANDININ, CONNELY, 2015, p. 165). Também para

Bolívar (2014, p. 121), a narrativa “[...] parte de uma avaliação das experiências adquiridas, que se transformam em aprendizagens, a partir de um processo autoformativo.”1

Em nossa pesquisa, foram levadas em conta as memórias de nossas infâncias e docência, partilhadas entre nós e fortalecidas pelo diálogo com teorias e conceitos que convergiam com nossas práticas, pensares e sentires. Afinal, as narrativas reconstroem a experiência pessoal também com o olhar do outro e com o meio cultural (CLANDININ, CONNELLY, 2015).

Nesta perspectiva, as fontes se configuram como narrativas, fornecendo elementos para a compreensão dos nossos percursos. A partir delas: fotografias, vídeos, objetos e também a escrita narrativa foram potencializados. Como afirma Souza (2006, p. 14), “[...] remete o sujeito a uma dimensão de auto escuta, como se estivesse contando para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu ao longo da vida, através do conhecimento de si”.

É um movimento contínuo de autoconhecimento e tomada de consciência, assim como “[...] itinerâncias e aprendizagens ao longo da vida, as quais são expressas através da metarreflexão do ato de narrar-se, dizer-se de si para si mesmo como uma evocação dos conhecimentos construídos nas suas experiências formadoras” (SOUZA, 2006, p. 14).

A escrita de si potencializou nossas reflexões sobre as infâncias e as experiências com a dança, tanto no âmbito da educação formal quanto da não formal. O lugar do imaginário foi um elemento forte na pesquisa e nas relações dialógicas, pautadas em nossas experiências nas infâncias com o que vivemos hoje. É um deslocamento constituído no cultural, que nos leva da matériaimaginação para a tríplice relação entre “[...] matéria-sensação-imaginação” (DURAND, 1989, p. 29).

Cenas imagéticas foram se reconstruindo quando revisitamos nossas infâncias, dando vida às memórias, articuladas com outras produções de dados (fotos, vídeos, objetos), com nossas conversas e a leitura de autores que, de algum modo, também participaram desse diálogo. Para Prado (2013), essa é uma característica de quem narra suas histórias, pois ao selecionarmos nossas memórias, seja a partir das experiências ou das histórias ouvidas ou lidas, são sempre narrativas polissêmicas com múltiplas possibilidades de compreensão. Reiterando essa ideia, no memorizar surgem novos significados criando outros sentidos, mobilizados pelo imaginário (DURAND, 2001).

A narrativa acolhe as diferenças em um movimento potente de unicidade. As cenas imaginárias são modos singulares de partilha, pois o modo de dizer de quem narra depende também dos conhecimentos, saberes e experiências de quem lê ou escuta a narrativa. Ou seja, são reorganizados a partir das relações que se estabelecem com o que foi narrado e o que foi percebido (GERALDI, 2010).

Nesse sentido, a narrativa traz consigo a possibilidade do diálogo e da escuta. É um momento que problematiza nossas próprias histórias, confirmando que não há um começo, nem tampouco um fim; a vida é um ciclo que rompe com a linearidade por meio da memória e do

imaginário. É uma experiência que permite olhar para si com o olhar do outro de modo a nos (re)significarmos. Ao mesmo tempo em que algo do passado é narrado sob o olhar do presente, ganham-se novos contornos e outras interpretações, porque é remetido a um processo reflexivo sobre si, sobre o outro e sobre as próprias situações narradas (ROLNIK, 2016). Também na visão de Martins (2014, p. 65-66), a narrativa:

[...] é uma forma de construir um discurso pessoal, de contar uma história vivida ou imaginada, que nos aproxima das nossas próprias experiências, bem como daqueles para quem falamos [...]. As narrativas recusam uma significação única e têm um estatuto de enunciação e movimento. No ato da criação, as palavras virando histórias saem de dentro de nós e se completam no outro.

Os encontros acontecidos durante a pesquisa com trocas narrativas de nossas infâncias e docência, por meio de imagens, vídeos, cadernos, anotações e narrativas, nos possibilitaram identificar pontos convergentes e divergentes em nossos percursos. Somos de uma mesma geração e tivemos alguns brinquedos e brincadeiras semelhantes, bem como o contato com a natureza. As experiências estéticas permeavam os acontecimentos e acompanharam nossas práticas docentes. As divergências ficaram por conta das subjetividades e do modo que cada uma de nós problematiza as questões culturais. Nossas posturas diante da vida implicarão diretamente em nossas ações pedagógicas e no compromisso de compreender que as individualidades formam o coletivo e que somos todas aprendizes.

A pesquisa narrativa nos provocou a repensar nosso lugar como aprendizes, docentes e pesquisadoras, nos remetendo às nossas práticas educativas e aos nossos percursos na constituição docente. Foi um deslocar de um lugar estático e seguro para outro, por vezes desconhecido e imprevisível.

MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS

As memórias das infâncias desvelaram o que da criança que fomos ainda persiste em nós, como nos falam Meira e Pillotto (2010, p. 16): “[...] pensar em infância é, sobretudo, reconhecer a importância da experiência criadora para seu desenvolvimento biopsicossocial". É também, como afirma Bueno (2018, p. 16), “[...] possibilidade de transformarmos o que acontece em experiência”.

As infâncias são compreendidas como experiências não planejadas, inesperadas e imprevisíveis, pois para as crianças algo jamais está pronto ou finalizado; elas estão sempre predispostas a aprender, imaginar e criar. Infâncias são tempos de múltiplos movimentos, que atravessam o real e o imaginário, tempos de descoberta e de acontecimentos (KOHAN, 2005).

Atores sociais, as crianças nos impulsionam a pensar as infâncias como tempos constituídos de “[...] fenômenos simbólicos, sociais e culturais” (SCHMIDT, 1997, p. 10). Portanto, lugares de alegrias e dor, de incertezas e sonhos, exercitando a liberdade de pensamento e de criação, trazendo a realidade de um outro modo, o simbólico. Liberdade para pensar, brincar e ser criança. “Nos percursos das infâncias, a criança constrói sentidos e significados sobre si, sobre o outro e sobre o mundo, apropriando-se de modos de ser, pensar e sentir. Vai constituindo, assim, repertórios de saberes, valores, conhecimentos e experiências”. (PILLOTTO, GAVA, STAMM, SILVA, 2021, p. 180).

O tempo nas infâncias não é apenas cronológico - que segue o curso do relógio, mas sobretudo, o tempo de sentidos (aión), que se movimenta em outras dimensões, marcando a intensidade do tempo, as sensibilidades (KOHAN, 2003). É nas infâncias que iniciamos a aventura de estar junto, como nos fala Maffesoli (2021, p. 112): um “[...] sentimento de pertencimento que ressalta a harmonia existente entre a nossa vida e o ambiente que lhe serve de moldura”.

Assim, revisitar as brincadeiras de roda, as danças na rua com os amigos, as coreografias imaginadas e vividas, nos remeteu ao tempo constituído de sentidos, conectado aos estados de invenção da professora que somos. E, ainda, às escolhas que fazemos, na criação de práticas educativas, nas relações constituídas com colegas, com a gestão, com os estudantes e com a comunidade.

Constitui-se de uma trilogia com o presente, o passado e o futuro, em especial com ações do corpo em movimentos dançantes, nos desenhos com pedras coloridas no chão, na organicidade da argila e nas músicas cantadas e (re)inventadas. Esses cenários permanecem, não apenas nas memórias, mas principalmente em nossas práticas educativas e docentes. Como afirmam Meira e Pillotto (2010, p. 16), “[...] manifestar-se por meio da expressão artística significa para a criança o prazer e o aprender sobre suas capacidades de criar, de produzir e de materializar suas vontades”.

Em nossas infâncias sonhávamos em ser muitas coisas: a menina bailarina, a menina professora e a menina astronauta. E como diz Bueno (2018, p. 50), “[...] a permanência do tempo em nós, com suas marcas e afetos se transformam em aprendizagem e nos ensinam a crescer”. As experiências com dança nas infâncias são marcas cultivadas ao longo de nossas vidas e, como afirma Meira (2009, p. 33), “[...] o primeiro gesto, a primeira palavra, a primeira pincelada, assumem a condição de uma premissa, a partir da qual um crescimento orgânico, segundo regras de coerência, vai se desenvolver, tornando fecunda a experiência para o criador que os segura e os faz seus [...]”.

São mapas sensíveis que tecem fios de ludicidade em percursos reais e imaginários, reafirmando na experiência e na memória seu valor estético, ético e político. Mapas pontilhados de afetos, pois “[...] o sujeito da experiência não é um sujeito objetivador ou coisificador, e sim um sujeito aberto que se deixa afetar por acontecimentos” (LARROSA, 2015, p. 110). São rastros de saberes afetados por um misto de emoções e sentidos, que precisam ser cultivados ao longo de nossa existência.

As relações entre pessoas, objetos, lugares e tempos expressam a realidade de modos diferenciados de ser, envolvendo aspectos individuais e coletivos. São um conjunto de subjetividades, compostas e derivadas de ideias, sentidos e significações, balizadas pelo ponto de vista, desejos e intencionalidades dos sujeitos.

São experiências vivenciadas por cada pessoa em seu contexto social, imprimindo complexas unidades emocionais, que atravessam temporalidades em acontecimentos permeados pela dimensão sensível (LARROSA 2002). O tempo para nós foi e ainda é instante de criação, confirmado por Maldonato (2012, p. 17) quando afirma que “[...] cada ato nosso de consciência está mergulhado no instante, em um agora que quebra a indiferente continuidade daquilo que é conhecido”. Ao memorizar nossas infâncias, nos vemos meninas que fomos - sonhando em ser bailarina, professora e astronauta.

A bailarina ainda guarda suas primeiras sapatilhas, um pouco desbotadas pelo tempo, contudo potentes como símbolo das infâncias errantes. As fotos e vídeos dos primeiros passos como bailarina mostram cenas da menina atuando como baliza nas marchas de 7 de Setembro e outros tantos, marcados por movimentos corporais, individuais e coletivos. Rodopiar em um só pé, curvar o corpo, entrelaçá-lo a outros corpos, conhecer os espaços e seus limites são marcas que permanecem e que constituíram a menina professora de dança. A menina tímida aprendeu na dança a interagir consigo mesma e com o outro. Assim é o corpo, que para Maldonato (2012, p. 27) é “[...] aquilo que eu sou mesmo. Meu corpo está impregnado de subjetividade, é corpo-sujeito, não apenas alguma coisa que possuo”.

A menina professora, esteve sempre acompanhada de quadro negro, giz e suas bonecas, sentadas em cadeiras, enfileiradas no papel de estudantes. Atentas, as bonecas-estudantes perguntavam à menina/professora, que tinha sempre na ponta da língua e do giz, respostas inventadas. Dessa experiência, além das memórias, existem algumas das bonecas, o quadro negro e um punhadinho de giz, escondidos num saquinho velho de pano. Nos registros fotográficos, a menina/professora está também interagindo com outras meninas e meninos, nas brincadeiras em cenários de sala de aula. Tinha também a hora do recreio em que a menina/professora preparava guloseimas para o lanche, assim que um velho sino tocava. O lanche era composto de folhas secas, barro, sementes e, às vezes, leite em pó misturado com um pouco de água - essa era saboreada pela menina/professora. Eram cenas da vida cotidiana misturadas com o imaginário de ser criança.

A menina astronauta, que sonhava em estar perto do céu e olhar o mundo lá de cima, transformava o capacete, usado para andar de bicicleta, em capacete da astronauta, que voava sem asas, nas artimanhas do pensamento. Ao rever o capacete já descascado pelo tempo - sem cor - e a bicicleta enferrujada, sem uma das rodas e com o guidão entortado de tanto uso, as memórias se intensificaram e se reinventaram.

Revivemos imagens de corpos em movimento, saltitantes, pendurados em pés de chorão, ritmados no vai e vem do vento e do tempo; corpos envolvidos em árvores sinuosas e na terra molhada feita de pequenas poças, que se transformavam em grandes rios, onde pulávamos dançantes... E com lápis e pincéis nossos gestos ganhavam vida própria em papéis, no chão, na areia, no barro e, às vezes, nos muros alheios. Como diz Maldonato (2012, p. 61), “[...] o tempo vivido é duração concreta, experiência do nosso eu que dura. O eu é um desdobrar-se de estados de consciência, de pensamentos e emoções que sucedem de maneira incessante e vital, mantendo a memória do que acaba de passar e do já passado”. A menina astronauta é hoje professora, mas continua a voar.

É também, como nos fala Martins (2014, p. 42), um “[...] brincar viageiro por lugares visíveis e invisíveis, especialmente quando provocados pelas experiências estéticas”. É um brincar brejeiro, que nos ajuda na organização dos pensamentos, proporcionando situações de interação com as pessoas e o mundo. É nesse lugar de experiência que habitamos o mundo pelos sentidos, experimentando a vida no: olhar, cheirar, degustar; não há fronteiras para as sensibilidades. Para Larrosa (2015, p. 25), é um acontecimento que “[...] produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos [...] é um ponto de chegada [...], como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar”.

A escola pode ser também esse território de experiências, que emerge sensibilidades “[...] invertendo a lógica do sistema explicador. A explicação é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender” (RANCIÈRE, 2015, p. 23). Trata-se, como destaca o autor, de um movimento que vai além do conhecimento pedagógico, desvinculando-se de uma função representativa, na tentativa de ultrapassar os limites impostos pela escolaridade. É aqui que ganham força as linguagens/expressões da arte, que a escola precisa compreender como conhecimento e sensibilidades, imprescindíveis para a constituição humana.

PERCURSOS FORMATIVOS E CONSTITUIÇÃO DOCENTE

O viver/conviver está presente em nossas memórias e em nossos percursos formativos e autoformativos. Existe sempre uma relação entre a aprendizagem, a experiência potencializada e o que dá sentido à experiência. Portanto, as bases da formação inicial estão pautadas na constituição docente e na autoformação, processo este que investiga a ação de formação. Para Vaillant e Marcelo (2015, p. 22), “[...] a formação pode ser um processo de aprendizagem guiado ou um processo de autoformação.”2 Os mesmos autores reiteram que todas as pessoas podem ter experiências com a autoformação, entendendo-a como espaço de aprendizagens e de reflexão. São as etapas prévias do ofício de ensinar, em que a aprendizagem para a docência acontece pela observação e por meio dos saberes adquiridos ao longo das experiências na educação básica (VAILLANT, MARCELO, 2015).

Nessa perspectiva, os percursos antecedentes são constituídos pelas experiências que sobrepujam a formação inicial, pois antes de entrar na educação superior para a formação docente o sujeito passa muitos anos na escola como discente. Experiências que deixam lastros e se cristalizam como crenças, influenciando a postura filosófica e metodológica da atuação docente.

Em síntese, a reflexão sobre as crenças e saberes prévios dos docentes deveria ser sistemática e sustentada no tempo. Este é, sem dúvida, um dos caminhos mais promissores para compreender a partir da vida e do trabalho dos mestres e professores. Isto levou muitos pesquisadores a indagar na construção da identidade docente a partir das situações de vida cotidiana, dos discursos, das percepções, dos modos de ser.3 (VAILLANT, MARCELO, 2015, p. 41).

Souza (2006, p. 143) complementa, ao afirmar que o processo de formação e dos estágios nos cursos de licenciaturas possibilitam aos sujeitos “[...] ampliar as capacidades de autonomização, de reflexibilidade, iniciativa e criatividade no seu desenvolvimento profissional". O autor compreende este processo para além da formação, ou seja, como autoformação que acompanha nossos percursos na vida.

Também para Nóvoa (2009, p. 39), é necessário "[...] estimular, junto dos futuros professores e nos primeiros anos de exercício profissional, práticas de autoformação, momentos que permitam a construção de narrativas sobre as suas próprias histórias de vida pessoal e profissional". E Vaillant e Marcelo (2015) afirmam que os futuros docentes carregam consigo uma série de crenças e ensinamentos aprendidos na idade escolar, que os mobilizam à decisão de se tornar professores, levando para sua prática docente saberes e crenças adquiridos na formação básica.

Vale também destacar que a autoformação é composta do movimento de apropriação de conhecimentos que nos convêm, a partir de nossas próprias buscas e escolhas. Estar em formação implica uma disposição pessoal em ser docente, pois não basta apenas acumular diplomas ou técnicas específicas, mas valorizar as questões críticas e reflexivas sobre as práticas, construindo e reconstruindo identidades (NÓVOA, 1992).

A autoformação é, ainda, compreendida como a capacidade de ensinar e desenvolver processos de aprendizagem ao longo da vida, possibilitando ao sujeito apropriar-se do conhecimento que lhe convém, por suas próprias buscas e escolhas (VAILLANT, MARCELO, 2015). Esses momentos deixam rastros de sensibilidade e demarcam também os objetivos da educação que, independentemente da sua condição formal ou não formal, se voltam para a formação de um cidadão livre para pensar e criar. Para Gohn (2015, p. 16), a autoformação “[...] é um processo sociopolítico, cultural e pedagógico, de formação para a cidadania, entendendo o sociopolítico como a formação do indivíduo para interagir com o outro na sociedade”.

Somos seres singulares vivendo em pluralidade, o que nos oportuniza aprender todos os dias de nossas vidas, principalmente com as experiências grupais, que são “[...] vividas como práxis concreta de um grupo, ainda que o resultado do que se aprende seja absorvido individualmente [...]” (GOHN, 2011, p. 111). Na educação, os processos de aprendizagem acontecem no individual e entre os grupos e, também, nas “[...] interfaces com outras áreas de conhecimento em que o corpo seja fonte de conhecimento” (GOHN, 2015, p. 16).

As relações apontadas por Gohn (2015) também fazem parte da formação inicial, fase importante da constituição identitária docente, preparando o ser professor. Nóvoa (2017, p. 121) afirma que “[...] tornar-se professor é transformar uma predisposição numa disposição pessoal. Precisamos de espaços e tempos que permitam o trabalho de autoconhecimento, de autoconstrução [...]”.

A formação inicial nos possibilitou construir caminhos ao longo da vida, a partir das experiências como estudantes e docentes, na superação de uma visão estereotipada de que ensinar é apenas transferir conhecimento. Seguimos as bases conceituais de Nóvoa (2009, p. 40), ao destacar que “[...] a formação deve contribuir para criar nos futuros professores hábitos de reflexão e de auto-reflexão".

Os desafios da formação inicial foram imprescindíveis para fortalecer nossos percursos formativos como docentes. Nóvoa (2017, p. 1111) define que a formação docente "[...] deve ter como matriz a formação para uma profissão", assim como Vaillant e Marcelo (2015) afirmam que este deve ser um processo que propicie aos futuros docentes um legítimo aprender a ensinar. Por isso, não posso discorrer sobre o meu percurso docente sem elucidar o importante papel dos percursos antecedentes, bem como a formação inicial, que tivemos em nossas trajetórias.

Assim, a inserção profissional na educação está ancorada na formação inicial, pois “[...] é o período de tempo que abrange os primeiros anos, durante os quais os mestres e professores realizarão a transição de estudantes para docentes”4 (VAILLANT, MARCELO, 2015, p. 97). Ou seja, esta fase se caracteriza como a dos primeiros anos exercendo a docência, após a graduação. Nesse sentido, Nóvoa (2017) classifica como o tempo de indução profissional, também caracterizado como os primeiros anos de experiência na carreira docente.

Caracteriza-se, também, como um tempo marcado de indagações, que externa problematizações e soluções ou inovações nas práticas docentes (VAILLANT, MARCELO, 2015). Ser professor é estar em constante movimento na busca de conhecimento e de novos saberes para o seu desenvolvimento profissional, que se relaciona às aprendizagens, com as trajetórias e oportunidades para a melhoria da prática docente (VAILLANT, MARCELO, 2015).

Nóvoa (2009, 2017) afirma que a formação docente exige a participação de profissionais mais experientes e a necessidade de formação contínua, dedicada ao estudo, à pesquisa e à experiência, potencializando o exercício desta profissão. Além disso, nesses movimentos o docente

pode se sentir pertencente, apropriando-se de processos que podem transformar suas práticas. Afinal, como alerta Nóvoa (1999, p. 17), "[...] a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

É importante nas últimas considerações retomar o objetivo: compreender como as experiências estéticas com a dança/educação nas infâncias estão imbricadas na constituição docente e identitária; uma vez que somos movidos por memórias e atitudes, é fundamental destacar algumas pistas e efeitos encontrados durante a trajetória de pesquisa.

Vale destacar que a abordagem narrativa contribuiu para que nos apropriássemos de memórias das infâncias, em especial as experiências estéticas com a dança. Além disso, encontramos em anotações, portfólios, fotos, vídeos, cadernos de experiências, dados para analisarmos nossas práticas educativas, tanto na educação básica, quanto no ensino superior. À medida que nossas memórias eram ativadas, tínhamos também um conjunto de elementos que poderiam desvelar pistas e efeitos.

O primeiro deles diz respeito à relevância da dança na educação formal e não formal, em especial nas infâncias, pois é quando vamos nos constituindo como sujeito-corpo, aquele que fala, questiona, duvida e aprende a construir sentidos, cultivados pelas sensibilidades.

O segundo efeito foi desvelado durante o processo de pesquisar, tendo a abordagem narrativa como base do fazer/refletir. Foi com a narrativa que potencializamos fragmentos de nossas memórias de infâncias, desvelando o quanto o corpo-sujeito dançante é capaz de nos ensinar a viver. Além disso, ficou evidente que o movimento acontece pelo pensamento, pautado nas experiências e nas sensibilidades.

O terceiro efeito está centrado na memória e na experiência, movimentos importantes para identificarmos a criança que fomos e a docente que nos tornamos, a partir das experiências rememoradas, que se tornam presentes por meio do imaginário. Uma conversa entre o tempo atemporal com o tempo atual.

O quarto efeito reitera nossa ideia primeira de que as experiências com a dança/educação nas infâncias estão imbricadas em nossa constituição docente. Nossos percursos, seja na educação formal ou não formal, definem muito de quem somos. E, então, nossa opção é finalizar esse artigo não com respostas definitivas, mas com questionamentos: a experiência estética com a dança/educação tem tido espaço na educação básica, em especial com as infâncias? E a formação inicial para aqueles que atuarão com as infâncias tratam da experiência corpo-sujeito, entendendo a sua importância? E quais espaços para a experiência com o corpo-sujeito a atuação docente tem usado com seus estudantes e, também, com seu próprio fazer, como sujeito em um corpo que pensa e sente?

Assim, concluímos, a partir dessas reflexões, que é possível compreender a experiência estética com a dança como fundamental na formação e na autoformação dos sujeitos, formação que se inicia nas infâncias e vai sendo alimentada e ressignificada ao longo da nossa existência.

1 Bolívar (2014, p. 121) “[...] parte de una valoración de las experiencias adquiridas, que se transforman en aprendizajes, a partir de un proceso autoformativo”.

2“[...] la formación puede ser un proceso de aprendizaje guiado o bien un proceso de autoformación” (VAILLANT, MARCELO, 2015, p. 22).

3“En síntesis, la reflexión sobre las creencias y saberes previos de los docentes debería ser sistemática y sostenida en el tiempo. Ese es sin duda, uno de los caminos más prometedores para comprender desde dentro de la vida y el trabajo de los maestros y profesores. Esto ha llevado a muchos investigadores a indagar en la construcción de la identidad docente a partir de las situaciones de vida cotidiana, de los discursos, de las percepciones, de los modos de ser” (VAILLANT, MARCELO, 2015, p. 41).

4"[...] es el periodo de tiempo que abarca los primeros años, en los cuales los maestros y profesores han de realizar la transición desde estudiantes a docentes” (VAILLANT, MARCELO, 2015, p. 97).

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Recebido: Dezembro de 2021; Aceito: Dezembro de 2022

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