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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro Jan./Mar 2023  Epub Aug 03, 2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.69271 

Artigos de Demanda Contínua

INFÂNCIA, EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM: reflexões a partir da obra Como estrelas na terra: toda criança é especial

CHILDHOOD, EDUCATION AND LEARNING: reflections on the film Like stars on earth: every child is special

INFANCIA, EDUCACIÓN Y APRENDIZAJE: reflexiones desde el trabajo Como estrellas en la tierra: cada niño es especial

Claudia Milanez Sachet1 
http://orcid.org/0000-0003-3119-9705; lattes: 8600965995624306

Talita Duarte de Jesus2 
http://orcid.org/0000-0002-6536-509X; lattes: 8438671426892439

Carlos Renato Carola3 
http://orcid.org/0000-0003-0073-9588; lattes: 5709387553116228

1Universidade do Extremo Sul Catarinense

2Universidade do Extremo Sul Catarinense

3Universidade do Extremo Sul Catarinense


Resumo

Este artigo se propõe a dialogar a respeito do filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, de Aamir Khan, com vistas a refletir sobre as concepções de infância, educação e aprendizagem representadas pelos sujeitos da sociedade retratada na obra. Observou-se, por meio da análise, que Ishaan, personagem principal do filme, vive a infância com entusiasmo, protagonismo e criatividade, aspectos inerentes ao ser criança. O garoto observa e admira o mundo, tanto quanto é surpreendido, indaga, estranha e cria. No entanto, vive em uma sociedade dotada de valores burgueses sob uma lógica da engrenagem capitalista mundial. Desse modo, não há tempo para ser criança como Ishaan, porque é preciso adequar-se ao tempo e aos padrões pré-estabelecidos. A análise permite compreender, pois, que a concepção idealizada pela sociedade na qual o menino vive é contrária àquela vivenciada por ele. Na escola, é retratada uma organização tradicional não apenas a partir da figura do docente, mas também na organização curricular e estrutural das salas de aulas. Isso acaba fazendo com que aqueles que diferem do proposto sejam excluídos, como Ishaan, que, por ser disléxico e não conseguir acompanhar o ritmo das atividades, é inferiorizado.

Palavras-chave: infância; educação; aprendizagem

Abstract

This article proposes a dialogue about the film Like stars on Earth: every child is special, by Aamir Khan, aiming to reflect on the childhood, education and learning conceptions represented by the characters who live in the society portrayed in the film. It was noticed, through analysis, that Ishaan, who is the main character, lives an enthusiastic, active and creative childhood, which are typical aspects of being a child. The boy observes and admires the world as well as is surprised, inquires, wonders and creates. However, he lives in a society endowed with bourgeois values, which is under a logic of the world capitalist gear. Thus, there is no time to be a child like Ishaan since it is required to form oneself and to frame oneself according to preestablished times and standards. It was analyzed that the conception idealized by society in which the boy lives is opposite to the one experienced by him. The school routine is portrayed on a traditional organization that happens not only on the teacher behavior, but also in the curricular organization and classroom structure. This situation culminates in the exclusion of those who are different from the proposed behavior, like Ishaan, who, since it is dyslexic and cannot follow the pace of activities, is inferiorized.

Keywords: childhood; education; learning

Resumen

Este artículo se propone discutir la película Como estrellas en la tierra: cada niño es especial, de Aamir Khan, para reflexionar sobre las concepciones de infancia, educación y aprendizaje representadas por los sujetos de la sociedad retratados en la obra. Se observó, a través del análisis, que Ishaan, el personaje principal de la película, vive su infancia con entusiasmo, protagonismo y creatividad, aspectos inherentes al ser niño. El niño observa y admira el mundo, se sorprende, indaga, se maravilla y crea. Sin embargo, vive en una sociedad dotada de valores burgueses bajo una lógica de engranaje capitalista mundial. De esta forma, no hay tiempo para ser un niño como Ishaan, porque hay que formarse, encuadrarse según tiempos y normas preestablecidas. Se analizó, por tanto, que la concepción idealizada por la sociedad en la que vive el niño es contraria a la experimentada por él. En la escuela se retrata una organización tradicional no solo desde la figura del docente, sino también en la organización curricular y estructural de las aulas. Esto acaba provocando la exclusión de quienes difieren de lo propuesto, como Ishaan, que por ser disléxico y no poder seguir el ritmo de las actividades es inferior.

Palabras clave infancia; educación; aprendizaje

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a dialogar a respeito do filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, de Aamir Khan, com vistas a refletir sobre as concepções de infância, educação e aprendizagem representadas pelos sujeitos da sociedade representada na obra. O enredo versa sobre Ishaan, um garoto de 9 anos que, por conta de não acompanhar o ritmo proposto pela escola, precisa repetir de ano. As reflexões que serão propostas neste estudo são embasadas por autores que discutem os temas propostos, como Vigotski (2011) e Cohn (2005).

É relevante destacar que o presente artigo apresenta resquícios das relações dialógicas vivenciadas pelas autoras, uma vez que, conforme aponta Bakhtin (2003), o enunciado é atravessado “[...] por ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado numa esfera comum da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2003, p. 317). Nesse sentido, o leitor deste texto irá dialogar, a partir do seu lugar de fala, conhecimentos e questionamentos, com percepções que também foram construídas a partir de um olhar dialógico e reflexivo. O texto, para Bakhtin (2003), é considerado como a manifestação do enunciado. Considerando, pois, as enunciações como manifestações produzidas em situações dialógicas, entende-se que a voz do autor emerge de um lugar social determinado, e está sempre em interação com outras vozes. Heinig (2018, p. 22) corrobora com Bakhtin (2003) ao afirmar que “[...] cada campo/esfera em que o sujeito se insere, contribui para a formação de sua identidade e se reflete em seu discurso, como também é atravessado pelas ideologias que ali estão”.

Quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de uma análise fílmica, qualitativa, realizada por meio de estudos bibliográficos. As informações para a investigação surgiram, primeiramente, mediante análise integral do filme. Posteriormente, foram selecionadas algumas cenas, com o intuito de fazer a pesquisa. Para exemplificar algumas das cenas selecionadas, optou-se, ora por trazer a imagem, ora por transcrever as falas das personagens, por meio da escrita das legendas.

Quanto a sua estrutura, o presente artigo está organizado de modo a, primeiramente, contextualizar a obra analisada. Em seguida, encontram-se as reflexões acerca das experiências de infância vivenciadas por Ishaan, comparando-as ao o modelo de criança exigido pela sociedade contemporânea mercadológica representada na obra. Logo, as concepções de educação e aprendizagem requeridas pelas escolas frequentadas pelo garoto são abordadas e, por fim, encontram-se as considerações finais. Cabe salientar que os conceitos de infância, educação e aprendizagem acabam se atravessando, uma vez que não se pode falar em uma separação entre os elementos constituintes de um mesmo espaço social, uma vez que os discursos atravessam os espaços e tempos.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO FILME

O filme indiano Como estrelas na terra: toda criança é especial, dirigido por Aamir Khan, foi lançado no ano de 2007. O longa-metragem de Boollywood tem 2h43min de duração e apresenta como protagonista o menino Ishaan Awasthi, de nove anos. Ishaan vive com sua mãe, seu pai e seu irmão em uma pequena comunidade da Índia e, apesar de mostrar-se uma criança alegre, divertida e criativa, sofre por não ser compreendido pelos professores, diretores, colegas e pais.

O garoto repete o terceiro ano e mesmo assim não obtém o êxito almejado, sendo considerado, por isso, preguiçoso e incompetente. No entanto, por trás desse estereótipo criado, há um menino inteligente, ativo e detentor de muitas habilidades. Essas qualidades, porém, acabam sendo suprimidas em detrimento de suas dificuldades. Ishaan, na maior parte do enredo, é apresentado como um aluno que não consegue realizar as atividades com excelência como seu irmão ou seus colegas de classe e, além disso, apresenta comportamento considerado inapropriado. Com toda essa situação, o menino recebe inúmeros rótulos negativos.

Tal conjuntura leva os pais a trocarem Ishaan de colégio, substituindo a tradicional escola da cidade por um colégio interno, que apresenta como lema Disciplinar cavalos selvagens.

Fonte: Filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, 2007.

Figura 1 Ishaan é levado ao colégio interno 

Esse fato, contudo, acaba tornando a vida do menino infeliz. Além de sentir-se abandonado, seu sofrimento escolar aumenta a partir das normas, regras e punições sofridas, uma vez que apresenta dificuldade em aprender. Com isso, Ishaan torna-se cada vez mais deprimido e desacreditado de suas habilidades e potencial, o que faz com que se isole até mesmo das pinturas, uma de suas grandes paixões.

Todavia, a narrativa retrata uma súbita mudança de realidade quando Ram Shankar Nikumbh, professor substituto de Artes, entra na escola e começa a perceber e a importar-se com as dificuldades do garoto. O docente procura a família, faz análise dos cadernos do aluno e de seu comportamento em sala e acaba percebendo que Ishaan, na verdade, apresenta dislexia, um transtorno específico de aprendizagem de origem neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração (MOYSES, COLLARES, 2011). De acordo com o enredo, o problema de Ishaan estava, pois, vinculado às práticas pedagógicas inconsistentes.

O filme Como estrelas na terra, portanto, propicia relevantes reflexões acerca da compreensão sobre infância, educação e aprendizagem. Com a lógica mercadológica que permeia a nossa sociedade, por vezes, desde a infância, a educação assume um caráter preparatório para a adequação a essa realidade, o que vai ao encontro daquilo que Adorno (2017) chama de semiformação: “[...] no clima da semiformação, os conteúdos objetivos, coisificados e com caráter de mercadoria de formação cultural perduram à custa de seu conteúdo de verdade e de suas relações vivas com o sujeito vivo, o qual, de certo modo, corresponde à sua definição” (ADORNO, 2017, p. 10). Nesse contexto, não há espaço para diversidades e nem tempo para um olhar diferenciado e integral ao sujeito. No caso de Ishaan, a dislexia é apresentada como agravante a sua condição, pois dificulta a sua sobrevivência em uma esfera social que compreende o acesso à escrita a partir de uma visão estritamente instrumental. No entanto, diferente daquilo que a família do menino e a própria escola repercutem, quando ele, finalmente consegue se alfabetizar, está acessando muito mais que um lugar na competição econômica. O sujeito, por meio da leitura, pode romper padrões, reconhecer-se e ressignificar-se em sociedade.

Considerando as contribuições do enredo para pensar temas transversais à educação, nas próximas seções deste artigo, realizar-se-á um diálogo sobre possíveis concepções de infância, educação e aprendizagem a partir dele.

CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA

Nesta seção, dialogar-se-á acerca de recorrentes concepções de infância presentes no filme. Para isso, autores como Vigotski (2011) e Cohn (2005) servirão de base, os quais tratam de assuntos relacionados ao tema. Entende-se que, de acordo com a realidade histórico e cultural na qual os sujeitos estão inseridos, distintas concepções do ser criança podem ser identificadas. De acordo com Cohn (2005, p. 26), “[...] crianças existem em toda parte, e por isso, podemos estudá-las comparando suas experiências e vivências; mas essas experiências e vivências são diferentes para cada lugar, e por isso temos que entendê-las em seu contexto sociocultural”.

Análises históricas permitem perceber que as concepções de infância sofreram adaptações de acordo com o próprio desenvolvimento social, de modo que é possível encontrar diferentes representações do que se entende por ser criança em diferentes produções artísticas e culturais que foram sendo propagadas ao longo dos séculos. Ariès (1981), em uma análise de obras de arte medievais, reflete sobre a ausência de representação de infância em obras anteriores ao século XII, uma vez que as crianças eram representadas como adultos em miniatura, com comportamentos e vestimentas semelhantes aos adultos, tendo como único elemento de distinção a estrutura corporal. Para além disso, da perspectiva histórica diacrônica, entende-se que, sincronicamente, distintas compreensões acerca do ser criança podem estar presentes nos espaços sociais. Segundo Sarmento (2007, p. 28), “[...] a distinção da infância da adultez, que a modernidade ocidental produziu, não corresponde a uma só ideia de infância, nem origina uma única norma da infância”. Desse modo, quando o processo de leitura é considerado como uma ação dialógica de interação com o texto, pode-se prever que o próprio leitor deste artigo, a partir de suas relações com o mundo, trará para a reflexão outras perspectivas possíveis. Isso posto, cabe a contextualização das concepções que são propostas para análise neste artigo.

O filme permite identificar duas concepções de infância distintas, as quais são evidenciadas logo no início da primeira cena, uma que é vivenciada pelo protagonista Ishaan Awasthi e outra que é aquela considerada ideal pela sociedade retratada na obra. Em determinado momento, o menino aparece ajoelhado na calçada com um objeto parecido com um coador de café. Contudo, sua criatividade fica evidente a partir do uso que faz do objeto, uma vez que, para ele, assume a função de rede para pescar peixes. O menino demonstra fascínio e concentração em sua tarefa de pescador, até que, violentamente, é arrancado por um homem que diz: “[...] sentado na sarjeta! O ônibus está esperando há 10 minutos! Não ouviu a buzina?” (FILME, 2007). Em seguida, empurra Ishaan até o ônibus da escola e completa: “[...] chegamos atrasados todo dia por sua culpa” (FILME, 2007). Tal fato, no entanto, não atormenta ou entristece o menino, o qual continua fascinado com seus peixinhos.

Fonte: Filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, 2007.

Figura 2 Ishaan no ônibus escolar 

Nessa cena, é visível o olhar ativo e criativo do garoto, que se mostra tão interessado no que faz que não se amedronta nem ao ser barrado. Retrata-se, nesse sentido, uma criança “[...] que tem um papel ativo na constituição das relações sociais em que se engaja, não sendo, portanto, passiva na incorporação de papéis e comportamentos sociais.” (COHN, 2005, p. 27-28). Contudo, observa-se que, embora o menino apresente especificidades do ser criança e consiga mantê-las, não possui domínio do seu próprio corpo, uma vez que é obrigado a ocupar os espaços que lhe são impostos por meio de força física. O homem que o arrasta para o ônibus, por sua vez, demonstra ter outra concepção de infância, a qual se aproxima mais daquela retratada pela sociedade a qual Ishaan pertence. A pressa é uma característica singular da cultura moderna. Nesta modernidade, a educação escolar está a serviço do homem moderno adulto, que se impõe na forma de um imperialismo do mundo adultocêntrico. A criança, nesse caso, assume caráter passivo e não pode ter voz, sendo que não há tentativa de diálogo com o intuito de compreender os seus desejos e motivações. Fica, pois, evidente uma concepção de infância como um momento em que a criança precisa ser modelada para atingir as expectativas sociais, ainda que isso demande punição. Aproxima-se, logo, daquilo que é idealizado pela sociedade, ou seja, o enquadramento dos indivíduos nos moldes requeridos para a ocupação de papéis sociais determinados. A criança, nesse caso, é considerada um adulto em preparação. Percebe-se, desse modo, que se incita controle e disciplinarização dos sujeitos, de modo a homogeneizar as pessoas conforme padrão social e desejável.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças. Ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 1999, p. 119).

A escola, portanto, acaba servindo como um dos lugares propícios para vigiar, punir, controlar e disciplinar corpos. O homem que empurra Ishaan até o ônibus trabalha no cargo de cuidador das crianças, tendo a função de supervisioná-las e, apesar de aparecer em poucas cenas, permite inferir, por meio de suas palavras e de sua ação, a ideia de que trabalha para cuidar e auxiliar na formação de pessoas conforme os padrões aceitos, ou seja, é treinado com a finalidade de preparar os sujeitos para trabalhar e viver no ritmo da sociedade moderna. Num dos clipes musicais do filme, essa questão é retratada novamente, com o intuito de mostrar a rotina acelerada da família de Ishaan e de toda a sociedade na qual estão inseridos. O refrão da música, inclusive, torna explícita essa realidade, afirmando: “[...] eles dormem com um olho aberto, ficar pra trás não é uma opção. Trabalhe o máximo que puder, do jeito que lhe dizem” (FILME, 2007). Fica claro que, nessa sociedade, trabalha-se para atender exigências capitalistas. A infância, por sua vez, é vista como uma das fases propícias para a formação de indivíduos aptos a serem reprodutores desse sistema, ou seja, serem emoldurados conforme padrões pré-estabelecidos.

À vista disso, é possível perceber que o objetivo é direcionado à formação de indivíduos uniformes e obedientes, que possam realizar as tarefas conforme predeterminado, dando o máximo de si, pois, caso haja falha no sistema, a culpa será individualizada. Remete-se, assim, ao sistema neoliberal, que julga os indivíduos por suas próprias ações, de modo que “[...] o sucesso e o fracasso individuais são interpretados em termos de virtudes empreendedoras ou de falhas pessoais [...]”. (HARVEY, 2011, p. 76). As pessoas são, pois, encorajadas a seguir da forma como o sistema está posto, afinal, como apresenta uma segunda parte do clipe: “[...] assim funciona o mundo, continue. Seu destino te espera, siga em frente” (FILME, 2007). Caso contrário, correrá o risco de ser culpabilizado, sendo que “[...] em geral se atribuem os fracassos pessoais a falhas individuais, e com demasiada frequência a vítima é quem leva a culpa!” (HARVEY, 2011, p. 86).

Ishaan é um exemplo de sujeito que leva a culpa, sendo que não consegue acompanhar o compasso da escola e da expectativa da família. Os professores e pais o acusam de preguiçoso e incompetente, entretanto, não percebem as inúmeras qualidades do menino, tampouco apresentam possibilidades de flexibilização da proposta pedagógica da escola com o intuito de tentar atingi-lo positivamente. Desconsideram, portanto, as especificidades do ser criança vivenciadas pelo menino, com o propósito de enaltecer a formação de uma infância pleiteada pela sociedade. Com o propósito de privilegiar essa formação humana mais passiva e reprodutora, cria-se um currículo pré-estabelecido, no qual aqueles que não se encaixam passam a ser considerados anormais.

Ainda durante o clipe, fica nítida a diferença entre o tempo da criança e do adulto por meio da velocidade da música e de seu conteúdo. Outra parte da música é utilizada para retratar Ishaan. Agora, com a concepção diferente: “[...] mas aqui chegamos a outro assunto...o de acordar com as músicas de um sonho. Quando o tempo para a fantasia se liberta” (FILME, 2007). Ishaan, nesse momento, desperta lentamente, mas a cena não dura muito, porque a mãe o apressa, afinal, é hora da organização para ir à escola e, como consequência, preparação para a vida, afinal, trata-se de uma das instituições responsáveis pela homogeneização dos corpos, vestes e, também, do tempo de aprender (FOUCAULT, 1999).

Na parte citada do clipe, exemplifica-se novamente a concepção de infância vivenciada por Ishaan. O garoto, apesar de ter poucos amigos, é bastante ativo nos contextos em que atua, demonstrando aspectos criativos em suas relações com os brinquedos e os elementos que estavam a sua volta. O garoto tem seus próprios modos de se relacionar com o mundo, em uma perspectiva de tempo diferente daquela que lhe era imposta pela sociedade. O menino faz, como citado pela letra da música, “[...] com que a fantasia se liberte” (FILME, 2007). Não entende, nesse sentido, a razão pela qual deve se enquadrar no padrão que lhe é proposto, pois vive em seu tempo e tem suas próprias características e qualidades. Ele possui muitas habilidades como, por exemplo, um olhar observador, que o possibilitou a desenvoltura artística, a qual se manifestava por meio da elaboração de variados desenhos ricos em detalhes; aproveita os momentos de análise das cenas reais, para criar e recriar cenários e personagens divertidos; vive no mundo da imaginação e criatividade, habilidades essas que lhe são barradas. Em outras partes do filme, também é posto em evidência esse universo imaginário das crianças, pois são utilizados desenhos animados como recurso para proporcionar aos expectadores a imaginação infantil, levando-nos a esses tempos e espaços dessa época da vida. Apesar de se tratar de uma característica, até certo ponto, inerente ao ser criança, desde cedo, a sociedade tende a podar esses aspectos. Contudo, há quem consiga ser resistência, como no caso de Ishaan. Conforme Cohn (2005, p. 35), “[...] as crianças não são apenas produzidas pelas culturas, mas também produtoras de cultura. Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura”.

Contudo, esse tempo diferenciado do ser criança é ignorado em função da necessidade da uniformização do tempo de aprender. Todos precisam se adequar ao modelo posto pela sociedade, o que faz com que Ishaan seja considerado repetente e incapaz, já que, como apresenta dislexia, não consegue desenvolver as atividades da forma como lhe são propostas. Porém, os professores, diretores e os próprios pais de Ishaan culpabilizam o menino, entendendo que tudo que precisava ser feito para o desenvolvimento dele está sendo feito. Em uma conversa com os pais sobre o garoto, a diretora expõe que “[...] os livros ainda são seus inimigos. Ler e escrever são como castigos para ele. As vezes sua escrita em Inglês parece Russo. Repete o mesmo erro de propósito” (FILME, 2007). Contudo, a partir de uma análise pedagógica, pode-se afirmar que sua resistência em aprender a ler e a escrever está na dificuldade que apresenta, e não por preguiça. Ishaan não erra de propósito, pelo contrário, é visível sua vontade de aprender.

Em uma das cenas do filme, após a percepção, durante suas aulas, das dificuldades e sofrimento de Ishaan, o professor Ram procura a família do aluno para tentar conhecer melhor o seu contexto. O garoto acaba passando por questões emocionais e educacionais sérias, sendo castigado, humilhado e excluído. Sofre as consequências por viver em uma sociedade como aquela na qual vive. Professor Ram, ao analisar Ishaan e seu comportamento, seus materiais escolares, seus desenhos e seu contexto familiar, percebe que, na verdade, o menino precisa de atitudes pedagógicas diferenciadas, pois apresenta dislexia. No entanto, o pai não acredita inicialmente no discurso do professor, continuando a defender que, na verdade, a culpa é de Ishaan simplesmente. Quando o professor pergunta ao pai a respeito da causa de o menino manter o comportamento que mantém, o pai responde: “[...] atitude. O que mais? Perante os estudos e todo o resto. Sempre ardiloso, difícil, desobediente” (FILME, 2007). Nota-se, que, a culpa recai sobre o menino. Para Vigotski (2011) a criança precisa do adulto para se desenvolver e, quando esse desenvolvimento não acontece por caminhos diretos, é necessário organizar os obstáculos para que isso ocorra por outros caminhos. Ishaan é uma criança com especificidades e dificuldades no processo de aprendizagem. Contudo, isso não quer dizer que seja menos desenvolvido, mas sim, que precise de outros modos de desenvolvimento.

A estrutura das formas complexas de comportamento da criança consiste numa estrutura de caminhos indiretos, pois auxilia quando a operação psicológica da criança revela-se impossível pelo caminho direto. Porém, uma vez que esses caminhos indiretos são adquiridos pela humanidade no desenvolvimento cultural, histórico, e uma vez que o meio social, desde o início, oferece à criança uma série de caminhos indiretos, então, muito frequentemente, não percebemos que o desenvolvimento acontece por esse caminho indireto. (VIGOTSKI, 2011, p. 864).

O garoto, além disso, não compreende o porquê precisa agir da maneira como os adultos querem. Desse modo, em uma outra parte do clipe citado, quando filmam Ishaan, a letra reitera: “[...] eles sempre se perguntam...Por que o lema do mundo é continue assim?” (FILME, 2007). Ishaan, como uma criança atuante, vivia em seu mundo, em seu tempo, com suas vontades e, com isso, “[...] interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações” (COHN, 2005, p. 28). No entanto, por ser incompreendido, acaba limitando sua interação com os adultos e com outras crianças e interage mais com a natureza ao seu redor.

Na próxima seção, discutiremos acerca da concepção de educação e aprendizagem que é retratada na obra. Cabe ressaltar que, muito daquilo que é compreendido como infância acaba resultando em concepções de educação e práticas pedagógicas, uma vez que não há uma separação entre os elementos constituintes de um mesmo espaço social no que diz respeito a concepções, ou seja, os discursos e práticas dialogam em certa medida.

CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO E APRENDIZAGEM

No enredo do filme, são apresentados dois contextos escolares distintos em que certas concepções de educação e aprendizagem se assemelham, as quais se direcionam à preparação para o mercado de trabalho, o que, por sua vez, pode ser percebido nos planejamentos dos professores e nas propostas curriculares das próprias escolas. As atividades propostas apresentam caráter homogêneo, ou seja, não levam em conta as particularidades de cada sujeito e, caso algum aluno não se enquadre, é excluído, como no caso de Ishaan. Para além disso, podemos identificar e trazer para a conversa dois pontos passíveis de reflexão no que diz respeito à concepção de educação representada no filme: a concepção que é criticada, até certo ponto, pelo enredo e aquela que ele apresenta a partir da narrativa que propõe. Cabe retomar o diálogo acerca da crítica relacionado a um ensino com bases neoliberais, em que o mercado dita a organização da educação. A criticidade e o talento do menino, representados no filme, são ocultados pelo sistema educativo em detrimento da dificuldade que apresenta com a leitura, escrita e cálculos. Desse modo, o filme permite também refletir sobre aspectos políticos relacionados a alfabetização atrelados a uma educação para o mercado de trabalho, uma vez que retrata o valor da apropriação da escrita em uma sociedade marcada por aspectos capitalistas. De acordo com Britto (2015, p. 63):

[...] o indivíduo contemporâneo, portanto, para sua inserção no mundo do trabalho reorganizado nas novas bases produtivas, bem como no correspondente universo do consumo, tende a possuir dois atributos fundamentais: competitividade e empregabilidade - o que implica um nível básico de alfabetismo.

Essa estrutura aparece de forma concomitante nas representações do espaço escolar e familiar de Ishaan. Contudo, essa crítica, realizada pelo enredo, vem acompanhada de uma representação idealizadora do professor como salvador e portador de todo conhecimento.

A partir do filme, é possível compreender que o professor é retratado como o único responsável pela construção de conhecimento dos sujeitos e que, caso tenha um método efetivo, poderá resolver todos os problemas da educação. Essa concepção pode ser percebida com base na representação de contextos em que professores apresentam determinadas metodologias tradicionais e que não são efetivas para a aprendizagem de Ishaan, enquanto, quando surge um professor com um método inovador, consegue identificar e resolver todos as dificuldades do menino.

Martins (2011), em seus estudos vigotskianos sobre a formação social da personalidade do professor, afirma que não é possível uma individualização do ensino e do ser professor sem considerar todo o contexto escolar e as próprias vivências desses sujeitos. No caso dos demais professores do filme, é retratado quase que de forma homogênea práticas pedagógicas totalmente vinculadas a concepção de educação que a própria estrutura social apresenta, a qual tem por objetivo a preparação dos sujeitos para que possam assumir papéis sociais pré-estabelecidos de forma passiva, principalmente, no que diz respeito ao mercado de trabalho e à manutenção da estrutura vigente. Ram, por sua vez, em sua infância, viveu situações semelhantes àquelas que Ishaan vive e, por isso, consegue ajudar o menino.

Ademais, para Vigotski (2019), não é possível separar cognição, mente e linguagem, uma vez que tudo se constitui na esfera social, de forma interativa. Nesse contexto, atenção, memória, raciocínio e habilidades linguísticas são aspectos desenvolvidos na relação com o outro, no social, o qual, por sua vez, não está centralizado no papel de um único sujeito, como o profissional da educação, mas em todos aqueles que fazem parte da comunidade de um indivíduo. Nesse sentido, a escola não pode ser compreendida como espaço de formação isolado da comunidade do sujeito, uma vez que são partes equivalentes no processo de aprendizagem dos sujeitos e deveriam caminhar juntos. Observa-se que as funções psicológicas de nível superior estão relacionadas com interações sociais internalizadas por meio da linguagem. Nesse sentido, aquilo que é subjetivo hoje, como os conhecimentos e as habilidades, passou primeiro por um processo intersubjetivo, no qual o sujeito, por meio da linguagem, constituiu interações com seus pares (VIGOTSKI, 2019).

É relevante contextualizar que, no filme, o personagem Ishaan estava rodeado por relações de poder, pouco dialógicas, as quais não permitiam que o menino conseguisse resolver problemas com ajuda dos pares, ou de um adulto. Na escola, retrata-se uma organização tradicional não apenas a partir da figura do docente, mas também na organização curricular e estrutural das salas de aulas. Os alunos ficam enfileirados, usam uniformes impecáveis, e respondem apenas à figura do professor, como portador do conhecimento absoluto. Conforme afirma Foucault (1999, p. 173),

A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos.

Em determinado momento do filme, o aluno é, inclusive, expulso da sala de aula por não conseguir realizar uma atividade de leitura que os outros colegas da mesma turma realizam com facilidade. Logo, essa perspectiva retrata uma educação organizada por etapas que exclui aqueles que não se encaixam por meio da justificativa do mérito.

Fonte: Filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, 2007.

Figura 3 Ishaan sendo expulso da sala 

A dislexia apresentada pelo menino, por sua vez, é representada como algo que não parte do social, de suas interações, das formas de ensino, mas como uma estrutura cognitiva formulada sem influência da linguagem. Nesse caso, identifica-se o problema e sua solução, mas não suas causas. Em determinado momento, o retorno que a escola dá aos pais em relação ao aluno é: “[...] algumas crianças têm menos sorte. Para elas existem escolas especiais” (FILME, 2007).

Fonte: Filme Como estrelas na terra: toda criança é especial, 2007.

Figura 4 Pais de Ishaan vão à escola 

Contudo, entender dessa forma seria desconsiderar que a própria invenção da escrita e do cálculo surgiu do social, logo, as dificuldades cognitivas que ocorrem pautadas nessas linguagens também precisam ser entendidas de forma contextualizada. Embora a dislexia não possa ser considerada uma deficiência, caso o desenvolvimento não ocorra por algum caminho indireto, pode acarretar deficiências do ponto de vista das práticas sociais. De acordo com Vigotski (2011), a deficiência surge na sociedade, nas demandas sociais, em uma sociedade dita normal, e não na ordem biológica. Ishaan, em suas características, é considerado como uma criança difícil pela comunidade escolar e familiar, pois foge daquilo que o sistema espera dele e apresenta dificuldades nas habilidades consideradas essenciais para a sociedade: “[...] diante de nós, temos, geralmente, uma criança difícil de ensinar em consequência de uma diminuição de suas capacidades, ou uma criança difícil de educar como resultado de alguma orientação em sua conduta e traços de caráter que trazem a ela dificuldades ao convívio social” (VIGOTSKI, 2019, p. 208).

O teórico realiza uma crítica da redução do intelecto sem uma caracterização daquilo que é considerado defeito, bem como da estrutura interna da personalidade originada por ele: “[...] a criança, cujo desenvolvimento foi complicado por um defeito, não é simplesmente menos desenvolvida que suas contemporâneas normais, é uma criança, porém, desenvolvida de outro modo” (VIGOTSKI, 2019, p. 31). No filme em análise, a preocupação da escola e da família aparece sempre com enfoque para aquilo que o menino não desenvolveu e nunca em suas potencialidades.

Logo, ao tomarmos para a análise as concepções de zona de desenvolvimento real e potencial de Vigotski, podemos compreender que o foco, nesse contexto, está sempre na zona real, no conhecimento prévio do sujeito. Como as turmas aparecem organizadas por etapas, com enfoque na zona de desenvolvimento real, entende-se que todos os alunos possuem o mesmo nível de conhecimento e, logo, Ishaan é considerado, de certa forma, inferior por suas dificuldades. No entanto, o aluno apresenta habilidades diferenciadas que não são valorizadas, as quais, caso houvesse uma organização distinta em suas interações com os pares e com os adultos, poderiam contribuir para que ele chegasse ao maior nível de desenvolvimento possível.

O professor Ram, por sua vez, fez uso de estratégias distintas especificamente voltadas para as dificuldades do menino, as quais, ao mesmo tempo, enalteciam suas habilidades, motivo pelo qual possibilitaram maior motivação, dedicação e resultado. Percebe-se que o professor adotou variadas metodologias para alcançar o objetivo e utilizou espaços e períodos distintos da sala de aula. Contudo, isso nem sempre é possível na realidade escolar. Desse modo, percebe-se que, mais uma vez, o filme retrata uma concepção idealizada do professor inovador. No caso de Ishaan, sua dislexia impossibilitava uma aprendizagem da leitura e escrita pelo mesmo caminho que os demais colegas, a mediação do professor, contudo, foi essencial para que caminhos indiretos pudessem ser percorridos por ele. De acordo com Vigotski (2011, p. 865),

[...] a criança começa a recorrer a caminhos indiretos quando, pelo caminho direto, a resposta é dificultada, ou seja, quando as necessidades de adaptação que se colocam diante da criança excedem suas possibilidades, quando, por meio da resposta natural, ela não consegue dar conta da tarefa em questão.

É na relação assimétrica com o adulto, nos obstáculos que são propostos e nas trocas com os pares que os sujeitos adquirem conhecimento e os tornam parte das suas estruturas psíquicas. Desse modo, as metodologias que o professor adotou com Ishaan podem, em um primeiro momento, parecer a resolução de todos os problemas da educação. No entanto, precisamos entender que essa percepção acaba reproduzindo discursos individualistas que não percebem o professor como parte de um sistema maior que vem sendo perpetuado. Isso fica evidente, por exemplo, quando Ram, ao final do filme, propõe uma competição artística para evidenciar as qualidades de Ishaan, mas ao mesmo tempo, coloca a meritocracia como parte do processo. Logo, não é possível dizer que a personalidade desse professor não é afetada por aspectos utilitários, mercadológicos, uma vez que acaba colocando sobre os outros alunos a carga inversa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo propôs-se a refletir sobre conceitos de infância, educação e aprendizagem presentes no enredo da obra Como estrelas na terra: toda criança é especial. Observou-se, por meio da análise, que Ishaan, personagem principal do filme, vive a infância com entusiasmo, protagonismo e criatividade, aspectos inerentes ao ser criança. O garoto observa e admira o mundo, surpreendese, indaga, estranha, cria. No entanto, vive em uma sociedade dotada de valores burgueses sob uma lógica da engrenagem capitalista mundial.

Desse modo, não há tempo para ser criança como Ishaan, porque é preciso formar-se, emoldurar-se conforme tempos e padrões pré-estabelecidos. Analisou-se, pois, que a concepção idealizada pela sociedade na qual o menino vive é contrária àquela vivenciada por ele. Na sociedade indiana, tal como nas sociedades modernas em geral, considera-se o indivíduo apto a se desenvolver apenas as pessoas que se enquadram aos preceitos de normalidade e produtividade do sistema social e, para além disso, quem não anda conforme os padrões, além de ser considerado anormal, acaba levando a culpa. Ishaan, nesse sentido, é culpabilizado por aquilo que não consegue fazer. Como não consegue se comportar e agir conforme protótipo esperado, acaba sendo considerado uma criança incompetente.

A escola, estando no interior dessa sociedade mercadológica, homogeneíza os planejamentos e atividades escolares. Não há espaço para a diferença. Nesse contexto, a criança é preparada para o mundo capital, havendo valorização de um aprendizado conteudista e quantitativo em tempo cronometrado. Essa exigência se dá por meio de um ensino com formato informacional em que os conteúdos precisam ser assimilados e reproduzidos rapidamente. Esvazia-se, com isso, a possibilidade de ser criança ativa, protagonista e atuante.

Para além disso, o filme apresenta uma concepção liberal sobre a escola e o ser professor, pois, ao realizar uma crítica às práticas de ensino adotadas e individualizar a atuação docente, oculta a crítica aos modelos sociais que norteiam e embasam a organização curricular, estrutural e metodológica no espaço escolar. Acaba-se, pois, reproduzindo discursos salvacionistas acerca da prática docente e do ser professor. Aliás, as referências teóricas do prof. Ram são todas eurocêntricas, questão que evidencia o legado e a vigência da colonialidade do poder na estrutura social de uma nação milenar como a Índia. Sabemos que o filme, tanto quanto outros artefatos culturais, sempre comporta múltiplas intepretações, mas neste caso o horizonte epistemológico norteia o olhar para a perspectiva neoliberal que enaltece o indivíduo protagonista e naturaliza o caminho desenvolvimentista da Índia na rota da modernidade.

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Recebido: Julho de 2022; Aceito: Outubro de 2022

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