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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.72 Rio de Janeiro ene./mar 2023  Epub 03-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.67054 

Ensaios

EXERCÍCIOS DE LIVROS DIDÁTICOS E AVALIAÇÃO DEMOCRÁTICA DAS APRENDIZAGENS

TEXTBOOK EXERCISES AND THE DEMOCRATIC EVALUATION OF LEARNING

EJERCICIO DE LIBROS DIDÁCTICOS Y EVALUACIÓN DEMOCRÁTICA DE APRENDIZAJES

1Universidade Federal de Juiz de Fora


Resumo

Considerando o acúmulo de discussões desenvolvidas no campo dos estudos e pesquisas em/sobre avaliação educacional, a proposta desse ensaio é problematizar os exercícios e atividades propostos em livros didáticos como instrumentos de avaliação da aprendizagem. A partir de uma abordagem discursiva inscrita na pauta pós-fundacional (MARCHART, 2009) - que questiona os essencialismos transcendentais que assumem condição de fundamento último nos processos de significação do social - os argumentos mobilizados neste texto produzem deslocamentos de sentidos hegemonizados sobre significantes como aprendizagem - a partir das contribuições de Biesta (2017) e Gabriel (2016); e avaliação - a partir dos estudos de Álvarez Méndez (2001, 2017) e Fernandes (2009), reverberando na proposição de uma avaliação democrática das aprendizagens (MARTINS, 2020), na qual os exercícios de livros didáticos assumem a condição de ser um de seus instrumentos por consistirem em espaços privilegiados para feedback e regulação.

Palavras-chave: avaliação da aprendizagem; exercícios; livro didático

Abstract

By considering the discussions in the field of studies and research on educational evaluation, this essay proposes a critical analysis of exercises and activities in textbooks as tools for learning evaluation. Based on a post-foundational approach (MARCHAT, 2009) - which questions the transcendental essentialisms that work as the foundation in meaning-making processes - the arguments in this paper displaces the hegemonic meaning of signifiers such as learning - from the contributions of Biesta (2017) and Gabriel (2016); and evaluation - from the studies of Álvarez Méndez (2001, 2017) and Fernandes (2009), by supporting the proposition of a democratic evaluation of learning (MARTINS, 2020), in which exercises in textbooks become one of its instruments because they consist of privileged spaces for feedback and regulation.

Keywords: learning evaluation; exercises; textbooks

Resumen

Considerando la acumulación de discusiones desarrolladas en el campo de los estudios e investigaciones en/sobre evaluación educacional, la propuesta de este ensayo es problematizar los ejercicios y actividades propuestos en libros didácticos como instrumentos de evaluación del aprendizaje. A partir de un abordaje discursivo inscripto en la pauta posfundacional (MARCHART, 2009) - que cuestiona los esencialismos transcendentales que asumen condición de fundamento último en los procesos de significación - los argumentos movilizados en este texto producen desplazamientos de sentidos hegemonizados sobre significantes como aprendizaje - de los aportes de Biesta (2017) y Gabriel (2016); y evaluación - de los estudios de Álvarez Méndez (2001, 2017) y Fernandes (2009), reverberando en la proposición de una evaluación democrática de aprendizajes (MARTINS, 2020), en el cual los ejercicios de libros didácticos asumen la condición de ser uno de sus instrumentos porque consisten en espacios privilegiados de retroalimentación y regulación.

Palabras clave evaluación del aprendizaje; ejercicios; libro didáctico

INTRODUÇÃO

[...] ninguém - nenh-umtorna-se presença, quando o espaço de tornar-se presença só pode relegar o sujeito a certa posição fixa, a um ponto no mapa (BIESTA, 2017, p. 79, grifo do autor)

O que na escola, mais do que a avaliação, é mobilizado performaticamente para situar os estudantes em determinada posição? Seja essa posição pensada como objetivo a ser alcançado, seja a posição pensada como lugar natural de cada indivíduo - cabendo à avaliação mostrar qual é esse lugar, mas também legitimar a fixação do indivíduo nesse ponto no mapa. Considerando as críticas tecidas no campo educacional, sobretudo no seio das teorizações curriculares que se inscrevem na filosofia da diferença, faz sentido continuar apostando na presença da avaliação na cultura escolar?

A proposta deste ensaio é responder positivamente a essa indagação por meio da aposta em novos sentidos para os significantes avaliação e aprendizagem para pensar uma avaliação democrática das aprendizagens, na qual os exercícios de livros didáticos podem ser um de seus instrumentos.

Começo a enfrentar tal desafio apostando no vínculo da avaliação à função social da escola. Nesse sentido, recorro a Biesta (2012) que defende três funções sociais para essa instituição: qualificação, socialização e subjetivação. A função de qualificação remete ao mercado de trabalho, à instrução política (e aqui não há qualquer referência à política partidária), questões de cidadania e instrução cultural, no sentido de ter acesso ao que a humanidade já produziu e acumulou em termos de conhecimentos e experiências. A função de socialização corresponde à inserção dos indivíduos como membros de ordens sociais, culturais e políticas, referindo-se tanto a instrução cultural presente na função de qualificação, como aos processos de reprodução das comunidades racionais que tornam seus membros intercambiáveis, importando o que é dito, e não quem diz. Já a função de subjetivação, de alguma forma, é uma função oposta à de socialização, pois se trata de se tornar um sujeito que pode ser, em alguma medida, independente das ordens já existentes, um sujeito não condenado a uma repetibilidade da qual não pode escapar.

É em torno da função de subjetivação que construirei meus argumentos, afinal, muito já foi produzido tendo as outras duas funções como referências. Trata-se de incorporar novos enunciados àqueles já consolidados, tensionando-os, mas não os negando. É possível vislumbrar que as escolas sejam pensadas como espaços potentes para tornar-se presença - que significa vir ao mundo de forma única e singular (BIESTA, 2017) ou para ter experiências - entendido como aquilo que nos toca, nos acontece (LARROSA, 2002)? Isso significa falar de uma avaliação que idealmente garanta, ou ao menos não impeça, que a função de subjetivação possa ser articulada às de qualificação e socialização, o que demanda enormes desafios de ordem técnica, política e epistemológica.

Com efeito, como sublinha Álvarez Méndez (2001), se se quer qualidade de aprendizagem e novas formas de aprender, é preciso construir formas atrevidas de avaliar, o que não é possível de ocorrer sem que se questionem tradições da cultura escolar relacionadas aos processos de ensino-aprendizagem, o que pode implicar a produção de novos sentidos para velhas práticas relacionadas a instrumentos avaliativos.

Para fins de melhor organização dos argumentos, optei por trabalhá-los em duas partes. Na primeira, destaco o compromisso com uma avaliação voltada para a produção de aprendizagens. Na outra, problematizo as noções de avaliação da aprendizagem e avaliação de desempenho como forma de situar a proposta desse texto no campo da avaliação educacional. Finalizo o texto fazendo um exercício teórico de pensar os exercícios de livros didáticos como instrumentos de uma avaliação democrática das aprendizagens.

AVALIAÇÃO E APRENDIZAGEM: INVESTINDO EM NOVOS(?) SENTIDOS

O compromisso primeiro e direto aqui assumido é o de pensar a avaliação da aprendizagem não apenas, tampouco principalmente, como espaço-tempo de medir aprendizagens, pois, “[...] medir o conhecimento adquirido pelo aluno é parte da avaliação, mas não é condição obrigatória, e nem mesmo suficiente, para que a avaliação se realize” (SOUSA, 2014, p. 108), mas, sobretudo, como lugar de produzir aprendizagens, de fomentar relações significativas com o conhecimento escolar, como lugar de experiência (LARROSA, 2002), como possibilidade para que os sujeitos posicionados como estudantes possam tornar-se presença (BIESTA, 2017), o que significa vir ao mundo de maneira única e singular, isto é, sem estar condenado apenas a reproduzir subjetividades já existentes.

Não há novidade na defesa que aqui faço de uma avaliação para aprender. Muitos estudos do campo da Avaliação Educacional, nessa mesma linha, têm como horizonte o foco na emancipação dos e das estudantes. No entanto, é preciso esclarecer que a postura epistêmica pós-fundacional - que questiona a existência de essências (fundamentos últimos) definidoras do ser das coisas desse mundo e desloca para o plano político a produção de fundamentos parciais (MARCHART, 2009) - autoriza romper com a perspectiva de pensar emancipação como um destino prévio a ser alcançado, tal como faz a maioria desses estudos, para pensá-la como processo relacional. Assim, concordo com Gabriel (2016) para quem, na pauta pós-fundacional, o significante emancipação é concebido como ato criativo, como momento de irrupção da contingência, como momento performativo do político, sendo a performatividade aqui concebida como agência do sujeito. Assim, o foco se desloca do resultado em si para o processo, explicitando a condição política do ato de avaliar.

Isso não significa prescindir das dimensões técnicas da avaliação, pois não é a técnica que coloca em risco o caráter democrático que a avaliação pode assumir, mas sim os usos dos instrumentos tecnicamente produzidos, bem como a objetivação feita a partir desses usos. Portanto, saber elaborar com clareza um enunciado, selecionar os instrumentos de acordo com o que se pretende avaliar, destinar o tempo adequado para o processo, definir parâmetros mínimos de validade, definir os tipos de questões, escolher a quantidade delas para compor um instrumento, definir o ordenamento dessas questões, dentre outros elementos que podem ser chamados de questões técnicas não necessariamente colocam em risco a perspectiva de emancipação aqui defendida. Tais questões, no entanto, não podem assumir a condição de fins em si mesmos do ato de avaliar, afinal, “[...] reducida a ejercicio técnico oculta otros valores que conlleva la evaluación y que justifican alguna de las funciones implícitas que desempeña de manera eficaz, aunque no siempre justa”. (ÁLVAREZ MÉNDEZ, 2001, p. 14).

Esse movimento caminha na direção de reconhecer e valorizar as questões técnicas como subsumidas pelas definições políticas, pois as técnicas sozinhas escondem os valores políticos que as orientam. De acordo com Álvarez Méndez (2001), os conceitos anteriores de avaliação precisam ser substituídos por novos, que se ajustem e reflitam mais fielmente às novas concepções sobre o tema, aos novos princípios epistemológicos. São alguns exemplos: transparência de princípios e intenções; credibilidade por meio da compreensão dos princípios; coerência epistemológica e coesão prática; pertinência para justificar as decisões; e legitimidade enquanto ação social que deve ser moralmente correta. Cruz (2008) destaca ainda que a negociação de sentidos e a transparência de critérios e metas são procedimentos técnicos importantes no processo de avaliação.

Tudo isso diz respeito aos usos dos instrumentos avaliativos de forma geral, pois cada instrumento exige ainda a observação de cuidados específicos relativos a seus usos, determinados pelo desenho do instrumento e pela cultura escolar, mas também, e não menos importante, pela configuração epistemológica do conhecimento disciplinar que será objeto da relação de ensinoaprendizagem-avaliação. Esses movimentos se orientam por uma perspectiva que concebe a avaliação como indutora de formas de aprendizagens, como se pode perceber nessa passagem:

De hecho, la evaluación condiciona y determina las formas en las que el alumno estudia y en las que aprende. El aprendizaje se hace em función de las formas de evaluación percebidas. El alumno hará todo cuanto este a su alcance para dar con las claves que el profesor utilizará evaluar su rendimiento y centrará sus esfuerzos en superar las pruebas de evaluación (ÁLVAREZ MÉNDEZ, 2017, p. 147).

Assumindo como verdadeira a percepção desse autor, entendo como pouco produtivo educacionalmente se limitar à linguagem da denúncia no que diz respeito à avaliação, pois o entendimento expresso por esse autor abre um campo de possibilidades para que se invista em novos sentidos para os significantes avaliação e aprendizagem para pensar processos de ensinoaprendizagem em perspectiva emancipatória.

Se os exames vestibulares e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) produzem impactos nos currículos e nas formas de ensinar e aprender nas escolas, contribuindo para a perpetuação de uma perspectiva aquisicionista de aprendizagem - relacionada à noção de aquisição e posse de um objeto (competência, habilidade, conhecimento etc.) que é exterior ao sujeito que aprende, sendo, tal perspectiva, normalmente associada a perspectivas cognitivistas Chaib (2015) - e se a importância dessa perspectiva está na possibilidade de avaliação por meio de medição, comparação e classificação e, mais ainda, na possibilidade de discriminar com precisão e objetividade as diferenças de rendimento escolar entre alunos, é razoável que nas escolas também se possa investir em avaliações indutoras de formas outras, educacionalmente mais interessantes - pois dizem respeito à produção de experiências e atribuição de sentidos - de se relacionar com os saberes.

No âmbito escolar tal movimento ganha ainda mais relevância à medida que as práticas avaliativas ocorrem com muito mais frequência, e com efeitos potencialmente mais significativos, diretos e abrangentes. Ademais, se dos vestibulares e Enem é possível escapar, na educação básica as práticas avaliativas são incontornáveis, sendo, portanto, absolutamente injusto que todas as práticas avaliativas no âmbito escolar tenham as avaliações externas como norte, subsumindo as funções de socialização e subjetivação da educação e se filiando a uma perspectiva bastante particular e restrita da função de qualificação.

Não se trata, pois, de defender o fim de avaliações internas com foco na medição de aprendizagens, mas de deslocá-la da posição de única ou principal forma de avaliar (de forma que muitas vezes esse tipo de avaliação se confunde com o próprio ato de avaliar configurando uma operação metonímica), para uma posição de elemento a ser articulado a outros elementos na cadeia equivalencial definidora de avaliação democrática. Mudar a forma de avaliar no interior das escolas, e isso pode ocorrer pela modificação dos usos, implicando, na prática, transformar seus sentidos, ou pela criação de outros instrumentos, é então a aposta para fomentar relações outras com os saberes e sujeitos e, nesse sentido, ampliar as formas válidas de estar na escola e de aprender.

Se ao invés de apenas pedir para que os estudantes repitam a palavra dita em aula, ou apenas procurem algo pronto e estrategicamente escondido em um documento qualquer que sirva como referência para o comando da questão, lhes forem propostas atividades de avaliação que estimulem a mobilização do conteúdo com o qual tiveram contato em sala de aula, para que façam uma crítica, ou levantem hipóteses, ou estabeleçam relações, dentre outros aspectos, e se essas exigências puderem ser expressas de formas variadas, escolhidas pelos próprios estudantes, os alunos e alunas tenderão a investir em relações positivas com o conhecimento, afinal, como sublinhou Álvarez Méndez (2017), trata-se de uma questão de sobrevivência acadêmica.

Ao docente cabe não só elaborar/selecionar instrumentos de avaliação, mas explicitar seus sentidos, expressar a ideia de que a avaliação é espaço-tempo de aprendizagem, estimular o envolvimento e passar a confiança necessária para que os alunos não tenham medo de errar ao tentar fazer algo para o qual eles não foram interpelados ao longo de seus percursos escolares. A avaliação se converte, então, em fonte de aprendizagem, tornando-se conteúdo relevante, enfraquecendo a dicotomia entre conteúdo e método, por meio do acompanhamento próximo das sensibilidades e estratégias que os alunos põem em ação (metacognição) por meio de uma avaliação que tenha como foco mais ajudar que aprendam do que o controle sobre o conteúdo que aprendem - que tampouco deixa de ter importância, pois, como não poderia deixar de sê-lo, os estudantes precisarão dar conta de satisfazer as exigências de validação, sem que isso corresponda a uma única forma de vir ao mundo ou impeça o ato criativo que, como visto, caracteriza a noção de emancipação em perspectiva pós-fundacional.

Mais uma vez se volta à questão dos objetivos educacionais e, mais do que isso, à necessidade de se levar em conta três elementos destacados por Biesta (2017) como indispensáveis à educação: confiança, violência e responsabilidade. Educar é correr riscos e, por isso, exige confiança. Nos processos educacionais devem ser oferecidas aos estudantes situações difíceis, mas que admitam respostas particulares, configurando violência sobre a soberania do sujeito, e isso exige responsabilidade ilimitada e incalculável pela subjetividade dos alunos e alunas. Essas são condições indispensáveis para uma “[...] avaliação democrática das aprendizagens” (MARTINS, 2020) - que não coloca em polos opostos o vir ao mundo como sujeito de experiências particulares e a relação de aprendizado de conhecimentos historicamente acumulados e compartilhados culturalmente. A aposta aqui está na hibridização desses dois sentidos, pois a segunda opção tem o potencial de enriquecer a primeira, contribuindo para pensar aprendizagem como resposta. Nessa perspectiva:

[...] podemos dizer que alguém aprendeu alguma coisa não quando for capaz de copiar e produzir o que já existia, mas quando alguém responde ao que não é familiar, ao que é diferente, ao que desafia, irrita ou até perturba. Então a aprendizagem se torna uma criação ou uma invenção, um processo de introduzir algo novo no mundo: a resposta única de alguém. (BIESTA, 2017, p. 97).

Com efeito, trata-se de conceber aprendizagem como exercício da palavra, o que compreende a referência à alteridade, ao múltiplo, ao improvável (HELAL, RIBEIRO, 2014). Assim, concordo com Sampaio (2010) que revela seu desejo de uma avaliação que não negue a alteridade, isto é, formas outras de ser, pensar e aprender que não aquelas tradicionalmente estabelecidas a priori para a escola, e ainda com Cruz (2008) que defende:

[...] para o estudante, aprender na escola de modo significativo é fundamental a possibilidade de construção de um repertório de significados próprios em relação aos objetos do conhecimento, ou a construção de maneiras inclusivas de ser e estar no mundo superando a lógica reprodutivista e de exclusão social. (CRUZ, 2008, p. 13, grifos da autora).

Sublinho, pois, que o exercício da palavra não consiste em auto expressão, e precisa de validação por meio de uma epistemologia escolar que compreenda também as comunidades disciplinares - na perspectiva pós-fundacional como argumentam Costa e Lopes (2016) - e suas epistemes. Ou seja, admitir formas outras de avaliar e formas outras de se relacionar com o conhecimento escolar não significa um tudo pode, sendo indispensável que essas relações e processos de validação sejam legitimados em meio as articulações entre os códigos e as comunidades disciplinares no contexto da cultura escolar.

Mais uma vez recorro a Biesta (2017, p. 123, grifos do autor) para pensar a relação entre avaliação e aprendizagem por meio da apropriação da noção de visita por ele mobilizada. Considerando o ato de visitar como “[...] pensar seus próprios pensamentos, mas numa história muito diferente da sua”, permitindo-se a “[...] desorientação que é necessária para compreender como o mundo parece diferente a outra pessoa” (DISCH, 1994, p. 159), entendo que os sentidos tradicionais empregados às práticas avaliativas em sala de aula têm impedido essa visita, que compreendo como educacionalmente formativa em perspectiva emancipatória, de forma que o ato de visitar contempla formas outras de se relacionar com o conhecimento, formas outras de aprender, interpelando processos de subjetivação.

Apropriando-me das contribuições de Gabriel (2018) - para quem é a própria relação com o conhecimento que permite a emergência do sujeito revelando a indissociabilidade entre processos de subjetivação e objetivação - aposto aqui no potencial da avaliação no processo de indução de formas significativas de relação com o conhecimento escolar que permitem ampliar maneiras outras de ser e estar na escola e no mundo.

Aprender, e isso é o que entendo e defendo como o sentido de uma avaliação democrática, é mais do que acumular conhecimentos. Para Álvarez Méndez (2001), aprender diz respeito a modos de pensar com eles para apreendê-los, interiorizá-los e integrá-los à estrutura mental de quem aprende. Isso implica incluir o aluno no processo avaliativo de forma não passiva. Tal necessidade de participação do aluno não significa reatualizar a lógica do desejo como condição sine qua non para a aprendizagem, pois o processo de formar-se ou educar-se gera riscos como aprender o que não se quer, o que se deseja e para o que não se está disponível, deslocando a aprendizagem de um estatuto tão somente racional - plenamente controlado pelo sujeito que aprende, ou pelo sujeito que ensina - para os processos de subjetivação.

Falar da implicação do aluno no processo de avaliação se refere, pois, a criar condições para que ele possa vir ao mundo de forma singular e legitimada, sem que isso signifique apenas repetir a palavra dita por outrem. Nesse sentido, retomo Biesta (2017) para pensar os instrumentos avaliativos e/ou seus usos a partir da noção de funcionalismo negativo. Isso significa pensar em algo que “[...] não pretende prescrever como uma construção deve ser usada e como os usuários devem se comportar, visando, em vez disso, não tornar algumas ações e eventos impossíveis.” (BIESTA, 2017, p. 146-147, grifos do autor). Esse posicionamento permite simultaneamente evidenciar a “[...] impossibilidade de os arquitetos escaparem completamente do funcionalismo” (BIESTA, 2017, p. 151) - o que evidencia a dimensão técnica da avaliação - e as brechas ou fissuras possíveis para outros usos, diferentes dos que foram previstos - o que evidencia a dimensão política da avaliação.

Essa dupla responsabilidade docente contribui para que se pense a avaliação em diálogo com a ideia de espaço-disjuntivo de Biesta (2017), pois este é o espaço da transgressão mútua entre espaço e evento, isto é, uma ordem ameaçada pelo próprio uso que permite, e vice-versa. É ao mesmo tempo espaço e evento. Pensar a avaliação nessa lógica significa admitir que formas singulares de vir ao mundo no momento avaliativo podem colocar em risco os próprios objetivos definidos aprioristicamente em relação ao uso do espaço avaliativo, o que não é em si algo que se deva combater, sendo inescapável e impossível de ser previsto. Ademais, esse risco faz parte da responsabilidade inerente aos processos educacionais em perspectiva democrática. Para o autor:

[...] os eventos são, por definição, aqueles acontecimentos que não podem ser nem previstos, nem controlados pelo programa arquitetônico, mas que cruzam com o programa e, ainda assim, são por ele possibilitados [...] e é no próprio momento de disjunção que o sujeito, aquele que faz uso e abusa do espaço, tornase presença. (BIESTA, 2017, p. 71, grifos do autor)

Investir na diversificação de instrumentos de forma a garantir ou não impedir algumas ações apresenta-se também como antídoto contra o estado de coisas típico da era da mensuração (BIESTA, 2012), caracterizada por espaço privilegiado destinado às avaliações de desempenho aplicadas em larga escala, no qual se valoriza apenas o que pode ser avaliado por instrumentos objetivos, que informam apenas sobre uma relação aquisicionista com o conhecimento. A avaliação da aprendizagem como espaço-disjuntivo articulada ao funcionalismo negativo abre um leque de possibilidades para que se extrapolem os usos convencionais de instrumentos avaliativos no contexto da sala de aula. Assim, a avaliação democrática das aprendizagens, como aqui defendida, viabiliza o “[...] tornar-se presença” (BIESTA, 2017), enquanto os usos tradicionais de instrumentos de verificação da aprendizagem no âmbito escolar tendem a impedi-lo.

Considerando que diferentes perspectivas de aprendizagem e diversos desenhos e instrumentos avaliativos possuem potenciais específicos e que podem ser mobilizados produtivamente a partir de demandas espaço-temporais específicas, na seção a seguir exploro as tensões entre avaliação da aprendizagem e do desempenho de forma a subsidiar a aposta de se pensar os exercícios de livros didáticos no âmbito da primeira.

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO: ENTRE APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

Operar com a adjetivação da aprendizagem ou do desempenho para se referir às avaliações que interpelam o cotidiano escolar desloca a atenção para os limites e as possibilidades de coletas de informações, comparabilidades, produção de diagnósticos e, consequentemente, usos políticos e intervenções, pois esses elementos são condicionados pelos desenhos que cada uma dessas avaliações apresenta. Por desenho de avaliação entende-se aqui o “[...] conjunto de características relacionadas à abrangência, assiduidade, formas de aplicação, modelos de divulgação de resultados e matrizes de referência que ao articularem-se apresentam os limites e as possibilidades de cada avaliação.” (MARTINS, 2015, p. 70). São, portanto - a partir do campo da avaliação educacional - os desenhos que atuam no fechamento das cadeias de equivalência que definem uma avaliação como sendo da aprendizagem ou do desempenho.

As avaliações do desempenho costumam ser de larga escala (VIANNA, 2001), isto é, elaboradas e desenvolvidas fora dos muros escolares, aplicadas em caráter amostral, ou seja, sem contemplar obrigatoriamente todas as escolas e/ou turmas de uma rede ou sistema, comumente destinadas a séries que finalizam ciclos ou etapas (5º e 9º anos do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio), aplicadas apenas uma vez e próximo ao fim do ano letivo para que seja possível medir o desempenho ao final daquela etapa. De acordo com Locatelli (2002, p. 5), nessas avaliações, “[...] tende-se a avaliar o produto da aprendizagem”.

Desempenho, portanto, não é percebido como sinônimo de aprendizagem, mas como seu produto, ou, em outros termos, como o acúmulo das aprendizagens ao longo de um datado percurso que foi capaz de ser capturado por uma avaliação que está voltada para comparar escolas e/ou redes, mas, comumente, não os estudantes. Assim, as avaliações do desempenho não dão retorno sobre a trajetória de aprendizado de cada aluno, mas oportunizam a construção de imagens sobre o desempenho da escola ou da rede em uma escala temporal, o que permite a elaboração de diagnósticos sobre os avanços ou retrocessos dos processos desenvolvidos nos espaços que estejam sendo objeto de avaliação.

Não produzir resultados que permitam acompanhar a evolução dos estudantes individualmente não é, per si, uma falha da avaliação. Ainda que possam ser feitas pertinentes críticas sobre a inadequação de se avaliar as escolas e sistemas apenas pelo desempenho de alunos e alunas em avaliações de larga escala, dado o conjunto de elementos importantes que interpelam as escolas e que não é passível de captura por esses instrumentos avaliativos, isso não invalida o potencial das avaliações do desempenho na produção de diagnósticos. Assim, vale a pena investir em novos sentidos políticos para esta avaliação, a fim de não se desprezar o que ela pode oferecer com vistas a uma melhor produção, distribuição e consumo do conhecimento escolar. Para fazer o acompanhamento individualizado sobre os alunos são as avaliações da aprendizagem que devem ser aplicadas.

Dentre as definições mais simples e diretas para avaliação da aprendizagem, Freitas, Sordi, Malavasi, Freitas (2014, p. 10; 17; 20) contribuem: “[...] aquela realizada em sala de aula sob a responsabilidade do professor”; aquela que tem a finalidade de permitir o “[...] acesso contínuo de todos a todos os conteúdos”; a que “[...] tem como foco a relação professor-aluno”. Tais definições emergem no seio de uma concepção teórico-política que reconhece a centralidade da avaliação nas questões educacionais, mas questiona o atual estado das coisas no que se refere às relações entre o poder público, as escolas e seus profissionais mediadas pelas avaliações, defendendo que as relações sejam atravessadas por uma perspectiva colaborativa e de responsabilidade bilateral, o que, na visão dos autores, não tem acontecido atualmente.

Embora essa crítica seja mais diretamente ligada às avaliações de larga escala, os usos tradicionalmente feitos nos processos avaliativos nas escolas também são criticados, vez que costumam reproduzir, em escala menor, a responsabilização exclusiva do avaliado pelo produto obtido. Em outras palavras, pode-se afirmar que se no contexto das avaliações do desempenho o poder público tem responsabilizado a escola e os docentes pelo fraco desempenho dos estudantes, no espaço das salas de aula, os professores e professoras têm responsabilizado os alunos e alunas pelos seus fracassos, reproduzindo de forma mimética, embora em outra escala, a desvinculação de responsabilidades entre avaliador e avaliado, como se o primeiro não tivesse responsabilidade alguma com o segundo, assumindo uma posição de neutralidade do processo avaliativo, escamoteando a dimensão política de todo ato avaliativo.

Como garantir “[...] o acesso contínuo de todos a todos os conteúdos” (FREITAS, SORDI, MALAVASI, FREITAS, 2014, p. 17) se não há o indispensável vínculo de responsabilidade, no sentido explicitado na seção anterior, do docente com a oferta de processos de subjetivação nas relações de ensino-aprendizagem-avaliação? Esse questionamento evidencia uma aporia, pois caso as avaliações aplicadas internamente pelas escolas fossem realizadas apenas para identificar o que os estudantes aprenderam (adquiriram) e, a partir daí, definissem se os mesmos estão aptos ou não a prosseguirem os estudos em nível mais elevado, sem que haja intervenção curricular-pedagógica a partir do que foi constatado, este uso não garantiria “[...] o acesso contínuo de todos a todos os conteúdos” (FREITAS, SORDI, MALAVASI, FREITAS, 2014, p. 17).

Sendo assim, ou não é pertinente atribuir tal finalidade à avaliação da aprendizagem, ou ela precisa ser pensada em outra estruturação discursiva. Os argumentos mobilizados na seção anterior desse ensaio explicitam a aposta nessa segunda opção. Para tal, trago para a discussão a possibilidade de pensar a avaliação como instrumento curricular-pedagógico de “[...] regulação das aprendizagens” (PERRENOUD, 1999), no contexto de uma “[...] avaliação democrática das aprendizagens” (MARTINS, 2020).

Embora o significante regulação seja tradicionalmente associado a perspectivas tradicionais e conservadoras, interessa-me aqui fazer uma releitura pós-fundacional desse termo, de forma a dotá-lo de capacidade subversiva perante o atual e insistente estágio de dissociação entre ensino, aprendizagem e avaliação no contexto educacional, que tem dificultado uma “[...] avaliação democrática das aprendizagens”. Fernandes (2009, p. 68) define regulação como “[...] um processo deliberado e intencional que visa controlar os processos de aprendizagem para que se possa consolidar, desenvolver ou redirecionar essa mesma aprendizagem”. Já para Perrenoud (1999, p. 90, grifos do autor), regulação das aprendizagens significa:

[ o ] conjunto das operações metacognitivas do sujeito e de suas interações com o meio que modificam seus processos de aprendizagem no sentido de um objetivo definido de domínio. Com efeito, não há regulação sem referência a um estado almejado ou a uma trajetória ótima.

As concepções desses pesquisadores do campo da avaliação educacional sobre regulação são atravessadas pela ideia de controle tendendo a reatualizar sentidos que dão acentuado destaque a um destino final a ser alcançado e já previamente determinado. Focar em um destino prévio tende a impedir que o currículo que está sendo percorrido/experienciado pelos alunos e alunas possa participar do contínuo processo de formação desses sujeitos por meio das relações que eles estabelecem com os saberes no espaço escolar, e a se afastar da perspectiva emancipatória que vem aqui sendo defendida.

Em diálogo com a teorização pós-fundacional interessa-me investir menos no controle do caminho prévio referenciado por um objetivo de chegada, do que na possibilidade de que os processos avaliativos permitam, em sua integração com os processos de ensino-aprendizagem, a expressão de subjetividades discentes por meio da relação com os conhecimentos. Trata-se assim de oferecer pistas tanto para os professores como para os alunos, da qualidade do percurso percorrido até então, de forma que ele possa ser mantido, ampliado, desviado, interrompido, substituído, regulado, enfim, sem que isso signifique performatividade única, engessada e previamente objetivada, que coloque em risco a necessária violência da qual fala Biesta (2017) sobre os processos de ensino-aprendizagem.

Regulação, nesse sentido, assume a condição de compromisso com a responsabilidade necessária aos processos de subjetivação e objetivação mediados pela relação com o conhecimento, tanto por parte de docentes como de discentes. Significa, também, assumir compromisso com os valores de verdade forjados na epistemologia social escolar - que assume a cultura escolar como espaço discursivo que interpela a produção de conhecimento escolar - e nas comunidades disciplinares (COSTA, LOPES, 2016), garantindo, portanto, o compromisso com todas as funções sociais da escola. Regular, portanto, deixa de fazer referência à observação do estrito cumprimento de um percurso na direção de um objetivo predefinido, e transforma-se em ação cujo sentido é garantir a qualidade do ato de percorrer de forma que os objetivos também possam ser modificados em função das experiências forjadas no percurso.

Para que tal regulação não seja impossibilitada ou restrita a função de corroborar aprendizagens e não aprendizagens no sentido de aquisição de conhecimentos reificados - desfazendo ou enfraquecendo o vínculo com a qualidade da “[...] relação com o conhecimento” (GABRIEL, 2018) - uma saída possível, como já mencionado, é a diversificação de instrumentos avaliativos e usos outros dos instrumentos tradicionalmente utilizados em sala de aula que devem ser reorientados em função dos novos sentidos fixados para os significantes avaliação e aprendizagem.

Reconheço, portanto, que os instrumentos sozinhos não garantem a regulação das aprendizagens, sendo imperativo que haja comunicação entre os sujeitos envolvidos, não apenas em um sentido pragmático formal, mas em um contexto de interação entre eles, que evidencie a responsabilidade do docente com a subjetividade dos discentes, e que pode ser nomeado aqui como feedback.

O feedback torna-se, portanto, uma condição necessária, mas, isolado, é insuficiente para que uma avaliação se torne democrática. Seu potencial está na necessidade de os estudantes receberem “[...] orientações sistemáticas e de avaliações do seu trabalho e dos seus desempenhos que os ajudem a melhorar suas aprendizagens”. (FERNANDES, 2009, p. 97). Em sua dimensão técnica, a prática que mais se associa ao feedback é a correção, que precisa ser feita em uma abordagem formativa, pois apresenta importantes potencialidades: i) observação da natureza dos erros, que oferecem pistas para identificar formas de pensar dos alunos; ii) informação sobre o estágio de desenvolvimento das aprendizagens; iii) favorecer as interações entre professor e aluno. (MOREIRA, RANGEL, 2015).

Sem deixar de reconhecer a importância dessas questões, cumpre destacar, assim como assinalado em relação à regulação, que se o retorno dado aos alunos estiver mais centrado nos desempenhos do que nos processos, esse feedback não contribuirá para uma “[...] avaliação democrática das aprendizagens” (MARTINS, 2020). Assim, para que ele cumpra o papel que dele se espera, ele precisa estar em sintonia com as especificidades das tarefas de avaliação propostas, e com a qualidade das respostas particulares oferecidas, de forma a contribuir para que os discentes e docentes possam trabalhar em função de uma regulação das aprendizagens inscrita na pauta pósfundacional.

Finalizando o texto, mas não as discussões, argumento em defesa do uso de exercícios/atividades de livros didáticos como instrumentos potentes no âmbito de uma “[...] avaliação democrática das aprendizagens” (MARTINS, 2020) a partir das discussões mobilizadas até aqui.

EXERCÍCIOS DE LIVROS DIDÁTICOS NO ÂMBITO DE UMA AVALIAÇÃO DEMOCRÁTICA DAS APRENDIZAGENS

Operar com a definição de avaliação como um espaço-tempo fecundo para a efetivação de processos de subjetivação e de (e por meio de) objetivação de conhecimentos, permite ampliar o leque de instrumentos potentes para tal prática. Contudo, importa sublinhar o caráter potencial/experimental da defesa aqui feita, assumindo assim a impossibilidade de que per si os exercícios/atividades propostos nos livros didáticos garantam uma avaliação democrática das aprendizagens, mas reconhecendo nesses instrumentos possibilidades instigantes a serem mobilizadas crítica e criativamente pelo professor nas relações de ensino-aprendizagem-avaliação. Assim, o que aqui se defende é que tais exercícios/atividades sejam percebidos como mecanismos com elevado potencial de produção de aprendizagens, e não apenas como espaço de suas verificações.

Conferir destaque aos usos do livro didático nas aulas implica o reconhecimento de sua relevância e de seu potencial significativo para o desenvolvimento de relações de ensinoaprendizagem significativas. Isso não significa, no entanto, tomá-lo como sinônimo de currículo, tampouco como instrumento que retira/reduz a autonomia docente em seus fazeres, mas pensá-lo como estrutura discursiva, fruto e símbolo da cultura escolar, que articula e valida narrativas, conteúdos, formas de ensinar e formas de aprender, com fins eminentemente educacionais, mas que precisa de alguém que o manipule, que lhe atribua funções e sentidos, que o articule a outros instrumentos pedagógicos. O sujeito apto a exercer tais ações com/sobre o livro didático é o docente.

Uma característica que possui grande potencial de ser explorada no contexto dos usos dos exercícios do livro didático, dado seu caráter de utilização recorrente e que independe do recorte disciplinar e serial, é a de enfraquecimento do ambiente tensional que costuma marcar os processos avaliativos tradicionais, orientados pela lógica da classificação. Fazendo parte do cotidiano escolar, a utilização dessas atividades tende a não provocar fortes impactos negativos nos sujeitos envolvidos nas relações de ensino-aprendizagem, como as avaliações externas, por exemplo, e nem mesmo como as provas que, geralmente, resultam em uma nota que situa cada aluno em uma posição no interior de uma escala de excelência, promovendo, portanto, impactos (nem sempre positivos) nos processos de produção de subjetividades dos sujeitos envolvidos diante do processo de objetivação que esta prática avaliativa enseja.

Concordo, dessa forma, em relação ao potencial dos exercícios, com Fernandes (2009, p. 103), que afirma que essa avaliação é mais contextualizada porque:

Ocorre à medida que os alunos vão resolvendo ou trabalhando as tarefas que lhes são propostas no contexto normal da sala de aula, sem os constrangimentos de tempo e de administração que ocorrem nos testes padronizados. Mas também porque os alunos têm oportunidades para analisar seu trabalho e, por isso, a autoavaliação e a autorregulação das aprendizagens podem ser práticas habituais. Nestas condições, os alunos poderão, em princípio, ter mais oportunidades para mostrar o que sabem e são capazes de fazer e os professores mais oportunidades para conhecer suas dificuldades e ajudá-los a superá-las.

O uso desses recursos de aprendizagem presentes e consolidados nos livros didáticos atende também à necessidade de diversificação de instrumentos de produção informações no âmbito de uma avaliação democrática das aprendizagens, assim como provas, testes, memoriais, trabalhos em grupo, pesquisas bibliográficas, portfólios, resenhas, seminários, dentre outros. Ademais, permite ao professor não apenas mapear formas de “[...] relação com o conhecimento” (GABRIEL, 2018) por parte dos alunos com vistas a processos de regulação na perspectiva aqui assumida, mas também fazer os necessários ajustes nos processos de forma a garantir a imbricação entre ensino, aprendizagem e avaliação de forma articulada, mas não linear.

A autonomia docente e a infinidade de possibilidades de manipulação desses exercícios em relação a sua seleção, adaptação, desconstrução e propostas de intervenção permitem que se atue no sentido de promoção de um “[...] funcionalismo negativo” (BIESTA, 2017) como discutido na segunda seção deste ensaio. Como isso não significa validação automática de qualquer forma de se relacionar com os conhecimentos, tal funcionalismo tem potencial para agir como espaço pertinente para visitas (BIESTA, 2017) que precisam de feedback e regulação nas perspectivas aqui assumidas.

Considerando também as definições consolidadas no âmbito dos estudos e pesquisas da área de avaliação educacional, ainda que os exercícios não sejam produzidos pelos docentes, o fato deles poderem escolher com quais trabalhar, de poderem adaptá-los de acordo com seus objetivos e com as características dos discentes, assim como a possibilidade de acompanhar a trajetória de cada aluno individualmente, o fomento da aproximação professor-aluno e aluno-aluno em perspectiva colaborativa, e a presença constante no cotidiano da sala de aula tornam possível situar esses instrumentos no âmbito das definições sedimentadas de avaliações da aprendizagem.

Os exercícios de livros didáticos, portanto, têm potencial de permitir a diversificação de instrumentos avaliativos, o processo contínuo de regulação das aprendizagens, a organização permanente do trabalho docente, a diminuição da tensão que tradicionalmente envolve os processos de avaliação, a incorporação da avaliação ao processo de ensino-aprendizagem, permitindo, ou não impedindo, respostas autorais e afetações por meio da relação com o outro e com os diversos saberes que atravessam as relações de ensino-aprendizagem, reafirmando a validade de pensar emancipação como ato criativo. Tudo isso oportunizando a fixação de conhecimentos, o que também tem a sua importância. O que seria isso senão a articulação do processo de subjetivação aos processos de qualificação e socialização por meio de uma avaliação democrática das aprendizagens?

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Recebido: Maio de 2022; Aceito: Dezembro de 2022

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