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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.62028 

Artigos de Demanda Contínua

ABANDONO AFETIVO DE CRIANÇA E PROCESSOS DE APRENDIZAGEM ESCOLAR

AFFECTIVE DROPOUT AND SCHOOL LEARNING PROCESSES

DESERCIÓN AFECTIVA Y PROCESOS DE APRENDIZAJE ESCOLAR

Fernando de Almeida Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-4826-350X; lattes: 3600266496028026

Rafael Cerqueira Fornasier2 
http://orcid.org/0000-0001-5982-6454; lattes: 0818516091348958

1Secretaria Estadual de Educação da Bahia

2Universidade Católica do Salvador - Bahia


Resumo

O artigo sobre o abandono afetivo de criança e processos de aprendizagem escolar tem como objetivo descrever o abandono afetivo na perspectiva interdisciplinar (ciências humanas, ciências sociais aplicadas e biológicas) e identificar as possíveis consequências na aprendizagem escolar infantil. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que propõe realizar uma revisão de literatura (empírica e não-empírica) em obras e autores contemporâneos, ressaltando a importância do complexo afetivo para o desenvolvimento pessoal e social das pessoas. A priori, o fenômeno do abandono afetivo aponta para a impossibilidade de desenvolvimento integral da criança, constituindo-se na sociedade hodierna como um desafio à educação do século XXI. Considerando que a maioria dos casos de abandono no Brasil está relacionada às condições de vulnerabilidade socioeconômicas das famílias, conforme indicadores sociais apresentados na pesquisa, o estudo indica que o exercício da não-afetividade, negligência ou abandono afetivo incidem negativamente no desenvolvimento humano, causando danos irreparáveis em todas as etapas que constituem o processo de aprendizagem escolar.

Palavras-chave: abandono; afeto; criança; aprendizagem; escola

Abstract

The article on affective abandonment of children and school learning processes aims to describe affective abandonment in an interdisciplinary perspective (human sciences, applied social sciences and biological sciences) and to identify the possible consequences on children's school learning. It is a qualitative research, which proposes to carry out a literature review (empirical and non-empirical) in works and contemporary authors, emphasizing the importance of the affective complex for the personal and social development of people. A priori, the phenomenon of emotional abandonment points to the impossibility of the child's integral development, constituting in today's society a challenge to education in the 21st century. Considering that most cases of abandonment in Brazil are related to the socioeconomic conditions of families' socioeconomic vulnerability, according to social indicators presented in the survey, the study indicates that the exercise of non-affectiveness, neglect or emotional abandonment has a negative impact on human development, causing damage irreparable at all stages that make up the school learning process.

Keywords: abandonment; affection; kid; learning; school

Resumen

El artículo sobre el abandono afectivo de los niños y los procesos de aprendizaje escolar tiene como objetivo describir el abandono afectivo en una perspectiva interdisciplinar (ciencias humanas, ciencias sociales aplicadas y biológicas) e identificar las posibles consecuencias en el aprendizaje escolar de los niños. Se trata de una investigación cualitativa, que propone realizar una revisión de la literatura (empírica y no empírica) en obras y autores contemporáneos, enfatizando la importancia del complejo afectivo para el desarrollo personal y social de las personas. A priori, el fenómeno del abandono emocional apunta a la imposibilidad del desarrollo integral del niño, constituyendo en la sociedad actual un desafío a la educación en el siglo XXI. Considerando que la mayoría de los casos de abandono en Brasil están relacionados con las condiciones socioeconómicas de la vulnerabilidad socioeconómica de las familias, de acuerdo con los indicadores sociales presentados en la investigación, el estudio indica que el ejercicio de la no afectividad, el abandono o el abandono emocional tiene un impacto negativo en la salud humana desarrollo, provocando daños irreparables en todas las etapas que componen el proceso de aprendizaje escolar.

Palabras clave abandono; afecto; niño; aprendiendo; colegio

INTRODUÇÃO

A dimensão humano-afetiva da aprendizagem está indiscutivelmente relacionada com a dimensão humano-cognitiva do desenvolvimento infantil. Como condição necessária a tal desenvolvimento, contudo, não suficiente, as afecções e/ou afetos podem determinar as possibilidades do conhecimento por parte do sujeito, de forma que o não uso ou abandono afetivo, iniba sua capacidade de aprender. As pesquisas têm demonstrado que a experiência de uma afecção provoca alterações na capacidade humana de pensar e agir; sendo positiva, possibilita uma vivência agradável na relação com as pessoas que estão ao seu redor; quando negativa, funciona como um mecanismo de inibição da criatividade infantil.

O fenômeno do abandono afetivo, na perspectiva interdisciplinar, constitui-se como uma forma de negligência tanto da família quanto da escola, cuja privação de afetos reverbera de forma negativa na aprendizagem infantil, sobretudo quando ultrapassa o emocional e se transforma em dor física, retardando até mesmo o crescimento do cérebro. Que pese a invisibilidade individual do dano, as consequências estão relacionadas à subjetividade humana, quando a visibilidade muitas vezes aparece como forma de transgressão social e dificuldades do indivíduo de relacionar-se consigo mesmo e com os outros.

Ressalta-se que embora a família e a escola estejam passando por mudanças, se considerada a qualidade das relações afetivas, podem oferecer as melhores condições (cuidado, atenção, confiança, acolhimento, carinho, entre outras) para o desenvolvimento humano. Relações afetivas precárias como de abandono afetivo de criança, ao contrário, destroem projetos de vida, criam traumas e transtornos psíquico-sociais.

A hipótese de que o abandono afetivo de criança é prejudicial à aprendizagem escolar consiste na impossibilidade de desenvolvimento integral do ser humano, portanto, implica sérias consequências à aprendizagem como um todo. A dimensão afetiva da aprendizagem está relacionada com a dimensão cognitiva do desenvolvimento infantil. As diversas formas de interação que o sujeito estabelece com o seu meio socioafetivo (família, escola, amigos, entre outros) e como esse meio se relaciona com ele, poderá tanto favorecer quanto prejudicar o seu desenvolvimento, consequentemente, sua aprendizagem.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como método uma revisão narrativa de literatura empírica e não-empírica em autores e obras que discutem o abandono afetivo e suas implicações no processo de aprendizagem escolar, a partir das contribuições das ciências humanas, ciências humanas aplicadas e ciências biológicas, apresentando estudos da psicologia, neurociência, psiquiatria e do direito que evidenciam as consequências (objetivas e subjetivas) do abandono no desenvolvimento infantil.

O itinerário metodológico compreende a leitura e utilização de artigos científicos selecionados no Scielo.org-Scientific Eletronic Library Online (8 artigos), PePSIC-Periódicos Eletrônicos em Psicologia (6 artigos), repositórios acadêmicos (PUC: 03, UCSAL: 01 e UNICAMP: 02) e 7 livros nas áreas das ciências humanas, ciências humanas aplicadas e ciências biológicas. O critério de inclusão é, justamente, obras (livros, artigos, revistas) e autores que tratam dos eixos temáticos que constituem a pesquisa: abandono, afeto, aprendizagem e escola. A integração dos complexos afetivos e cognitivos, condição para o desenvolvimento humano, constitui o cerne das discussões presentes no estudo.

A interdisciplinaridade com que o tema é discutido enriquece a tessitura conceitual e ressalta a importância dos processos afetivos para a aprendizagem, indicando os desafios postos à educação no século XXI. Nesse sentido, a relevância do artigo consiste em contribuir com as pesquisas que já vem sendo realizadas, sobretudo aquelas que reconhecem a precarização dos afetos e vínculos advindos das situações de abandono material e afetivo que reverberam negativamente na aprendizagem escolar infantil.

CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DO ABANDONO AFETIVO

O abandono de crianças (afetivo ou material) constitui um desafio à parentalidade responsável, cujo dever de cuidar transcende os laços de consanguinidade, abrindo horizontes de discussão interdisciplinar (WEBER, 2017). Ainda que se reconheçam as diferentes definições das diversas áreas do conhecimento (psicologia, psiquiatria, sociologia, direito, filosofia, pedagogia, entre outras), deve-se, pois, ressaltar que todas têm em comum a preocupação com integridade psicossocial da criança (ORIONTE; SOUSA, 2005).

A instituição familiar, considerada como o lugar mais adequado para acolher o ser humano e desenvolver laços afetivos (PETRINI, 2009), pode se tornar também, conforme Orionte e Sousa (2005), lugar de violência, desamparo, conflitos e negligências. O abandono material e, consequentemente, afetivo deixa a criança desprotegida, não pela violação de um dever de amá-la ou simplesmente de dar afeto; mas pelo dever normativo de educá-la e cuidá-la conforme as condições possíveis dos responsáveis (SCHREIDER, 2008). O trauma advindo das situações de abandono, conforme Bicca (2015), impossibilita a realização de um projeto de vida, como discorre abaixo:

Deve-se destacar que o abandono afetivo não é apenas a perda de uma oportunidade ou dano moral simples. É dano muito mais grave, que pode ser considerado como dano a todo um projeto de vida, ou seja, no rumo, objetivo ou sentido que cada um atribui a sua vida. É evidente que ser cuidado a amado pelo pai e pela mãe é o mínimo que um ser humano em formação pode esperar da vida (BICCA, 2015, p. 55).

Para Carvalho et al. (2015, p. 19), “[...] o abandono afetivo é caracterizado pela indiferença, ausência de assistência afetiva e amorosa do pai e/ou da mãe durante o desenvolvimento da criança”. Segundo os autores, não se trata de ausência física, embora essa contribua para o distanciamento afetivo; trata-se, pois, de “[...] omissão dos pais no amparo moral, no afeto, carinho, atenção, educação e orientação ao seu filho” (CARVALHO et al., 2015, p. 19).

De acordo com Schor (2016), as heranças invisíveis deixadas pelo abandono afetivo correspondem a inúmeras repercussões subjetivas que constituirão arquétipos traumáticos na vida de uma criança. Evidencia-se “[...] a formação de subjetividades incapazes de se posicionar e de posicionar suas próprias histórias em contraste com a história do ambiente” (SCHOR, 2016, p. 19). Em outras palavras, como o próprio autor denomina, há uma paralisia subjetiva deixada como herança do trauma do abandono afetivo.

Em meio a uma situação de sofrimento intolerável, uma das primeiras tendências evidenciadas pelo psiquismo é a de mergulhar em um processo de transe, semelhante a uma anestesia, cujo resultado é um estado de desorientação psíquica, capaz de suspender a percepção do mal e, junto com ela, a de uma boa parcela da realidade em geral (SCHOR, 2016, p. 138).

Os riscos sobre as etapas do desenvolvimento infantil, por exemplo, maus tratos físicos ou psicológicos podem ser caracterizados como abandono (material e afetivo), pois trazem prejuízo à integridade física e emocional da criança (SCHREINER, 2009).

Abordagem e perspectivas científicas sobre o abandono afetivo de crianças

O abandono afetivo por se tratar de uma aporia recente, tem despertado interesses de diversas áreas do conhecimento, com vistas a construir um consenso científico sobre tal fenômeno psíquico-social (MENDONÇA, 2011). Para a consultora de assuntos relativos à família do Programa das Nações Unidas para a Infância, Gabriela Schreiner (2009), as necessidades físico-biológicas, afetivo-emocionais são necessidades que podem tornar frágeis o desenvolvimento saudável da criança; portanto, seu não cumprimento pode ser caracterizado abandono.

Psiquiatria infantil

Os estudos de psiquiatria infantil, especialmente os realizados pelo psiquiatra Melvin Lewis1 e Volkmar (1993, p. 101), ressaltam a importância do afeto no ambiente familiar como uma das condições fundamentais para o desenvolvimento infantil, pois “[...] inclui uma relação amorosa, oportunidades para uma vinculação, a continuidade da assistência, carinho e estimulação adequada”.

É possível afirmar, conforme Lewis e Volkmar (1993, p. 103), “[...] que a família constitui um abrigo para seus membros dentro da sociedade maior [...], o que proporciona um pouco de segurança emocional face às demandas do mundo externo”. Para o autor, compete à família promover e orientar o desenvolvimento da criança, através das seguintes funções interrelacionadas: atender as necessidades da criança, suprindo a capacidade de imaturidade infantil; orientar a criança para que a mesma se torne um indivíduo integrado; ensinar os costumes básicos de uma dada sociedade e, por fim, transmitir as técnicas essenciais da cultura.

O exercício das funções está circunscrito na imagem de pais/mães como guias, educadores e modelo para sua prole, sobretudo no controle de impulsos e comportamentos que podem provocar distúrbios na personalidade da criança (LEWIS, VOLKMAR, 1993).

A privação de afetos, abandono ou rejeição por parte da família pode resultar na formação de personalidades rígidas, falta de curiosidade, menor expressão de prazer e, quando mais grave, estados patológicos como a depressão, ansiedade, fobias, entre outros, sendo necessário o uso de medicamentos (LEWIS, VOLKMAR, 1993). Essas situações descritas podem ensejar problemas no processo de aprendizagem escolar, como fora identificado por Lewis e Volkmar (1993, p. 207) em suas pesquisas: “[...] o déficit emocional e de motivação das crianças carentes da escola [...] fazia cair seu desempenho intelectual para nível mais inferior do que seria de esperar do potencial medido em situação ótima de testagem”.

Vínculos familiares débeis geram ansiedade e gazeio à escola, ou seja, a criança perde a capacidade de cumprir com suas obrigações e, por vezes, falta à escola por qualquer motivo insignificante, segundo Lewis e Volkmar (1993, p. 209):

O gazeio pode ser mais uma manifestação de ansiedade. Pode representar desejo de escapar de uma situação intolerável em casa. Algumas vezes, representa fuga da realidade e refúgio na fantasia. Os vínculos familiares podem ser tão débeis que o ato de gazear seja facilitado. Outras vezes, ao gazear a escola, a criança pode estar à procura de um objeto de amor perdido ou tentando criar um sentimento da culpa nos pais. Muitas vezes, o gazeio se deve a uma dificuldade de aprendizagem ou ao medo de sofrer críticas, castigo ou humilhação por parte dos colegas ou dos professores.

Para Lewis e Volkmar (1993, p. 144), a experiência clínica tem revelado que a privação de afetos e vínculos familiares atinge diretamente o desenvolvimento de crianças rejeitadas. A presença confiável, discorrem os autores, é necessária para que a criança se sinta segura e protegida. “O termo presença confiável também implica continuidade de cuidado, afeto e responsabilidade adequada”.

O desenvolvimento genético de uma criança não opera num vazio, pois o ambiente constitui elemento fundamental de manifestação dos traços de uma personalidade ou distúrbio (LEWIS, VOLKMAR, 1993). Ainda segundo os mesmos autores, os indicadores ambientais (família, sociedade, escola, entre outros) podem afetar de diversas maneiras o desenvolvimento biológico, como por exemplo, “[...] a estimulação psicossocial pode exercer profundo efeito no metabolismo da amina biogenética, o que, por sua vez, pode afetar o comportamento e as emoções” (LEWIS, VOLKMAR, 1993, p. 6). Sobre a família, é importante ressaltar que sua característica fundamental é a criação de um ambiente adequado para o desenvolvimento harmonioso da prole, “[...] procurando seu desabrochar como adultos razoavelmente integrados e aptos para a existência independente” (LEWIS, VOLKMAR, 1993, p. 103).

Psicologia/Psicanálise

Conforme Abdul Khaleque e Ronald P. Rohner (2012), ambos psicólogos e pesquisadores da Universidade de Connecticut nos Estados Unidos, em pesquisa sobre o desenvolvimento humano e ciências da família, a dor de uma criança rejeitada pelos pais ultrapassa o emocional e se transforma em dor física. Essa pesquisa,2 que envolveu 36 estudos internacionais e contou com mais de 10.000 participantes, propôs investigar os impactos na personalidade de pessoas que sofreram rejeição/abandono na infância (KHALEQUE, ROHNER, 2012).

Os resultados da pesquisa realizada por Khaleque e Rohner (2012) indicam que crianças e adultos, independentemente das diferenças (raça, cultura e gênero) tendem a responder transnacionalmente da mesma forma quando se percebem sendo rejeitados por seus cuidadores: família ou figuras de apego. Um aspecto relevante da pesquisa é a constatação, conforme os autores, de que o impacto da ausência de afeto (amor) paterno, pode ser maior do que o da mãe, conforme a percepção da criança sobre o seu pai. A experiência da rejeição, nessa situação, pode se tornar mais grave ainda quando se leva em consideração a possibilidade de reviver a dor emocional por toda a vida (KHALEQUE, ROHNER, 2012).

De acordo com Teoria de Aceitação-Rejeição de Pais (PARTheory), “[...] baseada em evidência de socialização e expectativa de desenvolvimento [...] que visa prever e explicar as principais causas, consequências e outros correlatos de aceitação interpessoal e rejeição” (KHALEQUE, ROHNER, 2012, p. 103), o ajustamento psicológico é resultado da aceitação ou rejeição das figuras de apego:

Indivíduos que se consideram aceitos por figuras de apego provavelmente desenvolvem: (a) pouca hostilidade ou agressão, (b) independência, (c) autoestima positiva, (d) auto-adequação positiva, (e) estabilidade emocional, (f) capacidade de resposta emocional e (g) visão de mundo.

[...]

Por outro lado, é provável que indivíduos que se consideram rejeitados por figuras de apego desenvolvam problemas como; (a) raiva, hostilidade, agressão, agressão passiva ou gerenciamento de hostilidade e agressão; (b) dependência ou independência defensiva, dependendo da forma, frequência, tempo, duração e intensidade da rejeição percebida; (c) autoestima negativa; (d) sentimentos de inadequação; (e) instabilidade emocional; (f) falta de resposta emocional; e (g) visão de mundo negativa (KHALEQUE, ROHNER, 2012, p. 104, tradução nossa).

A dor emocional causada por um ato de rejeição ou negação de afeto pelos pais ou por outras figuras de apego, tende a tornar as pessoas ansiosas, inseguras e, provavelmente, desenvolverão ressentimentos, emoções dolorosas e angustiantes (KHALEQUE, ROHNER, 2012). Na medida em que as crianças percebem a não afetividade por parte dos pais, discorrem os autores, é provável que se sintam indignas de serem amadas por aqueles que as deveriam amálas.

Neurociência

Exames de imagens realizados em 127 crianças pelo professor Bruce Perry no Hospital Infantil do Texas, Estados Unidos, indicam que as crianças que sofrem de abandono afetivo/emocional tendem a apresentar atrasos em seu processo de desenvolvimento, retardando o crescimento do cérebro (TANNER, 2017). Conforme Bicca (2015), esses exames revelam que as crianças rejeitadas/abandonadas transformam a dor emocional em dor física, patológica.

O cérebro infantil, conforme Perry (2002), tem a capacidade de evoluir de forma complexa e dinâmica, contudo, o ambiente socioemocional exerce funções que podem favorecer ou desfavorecer o desenvolvimento saudável de uma criança. Segundo o autor, o funcionamento emocional e social adequado depende do carinho atencioso e acolhedor dispensado à criança durante toda a fase da infância (PERRY, 2016 apudTANNER, 2017).

Em um grupo de cinquenta pessoas, existiam três ou mais adultos para cuidar de cada criança menor de seis anos. E havia pouca privacidade. Uma criança dependente crescia na presença de idosos, irmãos, adultos - aparentados ou não. Tinha uma exposição mais contínua e com maior variedade de interações socioemocionais. A criança nessa situação tinha muitas oportunidades [...] para desenvolver a capacidade de ter uma grande variedade de relacionamentos (PERRY, 2002, p. 96).

Para Leonor Bezerra Guerra (2011), médica e especialista em neuropsicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, as crianças que são pouco estimuladas em seus primeiros anos de vida tendem a apresentar dificuldades na aprendizagem, justamente, porque não são estimuladas em suas redes neurais. Ressalta a autora, que embora necessitem de mais estímulos e estratégias de aprendizagem, há a possibilidade de reversão dessa situação, afirmando que “[...] um lar saudável, um ambiente familiar adequado, bons exemplos e uma boa escola podem fazer grande diferença no desenvolvimento escolar” (GUERRA, 2011, p. 6).

Aprendizes privados de material escolar adequado, de ambiente para estudo em casa, de acesso a livros e jornais, de incentivo ou estímulo dos pais e/o u dos professores, e pouco expostos a experiências sensoriais, perceptuais, motoras, motivacionais e emocionais essenciais ao funcionamento e reorganização do SN3, podem ter dificuldades para a aprendizagem, embora não sejam portadores de alterações cerebrais (GUERRA, 2011, p. 8).

O déficit de aprendizagem nem sempre é um problema patológico, ou seja, o fato de uma criança não aprender não significar afirmar que o problema está no cérebro, mas a outros fatores que lhes são externos: “Fatores relacionados à comunidade, família, escola, ao meio ambiente em que vive o aprendiz e à sua história de vida interferem significativamente na aprendizagem” (GUERRA, 2011, p. 8).

Pragmatismo jurídico sobre o abandono afetivo: o dever de cuidar

O princípio da dignidade da pessoa humana, presente na Constituição de 1988, segundo Bicca4 (2015, p. 18), afastou a visão patrimonial e individualista da família, passando a considerar a importância do afeto como valor jurídico, ou seja, “[...] a afetividade passou a ser elemento nuclear definidor da união familiar - triunfo da intimidade como valor da modernidade”. Discorre o autor que, além da dignidade da pessoa, a paternidade/maternidade responsável não é simplesmente uma obrigação paterno-materna, mas um direito do filho de ser educado e criado conforme as melhores condições disponíveis.

De acordo ao Dicionário de Direito de Família (PEREIRA, 2014, p. 31):

ABANDONO AFETIVO [ver tb. afeto, cuidado, princípio da afetividade, reparação civil, responsabilidade civil] - Expressão usada pelo Direito de Família para designar o abandono de quem tem a responsabilidade e o dever de cuidado para com um outro parente. É o descuido, a conduta omissiva, especialmente dos pais em relação aos filhos menores e também dos filhos maiores em relação aos pais. É o não exercício da função de pai ou mãe ou de filho em relação a seus pais.

A terminologia abandono afetivo pode induzir as pessoas a requererem o direito de receber afeto, ou simplesmente, compreender o amor como um dever. Contudo, o amor não tem preço e ninguém pode ser obrigado a amar, mas pode e deve ser obrigado a cuidar, afirma Bicca (2015).

O poder familiar, expressão utilizada pelo direito em substituição ao pátrio poder, confirma o princípio da proteção integral de crianças e adolescentes: os pais devem dividir as responsabilidades (cuidado e educação da prole), destacando a importância da convivência familiar, o que para Bicca (2015, p. 23) constitui “[...] o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”, uma obrigação, não uma faculdade. “Deve-se concluir que o pai (ou a mãe) que abandona o filho não tem nenhuma intenção de cumprir com os deveres inerentes ao poder familiar, ou seja, assistir, criar, educar, ou muito menos, tê-lo em sua companhia” (BICCA, 2015, p. 24).

O não exercício do poder familiar torna inviável o desenvolvimento infantil, sobretudo de alguém que ajude a criança em seu processo de formação moral e material. “Desde a descoberta de uma gestação os pais já estão escalados no exercício do poder familiar, tendo de proporcionar aos filhos, tudo o que eles precisam para ter sua formação moral completa” (RODRIGUES, 2015, p. 15).

Responsabilidade civil por abandono afetivo

A proteção da criança aprovada pela resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, estabelece que “[...] a criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá o direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles”. Segundo Bicca (2015), não há como negar que abandonar um filho é uma forma grave de maus tratos que fere o princípio da dignidade humana (BRASIL, 1988), sobretudo quando não assegura o direito da criança a uma convivência familiar adequada, livrando-a de toda forma de negligência e discriminação.

O dever de criar e educar um filho desde a concepção até a chamada maior idade é fundamentalmente responsabilidade dos pais, não apenas do ponto de vista moral, mas sobretudo legal (BICCA, 2015). Essa prerrogativa está prevista no novo Código Civil (2002), que estabelece o exercício do Poder Familiar:

O ordenamento jurídico constitucional trouxe para o Direito Privado o princípio da Dignidade da Pessoa Humana (BRASIL, 1988) como um valor central, ressaltando a responsabilidade civil a toda e qualquer ação que afronte tal princípio (MOREIRA, MULHOLLAND, 2014). Conforme as autoras, a responsabilidade, quanto ao seu fundamento, pode ser subjetiva (a vítima tem que provar a culpa daquele que praticou o ato ilícito) e objetiva (atribuição do dever de indenizar aquele que sofreu o dano).

Entende-se que a responsabilidade civil consiste na imputação de um evento danoso, seja de natureza material ou moral, a um sujeito determinado que estará obrigado a repará-lo, ou seja, restituir o bem que foi lesado, ao estado anterior ao dano ou, na impossibilidade deste, ressarci-lo, que significa o pagamento em pecúnia ou através de troca por um bem equivalente ao lesado, quando no seu estado inicial (MOREIRA, MULHOLLAND, 2014, p. 88).

O abandono afetivo de crianças é o descumprimento do dever dos pais de assistir, criar e educar seus filhos menores. “A ilicitude não está no desamor, mas na mais absoluta falta de atendimento ao dever de cuidar” (BICCA, 2015, p. 32). Como já discutido anteriormente, o dever de cuidar não é facultativo, mas obrigação prevista pela Constituição Federal (1988), pelo Código Civil (2002) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

Em que pesem alegações contrárias à responsabilidade civil por abandono afetivo, para Moreira e Mulholland (2014, p. 104) o abandono afetivo “[...] não se configuraria pela conduta do genitor não-guardião de se afastar do lar [...] e sim, pela conduta daquele que se encontra responsável pela guarda da criança ou do adolescente, que priva o filho da presença do ascendente”.

Do Dano In Reipsa

A aporia sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo está, justamente, na comprovação dos possíveis danos sofridos pelo abandonado, pois ainda existem dúvidas quanto aos prejuízos, patologias, abalos psicológicos e sequelas decorrentes da situação de abandono. Bicca (2015, p. 46) explicita que o dano sofrido pela criança “[...] é do tipo in reipsa, ou seja, decorre da própria causa, é presumido e sequer precisa ser comprovado, por ser mais do que evidente”. Na perspectiva do pragmatismo jurídico, pode-se reafirmar, conforme o autor, que o abandono afetivo por si só é danoso à criança e ao seu desenvolvimento.

O dano in reipsa é aquele que, pela própria dimensão do fato, fica impossível pelo senso comum imaginar que o dano não tenha ocorrido. Sendo assim, a comprovação dos danos morais decorrentes do descumprimento dos deveres familiares não é feito da mesma forma que os danos materiais. Assim, provado o descumprimento, ipso facto, estará demonstrado o dano por ser presunção natural que decorre inclusive das regras da experiência comum (BICCA, 2015, p. 46).

O posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), órgão da mais alta corte da justiça no Brasil, embora requisite prova pericial através de equipes de psicólogos e psiquiatras, com vistas a comprovar os danos sofridos pela criança abandonada afetivamente, tem gerado jurisprudência sobre o assunto, considerando que o dano sofrido pelo descumprimento do dever de cuidado pela ausência do pai ou da mãe é, conforme a maioria da corte, do tipo in reipsa (BICCA, 2015).

De acordo com Nancy Andrighi, Ministra do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial n. 1159.242/SP, 24/04/2012):

Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in reipsa.

O abandono afetivo, conforme Bicca (2015, p. 49), “[...] é uma subtração de uma oportunidade, ou seja, quando se tira da vítima a probabilidade de um ganho”, que seria o afeto familiar. Não se trata, discorre o autor, de uma hipótese, mas de uma oportunidade decorrente do dever legal de cuidar; portanto, “[...] a dor proveniente do injustificado abandono sofrido deve ser efetivamente mensurada” (BICCA, 2015, p. 50).

A perspectiva jurídica compreende o complexo afetivo de forma pragmática5, sobretudo quando discute o abandono afetivo como ausência de cuidado parental. Ainda que o ato de cuidar seja obrigação do poder familiar, corre-se o risco de judicializar os afetos, como já está acontecendo, estabelecendo o paradoxo entre o direito objetivo e o direito subjetivo. Deve-se, pois, conforme Petrini (2009), ponderar a importância que a sociedade hodierna tem dado aos aspectos subjetivos da afetividade, justamente por serem espontâneos e frágeis.

ABANDONO AFETIVO E VULNERABILIDADE SOCIAL: INVISIBILIDADE, CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

A semântica que envolve o conceito abandono afetivo de crianças, embora careça de mais estudos e pesquisas interdisciplinares, como discutido anteriormente, reconhece que se trata de uma forma de violência psíquico-social, um fator de risco ao desenvolvimento humano (SCHREINER, 2009). De acordo com a autora, embora sejam tecidas críticas quanto à invisibilidade do fenômeno, as questões concretas da vida cotidiana, como negligência familiar ou escolar, indicam possíveis danos tanto a nível psicológico quanto social, contudo nem toda negligência pode ser considerada abandono.

Para Schor (2016, p. 8), o abandono afetivo é uma modalidade peculiar de traumatismo que repercute subjetivamente na capacidade dos indivíduos de se relacionarem com o ambiente externo; pode-se, pois, definir o abandono como o “[...] distanciamento afetivo dos pais em relação à criança, distanciamento esse responsável pelo confronto do sujeito a uma condição de desamparo e impotência insuportável”.

A falta de uma presença afetiva, regular e atenta (identificação dos pais com as necessidades infantis) pode dificultar o sentimento de pertença familiar e promover a “[...] formação de subjetividades incapazes de se posicionarem e de posicionar suas próprias histórias em contraste com a história do ambiente” (SCHOR, 2016, p. 19). Destaca-se, contudo, que não é simplesmente a presença ou ausência parental o critério de definição de abandono afetivo, mas a qualidade da relação que se estabelece no seio familiar (SCHOR, 2016).

O abandono afetivo advindo das situações de vulnerabilidade social (alcoolismo, drogas, violência física e sexual, miséria, doenças, fome, entre outras) pode preceder o abandono material (ORIONTE, SOUSA, 2005). Ainda que se possa afirmar o contrário, as pesquisas realizadas na Universidade Católica de Goiás pelas citadas pesquisadoras sobre o significado de abandono para crianças institucionalizadas reforçam essa hipótese. Para preservar a identidade das crianças envolvidas na pesquisa empírica, as autoras recorrem ao uso de pseudônimos, como seguem recortes abaixo:

Felipe (11 anos), estudante da 5ª série do ensino fundamental [...], filho de pai e mãe alcoolistas, presenciou várias desavenças entre o casal. As crianças ficavam nas ruas. Os pais não tinham compromisso com elas, já que viviam alcoolizados. O pai foi assassinado. Felipe já foi encaminhado para várias famílias substitutas e não se adaptou, sendo, portanto, devolvido para a instituição (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 32).

Miguel (9 anos), que frequenta a 3ª série do ensino fundamental, foi encaminhado à instituição pelo Conselho Tutelar. Estava muito maltratado, sujo, não sabia utilizar talheres, na maioria das vezes, comia com as mãos.

Morava com a mãe, a irmã e a avó. A mãe e a avó são alcoolistas, traficantes e prostitutas (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 32).

Ray (10 anos), aluna da 3ª série do ensino fundamental, chegou à instituição encaminhada pelo CT da Região Oeste, por necessidade de abrigo, com seus dois irmãos e uma irmã, todos mais velhos. Um dos irmãos, de 16 anos, deixou a instituição. Ray e os irmãos viviam com a avó. Esta, vítima de um sério derrame, torna-se impossibilitada de cuidar da garota e dos irmãos. A mãe encontra-se internada na Casa de Prisão Provisória da Agência Prisional, por tráfico de drogas (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 33).

O fenômeno do abandono de crianças seja afetivo ou material, longe de ser estigmatizado, evidencia a invisibilidade, a transgressão e a fragilidade dos vínculos afetivos de uma triste realidade contemporânea, muitas vezes pelas circunstâncias de miséria (ORIONTE, SOUSA, 2005). Em muitos os casos, pode desencadear inúmeras situações de violência, inclusive uma das mais perversas de todas, conforme pesquisas, a violência sexual (MENDONÇA, 2011). Essa forma de abuso contra a criança é, segundo a autora, resultado do “[...] abandono dos pais, seja momentaneamente ou efetivado no interior do círculo de relações parentais que deveria estar sob a proteção e aos cuidados destes”. (MENDONÇA, 2011, p. 58)

Deve-se, pois, ressaltar o que já fora discutido anteriormente sobre a importância da família no desenvolvimento das pessoas, mesmo que não atenda aos padrões estabelecidos pela sociedade. A família não está imune às adversidades da vida (DONATI, 2008), pelo contrário, os conflitos e abusos podem, não necessariamente poderão, ser praticados pelas pessoas mais próximas que constituem os vínculos de afeto da criança:

Na família de Caroline, a violência e os conflitos que permeiam as relações entre seus membros não são somente evidentes, mas dolorosamente concretos. Caroline, após ter procurado o CT, foi encaminhada para a instituição pelo JIJ, quando o tio foi flagrado abusando dela em uma casa abandonada. Além dos dois tios paternos, um tio materno e o avô, também o pai de Caroline é acusado de abusar sexualmente dela. A garota confirma a veracidade dos fatos com relação aos tios e ao avô, mas nega a participação do pai (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 34).

Invisibilidade do abandono na família e na escola

A invisibilidade do dano provocado pelo abandono afetivo depende de como o sujeito vai reagindo às situações que constituem seu contexto familiar ou escolar; em alguns casos, o trauma provocado pode ser superado pela troca das figuras de apego, como abordado nos estudos da psiquiatria infantil (LEWIS, 1993). Em outros, a invisibilidade resulta em um processo de desorientação psíquica, tornando os indivíduos alheios ao ambiente externo (SCHOR, 2016).

A condição subjetiva do dano provocado pelo abandono afetivo pode impossibilitar o significado do trauma na história de vida das pessoas, seja na família ou na escola, sobretudo quando o indivíduo não é capaz de localizar a origem do trauma (SCHOR, 2016). Pode-se, portanto, dizer “[...] que as subjetividades posicionadas nesse registro ontológico não existem a partir de sua história, mas, ao invés disso, são violentamente atravessadas por ela” (SCHOR, 2016, p. 17). A invisibilidade provoca uma “[...] paralisia subjetiva” (SCHOR, 2016, p. 19) que desorienta o sujeito afetado pela situação de abandono.

De acordo com Orionte e Sousa (2005), a percepção da situação de abandono depende da visibilidade das relações vivenciadas pelos indivíduos. A invisibilidade pode ser também resultado da falta de autoconhecimento que os indivíduos têm de si mesmos, prevalecendo desta forma, subjetividades alheias às suas próprias convicções, tornando a criança ou adolescente um sujeito assujeitado (ORIONTE, SOUSA, 2005).

Assim como a família, a escola pode tornar-se também um ambiente hostil ao desenvolvimento humano, sobretudo quando humilha, segrega, expõe e desrespeita de forma sutil crianças e adolescentes em seu processo de aprendizagem (ORIONTE, SOUSA, 2005).

A gravidade do abandono afetivo no ambiente escolar de forma velada (ORIONTE, SOUSA, 2005) ocorre não por questões outras, mas na maioria das vezes, pela condição de vulnerabilidade social em que as crianças estão sujeitas. Conforme as autoras, trata-se de uma questão social que deve ser tratada com políticas públicas por parte do Estado e intervenção pedagógica por parte da escola.

Em uma das escolas [...] a professora estava distribuindo, na sala de aula, convites para o parque de diversões. Quando uma dessas crianças levantou-se para receber o seu convite, foi interrompida pela professora com a seguinte frase: “Só vocês da instituição que não vão ganhar os convites, senão vocês fogem” (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 8).

O recorte da pesquisa sobre o significado de abandono para crianças institucionalizadas que foram vítimas de duplo abandono (afetivo e material) dá indícios da possibilidade de desvio funcional da escola. “A professora, despreparada, com dificuldade de lidar com o diferente, não consegue dimensionar a gravidade de sua atitude e o que isso pode significar na construção da subjetividade das crianças” (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 8).

A criança que é vítima de abandono expressa na dimensão da invisibilidade o abandono vivido em seus diversos contextos sociais, sobretudo aqueles que mais agem em seu processo de desenvolvimento (ORIONTE, SOUSA, 2005). A invisibilidade do abandono, conforme as autoras, está presente nas escolas, nas famílias e em tantos outros espaços, evidenciando uma forma cruel, arbitrária e silenciosa de negligência social perante as futuras gerações.

A noção subjetiva e invisível de um dano deve ser discutida a partir do conjunto de relações com as quais a criança ou adolescente se depara ao longo de sua vida, tendo em vista que cada nova relação altera sua percepção, dando lugar a uma nova experiência de vida, sem, contudo, apagar os vínculos afetivos já internalizados (ORIONTE, SOUSA, 2005). Ainda que a situação de abandono afetivo ou material possa ser extremamente traumática, como indicam alguns pesquisadores (BICCA, 2015; WEBER, 2017; SCHNEIDER, 2008), a forma como cada pessoa reage a essa situação será fundamental ao seu desenvolvimento.

Felipe não sabe onde a mãe está e raramente vê a irmã, mas ainda acalenta o sonho de que algum dia eles possam estar juntos. Mesmo com o distanciamento, os vínculos afetivos não arrefeceram. Não importa o motivo pelo qual a mãe não o visita. Importa quando isso se tornará possível (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 13).

O significado de abandono não está restrito à subjetividade individual, ainda que alguns possam assim defini-lo; deve-se, pois, reconhecer que se trata também de uma subjetividade social em que as crianças são submetidas (ORIONTE, SOUSA, 2005). Segundo as autoras (2005, p. 16), “[...] embora a invisibilidade da criança esteja dolorosamente expressa na fala [...], nem todas aceitam passivamente essa condição e buscam tornarem-se visíveis de várias formas”. A invisibilidade da negligência familiar ou escolar desaparece quando o dano causado reverbera na sociedade sob as formas de transgressão social (envolvimento com drogas lícitas e ilícitas, violência sexual, dificuldades na aprendizagem, evasão escolar, entre outras) como discorreremos mais adiante na pesquisa.

Causas e consequências sociais do abandono: um recorte da realidade brasileira

As pesquisas sobre o abandono de crianças no Brasil, seja pela negligência afetiva ou material, indicam algumas das possíveis causas desse fenômeno, não sendo, pois, objetivo das mesmas estigmatizar essa ou aquela classe social, muito menos discutir de forma regionalista o problema do abandono (SOEJIMA, WEBER, 2008). Contudo, conforme as autoras, o fenômeno está fortemente associado à condição social da pessoa, ao grau de esclarecimento e, principalmente, à falta de amparo familiar. Segundo Mendonça (2011), o abandono afetivo ou material pode ser consequência do modo de vida individualista, das questões socioeconômicas, dificuldade no exercício da parentalidade, das formas de interações contemporâneas entre pais/filhos e fatores culturais da sociedade.

De acordo com Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial de Saúde (OMS) o Brasil figura entre os países com maiores índices de negligência e maus tratos contra crianças (abuso sexual, físico, emocional e negligência física e emocional) no mundo6. O estudo conta com a participação de Rodrigo Grassi-Oliveira, pesquisador do Programa de Pósgraduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e revela que a negligência é uma das características de abandono de criança, sobretudo quando se observa as condições socioeconômicas do país (GRASSI-OLIVEIRA, 2016).

Para Grassi-Oliveira (2016), é preciso haver uma mudança de valores para a sociedade, ou seja, deve-se investir no cuidado parental hoje, para que no futuro a preocupação e os gastos sejam minimizados.

O motivo do péssimo resultado registrado no Brasil está na quase ausência de recursos empregados em programas de prevenção da violência contra a criança, além da cultura mais permissiva, que não acredita na gravidade das consequências geradas pela exposição de crianças a situações adversas. Outro motivo é o fato de o território ser muito grande, dificultando o controle de recursos financeiros voltados para o tratamento e prevenção de casos de abuso e negligência infantil.

Em que pese a desconfiança sobre alguns dos motivos desencadeadores do abandono acima apresentados, Grassi-Oliveira (2016) ressalta ainda a ineficiência ou ausência de políticas públicas e privadas, número insuficiente de centros de atendimentos às vítimas de abandono afetivo ou material e falta de profissionais com a devida formação na área. A discussão sobre as causas do abandono não exime a realização de mais pesquisas sobre o assunto, da mesma forma que as possíveis consequências apresentadas no decorrer da pesquisa, transgressão social e dificuldade de se relacionar socialmente, possam carecer de mais estudos.

Transgressão social - uma das formas que as crianças têm de contrapor a invisibilidade do dano provocado pelo abandono é a transgressão das normas e valores sociais (ORIONTE, SOUSA, 2005). Conforme as autoras, por meio dessa insubordinação, denunciam suas insatisfações, expressam suas necessidades e indicam para as mudanças de que precisam para viver de forma digna, tranquila e saudável. As condutas transgressoras (xingamentos de colegas e educadores, agressões físicas, falta às aulas, pouco interesse pelos estudos, entre outras) se tornam explícitas segundo as pesquisadoras e estão para além de meras aparências, sobretudo quando estão carregadas de significados que dizem respeito à situação de abandono.

Caroline, Felipe e Miguel reagem quando insultados pelos colegas, assim como agridem os outros por motivos nem sempre visíveis aos olhos dos dirigentes.

As agressões podem ser tanto físicas quanto verbais (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 9).

As condições sócio-históricas das crianças descritas pela pesquisa, de acordo com Orionte e Sousa (2005), indicam a construção de subjetividades circunscritas pelas mediações do contexto no qual elas estão inseridas. Nesse sentido, as mediações são fatores que podem determinar um vínculo afetivo que não se dissolverá ao longo da vida. “O pouco que obtiveram das relações é guardado como um tesouro do qual não querem se desfazer” (ORIONTE, SOUSA, 2005, p. 12).

O comportamento exteriorizado (descumprimento de regras sociais e problemas de conduta) deve ser discutido como resultado de múltiplos fatores que interagem entre si, sobretudo aqueles que expõem a criança à situação de risco, como ambientes familiares adversos, práticas parentais inadequadas e/ou rejeição de companheiros na escola (DESSEN, SZELBRACIKOWSKI, 2007). Para as autoras, os estudos já realizados com famílias de crianças com problemas de comportamentos exteriorizados no Brasil indicam certa hostilidade, restrição emocional e abuso parental, embora se considere a insuficiência dos mesmos sobre tal problema de forma mais precisa.

Dificuldade de se relacionar socialmente - conforme Mendonça (2011), diante da situação de abandono (falta de cuidado, afeto, atenção, carinho, estresse parental, entre outras) os indivíduos tendem a ter dificuldade de se relacionar socialmente, apresentando comportamentos individualizados e, muitas vezes, se privam de contados com o mundo externo, prejudicando suas relações sociais na escola e nos demais extratos sociais. De acordo com os estudos de psicologia, discorre a autora, o afastamento parental pode ser um elemento desencadeador de insegurança na relação do sujeito com as demais pessoas.

A transgressão social e a dificuldade de se relacionar socialmente, conforme Mendonça (2011), podem ser consideradas as principais consequências do abandono, decorrentes, justamente, de circunstâncias relacionadas à vulnerabilidade social e à dificuldade na parentalidade. Como experiência traumática, o abandono afetivo promove “[...] insegurança, perda de laços afetivos e sociais [...], cisões emocionais e comportamentais diante da perda de referencial. Dificuldades na construção de laços de afeto estão registradas como consequências sociais associadas às psicológicas” (MENDONÇA, 2011, p. 88).

O microssistema familiar, longe de ser estigmatizado, é o principal ambiente de desenvolvimento humano (DESSEN, POLONIA, 2007; SCHREINER, 2009), que deve atender as necessidades primordiais da criança e do grupo familiar. Contudo, não é somente função da família, considerando que o apoio estatal é de fundamental importância na avaliação das situações de risco social de um possível caso de abandono afetivo ou material.

Para Schreiner (2009, p. 2), “[...] em contextos de desigualdade e pobreza econômica, um dos principais desafios de um sistema de proteção à infância e adolescência é definir qual criança ou adolescente encontra-se em risco e qual está em abandono”. É a partir desse olhar atento, discorre a autora, que se poderá implementar políticas públicas de proteção à criança e fortalecimento dos vínculos familiares, tendo em vista que nem toda situação de risco constitui abandono; contudo, todo abandono se constitui uma situação de risco.

ABANDONO AFETIVO: DESAFIO À APRENDIZAGEM ESCOLAR

A escola é o primeiro agente socializador fora do círculo familiar da criança que oferece ou ao menos deveria oferecer as condições necessárias (segurança, proteção, afetividade, entre outras) ao desenvolvimento infantil (KRUEGER, 2017). De acordo com a autora, tal desenvolvimento só é possível se a mesma for capaz de relações interpessoais saudáveis (ambiente acolhedor e prazeroso) em seu fazer pedagógico. Essas relações, conforme Abreu (2016), devem oferecer condições que favoreçam a aprendizagem humana, considerando a necessidade de atenção, cuidado e respeito às diferenças. Quanto às diferenças, “[...] não é considerar como aceitável as condições de miséria e desrespeito às práticas dos direitos humanos que muitos são praticados em intervalos de segundos em nosso planeta” (ABREU, 2016, p. 42).

Considerando a escola como espaço de mediação necessária ao conhecimento, sua função diante do fenômeno do abandono afetivo é minimizar as consequências no processo de aprendizagem através do reconhecimento das individualidades que constitui o ambiente escolar (SOUSA et al., 2014). A experiência docente, discorrem as autoras, através de observações de atividades que abordam a afetividade no ambiente educacional e em outros ambientes de convívio social, permite intuir que o fenômeno do abandono afetivo deve ser considerado como um dos entraves ao processo de aprendizagem infantil.

A afetividade é um conjunto de sentimentos que influencia na formulação e bem estar do Eu de uma pessoa, de forma que o seu não uso ou abandono, geram efeitos que acarretam grandes problemas para a personalidade que começa a se constituir ainda na infância (SOUSA et al., 2014, p. 1).

A partir do relatório da UNESCO que apresenta as diretrizes para a educação do século XXI, conforme Delors (2010), a escola deve, pois, promover a formação integral do ser humano, despertando sua criticidade e ensejando um projeto de vida capaz de dar sentido ao que se é vivido por cada indivíduo. O abandono afetivo, conforme Sousa et al. (2014), se mostra um problema visível à sociedade quando a não-afetividade rompe com a construção da dimensão psicológica, sociocultural e afetiva da criança.

A educação, um compromisso com a infância, constitui um dever social que depende de políticas públicas e relações afetivas tanto na escola quanto na família (SOUSA et al., 2014). “Esse dever elementar deve ser constantemente evocado para que seja levado em consideração, inclusive, nas tomadas de decisão de ordem política, econômica e financeira” (DELORS, 2010, p. 5). Quando os pais passam a exercer a não-afetividade, o não cumprimento do dever, “[...] as consequências ao sujeito se fazem presentes de maneira permeativa [...], permanece no psiquismo do sujeito como um marco em sua vida” (SOUSA et al., 2014, p. 2). Segundo pesquisas da Faculdade Santa Maria no Rio Grande do Sul, Brasil (SOUSA et al., 2014), a baixa auto-estima, dificuldades na aprendizagem e na socialização, agitação, inquietações são algumas das consequências advindas da situação de abandono afetivo.

A participação dos pais na vida dos filhos através de vínculos afetivos saudáveis deve ter seu começo em casa e se estender na vida escolar da criança de tal maneira que essa participação nas atividades curriculares e projetos pedagógicos fortaleçam a relação família e escola (SOUSA et al., 2014). Não se trata, pois, de comparecimento em reuniões e recebimentos de boletins, uma prática ultrapassada. “A modernidade que afeta a sociedade e consequentemente nossas crianças, nos exige o aperfeiçoamento de ideias e atitudes” (SOUSA et al., 2014, p. 2).

A dimensão afetiva na família ou na escola sob a égide educacional representa uma proposta de discussão da integralidade dos processos de aprendizagem. O complexo afetivo e a educação escolar devem estar entrelaçados nos currículos, priorizando desde muito cedo as funções afetivas no desenvolvimento integral do ser humano. A proposta educativa “[...] deve integrar padrões e diversidades de valores, bem como propostas éticas, críticas, democráticas e inclusivas a fim de estabelecer relações dos sujeitos consigo mesmo e com o mundo ao qual se encontram inseridos” (SOUSA et al., 2014, p. 2).

Intervenção pedagógica frente ao fenômeno do abandono afetivo

A consideração da escola como centro da vida extra-familiar, que pese o reconhecimento de outros espaços, evidencia o quanto ela é fundamental para processo de desenvolvimento humano, especificamente, o desenvolvimento de competências e habilidades educacionais. A escola recebe crianças, segundo Chardelli (2002), com dificuldades na aprendizagem, limitações de ordem psíquica, baixa auto-estima, em situações de negligência familiar, abandono afetivo e material e, principalmente, carentes de relações afetivas. Sua missão enquanto proposta educacional “[...] consiste em permitir que todos, sem exceção, façam frutificar seus talentos e suas potencialidades criativas, o que implica, por parte de cada um, a capacidade de assumir sua própria responsabilidade e de realizar o seu projeto pessoal” (DELORS, 2010, p. 10). Esse projeto, embora pessoal, precisa ser tratado com carinho, cuidado, atenção e estímulo, estabelecendo uma indissociabilidade entre o ato de cuidar e o ato de educar (SILVA, RENK, 2017).

De acordo com Silva e Renk (2017), o afeto, o interesse e o desenvolvimento constituem uma tríade que favorece a aprendizagem infantil, capaz de superar ambientes hostis e promover relações agradáveis entre professores e alunos. As autoras evocam a necessidade de educar com afeto, ou seja, “[...] conhecer particularmente cada aluno e suas necessidades, pois a afetividade é uma condição indispensável na concretização comportamental de um indivíduo” (SILVA, RENK, 2017, p. 2).

O processo de aprendizagem nessa perspectiva, mais que uma proposta de intervenção pedagógica perante as situações de abandono afetivo, desenvolve e fortalece as faculdades físicas, intelectuais, morais e religiosas que constituem na criança a natureza e a dignidade humana (SILVA, RENK, 2017). O professor, conforme Saltini (2008), deve manipular a educação com as duas mãos: a do afeto e a das regras, considerando que ambas são fundamentais para o processo de aprendizagem. No entanto, para Chalita (2004), o afeto é um condicionante ao ato de educar, que pressupõe o amor como manifestação legitimamente afetiva. “Há muitas maneiras de transmitir o conhecimento, mas o ato de educar só pode ser feito com afeto, esta ação só pode se concretizar com amor” (CHALITA, 2004, p. 11).

A proposta de intervenção pedagógica, cujo objetivo seja superar o abandono afetivo, deve ressaltar as seguintes capacidades a serem desenvolvidas pelas crianças no ambiente escolar (SILVA, RENK, 2017): imagem positiva de si, favorecendo a autonomia, confiança e percepção das limitações infantis; conhecer suas potencialidades e limites; estabelecer vínculos que fortaleçam a interação social; ampliar as relações sociais, respeitando a diversidade; explorar o ambiente com atitude de curiosidade; expressar emoções, sentimentos e necessidades pessoais e avançar no processo de construção de significados.

Se as situações de abandono afetivo são capazes de dificultar o processo de aprendizagem escolar, como discorrido anteriormente, os afetos que se transformam em vínculos ativam o processo emocional, cognitivo e social, e possibilita o desenvolvimento de forma integral da criança (SILVA, RENK, 2017).

Educação integral: promoção do gênero humano

A tessitura conceitual de uma proposta de educação integral que promova o gênero humano parece ressaltar a necessidade de integrar os complexos cognitivos e afetivos no desenvolvimento humano, outrora defendida pelo pensador francês Henri Wallon (2007) em sua teoria psicogenética da pessoa completa. O desafio posto à educação do século XXI, conforme a UNESCO, discorre Delors (2010, p. 6), é “[...] transformar o avanço do conhecimento em instrumento, não de distinção, mas de promoção do gênero humano”. O fenômeno do abandono afetivo conforme a revisão de literatura empírica e não-empírica compromete a possibilidade de desenvolvimento integral, seja por negligência da família ou da escola (BICCA, 2015).

A promoção do gênero humano na perspectiva da educação integral não pode ser entendida de forma fragmentada, ora legitimando as funções afetivas como ilusão capaz de solucionar os problemas da aprendizagem escolar, ora priorizando as funções cognitivas como condição de desenvolvimento humano (STEIN, 2007). De acordo com a autora, a escola deve preparar a criança, com a ajuda da família ou das figuras de apego, a serem independentes intelectualmente e seguras emocionalmente, sempre no cuidado de observar seu contexto sociocultural. Assim, pois, “[...] podemos afirmar que diferentes contextos sociais fazem com que o indivíduo se reconstitua e reconfigure diferentes aspectos de sua identidade” (STEIN, 2007, p. 65).

Como uma utopia, a educação é necessária para promoção do gênero humano, segundo a Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI da UNESCO, deve enfrentar e superar as tensões que caracterizam nossa sociedade, ofertando as melhores condições para que os indivíduos ressignifiquem suas aprendizagens (DELORS, 2010). O relatório indica algumas questões que estão no âmago da educação a nível internacional, a saber: a tensão entre o global e o local, entre o universal e o singular, entre o longo prazo e o curto prazo, entre a indispensável competição e o respeito pela igualdade de oportunidades, entre o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de assimilação do homem e, por fim, a tensão entre o espiritual e o material.

A sobrevivência da humanidade é o legado de um projeto de educação integral às novas gerações, contemplando o curso de vida numa perspectiva longitudinal, cujos pilares (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser) integram as experiências vividas por cada educando ao longo de toda a sua existência (DELORS, 2010).

A educação integral como uma das possibilidades de promoção do gênero humano e de superação das tensões citadas anteriormente nos abre o horizonte da inclusão, dispensando oportunidades, respostas à sede de conhecimento e de superação das dificuldades de aprendizagem. Embora os comissários da UNESCO não tenham discutido diretamente a tensão entre os complexos cognitivos e os afetivos, o relatório nos permite intuir que o desenvolvimento humano resulta da integração de ambos os complexos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A descrição e caracterização do abandono afetivo na perspectiva interdisciplinar, embora necessite de mais estudos e pesquisas, indicam que se trata de uma tensão social advinda da precariedade dos afetos e vínculos parentais ou das figuras de apego (não necessariamente da família), que podem deixar tanto heranças invisíveis (arquétipos traumáticos) quanto visíveis (transgressão social e dificuldade de relacionamento). Para a psiquiatria infantil, a privação dos afetos, abandono ou rejeição por parte da família pode fazer com que a criança desenvolva uma personalidade rígida, falta de curiosidade, ansiedade e dificuldades na aprendizagem; os estudos dos psicólogos norte-americanos Khaleque e Rohner mostram que independentemente das diferenças (raça, cultura ou gênero) as pessoas tendem a responder de uma mesma maneira (raiva, hostilidade, autoestima negativa, instabilidade emocional, visão negativa do mundo) quando se sentem abandonadas ou rejeitadas; a neurociência através de exames de imagens confirma que o ambiente socioemocional pode favorecer ou desfavorecer o desenvolvimento de uma criança, podendo até retardar o crescimento do cérebro; enfim, para o pragmatismo jurídico, existe o dano in reipsa, ou seja, decorre da própria causa, não necessita de comprovação, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana presente na Constituição Federal do Brasil de 1988.

O estudo sobre o abandono afetivo e o processo de aprendizagem escolar revela que o exercício da não-afetividade reverbera de forma negativa na aprendizagem escolar, rompendo com a dimensão psicológica, sociocultural e afetiva da criança. Não obstante, aqueles afetos que se transformam em vínculos são capazes de ativar o processo emocional, cognitivo e social dessa mesma criança, possibilitando-a desenvolver-se integralmente.

Abandonar afetivamente uma criança é negar-lhe a experiência de acolhimento; é suprimir o amor externado na dimensão do cuidado; é negligenciar o exercício da parentalidade responsável e, por fim, é a precarização afetos e vínculos fundamentais ao desenvolvimento do gênero humano.

1Dr. Melvin Lewis, pediatra, psiquiatra, professor emérito e pesquisador sênior do Centro de Estudos Infantis de Yale, nos Estados Unidos. Lewis morreu em 28 de abril 2007 em New Haven aos 79 anos. Nascido e educado em Londres, Lewis era conhecido internacionalmente pelos estudos dos aspectos clínicos do desenvolvimento na infância e juventude. Disponível em http://archives.news.yale.edu/v36.n12/story19.html. Acesso em 10 ago. 2021.

2Uma revisão bibliográfica de pesquisas relevantes a partir de 1975 até 2010; estudos arquivados no Centro Ronald e Nancy Rohner para o estudo de aceitação e rejeição interpessoal na Universidade de Connecticut; estudos publicados e não publicados listados na bibliografia estendida de mais de 3.000 estudos que tratam com aceitação interpessoal - rejeição publicada no site do Rohner Center (www.csiar.uconn.edu); pesquisa na internet baseada em resumos de dissertações, usando PsycINFO Internacional; resumos de serviço social, resumos sociológicos, literatura antropológica; resumos sobre o desenvolvimento infantil (KHALEQUE, ROHNER, 2012).

3Sistema nervoso.

4Advogado, membro da Comissão da Criança e do Adolescente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFAM), da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica; especialista em Direito de Família e das Sucessões pela UNICAM - RJ.

5Conforme o Dicionário de Filosofia, o pragmatismo é uma corrente de ideias que prega que a validade de uma doutrina é determinada pelo seu uso prático (ABBAGNANO, 2007).

6Resultados do estudo publicado oficialmente pela International Society for the Prevention of Child Abuse and Neglect, vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2016.

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Recebido: Agosto de 2021; Aceito: Dezembro de 2022

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