SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número72AFECTIVIDAD Y GUSTO POR LA CIENCIA EN ENSEÑANZA FUNDAMENTAL: una encuesta cualitativa con profesores de cienciasLA INVESTIGACIÓN COMO PRINCIPIO EDUCATIVO EN LAS CLASES EN LÍNEA DE CIENCIAS Y MATEMÁTICAS EN LA EDUCACIÓN BÁSICA índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.62395 

Artigos de Demanda Contínua

TESSITURAS DAS REDES EDUCATIVAS NOS CURRÍCULOS DOS POVOS ORIGINÁRIOS

TESTURES OF EDUCATIONAL NETWORKS IN THE CURRICULUM OF ORIGINATING PEOPLE

TESSITURAS EN REDES EDUCATIVAS EN EL CURRÍCULO DE LOS PUEBLOS ORIGINARIOS

1Instituto Federal da Bahia (IFBA)

2SME - RJ, CEDERJ/UERJ e UFF

3Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


Resumo

O presente ensaio nos remete às origens de nosso país e a força de uma nação que foi dizimada e invisibilizada por centenas de anos. Cremos que as redes educativas são um dos meios de grande potência para nos fazer sentirfazerpensar os modos de vida dos povos originários em constante alinhamento à natureza, porque, como eles afirmam: Nós não cuidamos da natureza, somos a natureza. Daremos ênfase ao movimento ecce femina, pensando na força da mãe Terra, nos rizomas de Deleuze e Guatarri, que eclodem mundos de criações educativas. Em busca de diálogo com os personagens conceituais (DELEUZE, 1992; ALVES, 2012), especialmente com a compreensão dos usos que os praticantes sentemfazempensam com os múltiplos artefatos, com a noção de acontecimento e com a ideia de virtualidade, decidimos evidenciar o movimento ecce femina. Dessa forma, com autores como Alves, Deleuze, Guattari, Foucault, Biesta, Guajajara e outros, estabelecemos uma conversa, através da metodologia de pesquisa assumida por nós, para compreender os movimentos nas redes educativas em suas variadas facetas e conversar acerca deles, nos processos formativos e curriculares dos sentiresfazerespensares que atravessam e criam os cotidianos.

Palavras-chave: povos originários; redes educativas; currículos; cotidianos; conversas

Abstract

Thus essay takes us back to the origins of our country and the strength of a nation that was decimated and made invisible for hundreds of years. We believe that educational networks are one of the most powerful ways to make us feelthinkcomefeel the ways of life of native peoples in constant alignment with nature, because as they say: We do not take care of nature, we are nature. We will emphasize the ecce femina movement, thinking of the strength of Mother Earth, in the rhizomes of Deleuze and Guatarri that hatch a world of educational creations. In search of dialogue with conceptual characters (DELEUZE, 1992, ALVES, 2012), especially with the understanding of the uses that practitioners feeldothink with multiple artifacts, with the notion of event and the idea of virtuality, we decided to highlight, ecce femina. Thus, with authors such as Alves, Deleuze, Guatarri, Foucault, Biesta, Guajajara and many others, we established a conversation, a research methodology adopted by us, to understand the movements in educational networks in their various facets and talk about them, in the formative and curricular processes of the feelingsthinking that permeate and create everyday life.

Keywords native peoples; educational networks; resumes; everyday life; conversations

Resumen

Este ensayo nos traslada a los orígenes de nuestro país y la fuerza de una nación que fue diezmada e invisible durante cientos de años. Creemos que las redes educativas son una de las formas más poderosas de hacernos ssentirpensarhacer las formas de vida de los pueblos originarios en constante alineación con la naturaleza, porque como dicen: No cuidamos la naturaleza, somos naturaleza. Destacaremos el movimiento ecce femina, pensando en la fuerza de la Madre Tierra, en los rizomas de Deleuze y Guatarri que incuban un mundo de creaciones educativas. En busca del diálogo con personajes conceptuales (DELEUZE, 1992, ALVES, 2012), especialmente con la comprensión de los usos que los practicantes sentirpensarhacer con múltiples artefactos, con la noción de evento y la idea de virtualidad, nos decidió destacar este, ecce femina. Así, con autores como Alves, Deleuze, Guatarri, Foucault, Biesta, Guajajara y muchos otros, establecimos una conversación, una metodología de investigación adoptada por nosotros, para entender los movimientos en las redes educativas. en sus diversas facetas y hablar de ellas, en los procesos formativos y curriculares de los sentirpensarhacer que impregnan y crean la vida cotidiana.

Palabras clave pueblos originarios; redes educativas; currículos; cotidianos; conversaciones

INTRODUÇÃO

Queremos começar sugerindo ao leitor/a que assista o vídeo A mãe do Brasil é indígena, de Myrian Krexu, narrado por Maria Bethânia, no endereço: (https://www.youtube.com/watch?v=dtO1RuRojYc&t=24s).

Esse curta apresenta cenas cotidianas dos povos originários e nos convida a ter orgulho de nossa ancestralidade indígena, pois que a mãe do Brasil é indígena, frase com a qual o filme é encerrado, nos alerta da presença dos povos originários em toda a sociedade. Também diz da importância em se quebrar o paradigma errôneo que aprendemos nas escolas de um indígena sempre descrito através da escrita de um não indígena.

A sugestiva expressão A mãe do Brasil é indígena, diz respeito a um dos movimentos das pesquisas com os cotidianos, criado por Nilda Alves (2008a) e atualizado por Andrade, Caldas e Alves (2019). Trata-se do movimento intitulado ecce femina1, ou eis a mulher.

Essa tônica dará o tom do nosso texto, inspirado na metodologia da conversa, que pode ser compreendida como ensaio, pois não visa criar imagens estáveis de nós mesmos, nem dos outros, porque aceita o movimento do devir como maior do que qualquer pretensão de estabilização, desse modo, elas “[...] impõem outras possibilidades de compreensão dos cotidianos praticados, não mais reduzidos a lugares da mesmidade/repetição” (FERRAÇO, ALVES, 2018, p. 46). Essa metodologia possui relação com o movimento “[...] eis a mulher”, sobretudo por ressaltar a condição dinâmica e processual do aparecer humano, nesse caso, do aprenderensinar aparecer da mulher.

Os povos originários viveram por centenas de anos a desqualificação por parte do Estado, e não somente dele, de seus modos de ser e estar no mundo, de seus saberes. Bruno Ferreira descreve a escola que estudou repleta de desrespeitos ao estudante indígena e aos seus modos de ser e habitar o mundo. Em entrevista ao site da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que foi para a universidade em busca de formação para um bem coletivo.

A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e da Constituição Federal de 1988, os povos originários obtiveram a garantia de uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária. Cabe à coordenação das políticas de educação escolar indígena integrante do Ministério da Educação legislar sobre as políticas públicas de educação, porém a execução cabe aos estados e municípios. Vale ressaltar que tal política foi criada por muitas reinvindicações e pressões dos povos indígenas, que não aceitaram a imposição de uma escola única.

Garantir uma política educacional pautada no envolvimento com outras pautas indígenas é uma necessidade para que as ações sejam convergentes ao respeito e à autonomia dos povos originários. Pautas como a importância da demarcação de terras, do acesso à saúde, da garantia de seu patrimônio histórico-cultural e muitas outras devem estar presentes nos processos que levam em consideração as diversas redes educativas desses povos. Para Sônia Guajajara (2019, p. 33), a violação dos direitos e o não-reconhecimento étnico é algo que sempre assombra os povos indígenas em nosso país. Segundo ela, “[...] dizem que temos direitos iguais, mas não é só de direitos iguais que a gente precisa. Somos povos indígenas e queremos ter o direito à diferença também”.

Sônia Guajajara é a atual Ministra de Estado do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, do governo Lula. É a primeira indígena a ocupar tal cargo no país. Sua atuação é emblemática e importante, sobretudo porque o referido governo se apresenta como esperança de redemocratização das violações aos direitos humanos cometidas pelo derrotado governo de Jair Bolsonaro. O referido Ministério dos Povos Indígenas tem as funções de reconhecer, garantir e promover os direitos dos povos indígenas. Também deve demarcar, defender e proteger os territórios dos povos originários, monitorando e fiscalizando as terras para prevenir os conflitos. A importante Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), passa a ser integrada pelo supracitado Ministério. Ela também será chefiada por uma mulher, a indígena Joênia Wapichana. Joênia será a primeira indígena a presidir o órgão desde que ele foi criado em 1967.

A partir desse panorama, nosso ensaio está comprometido com as redes educativas implicadas no aprenderensinar das sensibilidades, mais detidamente com o aprenderensinar das mulheres indígenas em nosso país. Para tanto, buscaremos seguir algumas pistas da seguinte proposição: como aparece as mulheres indígenas nas redes educativas que formamos e que nos formam hoje!? Vale ressaltar que nosso intuito não é buscar esgotar a polifonia de experiências e narrativas implicadas em tal aparecer, mas ressaltar sua emergência através de três histórias: (i) narrando com o corpo-território2 de Sônia Guajajara - expondo um rosto; (ii) aprenderensinar nas assembleias multiespecíficas das redes educativas - criando paisagem; e, (iii) corpo-território em currículos das infâncias - sintonizando com os modos de sentirfazerpensar3.

NARRANDO COM O CORPO-TERRITÓRIO DE SÔNIA GUAJAJARA - EXPONDO UM ROSTO

No texto intitulado Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos, Nilda Alves (2008a), dialogando com os personagens conceituais Certeau, Foucault e Deleuze, especialmente com a compreensão dos usos que os praticantes sentemfazempensam com os múltiplos artefatos, com a noção de acontecimento e com a ideia de virtualidade, decide inserir um quinto movimento às pesquisas com os cotidianos, compondo o movimento ecce femina. Os outros quatro movimentos descritos no belo texto Decifrando o pergaminho, republicado em Alves (2008b), eram: (i) o sentimento do mundo; (ii) virar de ponta cabeça; (iii) beber em todas as fontes; e, (iv) narrar a vida e literaturizar a ciência.

Alves (2008a) afirma que buscou trabalhar esse quinto movimento uma vez que ele é mais apropriado aos cotidianos das nossas escolas. A autora também afirma que buscou homenagear Nietzsche e Foucault, introduzindo o movimento ecce femina, a partir da noção foucaultiana de acontecimento, ao dizer:

[...] o acontecimento não é o que é ou o que acontece, mas é aquilo que estando ainda não é, seu tempo não é o presente, mas o futuro. Nesse sentido pois, ao colocar no papel as ideias que vamos tendo a respeito de movimentos vividos e de processos experienciados, vamos introduzindo no texto possíveis expressões que não conseguem se explicitar inteiramente, nem disso conseguimos ter inteira compreensão para expressar em palavras tudo o que pensamos ou queremos expressar. No entanto, de forma envenenada ou mascarada algo existe virtualmente nele. Ora, se para o possível, como nos ensina Deleuze e Guattari (1995) o que existe é transformar-se em real sem nenhuma criação, ao virtual cabe a atualização o que pressupõe essa criação. É por isso, que Sousa Dias (1995) indica que o acontecimento virtual possui a estrutura de um problema a resolver e persistente, nas suas condições problemáticas.

Notemos que, para introduzir o movimento ecce femina, a autora ressalta a expressão sensível do acontecimento, lembrando seus aspectos vividos e os processos experienciados. Compreendamos também a importância que Alves (2008a) confere à multiplicidade sensível, inscrevendo-a não em nenhum processo solipsista, individualista, mas afirmando-a na abertura das criações coletivas, dizendo com Sousa Dias (1995, p. 105), que “[...] o sujeito criador é sempre coletivo”. Isso é muito importante e pode ficar mais explícito ao evocarmos novamente os personagens conceituais privilegiados pela autora nesse diálogo: Certeau, Foucault e Deleuze. O acontecimento são relações de forças que ocorrem no interregno das atualizações e das virtualidades que as assombram, movimentando-as e apresentando-as nos diversos usos que realizamos com os personagens conceituais com os quais nos envolvemos e nos afetamos.

Querendo compor com o movimento ecce femina, sentimos a importância de dar um rosto ao nosso ensaio. Ele será exibido por meio da apresentação do devir-intenso-Sônia Guajajara. Imiscuindo o rosto ao acontecimento, podemos afirmar que sua criação não está limitada ao processo de personalização. Aliás, até podemos pensar nesta como envenenamento possível do acontecimento, pois, se tivermos de ser mais austeros/as com o seguir as pistas, diríamos que estamos expondo o rosto devir-intensivo-alves-guajajara-certeau-deleuze-foucault-etc. Afinal, são sempre coletividades!

Os territórios ancestrais do povo Guajajara/Tentehar, foram tomados pela agropecuária cerca de 390 anos atrás. “O povo Guajajara se estende atualmente pelo Maranhão, no nordeste do Brasil, e possui cerca de 24 mil pessoas, sendo um dos povos indígenas mais populosos do país. Habitam a margem oriental da região amazônica” (WERÁ, 2019, p. 7). Além disso, esse povo foi cercado pela antiga política coronelista, fundamentada na violência e opressão.

Sônia Guajajara faz parte da região da Terra Indígena chamada Arariboia, Maranhão (WERÁ, 2019). Seu ativismo indígena e ambiental começou na juventude, nos chamados movimentos de base (PSOL, 2018). Pelo seu engajamento, ela ganhou vários prêmios e menções honrosas. Entre os prêmios temos: ordem do mérito cultural, em 2015, do Ministério da Cultura, entregue pela então presidenta Dilma Rousseff; medalha 18 de Janeiro pelo Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo, em 2015; e medalha honra ao mérito do Governo do Estado do Maranhão, pela articulação com os órgãos governamentais no período das queimadas na Terra Indígena Arariboia (PSOL, 2018).

Em 2018, foi candidata à Vice-presidência da República, na chapa com Guilherme Boulos. Foi a primeira vez na história do Brasil que uma indígena compôs uma chapa para disputar o cargo máximo do país. Ela havia se colocado à disposição para disputar a Presidência, no evento Conferência Cidadã, acontecimento que envolveu movimentos sociais e artistas e ocorreu em São Paulo. No entanto, estudando melhor a conjuntura do país, resolveu fazer uma aliança com Guilherme Boulos. Guajajara (2018) justifica sua decisão com o seguinte argumento:

[...] a luta que o MTST4 faz aqui na cidade é a luta que nós fazemos em nossas aldeias pra garantir nosso território, que é nossa morada, nossa casa. As ocupações da cidade são as nossas retomadas lá no campo. É uma luta só. O que diferencia a gente é o lugar que travamos essa luta. Não podemos mais aceitar as imposições de uma minoria que não representa ninguém, só a si mesma (PSOL, 2018).

A luta pelo corpo-território é uma luta que deve ser unificada, porque “[...]não podemos mais aceitar as imposições de uma minoria que não representa ninguém, só a si mesma”, exclama Sônia. Ela é uma “[...] guerreira inspiradora de muitas mulheres, muito além da causa indígena, pois sua história de vida é de muita luta, resiliência e superação” (WERÁ, 2019, p. 7). Ela compreendeu que como mulher tinha de se fazer respeitar numa sociedade machista como a nossa. Um dos principais temas de defesa, e que a destacou como guerreira, tem se tornado uma agenda crítica para ativistas do país e do mundo. Trata-se da Reserva Natural de Cobre e Associados (RENCA). “Uma reserva mineral sob o solo amazônico, entre os estados do Pará e do Amapá, criada em 1984 pelo então presidente do regime militar João Batista Figueiredo” (WERÁ, 2019, p. 9-10). Figura que podemos afirmar funcionar como personagem conceitual do pai colonial, em vídeo mencionado no início do texto, narrado por Maria Betânia. Pai colonial, sobretudo porque o período da Ditadura Militar foi uma catástrofe violadora dos direitos humanos e civis da população no país. Governo dirigido, quase exclusivamente, pelos interesses da pequena elite nacional em aliança com grupos estrangeiros, com conivência e intervenção dos Estados Unidos. O pai colonial está às voltas com o complexo de édipo, porque tem medo e fica às voltas com a tal da castração, tentando atar a todo tempo as potências (o desejo) à lei (DELEUZE, GUATTARI, 2010).

Para Sônia Guajajara (2019), o território é fundamental para o continuar do ser-indígena. A educação, segundo ela, é necessária, pois é algo que também une, “[...] que é importante para todo mundo, para as crianças, para a juventude”. Ela afirma que os indígenas buscam uma educação diferenciada, focada na valorização do “[...] conhecimento da gente enquanto indígena” (GUAJAJARA, 2019, p. 19). Para a autora, contemporaneamente, há o importante apelo do levantar a bandeira da valorização do conhecimento tradicional dos povos. Nesse processo, “[...] as mulheres estão assumindo a responsabilidade e a liderança. Estamos vivendo um momento em que no Brasil as mulheres estão no auge, de conduzir, de fazer as coisas, de assumir as principais lutas” (GUAJAJARA, 2019, p. 20).

APRENDERENSINAR NAS ASSEMBLEIAS MULTIESPECÍFICAS DAS REDES EDUCATIVAS - CRIANDO PAISAGEM

Para Alves (2010, 2019), há modos de sentirfazerpensar e criar nos cotidianos. Eles nos levam a outras formas de operar, outros modos de compor redes e assembleias. A partir desse compromisso em seguir os movimentos, podemos repensar a noção de assembleia, proposta pela antropóloga Tsing (2019) e utilizá-la como noção não essencialista que auxilia a focar a atenção nos movimentos de constituição que entrelaçam, compõem e agregam vários/as seres, coisas e modos de sentirfazerpensar. Essa noção é importante porque permite compreender as potências dos variados encontros que acontecem nas intensidades criadas pelas diversidades de linhas emaranhadas (DELEUZE, 1992; INGOLD, 2007). Para Tsing (2019, p. 126), assembleias são “[...] justamente aqueles que encontramos reunidos: por exemplo, as plantas que crescem em torno uma das outras em uma paisagem particular”. Tal noção é importante por auxiliar na visibilização das linhas emaranhadas que compõem as redes educativas.

Como exemplo, gostaríamos de expor o movimento das mulheres Yarang das aldeias Moygu e Arayo que integram a etnia indígena Ikpeng, no território indígena do Xingu (Mato Grosso).

Fonte: https://razoesparaacreditar.com/mulheres-yarang-nascentes/

Figura 1 Mulheres Yarang das aldeias Moygu e Arayo 

Tal movimento possui mais de uma década de trabalho implicado de um coletivo protagonizado por mulheres que se reconhecem como Yarang (formigas cortadeiras na língua Karib). “É preciso ensinar o valor das sementes, o valor das florestas”, diz Magaró Ikpeng. “É preciso garantir que meus netos e netas vão ter futuro.” (PIETRO, 2019). Elas fazem o processo de coleta de sementes e de reflorestamento das nascentes da Bacia do Rio Xingu (SILVA JUNIOR, 2020). Estamos diante de uma importante assembleia multiespecífica (TSING, 2019), que forma a redes educativa ecce femina (ANDRADE, CALDAS, ALVES, 2019). Trata-se da mobilização de experimentações não antropocêntricas, sobretudo porque “[...] o excepcionalismo humano nos cega. A ciência herdou das grandes religiões monoteístas narrativas sobre a superioridade humana” (TSING, 2015, p. 184). Essas narrativas são baseadas em pressupostos sobre a autonomia humana e a estabilidade e, além disso, não levantam questões sobre a interdependência das espécies. Elas nos levaram:

[ a ] imaginar as práticas de ser uma espécie (humana) como se fossem mantidas autonomamente e, assim, constantes na cultura e na história. A ideia de natureza humana foi apropriada por ideólogos conservadores e por sociobiólogos que se utilizam de pressupostos da constância e autonomia humanas para endossar as ideologias mais autocráticas e militaristas (TSING, 2015, p. 184).

Se desconsiderarmos os princípios da autonomia e da independência, poderíamos imaginar naturezasculturas (RANGEL, 2018) sempre se fazendo, através de variadas assembleias de dependência entre espécies (TSING, 2015) e de redes educativas (ALVES, 2008b). A própria humanidade só poderia ser compreendida em termos de relações, de encontros que se dão entre diversas redes, emaranhados e espécies:

É preciso entender mais, por exemplo, sobre as variadas teias de domesticação nas quais nós humanos nos enredamos. A domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras espécies. Que tais relações podem também transformar os humanos é algo frequentemente ignorado (TSING, 2015, p. 184-185).

Para Tsing (2015), os fungos oferecem um bom exemplo da maneira de sentirfazerpensar as trocas interespecíficas e os encontros. Eles não são considerados nem plantas, nem animais, formam um reino à parte, estão à margem e receberam pouca importância dos estudiosos. Eles são espécies indicadoras da condição humana, pois são onipresentes e seguem os experimentos humanos há muito tempo (TSING, 2015). Sem o devir-fungo, não seria possível a formação do solo, tal como o conhecemos. Eles interagiram e estabeleceram encontros com outros organismos, revolucionando o pobre e pedregoso solo original, decompondo-o, transformando em húmus, e dando origem ao solo fértil, em que flora e fauna puderam se desenvolver. É preciso compreender que as redes educativas estão presente em todo canto, mobilizando modos de aprenderensinar multiespecíficos, sem compromisso com a eurocêntrica separação entre mundo natural de um lado versus mundo cultural de outro, desconstruindo a naturalização da dicotômica e limitada sensação de estar vivendo em dois mundos distintos. Essa talvez seja a maior contribuição de Tsing (2015; 2019), aliada às pesquisas com os cotidianos, porque, desse modo plural, complexo, multidimensional, admite-se que “[...] o cotidiano é espaçotempo de saber e criação, permeados de prazeres, inteligências, imaginações, solidariedades, pertenças, comportando grande diversidade e complexidade de modos de sentir, fazer e pensar” (ALVES, 2010, p. 18). Toda rede é formada pela composição de múltiplos e variados dentrosforas. Desse modo, Alves (2010, p. 23) nos alerta:

[...] é preciso aprender, assim, que o trabalho a desenvolver exigirá o estabelecimento de múltiplas redes de relações: entre eu e os problemas específicos que quero enfrentar; entre eu e os sujeitos dos contextos cotidianos referenciados; entre eu, esses sujeitos e outros sujeitos com os quais tecem espaçostempos cotidianos.

O encontro mulher-formiga e vegetação cria paisagens multiespecíficas e auxilia no reflorestamento da floresta. Cria paisagem como interface de “[...] encontro para os atos humanos e não humanos e um arquivo de atividades humanas e não humanas do passado” (TSING, 2019, p. 17). Os modos de sentirfazerpensar compartilhados por elas integram uma rede de vida que não se traduz tão somente na conservação das florestas, mas, sobretudo, na memória ancestral e na preservação dos sistemas ecológicos aos quais estão integradas. A coleta de sementes e o processo de restauração florestal não apresenta apenas a conservação da biodiversidade e das nascentes da Bacia do Xingu (SILVA JUNIOR, 2020), elas atualizam a preservação da memória ancestral (KRENAK, 2019), dando sentido às práticas que são cotidianamente compartilhadas pelo povo Ikpeng. “Esse tipo de memória requer movimento e inspira um conhecimento histórico íntimo da floresta” (TSING, 2019, p. 35).

Então, sob a lógica das mulheres-formiga, dos estudos dos cotidianos e das múltiplas relações que compõem o social, não faz muito sentido respeitar as caixas pretas consagradas dos domínios sociais estabelecidos, tendo-se em vista que as redes educativas estão presentes em toda tessitura cotidiana, compondo e desarticulando domínios, e, tendo-se em vista que a escritura acadêmica é apenas mais um elemento na composição dessas tessituras. Há uma diversidade nas atividades e nos modos de sentirfazerpensar humanos e mais que humanos, com desdobramentos variados de criações e sentidos. Temos de levar a sério a conversa com nossos interlocutores/as, sejam eles humanos ou não-humanos. Aliás, “[...] nosso próprio envolvimento humano em mundos multiespécie é, portanto, um lugar para se começar. Nossos feitos são uma forma de traçar os feitos de outros. Isso exige acompanhar os arranjos práticos e as interações dinâmicas de outras espécies” (TSING, 129). Nesse sentido, está na hora de recuperar “[...] a história e permitir a entrada de não humanos, assim como historiadores sociais se abriram para as histórias dos povos colonizados, povos indígenas, pessoas de cor e mulheres no final do século XX” (TSING, 2019, p. 17).

Seguir as linhas emaranhadas que formam assembleias pode nos levar a outras tessituras nas/das/com (as) redes educativas. Os movimentos não possuem fim... Muitas vezes o corte acontece por conta da cautela metodológica e pelo tempo necessário a cada pesquisa. Acontece que “[...] muitas espécies fazem linhas de dança” (TSING, 2019, p. 29). Portanto, “[...] somente seguindo as populações em tais danças poderemos ver os efeitos da mudança ambiental. Precisamos de mais histórias sobre tais danças” (TSING, 2019, p. 28). A importante história das mulheres-formiga virou filme, intitulado Yarang Mamin. Ele foi criado pela cineasta indígena Kamatxi Ikpeng e aborda o trabalho das mulheres Yarang para reflorestar o Xingu. Pode ser assistido no endereço (https://vimeo.com/336546658).

CORPO-TERRITÓRIO EM CURRÍCULOS DAS INFÂNCIAS - SINTONIZANDO MODOS DE SENTIRFAZERPENSAR

Seguindo os rastros da mãe que é indígena, podemos afirmar que é preciso saber cuidar das infâncias. Os currículos indígenas buscam ser voltados prioritariamente à valorização dos saberes indígenas respeitando-se o modo de vida de cada comunidade e suas relações sociais. A questão do território é central para as experiências de todos os povos indígenas (GUAJAJARA, 2019). Os currículos geralmente envolvem-se com o que atualmente vem sendo chamado, através das narrativas dos próprios indígenas, corpo-território (HAESBAERT, 2021). O currículo como corpo-território opera através das experiências e saberes engendrados nas diversas redes educativas dos cotidianos, “[...] tanto no sentido de ver o nosso corpo como um território quanto no de estender a outros seres e ambientes uma leitura a partir da corporeidade humana” (HAESBAERT, 2021, p. 56). Como exemplo, podemos citar os Galibi-Marworno que “[...] consideram que a participação da criança na escola é parte do seu processo de produção do corpo, desde que ocorra em paralelo e equilíbrio com outras atividades” (TASSINARI, 2015, p. 162). É importante assinalar que esse corpo-território também se constitui através do envolvimento estético, porque “[...] as formas estéticas têm sua origem nas configurações do corpo da criança com o corpo da mãe” (SAFRA, 2005, p. 48). Ambiente forjado pelo corpo-território, que se torna encontro, pois anteriormente fora criado pela mãe que é indígena. É esse encontro estético que possibilita:

[...] que as formas sensoriais, que se organizam de maneira privilegiada na relação mãe-bebê, constituam o ponto focal do desenvolvimento da vida imaginativa. Nele, a experiência de beleza, do conhecimento, do amor e da encarnação ocorrem ao mesmo tempo. Por intermédio desse fenômeno, há o estabelecimento de uma ética do ser. Nela, o indivíduo passa a conhecer o que é bom para o seu vir-a-ser e para o seu alojamento no mundo, acha-o belo e o ama. Trata-se da experiência de conhecer sem pensar a respeito de si e dos objetos do mundo, que lhe abrem novas dimensões de seu devir e do próprio mundo (SAFRA, 2005, p. 48).

Essa dimensão que Safra (2005) menciona como “[...] experiência de conhecer sem pensar a respeito”, é chamada por outros/as autores/as de dimensão do cuidado. Alves (2008) compreende como o sentimento do mundo. Para Masschelein e Simons (2013, p. 51), “[...] a escola é o tempo e o lugar onde temos um cuidado especial e interesse nas coisas, ou, em outras palavras, a escola focaliza a nossa atenção em algo”. O cuidado traz uma dimensão ética às atividades5, pois implica que “[...] nós nos importamos com as pessoas e as coisas, dando-lhes toda nossa atenção e respondendo às suas necessidades” (MASSCHELEIN, SIMONS, 2013, p. 51). A educação não pode ser sinônimo de transmissão de informação (INGOLD, 2017), todavia aproxima-se dos cultivos necessários ao aprender a estar com os outros no mundo, ou, dito de outro modo: é um aprender a se fazer-com-outros, em redes e, nesse processo, ao se fazerem-em-conjunto há constituição de mundos. Isso requer o cuidado, porque, para cuidar dos outros, devemos acolhêlos em nossa presença para que, por sua vez, possamos estar presentes para eles. Em um sentido importante, devemos deixá-los estar, para que possam falar conosco (INGOLD, 2017). A abertura aos sentidos que nos ligam aos sabores, aos cheiros, ao tato, aos sons, ao contato direto com as coisas, propicia, na verdade, uma abertura à multiplicidade de modos de sentirfazerpensar.

Cabe lembrar que, para o período da primeira infância, até os sete anos, muitas comunidades indígenas privilegiam o convívio nas aldeias, pois é acompanhando os movimentos cotidianos que se aprendeensina os modos de senetirpensarfazer, passado oralmente de geração a geração. Para Tassinari (2015), a experiência da infância galibi-marworno está imiscuída numa configuração de parentesco que distingue alguns grupos de respeito ou de interdição sexual. A escola acaba atualizando e convivendo com a concepção de infância professada pelo grupo. “A partir de definições próprias de infância e de desenvolvimento infantil, as famílias galibi-marworno seguem estratégias pedagógicas específicas, como as técnicas para a produção do corpo das crianças e a necessidade de soltá-las para adquirirem o ritmo da comunidade (TASSINARI, 2015, p. 163). Do ponto de vista da criança, “[...] os parceiros de brincadeiras são aqueles com quem não poderão se casar. Já as crianças com quem brigam (por serem de outras raças e outros hã6) são seus cônjuges potenciais” (TASSINARI, 2015, p. 156).

[Um princípio pedagógico] das famílias galibi-marworno orienta que a criança precisa estar solta para poder se desenvolver da forma adequada. Dizem que, para uma criança crescer forte e saudável, é preciso “soltar”, deixá-la percorrer os vários espaços da aldeia na companhia dos primos do mesmo . Quando cresce solta, a criança pega o ritmo da aldeia, ou seja: desenvolve um corpo adequado, resistente e saudável. Essa é a condição para que aprenda as habilidades fundamentais para a vida na aldeia, escolhendo entre acompanhar os pais nos trabalhos diários ou acompanhar os primos em atividades infantis, sendo ambas as situações de aprendizagem. Soltar a criança não é uma atitude imediata para os pais, mas também tem que ser aprendida (TASSINARI, 2015, p. 159, grifo da autora).

O ensino fundamental destinado aos povos originários costuma considerar a metodologia própria pela qual as crianças aprendem em suas aldeias, e um deles é a oralidade como forma de criação do conhecimento, como forma de aprenderensinar. Considerar que “[...] a oralidade está em toda parte, porque a conversação se insinua em todo lugar; ela organiza a família e a rua, o trabalho na empresa e a pesquisa nos laboratórios” (CERTEAU, GIARD, 2017, p. 337), e nas aldeias, é um importante reconhecimento de que há diferentes formas de elaborar e se envolver. “Os sons, os cheiros, enfim, tudo contribui para que possamos intuir o jeito do outro, seus sentimentos, seus sofrimentos, pois todas essas organizações plásticas nos afetam em nosso corpo” (SAFRA, 2005, p. 51). Há reconhecimento dos diferentes temposespaços das crianças e das suas capacidades em observar as coisas e aprender através da observação e experimentação. “Há uma postura de respeito em relação às escolhas de aprendizagem das crianças, tanto em relação ao que desejam aprender quanto em relação ao momento e tempo da aprendizagem” (TASSINARI, 2015, p. 159).

Um grande desafio é a ampliação de escolas secundárias para os povos originários. Muitas são distantes das aldeias e poucas são adequadas ao contexto dos mesmos. Isso dificulta o acesso dos jovens e sua permanência.

Quando os povos indígenas se debruçam sobre a discussão a respeito de Ensino Médio, e têm acesso às informações sobre como funcionam as políticas nessa área, na maioria das vezes, definem/optam por projetos de ensino médio técnico que busquem atender às suas necessidades e aos projetos societários, compreendendo que o Ensino Médio oferecido nas cidades (no caso nas escolas estaduais) e mesmo as poucas turmas existentes nas aldeias não atendem as especificidades das comunidades. (sitewww.funai.org.br. Acesso em 8 set. 2021).

Como política pública, é importante o aumento de oferta de cursos que respeitem os cotidianos das aldeias. Em convênio estruturado entre os Institutos Federais e a Funai, podemos observar experiências de sucesso que foram elaboradas em parceria com os povos originários, como por exemplo, referente à gestão ambiental das terras, à saúde, manejos agroecológicos/agroflorestais ou à produção de alimentos, colocando em diálogo conhecimentos indígenas e não-indígenas. Experiências como estas são desenvolvidas dentro da lógica da Pedagogia da Alternância, respeitando o calendário de ritos e festas e de plantio e colheita das comunidades e, além disso, associam processos de aprendizagemensino que articulam pesquisas, conhecimentos e práticas, em prol de tecer conversas com base nas tessituras cotidianas. Afinal, são sempre as redes que formamos e que nos formam, constituídas por diversos dentrosforas (ALVES, 2015), e nunca por domínios eternos. A mudança na ênfase da formação como constituição de domínios, para uma formação que se dá nos fluxos das redes, modifica completamente o estatuto do saber e da aprendizagem.

[Afinal] a educação consiste em criar oportunidades para que os estudantes venham ao mundo, e se consiste em propor as questões difíceis que tornam isso possível, fica claro que a primeira responsabilidade do educador é pela subjetividade do estudante, pelo que permite ao estudante ser um ser singular e único. (BIESTA, 2013, p. 50)

O saber não é propriedade de ninguém. Ele floresce na circulação, em meio à potência dos encontros, das redes, com as criações dos diversos sentidos que formam e são formados nas redes.

Sabemos que são centenas de anos de políticas públicas ausentes de verouvirsentirpensar com os povos originários e o que há no momento ainda não é suficiente para alcançar a real necessidade de toda população indígena. Dessa forma, reconhecer o déficit e incentivar novas políticas públicas, ampliando e incentivando redes educativas com a finalidade de envolver os povos originários, se faz urgente em nosso país. Krenak (2019) propõe adiar o fim do mundo pela capacidade de contar histórias. Para salvar o mundo, diz o autor, precisamos contar mais uma história, depois outra mais, e assim por diante. Ou seja, o futuro só existirá se conseguirmos contar novas histórias e, para tal, é preciso ouvir mais vozes. É preciso que essas vozes circulem, se tornem livres para reverberar cada vez mais nas redes educativas, ocupando, também, seu lugar nos currículos praticadospensados nos múltiplos cotidianos escolares e extraescolares.

No mês de setembro de 2021, povos originários de todo o mundo, incluindo o Brasil, participaram do Congresso Mundial da Natureza que aconteceu em Marselha, na França. As organizações dos povos originários, membros da União Internacional para a conservação da natureza (UICN), convocaram ao reconhecimento dos direitos das suas terras e dos usos tradicionais das naturezasculturas (RANGEL, 2018). O objetivo dos povos originários é a preservação da natureza, que vem sendo constantemente degradada, em especial no Brasil, com o aumento das queimadas, principalmente em terras indígenas. Para Guajajara (2019, p. 32), “[...] a gente tem feito uma rede muito boa de articulação internacional do movimento indígena”.

O referido congresso buscou o apoio mundial de setores públicos e privados para que desenvolvam, aprovem e apoiem ações colaborativas de inversão da degradação da natureza em todo o mundo. Na ocasião, foram apresentadas propostas e resultados relativos aos temas de governança indígena, conservação da biodiversidade, ações sobre o clima, esforços de recuperação pós-Covid-19 e segurança alimentar e estabelecimento de políticas globais. Este Congresso foi um importante passo dentro da história da UICN porque é a primeira vez, em 60 anos, que líderes dos povos originários são reconhecidos como uma categoria participante e propositora de uma agenda a ser cumprida. Queremos terminar esse tópico com a narrativa de Guajajara (2019, p. 28), nos lembrando:

E a rede social está sendo mais real e direta. E para nós, esses canais diretos, com os indígenas contando a própria história, tem fortalecido e aumentado a valorização de nossa cultura. Porque nas aldeias as pessoas gostam de se enxergar a partir de outro parente. Eu confio nele, é um parente também. A Rádio Yandê está conseguindo um alcance maravilhoso. Muita gente tem buscado se informar por meio dela. E não está sozinha. Tem os Índios Online. No Maranhão, a gente formou o Coisa de Índio, que é um grupo de comunicadores indígenas jovens, e eles estão tentando se expandir. A partir deles, se criou um canal nas redes sociais que é a Mídia Índia. Somos nós mesmos sendo a fonte e os protagonistas da história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É de extrema importância, para a educação, compreender os movimentos em suas variadas facetas e conversar acerca deles, nos processos formativos e curriculares através dos diversos modos de sentirfazerpensar que atravessam e criam os cotidianos. Para ultrapassar a fria socialização da comunidade meramente racional, e sua consequente voz imparcial, é preciso assumir a atitude responsável com o estranho, com aquele que foi colocado na condição de outro, posto à margem.

Essa postura ética de se deslocar para o outro exige exposição, porque implica na saída da zona de conforto e num lançar-se, afinal “[....] quando quero falar na comunidade daqueles que não têm nada em comum, então, tenho de encontrar minha própria voz” (BIESTA, 2013, p. 92), sobretudo, pelo fato do que está em jogo não ser “[...] tanto o conteúdo do que dizemos, mas o que é feito. E o que é feito, o que precisa ser feito, e o que só eu posso fazer, é responder ao estranho” (BIESTA, 2013, p. 92). Aliás, isso é considerado a premissa da ética, ou seja, a coerência que advém das buscas e tentativas em relacionar responsavelmente os discursos às práticas. Então, trata-se da formação de uma comunidade ética. Isso possui incontestável relação com a educação e a democracia.

Nosso texto consistiu num convite a entrarmos no aconchego dos encontros. Afinal, a escola não é uma ilha e nem uma fortaleza cercada por muros impenetráveis. Somos nós, praticantespensantes em comunidades, que transitamos em seus dentrosforas, levandotrazendo mundos, a partir dos diversos modos de sentirfazerpensar presentes nos cotidianos das escolas e fora delas. E é assim que o mundo caminha...

1Vamos começar o próximo tópico falando acerca do referido movimento nas pesquisas com os cotidianos.

2Essa noção será retomada e explanada no penúltimo tópico, por ora vamos apenas citá-la.

3Grafamos alguns termos juntos, em itálico e entre aspas simples, para reforçar a ideia de compreender as complexas dinâmicas que ocorrem nos cotidianos.

4Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

5Para Agamben (2017), sensível e inteligível é a grande cisão que veio a configurar o ocidente. Há uma fratura que separou e tornou autônomas ciência e beleza (estética). Ainda para ele, é precisamente “[...] porque o ato supremo do conhecimento é cindido de tal modo em verdade e beleza e resulta, todavia, concebível somente nessa cisão (a sabedoria é sabedoria das coisas mais belas, o belo é o que há de mais aparente, mas a ciência é ciência do invisível), o saber deve constituirse como amor do saber ou saber de amor” (AGAMBEN, 2017, p. 22). O amor, como possibilidade de conciliação dos irreconciliáveis, nos mostra que se a ciência pode envolver-se na busca pelo conhecimento, sem relacionar-se com a beleza; o mesmo não pode ser dito da educação, porque, o tipo de conhecimento mobilizado por esta não pode se apartar ou pretender se apartar das sensibilidades. Desse modo, podemos afirmar que os conhecimentos mobilizados pela educação necessariamente implicam e solicitam o amor. O amor como modo de aprender a vir-a-ser e sentir o mundo (ALVES, 2018b). Esse vir ao mundo não necessariamente implica nascer, mas um abrir-se ao mundo, a partir da disposição do amor, isto é, “[...] garantir o nexo (a unidade e, ao mesmo tempo, a diferença) entre beleza e verdade, entre o que há de mais visível e a invisível evidência da ideia” (AGAMBEN 2017, p. 20). O autor, muito envolvido pela filosofia e pelo que se convenciona chamar “ocidente”, foca exclusivamente na nossa relação com as ideias. Porém, com o envolvimento com outras cosmologias podemos questionar o exclusivismo de tal modo de se colocar no mundo, tentando nos abrir a outras sensibilidades. Então, isso nos diz que a educação requer e mobiliza, simultaneamente, ciência e arte, mas também as transborda. Ela própria pode ser considerada como: conhecimento amoroso, porque acontece nos encontros dos cultivos que oscilam entre ciência e arte, transbordando-os. Esse conhecimento amoroso, que trasborda ciência e arte, faz-se nos cotidianos.

6Para Tassinari (2015), a “raça” se refere a um grupo de descendência patrilinear, geralmente nomeado a partir do ancestral mais velho. O diz respeito a uma fileira de casas relacionadas às mulheres: um casal mais velho, suas filhas casadas e seus netos etc.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Gosto: Belo Horizonte: Autêntica, 2017. [ Links ]

ALVES, Nilda. A compreensão de políticas nas pesquisas com os cotidianos: para além dos processos de regulação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1195-1212, 2010. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/es/v31n113/08.pdf. Acesso em set. 2018. [ Links ]

ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho - os cotidianos das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (orgs.). Pesquisas nos/dos/com cotidianos escolares. Petrópolis, Rio de Janeiro: DP et Alli, 2008b. [ Links ]

ALVES, Nilda. Sobre os movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (orgs.). Pesquisas nos/dos/com cotidianos escolares. Petrópolis, Rio de Janeiro: DP et Alli, 2008a. [ Links ]

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). São Paulo: Editora 34, 1992. [ Links ]

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. São Paulo: Ed. 34, 2010. [ Links ]

FERRAÇO, Carlos; ALVES, Nilda. Conversas em redes e pesquisas com os cotidianos: a força das multiplicidades, acasos, encontros, experiências e amizades. In: RIBEIRO, Tiago; SOUZA, Rafael de; SAMPAIO, Carmen Sanches (orgs.). Conversa como metodologia de pesquisa - por que não? Rio de Janeiro: UBU Editora, 2018. [ Links ]

GIARD, Luce; CERTEAU, Michel de; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano, 2. morar, cozinhar. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017. [ Links ]

GUAJAJARA, Sônia. Sônia Guajajara. São Paulo, Azougue, 2019. (Coleção Tembeta). [ Links ]

HAESBAERT, Rogério. Território e descolonialidade: sobre o giro (multi)territorial/de(s)colonial na América Latina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Niterói: Programa de PósGraduação em Geografia, Universidade Federal Fluminense, 2021. [ Links ]

INGOLD, Tim. Anthropology and/as education. Boston: Routledge, 2017. [ Links ]

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. [ Links ]

PESSANHA, Juliano Garcia. Recusa do não-lugar. São Paulo: Ubu Editora, 2018. [ Links ]

PIETRO, Gabriel. Ação liderada por mulheres indígenas já plantou mais de 1 milhão de árvores no MT. Site Razões para Acreditar. 2019. Disponível em https://razoesparaacreditar.com/mulheresyarang-nascentes/. Acesso em 15 jun. 2021. [ Links ]

PSOL. Entrevista. Conheça Sônia Guajajara, primeira indígena em uma pré-candidatura presidencial. 2018. Disponível em http://psol50.org.br/conheca-sonia-guajajara-primeira-indigena-em-uma-precandidatura-presidencial/. Acesso em 1 set. 2021. [ Links ]

RANGEL, Leonardo. Educação dos sentidos e do encontro. Curitiba, Paraná: CRV, 2018. [ Links ]

SAFRA, Gilberto. A face estética do self: teoria e clínica. 9. ed. São Paulo: Unimarco Ed., 2005. [ Links ]

SILVA JUNIOR, Ivan de Matos e. O pensamento decolonial na Biogeografia e suas contribuições na formação docente. Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. 2020. Disponível em http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/31480. Acesso em 1 mar. 2020. [ Links ]

SOUSA DIAS. Lógica do acontecimento - Deleuze e a filosofia. Porto: Afrontamento, 1995. [ Links ]

TASSINARI, Antonella. Produzindo corpos ativos: a aprendizagem de crianças indígenas e agricultoras através da participação nas atividades produtivas familiares. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 141-172, jul./dez. 2015. Disponível em https://www.scielo.br/j/ha/a/BpSTPLnKQSXmt3jJWt8LskB/abstract/?lang=pt. Acesso em 20 jul. 2021. [ Links ]

TSING, Anna. Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Ilha, v. 17, n. 1, p. 177-201, jan./jul. 2015. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2015v17n1p177. Acesso em 10 jun. 2021. [ Links ]

TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019. [ Links ]

WERÁ, Kaká. Apresentação. 2019, p. 7. In: GUAJAJARA, Sônia. Sônia Guajajara. São Paulo, Azougue, 2019. (Coleção Tembeta). [ Links ]

VÍDEO MP4. A Mãe do Brasil é Indígena. Direção: Myrian Krexu. Brasil: 2020, 1:40 min. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dtO1RuRojYc&t=24s. Acesso em 3 ago. 2021. [ Links ]

VÍDEO MP4. Yarang Mamin. Direção Kamatxi Ikpeng. Brasil: 2020, 21 min. Disponível em https://vimeo.com/336546658. Acesso em 20 ago. 2021. [ Links ]

Recebido: Setembro de 2021; Aceito: Janeiro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.