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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.24 no.73 Rio de Janeiro abr./jun 2023  Epub 24-Ago-2023

https://doi.org/10.12957/teias.2023.66276 

Artigos de Demanda Contínua

HACKEAMOS A UNIVERSIDADE: disputas e afirmações sobre o (não) lugar das pessoas trans e travestis na universidade

WE HACKED THE UNIVERSITY: disputes and claims about the (non)place of trans and travestis people in the university

HACKEAMOS LA UNIVERSIDAD: disputas y afirmaciones sobre el (no)lugar de las personas trans y travestis en la universidad

Júlio César de Oliveira Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-8882-2310; lattes: 2773509447582696

1Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) E-mail: julio.santos@ufpe.br


Resumo

Este artigo tem como objetivo problematizar noções de hackeamento e pertencimento, e as disputas sobre a territorialização da universidade através de narrativas de quatro mulheres trans/travestis estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Com esse intuito, entre outubro de 2019 e setembro de 2021, foram realizadas entrevistas individuais, semiestruturadas e em profundidade com quatro mulheres trans/travestis estudantes da UFPE, sobre suas trajetórias de ingresso e permanência na universidade. Nas narrativas aqui apresentadas, acessar a universidade envolve um sentimento de que o espaço acadêmico não é feito para pessoas trans e travestis, mas que nesse acesso encontra-se oportunidades de ressignificar as próprias histórias de vidas e disputar a universidade. As interlocutoras desse estudo destacam, por essa razão, como suas trajetórias acadêmicas são bandeiras e veículos de lutas fundamentais para essa população, deslocando os significados da política e da própria universidade. O termo hackear, que vem da palavra inglesa hack, significa invadir um sistema ou rede computacional, ou usar as técnicas que constituem um sistema contra ele mesmo causando modificações a favor de alguém. Dessa maneira, hackear a universidade é disputá-la por dentro, acessando seus espaços e dispositivos e desconstruindo as lógicas de subalternização e exclusão político-epistêmicas das pessoas trans e travestis.

Palavras-chave: universidade; pessoas trans e travestis; currículo

Abstract

This paper aims to problematize notions of hacking and belonging, and the disputes about the territorialization of the university through the narratives of four trans/travestis women students at the Federal University of Pernambuco (UFPE). For this purpose, between October 2019 and September 2021, individual, semi-structured and in-depth interviews were carried out with four trans women / travestis students at UFPE, about their paths to entering and staying at the university. In the narratives presented here, accessing the university involves a feeling that the academic space is not made for trans and travestis people, but that in this access there are opportunities to reframe their own life stories and compete for university. The interlocutors in this study highlight, for this reason, how their academic trajectories are flagships and vehicles of fundamental struggles for this population, displacing the meanings of politics and the university itself. The term hack, which comes from the english word hack, means to invade a computer system or network, or to use the techniques that constitute a system against itself causing modifications in favor of someone. In this way, hacking the university is disputing it from the inside, accessing its spaces and devices and deconstructing the logic of subalternization and politicalepistemic exclusion of trans and travestis people.

Keywords: university; trans people and travestis; curriculum

Resumen

Este artículo tiene como objetivo problematizar las nociones de hackeamiento y pertenencia, y las disputas sobre la territorialización de la universidad a través de las narrativas de cuatro estudiantes trans/travestis de la Universidad Federal de Pernambuco (UFPE). Para ello, entre octubre de 2019 y septiembre de 2021, se realizaron entrevistas individuales, semiestructuradas y en profundidad a cuatro estudiantes mujeres trans/travestis de la UFPE, sobre sus caminos de ingreso y permanencia en la universidad. En las narrativas aquí presentadas, el acceso a la universidad implica sentir que el espacio académico no está hecho para personas trans y travestis, sino que en ese acceso hay oportunidades para replantear sus propias historias de vida y competir por la universidad. Los interlocutores de este estudio destacan, por ello, cómo sus trayectorias académicas son banderas y vehículos de luchas fundamentales para esta población, desplazando los sentidos de la política y de la propia universidad. El término hackear, que proviene de la palabra inglesa hack, significa invadir un sistema informático o red, o utilizar las técnicas que constituyen un sistema contra sí mismo provocando modificaciones a favor de alguien. De esta forma, hackear la universidad es disputarla desde adentro, acceder a sus espacios y dispositivos y deconstruir la lógica de subalternización y exclusión político-epistémica de las personas trans y travestis.

Palabras clave universidad; personas trans y travestis; currículum

INTRODUÇÃO

Um dos pontos fulcrais para a educação superior brasileira nos últimos anos tem sido uma crítica rígida sobre quem acessa as universidades públicas. Essa crítica vem sendo amplamente defendida por diferentes sujeitos políticos, como os movimentos negros, indígenas, de pessoas com deficiência e LGBTI+1, por exemplo, que passaram a demandar uma democratização da educação superior (SANTOS, 2022). Um dos argumentos mais centrais aqui é o de que as disputas que marcam a efetivação dessa democratização se entrelaçam com o conflituoso processo de cidadanização de sujeitos LGBTI+, ou de constituição da população LGBTI+ como sujeitos de direitos no Brasil (AGUIÃO, 2014).

Nas universidades, têm sido notáveis os efeitos desse processo. Observa-se a multiplicação de linhas de pesquisas, grupos de estudos, congressos acadêmicos, encontros estudantis, exposições artísticas e culturais, campanhas publicitárias, diferentes grupos de atuação política, setoriais institucionais voltadas à produção de políticas, todos focados em relações de gênero e sexualidade e tendo como alvo principal a chamada população LGBTI+. As universidades se tornaram espaços fundamentais das lutas e conquistas da cidadanização dessa população.

Nos últimos anos, convivemos com avanços na direção de uma desdemocratização (BROWN, 2019) da educação superior, com o recrudescimento de movimentos conservadores, sobretudo evangélicos, e o fortalecimento de demandas neoliberais (SANTOS, 2022). Ricardo Vélez, o primeiro-ministro da educação do governo de Jair Bolsonaro2, afirmou em entrevista ao jornal Valor Econômico, em janeiro de 2019, primeiro mês da gestão, que “[...] a ideia de universidade para todos não existe” e que as universidades devem ficar reservadas para uma “[...] elite intelectual” (PASSARELLI, 2019). Abraham Weintraub, sucessor de Vélez, anunciou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em abril de 2019, que o ministério cortaria recursos de universidades que “[...] em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estivessem fazendo balbúrdia” (AGOSTINI, 2019). O ministro disse ainda que as universidades estariam com sobra de dinheiro “[...] para fazer bagunça e evento ridículo” e citou exemplos: “[...] semterra dentro do campus, gente pelada dentro do campus” (AGOSTINI, 2019). Os cortes no orçamento chegaram a 30% do esmo, como anunciado pelo então ministro, atingindo as despesas discricionárias – que envolvem a gestão de obras, os serviços de limpeza, água, energia elétrica, segurança e a assistência estudantil. A medida e as declarações do ministro tiveram grande repercussão e reações se espalharam ao longo do território nacional. Notavelmente, nesse contexto, os discursos que assumem o combate às desigualdades e estigmatizações sofridas pelas pessoas LGBTI+ e que afirmam a dignidade e a cidadania desses sujeitos, são apontados como perversos e nocivos ao pleno desenvolvimento das universidades – e, no limite, da própria sociedade.

Por sua vez, Milton Ribeiro, sucessor de Weintraub e terceiro Ministro da Educação, declarou em entrevista ao programa Sem Censura3, da TV Brasil, em agosto de 2021, que “[...] a universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”. Trata-se, em suma, do aprofundamento de uma pluralidade de investimentos políticos sobre o significado da educação superior e da universidade pública, articulando demandas neoliberais e conservadoras, buscando hegemonizar outro registro (SANTOS, 2022).

Contudo, mudanças significativas no perfil discente e docente das universidades brasileiras vieram sendo observadas como efeito das articulações entre os processos de democratização da educação superior e de cidadanização a população LGBTI+. Com essas mudanças, emergem novos interesses, demandas pela circulação de novos temas no âmbito da produção do conhecimento acadêmico, pelo reconhecimento de direitos e o combate às desigualdades e opressões, assim como se multiplicam partilhas de outras perspectivas epistemológicas e experiências (LIMA, 2018; FACCHINI; CARMO; LIMA, 2020; RIOS; PEREZ, 2020). Esses processos ganham novos elementos a partir do fortalecimento de demandas dos ativismos LGBTI+, sobretudo de pessoas trans e travestis, que alcançam visibilidade na cena política universitária. Isto é, as universidades públicas brasileiras, lugares em que desigualdades sociais são historicamente reproduzidas, se tornaram também espaços-tempos de importantes lutas pela afirmação e ampliação de direitos e pelo combate a diferentes formas de opressão social (FACCHINI, 2020; LIMA, 2020; SALLES, 2020).

Este texto é um recorte temático de uma pesquisa de doutorado, concluída em 2022, que buscou compreender como processos políticos mais amplos e formas de subjetivação se perfazem no âmbito da educação superior, através de narrativas de estudantes LGBTI+ que ingressaram na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) nos últimos anos. Este artigo tem como objetivo problematizar noções de hackeamento e pertencimento, e as disputas sobre a territorialização da universidade através de narrativas de mulheres trans/travestis estudantes universitárias. Com esse intuito, entre outubro de 2019 e setembro de 2021, foram realizadas entrevistas individuais, semiestruturadas e em profundidade com quatro mulheres trans/travestis estudantes da UFPE, sobre suas trajetórias de ingresso e permanência na universidade. Dado o contexto de isolamento imposto pela pandemia de COVID-19, as entrevistas foram realizadas de forma remota, através de chamadas de vídeo pela internet. Através dessas escolhas, acionei alguns contatos entre estudantes da UFPE que passaram a indicar possíveis interlocutoras, e ao término de cada entrevista perguntei se conheciam outras pessoas que poderiam participar da pesquisa, chegando assim a essas pessoas. Optei pelo uso de pseudônimos, e ao final de cada entrevista, pedi que cada uma escolhessem um nome que gostariam de receber nesse estudo.

Entre as entrevistadas estão: Gabriela, 22 anos, mulher trans4, branca e estudante da área de Linguística, Letras e Artes, ingressou na UFPE em 2017, e até o momento da entrevista a graduação estava em andamento; Oxum, 19 anos, travesti, branca e estudante da área das Ciências Humanas, ingressou na UFPE em 2019 e até o momento da entrevista a graduação estava em andamento; Cleópatra, 35 anos, mulher trans, negra, e estudante egressa da áreas das Ciências Sociais Aplicadas, entre 2006 e 2009, e das Ciências Humanas, entre 2017 e 2019; e Maria, 23 anos, mulher trans, branca e estudante da área Linguística, Letras e Artes, ingressou na UFPE em 2014 e até o momento da entrevista a graduação estava em andamento.

DISPUTA DE NARRATIVAS

Para algumas pessoas que ingressaram nas universidades públicas nos últimos anos, uma questão importante é uma sensação de não-pertencimento aos espaços universitários. Esse foi um aspecto também registrado por outros estudos, como Lima (2020), entre as mulheres negras, em “‘A gente não é só negro!’: interseccionalidade, experiência e afetos na ação política de negros universitários”, e Iazzetti (2021) com pessoas trans estudantes universitárias, em “Existe ‘universidade’ em Pajubá?: Transições e interseccionalidades no acesso e permanência de pessoas trans*”. Nessa direção, atualmente é possível observar nas universidades brasileiras atuações políticas na construção de um pertencimento nessas instituições, que passa por uma reconstrução das relações sociais e políticas institucionais.

Entre as narrativas que analisei nessa pesquisa, isso se tornou mais evidente entre as pessoas trans e travestis. Elas falavam do lugar das pessoas trans e travestis na universidade, como uma espécie de “não-lugar”, como se estivessem ali, mas não pertencessem a aquele espaço. Sobre essa questão, Gabriela (22 anos, mulher trans) comentou:

Estar na universidade para mim significa uma disputa de narrativas. Eu entendo que estando nesse espaço eu consigo não só me representar, mas também dizer como a minha narrativa, e a das outras que não conseguiram acessar aquele local, deve ser respeitada, e devem ser contadas também. Eu entendo que é uma ressignificação de um espaço que nunca foi pensado para mim, ou nunca me imaginaram possível ali dentro. E é como se fosse um ataque surpresa para todas as pessoas que estavam ali dentro, de um corpo como o meu conseguir acessar aquilo e estar discutindo tão bem quanto, ou até melhor do que as pessoas estão fazendo ali dentro, e produzindo também né, produzindo conhecimento. Mostrar que produzimos conhecimento.

Além do significante representação que Gabriela aciona, cabe notar dois outros sentidos que também falam de modos de atuação política de pessoas LGBTI+ na universidade. O primeiro é sobre como o significado da universidade para ela está vinculado à noção de disputas de narrativas. Sobre essa noção a universidade aparece como uma oportunidade de contar, respeitar e ressignificar outras narrativas, especialmente de outras mulheres trans como ela. E narrativas aqui se refere a trajetórias de vida. Em pesquisa sobre trajetórias de estudantes negros/as universitários/as, Lima (2020) registrou algo bastante semelhante. Entre as pessoas entrevistadas por ela, a produção de conhecimentos na universidade por pesquisadores/as negros/as significava algo como a tomada de um poder sobre suas próprias histórias e da população negra.

Como se percebe na narrativa de Gabriela, esse processo tem como efeito a abertura de outros sentidos e modos de vivenciar a universidade. Colocar-se politicamente na perspectiva focalizada por Gabriela, como algo que é o significado da universidade em sua trajetória, não é algo ao acaso, ou meramente retórica. Expressa uma série de processos políticos que vieram se desdobrando no cotidiano universitário, entre eles a própria construção das pessoas trans e travestis enquanto sujeito político, em que processos de ressignificação da universidade e do campo de produção de conhecimento acadêmico se abrem (SANTOS, 2022).

Um segundo sentido é essa percepção de que a universidade se constitui como “[...] um espaço que nunca foi pensado” para ela, ou que a presença dela não fosse esperada ou imaginada naquele espaço. Estar na universidade nesse contexto seria uma espécie de “ataque surpresa”: corpos não imaginados para aquela instituição, acessam inesperadamente e passam a produzir conhecimento tão bem quanto outras pessoas. E Gabriela concluiu: “Eu acredito que a gente hackeou o sistema de alguma forma, então estamos ali como corpos que hackeiam aquilo, mas que não estão o tempo todo dentro daquela narrativa”.

O termo hackear, que vem da palavra inglesa hack, significa invadir um sistema ou rede computacional, ou usar as técnicas que constituem um sistema contra ele mesmo causando modificações a favor de alguém. Dessa forma, para Gabriela, sendo o sistema universitário cisnormativo, quando pessoas trans o acessam, fazem hackeando, isto é, usando as técnicas desse sistema contra ele mesmo, causando modificações na narrativa que se passa nessa instituição. Curiosamente, Brume Dezembro Iazzetti (2021) também registra usos dessa metáfora sobre rackear entre estudantes trans universitários/as que entrevistou. Entre seus/suas interlocutores/as, também se encontra a percepção de que a universidade não é lugar para pessoas trans e travestis. Sob essa metáfora está a ideia de que ao reivindicarem os espaços da universidade, apreendidos como um não-lugar para pessoas trans, essas pessoas estariam hackeando. Na pesquisa realizada por Iazzetti, “[...] ‘ocupar e hackear implicam em complexas negociações com limites contingentes, que tendem, por vezes, a esbarrar nos limites do que é inegociável em meio a profundas estruturas verticalizadas de poder e dominação” (IAZZETTI, 2021, p. 256).

Essa noção de entrar na universidade como quem não participa daquele espaço, mas que encontra nele uma oportunidade de contar outras narrativas e assim ressignificar a sua própria história de vida é algo compartilhado por outras pessoas entrevistadas no âmbito mais amplo dessa pesquisa, trans e cisgênero, o que se vinculava a diferentes questões, como as posições de sujeito em relações de classe, racialização, gênero, sexualidade e as trajetórias de vida e de família. Embora esse aspecto tenha emergido em outras narrativas, foram as pessoas trans e travestis quem mais enfatizaram essa percepção.

Numa direção parecida, enquanto conversávamos sobre como o que se passava na universidade participava de seus processos de identificação e afirmação enquanto travesti, Oxum (19 anos, travesti) destacou: “[...] então, a universidade não participa disso, eu faço ela participar. Ela vem comigo participando. Eu levo para sala de aula todas essas questões e minhas demandas que não são tratadas em sala de aula”. Suspeito que essa seja uma das formas de hackear o sistema de que Gabriela falou. Isto é, Oxum acessa os espaços da universidade, como as salas de aula, e, através da própria linguagem acadêmica, compele a instituição a levar em conta suas questões e demandas. Nos últimos anos, essa perspectiva política veio se tornando cada vez mais frequente nas universidades, o que envolve sujeitos políticos trans e travestis, mas também outros. Entre outras coisas, essa perspectiva política tem ampliado a visibilidade de questões e demandas trans e travestis em diferentes esferas da vida acadêmica, e impulsionando modificações no cistema – trocadilho entre as palavras sistema e cis, mobilizado em diferentes produções intelectuais de pessoas trans e travestis no Brasil para destacar o caráter cisnormativo constitutivo do sistema (VERGUEIRO, 2015; IAZZETTI, 2021) – ou na informática da dominação de que Jota Mombaça (2021) fala, em uma analogia a essa estrutura normativa. Isso reforça a ideia que tenho trabalhado ao longo desse estudo, de que não apenas as experiências decorrentes dos espaços universitários transformam as trajetórias de vida e compõem assim formas de subjetivação, como esses sujeitos também tensionam e deslocam a universidade.

Essa tensão sobre o lugar das pessoas trans na universidade reverbera em outros estudos com esse público. Nos relatos analisados por Adriana Santos (2017), entre estudantes trans da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a universidade é apresentada como espaço de constante disputas sobre o lugar das pessoas trans, em que de um lado há modos explícitos e também sutis de anunciar que aquele não é o lugar para essas pessoas, e de outro, há afirmações e reivindicações constantes deles e delas, disputando o que se passa na universidade.

Falar em um “não-lugar” das pessoas trans e travestis na UFPE requer pensarmos, portanto, nos tensionamentos, nas formas de resistência e nos modos pelos quais esses sujeitos agenciam possibilidades de persistir nesse contexto. Há uma afirmação política constante que cria formas de pertencimento. Na narrativa de Maria (23 anos, mulher trans), ganha destaque a forma como ela descreve a sua participação nos movimentos LGBTI+ e trans no campus em que estuda, em Caruaru. Ela contou que a militância dela dentro da UFPE, através do movimento estudantil e LGBTQIA+, vem se dando mais através da promoção de rodas de diálogos, formações internas entre outras ações mais pontuais, e completa:

Então a minha atuação dentro da UFPE primeiro foi quebrar esse paradigma de que sim, sou uma travesti e eu posso estar ocupando este espaço da graduação de um ensino público superior. E em seguida foi esse momento de fazer formação, de assim, 'ah, hoje é o dia internacional da mulher, aí as universidades sempre promovem uma roda de debates sobre a saúde da mulher, então tá, vamos ver a saúde da mulher trans e travesti'. A minha atuação na UFPE sempre foi assim. Então tipo, sei lá, vamos falar sobre isso, então tá, e a população LGBT se encaixa nisso onde? A minha atuação na UFPE sempre foi para dizer assim 'oh, tem que abordar a perspectiva trans aí sim, porque eu sou trans, eu tô aqui e vocês não estão falando sobre mim’. Então a minha ação dentro da UFPE eu posso basear em sempre fazer com que a universidade enxergasse a perspectiva trans em todos os seus aspectos, porque a gente sabe que a nossa sociedade é cis, e ela só é enxergada de uma ótica cis. Então eu até digo assim, quando as pessoas vêm falar comigo ‘ah Maria, como é que eu faço para ajudar a – acontece isso muito na universidade – contribuir para uma redução de danos da transfobia’. Eu digo assim: ‘olha, quem criou a transfobia foi vocês pessoas cis, então vocês que se resolvam’. Tipo: ‘eu não criei a transfobia. Quem inventou a transfobia foi vocês, então se questionem. Se questionem porque é que vocês fazem transfobia, porque é que vocês não entendem que existe outras identidades que são tão legitimas quanto às suas e porque é que vocês têm essa prepotência de achar que só a sua identidade é legitima. Porque se eu estou aqui falando com você enquanto pessoa viva que existe que estou exercendo essa comunicação, é porque eu existo e é porque a minha identidade é legitima’.

Como Maria afirma, a atuação política dela na universidade envolve quebrar uma espécie de visão de que a universidade pública não seria lugar para travestis, e fazer com que as perspectivas e demandas delas fossem incluídas nas discussões nessa instituição, o que se aproxima do sentido de hackear descrito por Gabriela.

Enquanto conversávamos sobre sua trajetória na UFPE, perguntei a Cleópatra (35 anos, mulher trans) sobre o que atualmente significava a universidade para ela e ela respondeu, rapidamente, e em uma única frase: “[...] um lugar cercado de muros muito altos, mas que não foi capaz de me impedir de entrar”. Curioso sobre esse sentido, insisti e questionei então o que é estar na UFPE e ela respondeu:

É buscar destruir esses muros. É buscar minar essa estrutura. Derrubar muros é... não sentar a uma mesa de jantar de privilégios por ser acadêmica, mas parar o jantar e questionar quem é que tá nessa mesa, e como quem tá nessa mesa nos tratou durante tanto tempo. Derrubar muros é entender que eu posso deslocar o sentido de objeto de pesquisa e dizer que o outro... É não compartilhar dessa lógica. É entrar nesses muros como um cavalo de Troia, sabe, e lá dentro guerrear. E se for precisar matar para que a estrutura caia a gente mata, porque a gente não vai entrar rendida nessa guerra, porque isso não é uma batalha que tem data para começar e data para terminar. É uma guerra histórica e que a gente não tá entrando de pobre coitada. A gente não tá entrando na gandaia. A gente tá cada vez mais pressionando e fazendo fissuras nesse muro. E a gente vai fazer fissuras até que esse muro venha a cair e se ele não cair a gente vai forçar até que isso aconteça. É reescrever a nossa história não como pessoas rendidas, mas como pessoas que estão dispostas a ressignificar o termo de uma universidade que se diz pública. É a ideia de materializar esse sentido de pública em seu sentido de raiz, de radical. Ela ser de fato do povo e não apenas tratar o povo como mero objeto de pesquisa.

Assim como Maria, Cleópatra demonstra como essa percepção do lugar das pessoas trans e travestis é tensionado. Sendo a universidade um espaço de produção de discursos poderosos, capazes de organizar regimes de verdade, acessá-la significa, para Cleópatra, questionar quem ocupa seus bancos, o que envolve pensar nas exclusões em jogo e em que posições estão as pessoas trans e travestis. Estão reivindicando a universidade, disputando os seus rumos. E não estão entrando nessas batalhas pela universidade como pobres coitadas, como diz Cleópatra. Em múltiplas reivindicações, ou mesmo pela própria presença, já que a aparição de certos corpos em determinados espaços transforma as relações, como afirma Butler (2018), estão produzindo fissuras nas estruturas, forçando a universidade a abrir-se a outras perspectivas políticas, teóricas, epistemologias, metodológicas e outros sujeitos.

Essa perspectiva mostra como o lugar das pessoas trans e travestis na universidade está sob disputas políticas acirradas. Portanto, não há benesse, ou privilégio, em estar na universidade sendo uma pessoa trans ou travesti, Cleópatra enfatiza. Trata-se de lutas cotidianas pela construção contínua desse lugar. A esse respeito, Cleópatra continua:

Mas, aí você tem que estar lá dentro e se moldar ao que a universidade acredita que é epistemologia, a universidade acredita que é metodologia. Mas, aí por exemplo, o corpo da gente se transforma em objeto de pesquisa, as nossas narrativas é metodologia, as pessoas estão mais interessadas em notas na CAPES do que na nossa voz, a universidade ela tá muito mais preocupada com o CNPq do que com as nossas experiências de fato. Há toda uma questão que faz com que as nossas experiências sejam vistas como objeto de pesquisa né.

Mesmo lidando com essa percepção de que habitam um não-lugar, é interessante notar uma potência de ação política dessas pessoas. Como analisado na seção anterior, as disputas políticas travadas pelas pessoas trans e travestis na universidade se estendem não apenas a como historicamente enfrentam exclusões, mas a como se dão os processos de produção de conhecimento em seus muros. Isto é, denunciam a ausência ou o ainda baixo acesso de pessoas trans e travestis nas universidades – como estudantes, docentes e demais profissionais –, as discriminações, constrangimentos, silenciamentos e violências que afetam as trajetórias acadêmicas, enquanto demandam mudanças nesses aspectos, mas se concentram também em como os conhecimentos são produzidos, sobretudo quando falam sobre questões que as tocam. Nesse contexto, importa muito para Cleópatra deslocar o sentido de objeto de pesquisa que marca, de maneira mais geral, a aparição dessas pessoas na produção acadêmica, para torná-las sujeitos na produção dos conhecimentos acadêmicos, especialmente sobre suas trajetórias.

Cleópatra explica ainda que a universidade sequer pensa na produção intelectual feita por pessoas trans e travestis. Mesmo quando se estuda questões como o transfeminismo5 ou o movimento trans, “[...] é sempre a leitura cisgênera sobre isso”. Conta que viu textos de várias autoras e autores, mas que entre eles nunca encontrava as produções de Viviane Vergueiros, Sayonara Nogueira e Jaqueline Gomes de Jesus, nomes que cita como exemplos. Em sua análise, não há esforços na universidade em incluir a produção que é feita pelas pessoas trans e travestis, e explica:

Porque é um deslocamento, sabe. É dizer que quem nasceu para ser eternamente objeto de pesquisa não pode ter voz dentro da universidade. Então, ‘a gente prefere que vocês fiquem na posição de objeto de pesquisa, que a gente lance um olhar sobre vocês, do que vocês terem direito à própria narrativa, porque se vocês têm direito a própria narrativa vocês quebram com o que a universidade defende que é a imparcialidade e a neutralidade’ (Cleópatra).

Ela observa que um dos principais argumentos sobre essa ausência é o de que há poucas produções dessa população. Contudo, rebate dizendo que há produções de pessoas trans e travesti, mas que como nem sempre se enquadram nos moldes acadêmicos, ou no que hegemonicamente se defende como princípios que conferem esse reconhecimento, não têm sua importância e legitimidade reconhecidas. “Não é conhecimento legítimo porque não tem Qualis6”, ela explica. Há, portanto, um movimento duplo. De um lado a denúncia de que os cistemas acadêmicos – para usar uma expressão de Vergueiro (2015) – produzem reconhecimento epistêmico para alguns, mas não para outros. De outro, uma reivindicação pelo reconhecimento da legitimidade das produções intelectuais de pessoas trans e travestis na academia, entre outras coisas, deslocando-as da posição de objeto de pesquisa para a de especialistas ou referências, portanto, sujeitos.

Essa crítica sobre as estruturas de produção de conhecimentos se aproxima ainda do que Thiago Coacci (2018), em seu estudo sobre a relação entre política e conhecimento nos movimentos sociais de pessoas trans e travestis no Brasil, chamou de precariedade do conhecimento. Coacci registra os tensionamentos entre movimentos sociais de pessoas trans e travestis e universidade que alcança ao menos quatro aspectos:

(i) a falta de utilidade prática do conhecimento produzido na universidade; (ii) a relação pouco democrática e assimétrica entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa; (iii) a falta de legitimidade do conhecimento produzido pela universidade e pelos movimentos sociais perante o Estado; e (iv) a inexistência de dados oficiais sobre a vida de pessoas trans (COACCI, 2018, p. 181-182).

As evidentes conexões entre as análises de Coacci e a crítica de Cleópatra à relação entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa, ou entre pesquisadores e objetos de pesquisa, como me disse, nos dá indícios sobre a amplitude dos das críticas e embates travados por pessoas trans e travestis na universidade, que criam modos de atuação política nesses espaços. Quer dizer, um dos pontos chaves das atuações políticas dessa população tem sido questionar quem ocupa quais posições na produção do conhecimento acadêmico, e como formas de legitimação das vozes ocorre diferencialmente. Assim, questionam quais corpos alcançam o reconhecimento na posição de pesquisadores, portanto produtores de conhecimentos legitimados, e quais corpos são frequentemente mantidos na posição de objetos de pesquisas, com suas experiências contadas, comentadas e analisadas por outrem. Fala-se, portanto, de uma espécie de hierarquia epistêmica, em que pessoas trans e travestis tradicionalmente ocupariam a posição de objetos de pesquisa, quanto teriam suas produções tidas como menores, ou sem a mesma legitimidade por se tratar de algo da experiência ou por não se enquadrar a certos moldes. Ocorre que o lugar ou não-lugar das pessoas trans e travestis na educação superior dá-se não apenas pelo acesso dessas pessoas nessas instituições, mas como os conhecimentos produzidos por elas são reconhecidos e legitimados nesse campo.

Essa crítica assume múltiplas conformações e se conecta com uma série de repertórios políticos atuais, como as noções de representatividade, lugar de fala e privilégios – categorias mobilizadas em diferentes formas de ativismo político, e que assumem uma infinidade de sentidos na medida em que são acionadas. Entre as conformações que assume, destaca-se a valorização da busca por referências trans e travestis. Pensar essa questão exige levar em conta dois fatores importantes que atravessam os circuitos de ativismos trans e travestis e a academia. O primeiro deles, é a própria relação entre campos como os ativismos trans e travestis e mais recentemente o transfeminismo e a academia. Como Coacci (2014), por exemplo, notou, a difusão do transfeminismo no Brasil, enquanto uma corrente teórica, se deu a partir de 2010 e veio ganhando força nos anos seguintes difundindo-se na academia e fora dela. A esse ponto, podemos relacionar ainda o aumento no acesso de pessoas trans e travestis nas universidades, carregando consigo uma série demandas, saberes e visões de mundo, que tem tensionado o que se passa no interior dessas instituições, inclusive na produção e circulação dos conhecimentos.

O segundo fator relevante e cujas fronteiras com o primeiro são imbricadas, é a importância que o acesso às mídias digitais tem produzido na difusão de diferentes conhecimentos. Como Sofia Favero (2020) bem registra e sem qualquer pretensão de afirmar uma noção ingênua de democratização do acesso à internet, os usos dessas tecnologias digitais tornou-se um meio importante no alastramento de uma variedade imensa de produções e de debates feitos por pessoas trans e travestis. É o caso do surgimento de ciberativismos LGBTI+, que se expandiram nos últimos anos. No contexto das plataformas na internet, com destaque às redes sociais, emergiram formas de engajamento e organização política, denúncias de violências e de casos como a banalização das mortes de pessoas trans e travestis e a produção e compartilhamento de repertórios de atuação (CARVALHO; CARRARA, 2015).

Nas teias intrincadas entre esses dois pontos, nomes como os de João W. Nery, Luma Andrade, Amara Moira, Viviane Vergueiro, Jaqueline Gomes de Jesus, Luisa Marilac, entre tantos outros, foram ganhando visibilidade. Nesse contexto, passou a importar não só a circulação de conhecimentos sobre pessoas trans e travestis, mas a questão sobre quais nomes estão presentes nessa circulação e quais não estão, o que se faz sob dinâmicas de poder.

Em sua pesquisa de doutorado analisando as disputas por reconhecimento empreendidas por ativistas trans, Mario Carvalho (2015) nota a centralidade que a reivindicação por visibilidade tem assumido no contexto brasileiro. Nessa perspectiva, a história do movimento trans no Brasil é marcada pelas lutas entre diferentes regimes de visibilidade, o que passa por distintos modos de ser feito visível e de se fazer visível. No campo acadêmico, a busca por uma visibilidade considerada mais adequada, envolve essa passagem da posição de pesquisadas para a de pesquisadoras, ou produtoras de suas próprias narrativas. Tratar-se-ia de um tipo de “[...] reconhecimento epistemológico de uma população marginalizada” (FAVERO, 2020, p. 5). Para Viviane Vergueiro:

Os enfrentamentos às cisnormatividades em cistemas acadêmicos devem estar atravessados, portanto, tanto pelo reconhecimento destes saberes já produzidos em vários espaços por pessoas de corpos e identidades de gênero diversas (...) quanto pelo seu acesso e permanência a estes cistemas, implicando em transformações institucionais decorrentes deste reconhecimento e destas inserções na academia. Estes enfrentamentos (...) podem ocasionar re+definições epistemológicas que sejam (mais) relevantes a estas diversidades, e re+definições na alocação de recursos destinados a pesquisas a seu respeito (2015, p. 79).

Desse modo, a busca pelas referências trans e travestis são, para Vergueiro, um modo de enfrentamento às cisnormatividades em cistemas acadêmicos, ou um modo de romper com o que Sara Wagner York, Megg Rayara Gomes Oliveira e Bruna Benevides (2020) chamaram de transepistemicídio7. Assim, trata-se de uma estratégia que busca a construção do “[...] reconhecimento epistemológico de uma população marginalizada” (FAVERO, 2020, p. 5). Como Vergueiro evidencia, no âmbito da produção de conhecimentos, tem sido possível observar uma multiplicidade de críticas e formas de invenção de outras epistemologias e outras metodologias.

Além de Vergueiro (2015), os trabalhos de Jota Mombaça (2016), Tertuliana Lustosa (2016), Amara Moira (2017), Dayanna Louise dos Santos (2019) e Dodi Leal (2020), por exemplo, demonstram os feixes criativos que essas reinvenções teóricas, metodológicas e epistemológicas vêm assumindo. Por vias distintas, mas sempre nos cruzamentos entre produção acadêmica e ativismos, essas autoras têm explorado mesclas potentes entre (auto)etnografias, (auto)biografias, ficções articuladas pelo pajubá8 e por fricções com leituras pós-estruturalistas, queers, transfeministas, dos feminismos negros e decoloniais (IAZZETTI, 2021). Ainda que lentamente, essas obras têm entrado nas bibliografias de cursos de graduação e pós-graduação e disputado os processos formativos que neles decorrem. Mais ainda. Para fazer referência à metáfora do hackear, numa perspectiva de pesquisa engajada, pessoas trans e travestis lançam mão das técnicas, espaços e recursos dos sistemas acadêmicos que reiteram desigualdades e silenciamentos contra ele mesmo, transformando-o em benefício dessa população e reinventando a universidade sob formas mais democráticas.

Comentando sobre as transformações recentes e sobre o ingresso de pessoas trans e travestis na universidade, Cleópatra disse que se comove e se alegra bastante quando vê pessoas trans e travestis na universidade, “[...] porque eu vejo que ainda que de forma lenta, esses corpos estão chegando dentro da universidade pública”. Mas, o que a incomoda:

é perceber como as pessoas cisgêneras não sentem falta de ter pessoas trans ao seu lado nos espaços acadêmicos. O que me incomoda é perceber que essas pessoas se espantam com a nossa presença na universidade, mas na verdade elas não se espantam quando a gente não estava presente. Elas naturalizaram que aquele espaço não é feito para a gente e aí quando a gente chega nesse espaço, eu não percebo que essa produção de espanto tem gerado um deslocamento significativo na universidade.

Como Cleópatra analisa, as pessoas cisgêneras se espantam com a presença de pessoas trans e travestis na universidade, mas não sentem falta ou se espantavam com a ausência delas. Nesse caso, espantar-se com a presença de pessoas trans e travestis na universidade se aproxima, entre outras coisas, do que Gabriela comenta sobre esse não-lugar na universidade, como se essas pessoas não pertencessem e estivessem ali como hackers. Ela acrescenta ainda que as pessoas cisgêneras dificilmente pensam em seu lugar de privilégio e em “[...] sua parcela de responsabilidade para que outras pessoas pudessem estar ali ocupando aquele lugar”. Não raramente, as mesmas pessoas que parabenizam por conseguirem entrar na universidade, são também quem se espantam quando mulheres trans e travestis entram em um banheiro feminino, explicou Cleópatra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DESTRUINDO MUROS

Ao longo desse texto, procurei problematizar noções de hackeamento e pertencimento, e como sinalizam para as disputas acerca da construção da universidade através de narrativas de mulheres trans/travestis estudantes universitárias. Como vimos, a universidade é apreendida como local de disputas, em que se encontram estruturas (cis)normativas, que historicamente subalternizam as pessoas trans e travestis, mas também como espaço de possibilidades de tensionamento. Esses processos se inscrevem em um contexto no qual demandas LGBTI+, e especialmente trans e travestis, passaram a disputar mais fortemente a cotidianidade das universidades, exigindo e engendrando possibilidades de vivências mais viáveis nesses espaços, que historicamente têm lidado com conservadorismos e práticas de subalternização desses sujeitos e de suas demandas.

Com as transformações recentes no público universitário, pluralizando os perfis, nota-se os efeitos diversos dessas disputas políticas nessas instituições. Isto é, o acesso crescente – embora ainda inicial – de pessoas trans e travestis tem significado também um aprofundamento das lutas por essas instituições, na medida em que disputam, distendem e transformam o que ocorre em seus espaços e tempos. Nesse contexto, as interlocutoras dessa pesquisa destacaram como suas trajetórias acadêmicas são veículos de lutas fundamentais para essa população dentro das universidades, ressignificando não apenas suas trajetórias de vida, mas também as instituições.

Hackear a universidade é disputa-la por dentro – tal qual a metáfora do cavalo de Troia, mencionada por Cleópatra – mobilizando seus dispositivos em função tanto da transformação de suas trajetórias individuais quanto coletivas. É buscar minar as estruturas e desconstruir as lógicas de subalternização e exclusão das pessoas trans e travestis nesses espaços. Isso envolve demandas pelo reconhecimento de outras perspectivas, em tensões sobre as relações sociais no cotidiano universitário e sobre a produção de conhecimento. É, portanto, buscar refazer a universidade sob outras formas.

Aqui cabe notarmos, por fim, como a universidade mantem-se em um permanente devir. O que a universidade vem a ser não é senão os efeitos das disputas, articulações e antagonismos que marcam tanto o cenário político mais amplo, quanto os cenários mais específicos das questões cotidianas que se perfazem na multiplicidade de relações curriculares. Assim, mesmo em uma conjuntura marcada pelo recrudescimento do conservadorismo, que frequentemente antagoniza com as demandas pelo reconhecimento das demandas trans e travestis, nada está dado de uma vez por todas. Há enfrentamentos, alternativas, caminhos, potências criativas que hackeiam os sistemas, produzem fissuras nos muros que cercam as universidades e as abrem ao novo.

1Nesse trabalho, optei por utilizar o acrônimo LGBTI+, que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, entre outras possíveis formas de identificação em termos de gênero e sexualidade que o símbolo + se refere. No entanto, convém sinalizar que desde a “I Conferência Nacional de Políticas para GLBT”, que deliberou sobre o uso do acrônimo LGBT, as letras se multiplicaram, o que torna possível encontrar outras várias disposições, como LGBTT, LGBTQ, LGBTQIA+, LGBTQIAP+. Nessa contingência, em que o processo de diferir não se encerra e novas identidades emergem sob formas dinâmicas e situacionais, mantive o uso do termo LGBTI+ por ser possivelmente o que vem se consolidando mais recentemente, mas acentuo a precariedade e a impossibilidade de fechamento que marca qualquer um desses acrônimos.

2Em outubro de 2018, Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da república do Brasil, iniciando sua gestão em 01 de janeiro de 2019.

3A entrevista completa pode ser conferida no canal da TV Brasil no Youtube, no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=6JyH4faRwpY

4Mantive todas as categorias identitárias utilizadas por elas em suas caracterizações.

5Como explicou Letícia Nascimento (2021), o transfeminismo surge como uma corrente teórica e política do movimento feminista que se concentra nas demandas e questões específicas de mulheres transexuais, transgêneras e travestis.

6Qualis é um sistema de classificação da produção científica universitária no Brasil, utilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

7Para York, Oliveira e Benevides (2020), podemos entender o trans-epistemicídio como o conjunto de dispositivos e processos de não escuta das “vozes” e narrativas dessa população, ou de não reconhecimento dessas como produtoras de conhecimentos, especialmente no campo acadêmico.

8Mesclando termos de origens diferentes, com destaque a línguas africanas e indígenas, o pajubá é um dialeto criado e falado por algumas pessoas LGBTI+ no Brasil. Atualmente, o pajubá vem sendo recorrentemente mobilizado em diferentes trabalhos acadêmicos e produções culturais (MOMBAÇA, 2016; BARROSO, 2017; LIMA; 2017; MOIRA, 2017; FAVERO, 2020), em que se reivindica certo potencial subversivo, ou enquanto uma metáfora de uma pedagogia de sobrevivência, como sugere Brume Dezembro Iazzetti (2021).

REFERÊNCIAS

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Recebido: Março de 2022; Aceito: Fevereiro de 2023

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